Ratio Studiorum: bases e fundamentos das ações educativas nos colégios dos jesuítas
Ratio Studiorum: bases and foundations of educational activities in the schools of the Jesuits
Ana Cláudia Vieira Braga
Universidade de Brasília, Brasília, DF.
anaclaudiaunb2012@gmail.com - https://orcid.org/0000-0001-9202-6264
Maria Abádia da Silva
Universidade de Brasília, Brasília, DF.
abadiaunb@gmail.com - https://orcid.org/0000-0001-8605-3805
Recebido em 29 de março de 2021
Aprovado em 24 de março de 2022
Publicado em 27 de abril de 2023
RESUMO
Este artigo tem por objetivo analisar no Ratio Studiorum as bases e fundamentos das ações educativas nos colégios dos jesuítas. Em termos teórico-metodológicos o estudo abriga-se nas cartas jesuíticas e nas referências bibliográficas nas áreas de educação e filosofia priorizando o projeto de colonização portuguesa e a política educacional dos jesuítas para a formação do homem útil e universal e, em seguida percorre o Segundo Discurso e Emilio de Rousseau para compreender como as faculdades perfectibilidade e educabilidade despertam o vir a ser humano e nos torna ser históricos e sociais. Aponta que, nas instituições educativas, o processo de evangelização, conversão e catequização dos jesuítas seguiram as práticas de formação de homem ligado pela fé católica à perfeição divina, mas também atuaram para formar o homem útil, disciplinado e civilizado, instituindo as bases de organização da vida social e escolar brasileira.
Palavras-chave: Educação jesuítica; Educabilidade; Perfectibilidade.
ABSTRACT
This article aims to analyze in the Ratio Studiorum the bases and foundations of educational actions in the schools of the Jesuits. In theoretical-methodological terms, the study is based on Jesuit letters and bibliographic references in the areas of education and philosophy, prioritizing the Portuguese colonization project and the Jesuits' educational policy for the formation of useful and universal men, and then goes through the Second Discourse and Emilio de Rousseau to understand how the faculties perfectibility and educability awaken the human being and make us historical and social. It points out that, in educational institutions, the process of evangelization, conversion and catechization of the Jesuits followed the practices of formation of a man linked by the Catholic faith to divine perfection, but also acted to form the useful, disciplined and civilized man, establishing the bases of organization Brazilian social and school life.
Keywords: Jesuit education; Educability; Perfectibility.
Introdução
A teoria educacional filosófica jesuítica, alicerçada no Ratio Studiorum e na fé cristã católica, sustentou dinâmicas de transfiguração étnica, conversão e catequização das populações conquistadas e orientou concepções espirituais e morais. Essa relação resultou em processos de exploração, dominação, práticas culturais e hierárquicas traduzidas em legislação, ações e relações estabelecidas entre os povos das Américas e colonizadores europeus.
Os séculos XVI-XVIII testemunharam a criação de formas de organização da família, colégios, ginásios, asilos, monastérios, preceptorias e institutos que moldavam as estruturas organizativas, disciplinares, espirituais e sociais para uma civilização em expansão. Estudos de Saviani (2007) mostram que difundiam diferentes visões de homem, sociedade e educação. Uma delas que estava ancorada na visão essencialista de homem concebido como constituído por uma essência humana imutável, universal, perfeito e feito à imagem e semelhança de Deus, foi conduzida pelo teólogo medieval Tomaz de Aquino e edificou os pressupostos de formação de homem presentes no Ratio Studiorum. Nos colégios humanistas e seminários, símbolos institucionais e religiosos, as ações pedagógicas e educativas dos jesuítas foram conduzidas pelos princípios de hierarquia, autoridade, subordinação, predestinação, obediência, vigilância, isolamento e rígida disciplina.
