O retrovisor, a distração da paisagem e as incertezas do horizonte: o discurso dos livros didáticos de Sociologia sobre a mudança da estrutura social

 

The view on the past tense, the distraction of the present tense and the uncertainties of the horizon: the Sociology textbooks discourse on changing social structure

 

La mirada sobre el tiempo pasado, la distracción del tiempo presente y las incertidumbres del horizonte: cambio social en los libros de texto de Sociología

 

Valci Melo

Centro de Educação da Universidade Federal de Alagoas, Alagoas, Brasil

melovalci@gmail.com - https://orcid.org/0000-0003-3037-142X

 

 

Recebido em 31 de março de 2021

Aprovado em 27 de maio de 2022

Publicado em 15 de maio de 2023

 

RESUMO

O presente artigo analisa o discurso dos livros didáticos de Sociologia sobre as possibilidades e alternativas de superação da estrutura social vigente. A investigação se deu à luz da Análise do Discurso pecheutiana, em sintonia com as contribuições teóricas de Georg Lukács acerca da ideologia. Ao longo do texto, demonstra-se que, embora os livros didáticos de Sociologia do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) de 2015 materializem discursos diferentes e, por vezes, até contraditório sobre a mudança social, neles predominam efeitos de sentidos vinculados à formação discursiva reformista, alicerçada na formação ideológica socialdemocrata. Por fim, conclui-se que, majoritariamente, o discurso sobre a mudança social materializado nos livros didáticos de Sociologia oferece aos jovens estudantes brasileiros um contato com possibilidades e alternativas restritas ao aperfeiçoamento da ordem social vigente.

Palavras-chave: Ensino de Sociologia. Mudança social. Livro Didático.

 

ABSTRACT

This article analyzes the discourse of Sociology textbooks on the possibilities and alternatives for overcoming the current social structure. The investigation took place in the light of the Discourse Analysis of Pecheutian affiliation, in line with Georg Lukács' theoretical contributions about ideology. Throughout the text, it is demonstrated that, although the Sociology textbooks of the 2015 National Textbook Program (PNLD) materialize different and sometimes even contradictory discourses about social change, it is predominant the effects of meanings linked at reformist discourse, based on social democratic ideology. Finally, it is concluded that, mostly, the discourse on social change materialized in Sociology textbooks offer young Brazilian students a contact with possibilities and societal alternatives limited to improvement of the current social order.

Keywords: Teaching of Sociology. Social change. Textbook.

 

RESUMEN

Este artículo analiza el discurso de los libros de texto de Sociología sobre las posibilidades y alternativas para superar la estructura social actual. La investigación se realizó a la luz del Análisis del Discurso Pecheutiana, en línea con los aportes teóricos de Georg Lukács sobre la ideología. A lo largo del texto se demuestra que, si bien los libros de texto de Sociología del Programa Nacional de Libros de Texto (PNLD) de 2015 materializan discursos diferentes y, a veces, incluso contradictorios sobre el cambio social, predominan los efectos de significados ligados al discurso reformista, fundamentado en la ideologia socialdemócrata. Finalmente, se concluye que, en su mayoría, el discurso sobre el cambio social materializado en los libros de texto de sociología ofrece a los jóvenes estudiantes brasileños un contacto con posibilidades y alternativas que limitadas a la mejora del orden social actual.

Palabras clave: Enseñanza de la Sociología. Cambio social. Libro de texto. Análisis del Discurso.

 

Introdução

A mudança social é uma categoria transversal às disciplinas que compõem as Ciências Sociais (Antropologia, Sociologia e Ciência Política). Sua abordagem pode privilegiar um determinado aspecto da sociedade (uma das instituições sociais, por exemplo) ou debruçar-se sobre o conjunto das relações sociais de uma determinada época e lugar (a estrutura social).

Em um ou em outro caso, a adequada abordagem da mudança social exige a consideração de que ela é uma construção especificamente humana, situada no tempo e no espaço e atravessada pelo poder político, isto é, movida por disputas entre projetos societários antagônicos. Noutras palavras: a adequada abordagem sobre a mudança social exige uma explicação desnaturalizadora, entendida aqui como uma forma de tratamento dos fenômenos do mundo humano como construções exclusivamente sociais e, portanto, como elementos que têm origem (causa, fundamentos), desdobramentos (configurações, formas de expressão) e possibilidades sócio-históricas (condições para realizar-se de forma diferente).

No entanto, essa abordagem desnaturalizadora nem sempre acontece. Em muitos casos, o discurso sobre a mudança social é limitado a uma relação narrativo-descritiva passado-presente, silenciando-se sobre as possibilidades e alternativas em disputa na construção do tempo futuro.

O silenciamento, conforme Orlandi (1995), consiste como uma tentativa discursiva de interdição de sentidos indesejáveis, de censura, exclusão, proibição de determinados sentidos. Como estratégia discursiva, o silenciamento caracteriza-se como uma tentativa de naturalização daquilo que é socialmente construído e, portanto, consiste em uma forma de exercício do poder político favorável à manutenção da ordem social vigente. Pois, como observa Cavalcante (2007, p. 90), a naturalização das relações é uma “estratégia de apagamento dos conflitos de classe”, tendo em vista que essa manobra discursiva, ao atribuir uma espécie de universalização a-histórica aos fenômenos sociais, “retira do ser humano a crença na possibilidade de transformação” e, portanto, favorece o atendimento dos interesses das classes dominantes.

Neste artigo, por sua vez, entendendo a importância das Ciências Sociais na formação intelectual da juventude brasileira, mediante a disciplina escolar Sociologia, reinserida no Ensino Médio através da Lei 11.684, de 2 de junho de 2008, propomo-nos a analisar o discurso dos livros didáticos de Sociologia aprovados e recomendados pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) de 2015 sobre a mudança social em sua dimensão estrutural.