A outra visão, denominada de visão existencialista de homem, de sociedade e de educação, que concebia o homem com ser mutável, que já é, mas ainda pode vir a ser, que carrega um devir, com possibilidades de transformar, modificar, alterar e agir sobre a natureza, sistematizou a visão antropológica de homem na sociedade moderna. Em face das transformações sociais e da organização das instituições educativas na sociedade moderna, indaga-se: que matrizes filosóficas estão no Ratio Studiorum e que formam os fundamentos da educação jesuítica? Na conversão cristã e catequização dos indígenas pelos jesuítas, como se apresenta a faculdade da educabilidade? O que é educabilidade? O que é perfectibilidade e como se traduzem na formação escolar?
Em termos teórico-metodológicos, o estudo abriga-se nas cartas jesuíticas e nas referências bibliográficas nas áreas de educação e filosofia e priorizam os pressupostos, atributos e formação do homem no Ratio Studiorum, as ações educativas dos jesuítas por meio de cartas jesuíticas escritas e, em seguida, busca compreender na história, os fundamentos de perfectibilidade e educabilidade propostos por Jean Jacques Rousseau (1712-1778).
Assim, o texto encontra-se estruturado em três partes. Na primeira seção analisa as bases, preceitos morais e cristãos de comportamento presentes no Ratio Studiorum e que nortearam a expansão da Companhia de Jesus. Na segunda discute-se as ações educativas e pedagógicas dos jesuítas no processo de conversão e catequização dos indígenas no século XVI por meio das cartas jesuíticas escritas no período entre 1550 a 1568. E, na terceira discorre acerca do conceito de perfectibilidade e educabilidade em Rousseau em que a educação deve formar o próprio homem inteiro, unitário e livre.
A formação do homem no Ratio Studiorum
Sob a condução do filósofo Inácio de Loyola, na Itália, desde 1548 circulavam cartas que sistematizavam as experiências e ações educativas dos jesuítas, recolheram informações no Colégio de Messina e que resultaram na elaboração do Ratio Studiorum por Jerônimo Nadal e Claudio Acquaviva e publicado em 1599. O Ratio Stodiorum é um documento histórico que traz as linhas mestras da estrutura, organização política, fundamentos éticos, morais e espirituais e práticas de oficio, disciplinares e laborais da Ordem Jesuítica. Compreendida como a constituição dos Inacianos, preconizava os conteúdos cristãos, éticos e morais, como também os métodos de ensino e ainda orientava os professores jesuítas na montagem, direção e execução das práticas temporais, espirituais e expansionistas.
Em traços gerais, pode-se afirmar que, no Ratio Studiorum a ótica cristã teocêntrica da natureza sustentada em Deus move e ampara todas as coisas e as encaminha ao seu próprio fim, perfeição divina. Ao homem cabe conhecer a natureza, os fenômenos, não de onde eles vêm porque tudo vem de Deus. Há uma intervenção ordenada à essência das coisas, que está nas mãos daquele que as criou. Em termos de formação moral, humana e da doutrina católica, a perfectibilidade e a educabilidade jesuítica remetem ao fim de “agradar a Deus” alcançar a perfeição, por meio do estudo:
Aliança das virtudes sólidas com o estudo: Apliquem-se aos estudos com seriedade e constância; e como se devem acautelar para que o fervor dos estudos não arrefeça o amor das virtudes sólidas e da vida religiosa, assim também se devem persuadir que, nos colégios, não poderão fazer cousa mais agradável a Deus do que, com a intenção que se disse acima, aplicar-se diligentemente aos estudos; e ainda que nos cheguem nunca a exercitar o que aprenderam, tenham por certo que o trabalho de estudar, empreendido, como é de razão, por obediência e caridade, é de grande merecimento na presença da divina e soberana majestade (RATIO, REGRAS DOS ESCOLÁSTICOS NA NOSSA COMPANHIA, REGRA 2).
Observa-se que o Ratio Studiorum tem suas raízes e fundamentos na visão essencialista de homem de que ele deve empenhar-se para ser merecedor da perfeição divina. Nessa pedagogia, os jesuítas utilizam o conceito de mediania em que hierarquiza os estudantes da educabilidade almejada, já que deixa o ser em um nível muito aquém do conceito de homem perfeito:
Que se entende por mediania. - A mediania, de que acima se fala, deve entender-se no sentido em que vulgarmente se entende quando se diz de alguém que é de talento mediano, a saber, quando percebe e compreende o que ouve e estuda e é capaz de dar razão suficiente a quem lhe pede, ainda que, em filosofia e teologia, não atinja o grau de doutrina que as Constituições designam com a expressão “haver nela feito bastante progresso”, nem seja capaz defender as teses aí mencionadas com o saber e a facilidade com que as defenderiam quem fosse dotado de talento para ensinar Filosofia e Teologia (RATIO, REGRAS DO PROVINCIAL 5).
Nas palavras de Toyshima (2008, p.3) na pedagogia jesuítica “a instrução e a educação progrediam juntas com laços estritamente religiosos e que utilizavam o ensino para promover a verdadeira religião” Na introdução do Ratio percebe-se o conceito de Homem inscrito na Companhia de Jesus:
1.1. Objetivo dos estudos na Companhia. – Como um dos ministérios mais importantes da nossa Companhia é ensinar ao próximo todas as disciplinas convenientes ao nosso Instituto, de modo levá-lo ao conhecimento e amor do Criador e Redentor nosso, tenha o Provincial como dever seu zelar com todo empenho para que aos nossos esforços tão multiformes no campo escolar corresponda plenamente o fruto que exige a graça da nossa vocação. (RATIO, REGRAS DO PROVINCIAL NA NOSSA COMPANHIA, REGRA 1).
De acordo com a formação proposta pelo Ratio Studiorum, o homem precisa ser purificado pelos exercícios espirituais. O homem perfectio deve ter uma vida exemplar com foco no desenvolvimento das virtudes e na instrução como forma de servir a Deus em sua grande obra. Deve desenvolver sua alma e a ajudar ao próximo a atingir o fim último para o qual foram criados: a salvação das almas. Nos colégios a disciplina severa e rígida, obediência e confissão aliadas às práticas dos bons costumes religiosos instituíram as bases para formar homens a serviço de Deus, soldados de Cristo.
Toyshima (2008, p. 09) descreve o programa educacional jesuítico como uma “pedagogia que se baseava no evangelho de Jesus Cristo e dessa maneira, os colégios jesuítas formavam homens de caráter piedoso, predominantemente católicos, membro digno da família, útil à sociedade e capaz de atender a Deus”. Um homem útil e temente a deus era visualizado pelos jesuítas em uma sociedade que integrava elementos tradicionais a uma política expansionista com necessidades intelectuais novas e com conflitos políticos e econômicos. No Ratio Studiorum a educação aparece como uma ferramenta para salvar almas, moldar as pessoas e torná-las cristãs, por meio de exercícios espirituais para que se atingisse a perfeição cristã. Nesse sentido, o zelo pelos estudos literários e humanísticos deve desenvolver a virtude do auxílio:
Zelo pelos estudos. - A Companhia dedica-se à obra dos colégios e universidades, a fim de que nestes estabelecimentos melhores se formem os nossos estudantes no saber e em tudo quanto pode contribuir para o auxílio das almas e por sua vez comuniquem ao próximo o que aprenderam. Abaixo, portanto, do zelo pela formação das sólidas virtudes religiosas, que é o principal, procure o Reitor, como ponto de máxima importância, que com a graça de Deus, se alcance o fim que teve em mira a Companhia ao aceitar colégios. (RATIO, REGRAS DO REITOR, REGRA 1).
Portanto, buscar uma formação de um homem universal, purificado pelos exercícios espirituais, servo da obediência divina, das autoridades e piedoso diante dos caprichos celestiais e dadivoso nas virtudes, eis os fundamentos inscritos na formação filosófica nos colégios e seminários, propriedades dos jesuítas.