A escolha pelo livro didático como materialidade discursiva se justifica por ser ele um instrumento de formação intelectual distribuído para mais de sete milhões de estudantes do Ensino Médio público brasileiro e um dos principais recursos didático-pedagógicos ao alcance do professorado, sobretudo, daquele sem formação específica na área que leciona.

A pesquisa que deu origem a este artigo foi realizada à luz da Análise do Discurso de filiação pecheutiana em sintonia com o materialismo histórico-dialético, mais especificamente, com as contribuições do filósofo marxista húngaro Georg Lukács acerca da concepção de ideologia.

A seguir, apresentamos e analisamos as sequências discursivas (SD) selecionadas das seis obras estudadas. Uma sequência discursiva (doravante, SD) é um enunciado que materializa um discurso representativo daquilo que o pesquisador investiga. Discurso é entendido aqui, na esteira de Pêcheux (1995), como efeitos de sentidos produzidos pelos sujeitos em sua relação com a linguagem e independente do seu grau de consciência ou tentativa de controle dos mesmos. Já sujeito ou posição-sujeito corresponde à identificação do enunciador, expressa no âmbito da linguagem, com uma ideologia, entendida aqui, a partir de Lukács (2013), como um conjunto de representações, valores, interesses e sentimentos que se caracteriza pela capacidade de orientar a ação cotidiana em prol de um determinado projeto de sociedade, independentemente se essa visão de mundo corresponde a uma apreensão cientificamente correta, equivocada ou falsificadora da realidade.

No caso em tela, as SD foram selecionadas por serem representativas do modo como os livros didáticos de Sociologia do PNLD 2015 concebem a mudança da estrutura social e procuram contribuir para a desnaturalização das explicações a seu respeito. 

 

Mudança social e projeto societário nos livros didáticos de Sociologia

Ao lidarem com a temática da mudança social, especificamente no tocante à mudança da estrutura social, os livros didáticos de Sociologia do PNLD 2015 produzem efeitos de sentidos que ora mantêm uma continuidade, uma memória discursiva com algo já dito na mesma obra; ora afastam-se, assumindo outras posições-sujeito e até deslocando-se para outra formação discursiva[1].

A primeira questão a ser destacada aqui é que a temática da mudança social, embora diga respeito a uma categoria estruturante do conhecimento das Ciências Sociais, sobretudo no âmbito da Sociologia e da Política, só é tratada em espaço específico na obra Sociologia para o Ensino Médio, a qual dedica uma das unidades à temática. Nas demais obras, o assunto aparece dissolvido ao longo dos conteúdos ou, às vezes, ocupando um subtópico relacionado à revolução, a exemplo do que ocorre no livro Sociologia Hoje.

Entendemos que se trata de uma temática transversal, portanto, com possibilidades de abordagem em qualquer uma das disciplinas das Ciências Sociais e no interior dos diversos conteúdos. Contudo, essa mesma característica está presente em duas outras categorias centrais das Ciências Sociais (diferenças e desigualdades) e isso não impede os livros didáticos analisados de, além de tratarem-nas de modo transversal, também dedicarem uma unidade ou capítulo ao assunto.

Essa situação parece dialogar com o silenciamento do edital do PNLD 2015 acerca da mudança social como categoria de análise a ser considerada no tratamento conceitual e teórico das Ciências Sociais. Isto é, ao apresentar os critérios eliminatórios específicos do componente curricular Sociologia, o referido edital (BRASIL, 2013, p. 56) destaca, entre outros critérios, que:

[...] para o componente curricular Sociologia será observado se a obra:

[...] favorece o domínio da linguagem especializada das Ciências Sociais, conferindo tratamento conceitual e teórico aos temas abordados. Categorias como cultura, estado, sociedade, etnocentrismo, poder, dominação, ideologia, instituições sociais, socialização, identidade social e classes sociais deverão ser apresentados.

Vejamos que não aparece qualquer exigência sobre o tratamento da temática mudança social, diferentemente do que o edital faz acerca da categoria diferenças culturais, cobrando e incentivando explicitamente um discurso científico e pedagógico de reconhecimento e valorização da diversidade:

[...] a partir dos estudos realizados na área de Ciências Humanas, busca-se garantir aos estudantes: [...] reconhecer e respeitar diferenças, mantendo e/ou transformando a própria identidade, percebendo-se como sujeito social construtor da história (BRASIL, 2013, p. 50, grifo nosso).

Claro que esse silenciamento do edital não é um elemento a ser visto como uma espécie de “camisa de força” que determinaria obrigatoriamente a presença ou não dessa categoria nos livros didáticos. Como destaca Desterro (2016, p. 247), ao analisar os três livros de primeira edição do PNLD Sociologia 2015: “[...] a existência de prescrições curriculares oficiais não impossibilita as inovações na forma de abordagens dos conteúdos”. Um exemplo a esse respeito é que o edital também dá pouquíssimo enfoque à categoria das desigualdades e, nem por isso, as obras deixam de abordá-la com o destaque que o assunto carece. Para se ter uma ideia, o único momento no qual o edital do PNLD se refere explicitamente às desigualdades é quando, ao tratar sobre os critérios de eliminação das obras, destaca:

[...] para o componente curricular Sociologia será observado se a obra:

[...] contempla – nas análises, exemplos e atividades propostas – situações de diferentes regiões do país e experiências de diferentes classes sociais, possibilitando ao aluno o respeito pela diversidade cultural e o reconhecimento da desigualdade social (BRASIL, 2013, p. 56, grifo nosso).