A presença da Companhia de Jesuítas em Portugal
Para a consecução do projeto educacional dos jesuítas traduzido no Ratio Studiorum que tinha a intenção de formar um homem com os valores escolásticos e cristãos, os religiosos fomentaram ações e empreendimentos em vários países. Criada no decorrer do Concilio de Trento (1545-1563), a Ordem religiosa dos jesuítas resultou do artifício papal para conter e coibir a expansão de outras confissões cristãs, recompor o poder e lugar da igreja católica nas decisões morais e políticas, combater as heresias, alcançar a perfeição humana por intermédio da Palavra, salvar e converter as almas por meio da pregação e catequização. Seu objetivo, nas palavras de Shigunov Neto e Maciel (2008, p. 172) “era sustar o grande avanço protestante, e para isso utilizou-se de duas estratégias: por meio da educação dos homens e dos índios; e por intermédio da ação missionária, procurando converter à fé católica os povos das regiões que estavam sendo colonizadas”.
Em Portugal, o pensamento religioso justificava todas as ações humanas, fossem elas filosóficas, políticas, artísticas ou econômicas. Havia a crença nas benesses de um Deus único que encaminhava a humanidade para um uno indivisível (CESSO, 2016). A Coroa portuguesa e a igreja católica apostólica romana eram, então, um uno indivisível. A Companhia chegou a Portugal em 1540 e recebeu propriedades e desenvolveu ações na Instrução pública, na Universidade de Coimbra, Colégio de Artes. Em 1542 fundou o Colégio de Jesus em Coimbra que tinha como objetivo formar membros para a Ordem.
Nessas aproximações políticas e religiosas, o poder temporal e poder espiritual tinham fronteiras muito tênues entre os exercícios divinos e as práticas contábeis das propriedades, resultando na sua expulsão por Marquês de Pombal em 1759. Assim, ainda que as grandes navegações marítimas propiciassem o surgimento de mercadorias diferenciadas vindas do além-mar, desde produtos alimentícios, temperos, tecidos, enfeites, ouro e prata, permanecia na cultura política e religiosa a crença nos princípios teológicos e divinos. De modo que, antes de súditos do rei, os portugueses eram católicos e a religiosidade movia a cultura, a expansão marítima e os interesses mútuos entre a Coroa portuguesa e o Papado romano.
E para a consecução dos objetivos de exploração e colonização, a Coroa Portuguesa e os religiosos jesuítas, juntos, empreenderam na missão de catequizar e evangelizar as almas em terras da América. Mas que isso, propunham um projeto de ocupação e transformação social com ações na cultura e na espiritualidade dos nativos. Mesmo assim, em Portugal, a língua oficial escrita era expressa e aprendida por meio do latim, apesar de todo pluralismo linguístico existente. As missas eram em latim e o principal livro da educação jesuítica, a bíblia, estava escrito em latim, já que a primeira bíblia em língua portuguesa só aparece no século XVII. As várias línguas ágrafas dos indígenas precisavam ser decifradas para que a dominação e a catequização acontecessem e, por isso, o exótico também recaiu sobre a comunicação linguística humana.
A expansão marítima aproximou o homem à natureza e mesmo com uma religiosidade exacerbada o pragmatismo e o cientificismo foram preponderantes para que o homem se aventurasse em viagens marítimas, utilizando objetos de comunicação que necessitavam de conhecimento de astronomia, cartografia e geografia. Assim, os religiosos, além de confessores da Coroa portuguesa, atuaram na Universidade de Coimbra e de Évora, no Colégio de Artes e Aulas de Comércio conduzidos pelos fundamentos teológicos – escolásticos que inibiam e dificultaram a renovação científica baseada na racionalidade, ciência moderna, princípios econômicos liberais. (MARTINS, 2020 e CARVALHO, 1978).
A prática da catequese jesuítica no Brasil
Em 1549 com a ocupação das terras pelos colonizadores portugueses, os jesuítas empreenderam uma política de aldeamento no Brasil. Essa política colocava em prática a aproximação das tribos à cultura de sociedade organizada pelos não indígenas. Segundo Ribeiro (1970) os religiosos eram isentos do pagamento de dízimos e recebiam a redízima, tinham toda autoridade para trabalhar com os indígenas, salvar as almas. Assim, o processo de ocupação e exploração das terras pelos portugueses e a atuação jesuítica modificou a cultura e desestruturou as comunidades indígenas, orientando a reprodução da cultura europeia como predominante entre os nativos. Na prática, a política de aldeamento e recolhimentos modificou a noção de territorialidade nas comunidades nativas, fragilizou os laços familiares e introduziu padrões culturais dos colonizadores europeus.