No entanto, vejamos que, enquanto a diversidade cultural é uma categoria sobre a qual o edital do PNLD não hesita em expressar um juízo de valor (respeito pela diversidade cultural), a desigualdade social aparece apenas como algo que deve ser reconhecido, constatado, e não também como um fenômeno que, resultante de relações sociais injustas, deve gerar indignação e luta pela sua superação. Situação semelhante acontece na Ficha de Avaliação Pedagógica, documento que orienta o trabalho dos pareceristas que apreciam cada obra durante o processo de seleção pública: ao mesmo tempo em que há explicitamente a exigência de que o conteúdo das obras possibilite “o entendimento da diversidade cultural” e contemple “situações e experiências que permitem [permitam] o aluno reconhecer as diferentes classes sociais e as desigualdades econômicas” (BRASIL, 2014, p. 51), nada se diz sobre a categoria mudança social.

Esse discurso de silenciamento sobre a mudança social é curioso, pois como demonstra Santos (2017), repousa sobre os manuais didáticos de Sociologia do PNLD 2015 a expectativa de que o ensino de Ciências Sociais não somente contribua com a formação científica e crítica dos estudantes; espera-se dele, também, que ajude os educandos a tomar parte na transformação da sociedade. Como vivemos em uma sociedade fragmentada em classes sociais com interesses antagônicos, tomar parte nas lutas societárias requer o conhecimento adequado tanto do chão onde se pisa como dos horizontes possíveis.

No que diz respeito ao primeiro aspecto (a formação científica e crítica dos estudantes),as obras parecem lidar com mais segurança e liberdade. Isso é compreensível, tendo em vista que se trata de um objeto de análise que se apresenta de forma concreta e, portanto, devido à sua condição palpável, nos possibilita maior segurança na apreensão de suas características e determinações. Assim, as obras não poupam críticas ao capitalismo, destacando a sua relação umbilical com as desigualdades sociais e o seu caráter essencialmente excludente e destrutivo.

Isso é de suma importância para o conhecimento do chão sobre o qual nos movimentamos, contudo, é insuficiente. Saber onde estamos é um passo fundamental da caminhada,mas para prosseguirmos é preciso saber também aonde podemos e queremos chegar. As possibilidades aqui mantêm uma relação dialética com o querer. Apenas o desejo não transforma sonhos em realidade. E as possibilidades não são portadoras de inexorabilidade, como já se chegou a pensar acerca do socialismo. É preciso articular o possível com o desejável em uma ação coerente.

Assim, não basta conhecermos a origem, os fundamentos e as configurações atuais do capitalismo. É preciso partir da sua radical historicidade e explorarmos as possibilidades de transformação social. No entanto, como se questionam os autores da obra Sociologia em movimento:

 

[SD1] É possível uma sociedade organizada de maneira diferente da atual, com formas menos desiguais de existência e de distribuição dos recursos necessários à vida? (SILVA et al., 2013, p. 234, grifo nosso).

Essa provocação aparece como questão motivadora do capítulo 10 (Estratificação e desigualdades sociais). Enquanto problematização ela teria um papel importante no processo de desnaturalização da realidade se já não viesse com uma possibilidade limitada de resposta para aquilo que se propõe questionar. Ou seja, a indagação acerca das possibilidades de uma sociedade organizada de forma diferente da atual traz implícita a resposta de sua viabilidade limitada quando se coloca como seria essa nova sociedade: “com formas menos desiguais”. O implícito é aqui entendido como aquilo que, embora não seja dito de forma direta e clara pelo locutor, é detectável pelos rastros deixados no dizer. Como observa Cavalcante (2007, p.78): “[...] embora remeta ao dito, mantendo com ele uma relação de dependência para significar, o implícito é de responsabilidade do interlocutor, pois é trabalho de interpretação”.

Assim, o discurso materializado na SD1 se choca com o que dizem os autores em outro momento da obra: “[...] o referencial teórico-crítico e valorativo do socialismo ainda é um contraponto ao estado liberal” (SILVA et. al, 2013, p. 148). Isso porque, sendo o socialismo um projeto baseado na transformação das estruturas sociais geradoras das desigualdades, não faz sentido pensar em sua existência como alternativa ao capitalismo e ter como horizonte a simples redução das desigualdades sociais. As duas alternativas são excludentes, a saber: ou o socialismo é viável e podemos nos colocar como horizonte uma sociedade sem desigualdades, ou ele é inviável e o máximo que poderemos ter como futuro é uma sociedade menos desigual.

Dizemos isso porque, diferentemente do que apregoa a tradição liberal, não compreendemos as desigualdades sociais como caminho incontornável da diversidade de aptidões individuais e de uma suposta natureza humana egoísta e competitiva. Pelo contrário, entendemos tratar-se de relações sociais de privilégio e injustiça no acesso a bens e serviços socialmente produzidos, cuja origem pode ser localizada no surgimento da divisão social em classes antagônicas. Portanto, trata-se de algo superável juntamente com o modelo de sociedade que o fundamenta.

Voltando ao discurso materializado na SD1, vê-se que a preocupação do mesmo não é com a possibilidade de uma sociedade igualitária, e sim, com uma sociedade menos desigual. Claro que precisamos ficar atentos às condições de produção desse discurso para não confundirmos uma análise conjuntural com uma questão estrutural. Ou seja, sendo o capitalismo estruturalmente desigual, não há qualquer contradição entre o socialismo como horizonte societário e a luta cotidiana pela redução das desigualdades sociais no interior do capitalismo. Contudo, como é possível ver na SD1, não é disso que se trata. A primeira parte da problematização é clara ao colocar-se como questão a possibilidade de uma “sociedade organizada de maneira diferente da atual”. Ou seja, aqui não se trata de aperfeiçoamento da ordem social vigente, e sim, de uma nova sociedade. É na caracterização de como seria essa nova sociedade que fica implícita a ideia de aperfeiçoamento, quando se coloca como horizonte a simples redução das desigualdades – “formas menos desiguais de existência e de distribuição dos recursos necessários à vida”.

Ora, isso se contradiz com o discurso materializado na sequência adiante, na medida em que nela, tanto a estratificação como as desigualdades são apresentadas como fenômenos históricos e, portanto, mutáveis não apenas em suas formas de expressão, mas também em suas determinações estruturais.

 

[SD2] A estratificação social e as desigualdades produzidas por ela não são naturais. Ao contrário, elas são geradas histórica e socialmente, emergem de uma diversidade de situações e influenciam diretamente as ações e as relações estabelecidas na vida em sociedade (SILVA et al., 2013, p. 237, grifo nosso).

Aqui, como já destacamos, reconhece-se a historicidade das desigualdades, o que pressupõe a possibilidade histórica de sua superação, como pode acontecer com qualquer fenômeno característico do mundo dos humanos. Essa superação, por sua vez, não se limita aos aspectos conjunturais, isto é, às formas de manifestação das desigualdades em cada momento histórico, pois as desigualdades sociais têm um fundamento criado historicamente: a fragmentação social entre donos dos meios de produção e trabalhadores. Portanto, não se trata de uma superação possível apenas nos aspectos conjunturais, mas também em sua dimensão estrutural, uma vez que não estamos lidando com um fenômeno do mundo natural.

No entanto, no mesmo capítulo da referida obra, essa historicidade encontra-se ameaçada por um discurso que retoma a premissa da simples redução das desigualdades, como se elas fossem parte ineliminável da vida social.

 

[SD3] Claro está, portanto, que há um grande desafio para reduzir o hiato entre a igualdade formal de oportunidades e a desigualdade real de condições. Em linhas gerais, seria o aprimoramento das políticas e programas sociais que possam redistribuir renda, fundados em regras de funcionamento claras e abrangentes, e que, sobretudo, sejam políticas de Estado, e não de governo, ou seja, que tenham continuidade, independentemente de quem ocupe o Poder Executivo (SILVA et al., 2013, p. 250, grifo nosso).

Novamente se impõe aqui o problema da relação entre meios e fins. Ou seja, seria a redução das desigualdades um meio possível no interior da sociedade atual para o alcance de um fim maior (uma sociedade sem desigualdades), ou seria ela (a redução) o horizonte máximo a ser perseguido? Uma pista para a resposta parece encontrar-se no capítulo seguinte, quando se admite ao mesmo tempo a natureza destrutiva do capitalismo e a necessidade de aperfeiçoá-lo não para a sua sobrevivência, e sim, para se evitar consequências socialmente graves, como se o que nos restasse fosse o dilema “ruim com ele, pior sem ele”.

[SD4] Apesar de ter prevalecido, o capitalismo está longe de ser um sistema livre de falhas. Pela própria natureza de seu funcionamento, está sujeito a crises regulares e necessita de constante aperfeiçoamento para evitar consequências socialmente graves: concentração de renda e aumento da pobreza; destruição das instituições de proteção social, dos recursos humanos e naturais de uma sociedade; subordinação de países a outros economicamente mais fortes e a órgãos financeiros internacionais (SILVA et al., 2013, p. 262, grifo nosso).

Vejamos que, diante da imperfeição do capitalismo, surge a necessidade do aperfeiçoamento, da correção, da reforma. Não é colocada em destaque aqui, mesmo reconhecendo-se a dimensão estrutural dessa imperfeição, a superação de todo o sistema, e sim, a sua correção via “o aprimoramento das políticas e programas sociais que possam redistribuir renda, fundados em regras de funcionamento claras e abrangentes” (SD3).

Ora, apesar da importância das políticas públicas na melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores, esses avanços representam os limites do possível no interior da emancipação política, pois trata-se de uma emancipação formal, jurídico-política e, portanto, incapaz de superar as contradições e os limites da sociedade de classes. Assim, concordamos com Tonet (2015, p. 291) quando, ao analisar a relação entre política social, emancipação política e emancipação humana, destaca:

 

[...] por sua natu­reza e consideradas isoladamente, as políticas sociais, que têm no Estado seu sujeito fundamental, não podem extrapolar a órbita da sociedade burguesa. Ainda que possam chocar-se, de alguma maneira, com o capital, este choque não é radical e, portanto, não aponta para a sua superação.

 Como se vê, o discurso materializado nas SD1 a SD4 identifica-se ideologicamente com a Formação Discursiva Reformista, que materializa na linguagem a Formação Ideológica Socialdemocrata, caracterizada pela defesa da possibilidade de construção de uma nova sociedade mediante reformas e aperfeiçoamentos da ordem social vigente. Como destaca Przeworski (1988, p. 66) em texto no qual analisa historicamente o percurso político da socialdemocracia:

[...] reforma e revolução, dentro da visão social-democrata, não são alternativas excludentes entre si. Para realizar a “revolução social” – conceito que antes de 1917, denotava transformação das relações sociais, mas não necessariamente insurreição -, é suficiente seguir a trilha das reformas. Supõe-se que as reformas sejam cumulativas e irreversíveis.

Assim, diante da nebulosidade que separa o chão do horizonte, assume-se uma posição de renúncia de mudanças estruturais “compensada” pela redução dos riscos, das incertezas do horizonte. 

Essa dificuldade em visualizar alternativas para além do capitalismo também parece estar presente no livro Sociologia Hoje, seja pela maneira como o socialismo é apresentado, seja pela maneira como a própria ideia de revolução é tratada. Senão, vejamos:

[SD5] [...] é notável o fato de que as revoluções se tornaram muito raras nos países democráticos. Isso sugere que, nas democracias, onde os diferentes interesses podem se organizar em partidos e movimentos sociais, há mais espaço para a negociação pacífica entre os diversos grupos sociais. Não por acaso, mesmo alguns partidos marxistas importantes em países democráticos (como a Itália) muitas vezes abandonaram o projeto de revolução violenta em favor de uma transformação social pacífica (MACHADO; AMORIM; BARROS, 2013, p. 260, grifo nosso).

Nada haveria a objetar se a perspectiva descritiva assumida ao longo da obra não fizesse aqui uma contraposição desnecessária entre revolução e transformação social pelo viés da violência e da mudança pacífica. Ora, ao colocar a temática da revolução nesses termos, produz-se o efeito de sentido de que a violência é uma característica opcional no processo de mudança da estrutura social, sendo possível também uma transformação social por meios pacíficos. É fato que muitos partidos de esquerda fizeram uma guinada ao centro-esquerda, sobretudo após a queda do muro de Berlim, e trocaram a perspectiva da revolução pelo reformismo socialdemocrata. No entanto, esse movimento é bem mais complexo do que o suposto dilema revolução violenta versus mudança social pacífica. A nosso ver, esse movimento tem mais relação com o apogeu do discurso neoliberal do capitalismo como o fim da História, supostamente demonstrado com o declínio da União Soviética, do que com a possibilidade de se garantir mudanças efetivas no interior da ordem social vigente via “negociação pacífica entre os diversos grupos sociais”, como sugere o discurso da SD5.

Mais uma vez, ressalte-se que não estamos negando as evidências empíricas acerca da guinada político-ideológica de muitos partidos de esquerda, tampouco ignorando os dados que sugerem menor clima revolucionário em ambientes nos quais se possa avançar pela via do diálogo. O que estamos problematizando é o discurso segundo o qual haveria duas alternativas opostas (revolução violenta e transformação social pacífica) que poderiam levar aos mesmos resultados societários (a mudança social estrutural), sendo a primeira alternativa, contudo, não apenas uma questão de escolha, mas também um caminho extremamente arriscado, conforme se vê na SD6:

[SD6] [...] a “revolução” é sempre tomada como um exemplo positivo. Talvez porque as revoluções de fato significaram momentos históricos fundamentais em nossa cultura. Somos o que somos, em grande parte, graças às revoluções inglesa (1688), norte-americana (1776), francesa (1789) e russa (1917). Também é verdade que as sociedades capitalistas valorizam a novidade, a inovação. Mas é bom lembrar que assim como podem dar certo, as revoluções podem dar muito errado, dando origem a regimes ainda mais autoritários do que os regimes que substituíram (MACHADO; AMORIM; BARROS, 2013, p. 257, grifo nosso).

O discurso materializado no enunciado acima nos permite questionar: seria por causa das incertezas e riscos relacionados ao processo revolucionário que, conforme os autores, “mesmo alguns partidos marxistas importantes em países democráticos” teriam optado pelo caminho da reforma? Não sendo seguro nem viável a revolução, como enfrentar o problema das desigualdades? Parece-nos que a resposta é o caminho da reforma:

[SD7] Se prestarmos mais atenção à desigualdade entre os países, é fácil perceber que a desigualdade global aumentou muito. [...] Esse crescimento da desigualdade, entretanto, não é inevitável, e pode ser compensado pela ação do governo. No Brasil, por exemplo, a desigualdade de renda (que já foi a maior do mundo) caiu, em função de políticas sociais governamentais (MACHADO; AMORIM; BARROS, 2013, p. 259, grifo nosso).

Aqui, poder-se-ia perguntar: mas não se trata de inferências descontextualizadas, desconectadas do restante da obra? O uso das sequências discursivas de forma aleatória não produz efeitos de sentidos diferentes daqueles pretendidos pelos autores? A essas questões, poderemos responder da seguinte forma: todas as sequências analisadas fazem parte do capítulo 13 (A sociedade diante do Estado), mais especificamente, do tópico cinco (As revoluções). Portanto, existe entre elas uma unidade temática de modo que a ordem dos fatores não altera o produto, e sim, ajuda a compreendê-lo em seus movimentos de complementação e/ou contradição. O segundo e mais importante elemento a ser destacado é que a produção de sentidos escapa do controle consciente do sujeito enunciador, criando falhas, contradições e lacunas. Isto é, como observam Magalhães e Silva Sobrinho (2013, p. 98): “[...] algo sempre irrompe e desestabiliza o dito, mostrando o que foi inculcado na formação inconsciente e que faz parte da memória histórica”.

Assim, mesmo tratando-se do discurso científico, que busca coerência interna, há espaços para deslizes e contradições. E essas falhas não são erros de percurso, e sim, o poder da ideologia que, inscrevendo-se no campo da linguagem, produz efeitos de sentidos. Estamos compreendendo a ideologia aqui, conforme já explicitado em outro momento desse trabalho, como uma forma de consciência prático-operativa cuja função social é fazer com que os indivíduos assumam determinadas posições, enquanto sujeitos, nos amplos conflitos da vida social (LUKÁCS, 2013).

Na obra Sociologia para o Ensino Médio, a única a tratar a temática da mudança social em forma de unidade e capítulos específicos, a problemática da revolução aparece colocada nos seguintes termos:

 

[SD8] Na sociedade capitalista, segundo Marx, a classe social oprimida é o proletariado. Depois das muitas revoluções que ocorreram no mundo, há a possibilidade de a classe proletária, ou trabalhadora, organizar-se para derrubar o sistema capitalista? Há condições objetivas (crise do sistema, organização, poder, armas) e subjetivas (consciência social, aliança entre os diversos segmentos dos explorados) para que isso ocorra? Não se pode negar a existência de algumas dessas condições, principalmente nos países periféricos do sistema capitalista, mas, com as sociedades submetidas a forte esquema de massificação, torna-se cada dia mais difícil acontecer um movimento revolucionário nos moldes da Revolução Russa (TOMAZI, 2013, p. 311, grifo nosso).

Vejamos que nesse discurso a possibilidade da revolução socialista é problematizada e, ao mesmo tempo, afirmada positivamente. Para isso, o autor recorre ao referencial teórico marxista, ao qual a temática [a revolução socialista] está diretamente associada, traçando um paralelo entre seus pressupostos teóricos e a viabilidade histórica face às condições objetivas e subjetivas da sociedade contemporânea. Essa postura nos parece da maior importância, tendo em vista que possibilita uma análise da problemática em tela em seus aspectos teóricos e práticos. Além disso, está presente no discurso materializado na SD8 o princípio da desnaturalização em sua radical historicidade, tendo em vista que a revolução é apresentada como um movimento de difícil operacionalização face às condições societárias postas, contudo, viável do ponto de vista histórico. Essa perspectiva se complementa na SD9:

[SD9] Podemos perceber que a ideia de uma revolução violenta, com a tomada do poder do Estado para desenvolver uma nova sociedade, está cada dia mais distante da realidade. Parece remota, também, a ideia de uma mudança significativa mediante ações lentas e graduais por parte das instituições políticas, pois estas estão muito amarradas às estruturas de poder existentes. Quando há uma possibilidade de mudança, a força da reação normalmente é muito grande e pode aniquilar qualquer tentativa de resistência. Além disso, por causa da crise na democracia representativa, as pessoas já não acreditam que seus representantes possam tomar medidas para alterar profundamente a sociedade. Então não há alternativa? Há uma apatia geral e nada acontece porque pouco se pode fazer para promover mudanças profundas na sociedade em que vivemos? Não é possível uma revolução e a criação de uma nova sociedade por meio da ação consciente dos trabalhadores explorados? Parece difícil, porque a capacidade de cooptação por parte dos poderes vigentes é muito grande. Mas a consciência da desigualdade e do sofrimento que isso acarreta não é apagada ou silenciada, e se expressa em manifestações populares e revoltas pontuais em várias partes do mundo (TOMAZI, 2013, p. 311-312, grifo nosso).

Vejamos que aqui a temática da mudança social é analisada tanto no sentido de transformação das estruturas sociais, como no tocante ao aperfeiçoamento da ordem social vigente. Em ambos os casos, partindo-se das condições objetivas e subjetivas postas pela sociedade contemporânea, apresenta-se uma postura de dúvidas e incertezas, próprias da relação com fenômenos sociais em movimento e, portanto, de dificílima apreensão em sua totalidade. No entanto, o que chama a atenção nesse discurso é que, diante dessas dificuldades, escolhe-se o caminho da prioridade do objeto sobre o sujeito, isto é, procura-se explorar as determinações concretas da realidade para se extrair dela as possibilidades e tendências societárias, e não o inverso, isto é, deduzir subjetivamente os rumos das mudanças.

Assim, o discurso materializado na SD9 constata as dificuldades de um processo revolucionário que transforme as estruturas, bem como a inviabilidade estrutural de mudanças significativas por dentro da ordem. Identificado com a perspectiva da radical historicidade do mundo dos humanos, o referido discurso não se rende à constatação e aos limites, vislumbrando nos movimentos do contemporâneo e na permanência da exploração as possibilidades de resistência, enfrentamento e superação da ordem social vigente.

Abordagem diferente dessa pode ser vista, por exemplo, na obra Tempos modernos, tempos de Sociologia. Ao contrário da obra anterior, esse manual não dedica um espaço específico para o tratamento da mudança social, sendo o tema discutido de forma transversal. O caso mais significativo dessa abordagem acontece no capítulo 13 (Caminhos abertos pela Sociologia), quando as autoras fazem um resumo aplicado do pensamento sociológico dos autores trabalhados na parte dois da obra, em uma seção denominada Um sarau imaginário. Na ocasião, a temática da revolução aparece tratada da seguinte forma:

 

[SD10] [...] Como fazer que os avanços gerados pelo capitalismo sejam distribuídos de maneira justa? Para Marx, o caminho seria a política: somente uma revolução – a tomada de poder pelos operários – poderia conduzir a sociedade a uma realidade melhor, mais justa e mais igualitária. Mas essa opinião estaria longe de produzir consenso entre os outros convidados. Não porque algum deles considerasse que a sociedade é justa ou que a vida está bem resolvida. Mas a revolução não seria a saída! – diria prontamente Alexis de Tocqueville, que viveu na mesma época de Marx, na mesma cidade onde Marx escreveu o Manifesto Comunista. Também ele defenderia uma saída política, mas não revolucionária. Sua proposta seria avia legal: é preciso aprimorar as leis e controlar os governantes para que cumpram a função de conduzir responsavelmente a sociedade. [...] Revoluções, diria Tocqueville, facilmentedesembocam em terror, como vira acontecer na França revolucionária. Elas podem subtrair a liberdade (BOMENY et al., 2013, p. 199, itálico das autoras; negrito nosso).

No discurso que se materializa nesse enunciado, apresentam-se duas perspectivas distintas de mudança social: a revolução e o exercício da cidadania. A primeira é defendida pela tradição marxista e, a segunda, ancora-se na tradição liberal, representada no enunciado por Tocqueville. Ao relacionar as duas perspectivas, a obra cumpre uma função importante que é a demonstração de que existem explicações diferentes para o mesmo fenômeno social. No entanto, ao apresentar as críticas do pensamento liberal à perspectiva revolucionária sem fazer o mesmo movimento acerca dos limites do liberalismo, acaba-se tomando partido implicitamente pela segunda perspectiva. Isto é, pode-se ou não concordar com as críticas de Tocqueville aos riscos supostamente intrínsecos ao movimento revolucionário, mas isso fica a critério do leitor, ao qual se dá acesso a essas críticas como possibilidade de reflexão. Contudo, já com relação às reais possibilidades de mudança social significativa pelo aprimoramento das leis e controle dos governantes, não há possibilidade de reflexão, pois há um silenciamento da questão. Isso nos fez lembrar de Orlandi (1995, p. 75), quando a autora, tratando sobre a política do silêncio, destaca: “[...] ao dizer algo apagamos necessariamente outros sentidos possíveis, mas indesejáveis, em uma situação discursiva dada”.

 No entanto, aquilo que aqui é interditado por constituir-se um sentido indesejável, mais adiante, já no manual do professor, transborda da esfera do não dito, mostrando claramente sua vinculação ideológica ao liberalismo tocquevilleano.

 

[SD11] Em alguns momentos ouvimos pessoas dizerem que a corrupção é tão grande entre os parlamentares que seria melhor não tê-los; que votar não melhora as condições do povo; que a violência urbana é grande e que é melhor se enclausurar em ambientes fechados, com câmeras de vigilância ou controle de acesso mais ostensivo. Mas é preciso lembrar que essas situações alertam para a necessidade de vigilância e aperfeiçoamento desse modelo, que sempre conviverá com o “dilema tocquevilleano” (BOMENY, 2013, p. 60, MP, grifo nosso).

Ora, parece-nos que a SD11 ajuda a esclarecer as dúvidas que, porventura, ainda restassem acerca da vinculação ideológica da SD10 com a perspectiva liberal ou, no máximo, socialdemocrata de aperfeiçoamento da ordem social vigente.

Já a obra Sociologia, em um discurso coerente com a denúncia do capitalismo selvagem e a afirmação do socialismo como utopia social declinante, apresenta a economia solidária como um dos horizontes societários possíveis.

 

[SD12] Diante desse quadro, surgem experiências alternativas, como a do trabalho solidário, que implica autonomia de tarefas, reciprocidade e solidariedade em empreendimentos econômico-sociais e públicos. Nele, os laços sociais são valorizados, pois o objetivo é atender aos interesses coletivos, num modelo de produçãomais voltado para a colaboração que para a concorrência. Feiras solidárias, cooperativas populares, redes de solidariedade, moeda social, banco comunitário e organizações em assentamentos agrários são algumas das atividades da economia solidária, no Brasil. A economia solidária contribui para a democratização da economia por sua dupla dimensão – a econômica e a política –, na medida em que os cidadãos se mobilizam para construir sua independência econômica por meio da associação e de cooperação, e que somente a ação pública é capaz de estabelecer direitos e definir normas de uma redistribuição da riqueza que reduza desigualdades (ARAÚJO; BRIDI; MOTIM, 2013, p. 111, negrito das autoras; itálico nosso).

Essa obra apresenta um aspecto bastante curioso: apesar de ter dois capítulos nos quais as expressões “mudanças sociais” (capítulo quatro) e “transformação social” (capítulo nove) fazem parte dos títulos, não há qualquer detalhamento acerca do que venha a ser isso. Isto é, se por um lado dá-se por subentendido que se trata de um conceito sobre o qual todos concordam, motivo que dispensaria a necessidade de explicitação, por outro lado o foco de análise no capítulo quatro são as diferentes configurações assumidas no campo do trabalho ao longo do século XX e suas implicações, sobretudo, no campo da empregabilidade; e, no capítulo nove, a relação entre educação e sociedade.

Voltando à SD12, temos aqui um discurso que reconhece a possibilidade e a necessidade da mudança social estrutural e a visualiza nas experiências de economia solidária, experimentadas no interior do próprio sistema capitalista. Não desmerecendo a importância dessas experiências, mas seriam elas um meio de enfrentamento imediato das mazelas do capitalismo ou um projeto societário de superação do mesmo? Teria a economia solidária condições de romper com a lógica do capital, estruturada na apropriação privada dos meios fundamentais de produção material da vida social? Parece-nos que parte dessas respostas podem ser encontradas ao final do enunciado, quando se destaca a dependência desse tipo de alternativa para com o Estado e sua perspectiva de redistribuição de renda e redução das desigualdades. Portanto, os efeitos de sentidos aqui materializados identificam-se ideologicamente com a Formação Discursiva Reformista, preocupada com a realização de reformas sociais que, ao impactarem no acesso menos desigual aos bens e serviços socialmente produzidos, não estaria pavimentando o caminho para a construção de uma nova sociedade, e sim, já vivenciando, ainda no interior do sistema capitalista, uma nova forma de sociabilidade sem necessariamente romper com a propriedade privada, com a divisão social em classes antagônicas e com o Estado enquanto organismo predominantemente a serviço dos interesses da classe dominante, conforme indicado por Marx e Engels (1998), em O manifesto comunista.

Para encerrarmos nossas análises acerca de como a temática da mudança social é abordada pelos livros didáticos de Sociologia do PNLD 2015, vamos ao livro Sociologia para jovens do século XXI. Nessa obra, a referida temática é tratada de forma esparsa, como na maioria dos livros aqui destacados. Nela, conforme já apontado em outros momentos, há uma identificação ideológica explícita com a Formação Discursiva Revolucionária, como pode ser observado na SD13:

 

[SD13] Se essas considerações de Mészáros são pertinentes, pode-se concluir que a destruição do meio ambiente, causada pelo homem,pode ser impedida pelo próprio homem, desde que se modifique radicalmente o modelo econômico que vem sendo imposto à sociedade nestes últimos dois séculos. A lógica que está presente na destruição da natureza é a mesma lógica baseada na acumulação sem freios do capital. São irmãos siameses; um não existe sem o outro. Interromper a devastação do meio ambiente significa colocar freios à expansão do capital – o que significa, simplesmente, provocar a sua crise e, consequentemente, o seu fim. Para István Mészáros, portanto, as opções são apenas duas, uma excluindo a outra: ou a humanidade aposta na construção de um novo modelo de sociedade, ou caminha, de olhos fechados, para a sua autodestruição(OLIVEIRA; COSTA, 2013, p. 194, grifo nosso).

Como se vê, o discurso materializado na SD13 identifica-se explicitamente com a tradição marxista de incorrigibilidade do capital e do socialismo como o caminho possível, discurso esse sintetizado na famosa expressão de Rosa Luxemburgo: “socialismo ou barbárie”. À luz das contribuições de Mészáros, os autores expõem os limites estruturais do sistema do capital e, diante da incorrigibilidade das características que fazem parte de sua natureza, destacam:“ou a humanidade aposta na construção de um novo modelo de sociedade, ou caminha, de olhos fechados, para a sua autodestruição”.Vejamos que aqui, coerentemente com a perspectiva teórico-metodológica assumida, não há hesitação entre revolução ou reforma, tendo em vista que somente a primeira opção é vista como capaz de salvar o nosso destino enquanto humanidade.

Outro elemento importante que chama a atenção no discurso materializado na SD13 é a perspectiva da radical historicidade da vida social, expressa na premissa segundo a qual, se é o ser humano que destrói a natureza para transformá-la em mercadorias, pode fazê-lo diferente, desde que se modifique radicalmente o modelo econômico que vem sendo imposto à sociedade nestes últimos dois séculos”. Vejamos que não se trata de qualquer modificação, e sim, de uma transformação radical na sociedade. Radical no sentido de ir à raiz, transformar a estrutura, mudar o alicerce, os fundamentos. Não tem nada a ver com a perspectiva simplista que o associa a extremismo ou exagero, e sim, vincula-se diretamente à problemática da revolução como movimento sociopolítico que muda as condições estruturais de funcionamento de uma sociedade. No caso da perspectiva socialista, defende-se que a estrutura da sociedade alicerça-se nos meios de produção material da vida social. Portanto, a mudança radical, revolucionária, efetivamente transformadora consiste na eliminação da propriedade privada dos meios de produção, no banimento da divisão social em classes e na extinção do Estado como forma jurídico-político de organização e exercício do poder de uma classe sobre e contra as outras.

 

 

Considerações finais

Neste artigo, propusemo-nos a analisar o discurso dos livros didáticos de Sociologia aprovados e recomendados pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) de 2015 sobre a mudança social em sua dimensão estrutural.

Uma das curiosidades que a análise dos livros didáticos revelou é que uma mesma obra pode apresentar discursos diferentes – e até contraditórios – sobre um mesmo fenômeno social. A nosso ver, essa contradição pode ser explicada pelo modo como funciona a linguagem na produção de sentidos, uma vez que, ao nos expressarmos, não controlamos tudo o que dizemos, deixando espaço para os deslizes e migrações de sentidos. Pois, como destaca Pêcheux (2006, p. 56-57, grifo do autor).

Não se trata de pretender aqui que todo discurso seria como um aerólito miraculoso, independente das redes de memória e dos trajetos sociais nos quais ele irrompe, mas de sublinhar que, só por sua existência, todo discurso marca a possibilidade de uma desestruturação-reestruturação dessas redes e trajetos: todo discurso é o índice potencial de uma agitação nas filiações sócio-históricas de identificação, na medida em que ele constitui ao mesmo tempo um efeito dessas filiações e um trabalho (mais ou menos consciente, deliberado, construído ou não, mas de todo modo atravessado pelas determinações inconscientes) de deslocamento no seu espaço: não há identificação plenamente bem sucedida, isto é, ligação sócio-histórica que não seja afetada, de uma maneira ou de outra, por uma “infelicidade” no sentido performativo do termo - isto é; no caso, por um “erro de pessoa”, isto é, sobre o outro, objeto da identificação.

Assim, mesmo no caso de discursos nos quais há uma presença mais rigorosa do controle consciente, a exemplo do discurso científico e pedagógico, não há controle total, havendo sempre lugar para o inesperado.

No caso dos livros didáticos analisados, é possível identificar em uma mesma obra discursos que não apenas se complementam, mas também se afastam. Esse movimento deslizante não representa um erro lógico ou uma falta de coerência interna. Ele tem a ver com as disputas ideológicas que permeiam a sociedade de classes e com as características de funcionamento do processo discursivo, desprendido de rigidez e de literalidade, uma vez que, conforme observa Orlandi (2007, p. 74): “[...] o próprio do discurso e do sujeito é sua incompletude, sua dispersão”.

No entanto, para além da dispersão de sentidos, podemos concluir que o discurso dos livros didáticos de Sociologia sobre a mudança social inscreve-se, predominantemente, na formação discursiva reformista – mesmo que duas das seis obras vinculem-se à formação discursiva revolucionária.

Neste sentido, entendemos que, embora a desnaturalização nem sempre seja assumida pelas obras com a mesma completude, isto é, mantendo-se a preocupação com a explicação dos fundamentos, das configurações sócio-históricas e das diferentes possibilidades e alternativas dos fenômenos sociais, ao menos dois desses requisitos se fazem presentes no discurso dos manuais sobre a mudança social. Desses três requisitos, o que oscila ou não se mostra em toda a sua radicalidade é a dimensão das possibilidades e alternativas sócio-históricas para além da ordem social vigente, elemento bastante compreensível face às condições de produção do discurso sob as quais se dá a feitura, avaliação e circulação das obras didáticas, mas extremamente necessário para uma disciplina escolar que se propõe não somente contribuir com a formação do pensamento crítico, mas também incentivar a tomada de posição frente aos projetos societários em disputa. Pois, como destaca Silva (2019, p. 111), ao analisar o processo de construção de subjetividades políticas nos livros didáticos em tela: “[...] o discurso da Sociologia escolar, tal como consta nos manuais escolares, convida o sujeito a ocupar um lugar simbólico na sociedade como estudante-cidadão, estudante-crítico, estudante-ator coletivo”. No entanto, em nosso entender, o exercício livre e plural dessas subjetividades políticas demanda, entre outros elementos, um contato também plural com as diferentes possibilidades e alternativas societárias em disputa. Caso contrário, o horizonte será comprometido pela distração da paisagem e esbarrará no simples aperfeiçoamento da ordem social vigente.

 

Referências

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Notas



[1]Formação discursiva consiste em um lugar de enunciação que apresenta certa regularidade – mesmo que provisoriamente – ao estabelecer os sentidos autorizados e negados para as palavras pronunciadas do seu interior. Trata-se de “matrizes comuns a um conjunto de discursos” (CAVALCANTE, 2007, p. 43).