No dia 29 de março de 1549, Tomé de Souza chegou ao Brasil acompanhado da primeira missão de jesuítas nas aldeias da Bahia com objetivos de evangelização e catequização que envolvia fins doutrinários, religiosos, políticos e econômicos. A visão dos jesuítas incluía um projeto de ser humano com modelo ideal, puro e livre, mas que só poderia ser alcançado por meio da fé cristã. Os jesuítas serviram a Coroa portuguesa na ocupação das terras e trabalharam em duas frentes: uma, de educar os órfãos portugueses e os filhos da elite colonial, de outra, tinham o dever de converter índios em cristãos, religiosamente tementes a Deus e fielmente obedientes ao Rei.
Estas formas de atuação temporal e espiritual dos jesuítas estão expressas nas Cartas Jesuíticas (1931) com descrições sobre as ações, propriedades e práticas educacionais junto aos indígenas. O trabalho de catequização começou por meio do reconhecimento da língua e traduções do evangelho: “o padre Navarro traduziu em idioma da terra, orações e sermões para a catequese” (LEITE, [nota preliminar], 1851, p. 32); “agora estamos acabando uma igreja perto deles aonde irei lhes dizer missa e ensiná-los na língua deles para a qual traduzi a criação do mundo e a encadernação dos demais artigos da fé.” (LEITE, [extracto de uma carta do padre João de Azpilcueta Navarro (1) 28 de março de 1550], p. 60).
De maneira geral, há muitos conflitos entre os indígenas e os colonizadores e por isso os jesuítas criam aldeamentos habitados, principalmente, por índigenas capturados pelos soldados ou que, cansados de resistir entregam-se com seus filhos aos cuidados dos jesuítas. Para alcançar a aprendizagem dos indígenas, os padres jesuítas usaram a música, os instrumentos musicais indígenas, como também o teatro e a pintura. Mesmo aqueles que já estavam sob os cuidados dos jesuítas ofereciam resistência à catequização: “os índios gentios de que falei que se convertiam a nossa fé, vivem constantemente perseguidos pelos outros. Não muitos dias atrás mataram um menino cristão” (LEITE, [extracto de uma carta do padre João de Azpilcueta Navarro (1) da Índia do Brasil a 28 de março de 1550], p. 59). Há, no entanto, relatos do progresso da catequização:
[...] verdade é que nos oferecem grande consolação alguns homens e mulheres, com a boa vida que levam, empregando o dia a trabalharem toda a semana (o que dantes só as mulheres faziam) e abstendo-se, aos domingos, tanto ou mais do que nós a trabalhos servis. (LEITE, [cartas jesuíticas avulsas], 1931, p. 60).
No entanto, a tendência era para o batismo universal e para a conversão coletiva à medida que a catequização avançava pois “ nenhuma pessoa deve ser deixada sob céu para o fogo consumí-las” (LEITE, [cartas jesuíticas avulsas], 1931, p.63).
Os jesuítas já entendiam que a catequização deveria concentrar-se nas crianças indígenas e muitas foram retiradas do seio de suas famílias para ficarem sob os cuidados dos jesuítas em escolas mistas, essas foram construídas com o intuito de educar os filhos da terra (crianças nascidas no Brasil e filhos dos portugueses). Sobre os infantes indígenas os jesuítas aplicavam o conceito de maleabilidade e plasticidade presentes nas cartas jesuíticas conforme trecho a seguir:
[...] só aos pequenos acho boas inclinações, se os tiramos da casa de seus pais o que não se poderá fazer sem que Sua alteza faça edificar um colégio nesta cidade com destino a essas crianças para educá-las, de maneira que com os maus costumes e malícia dos pais se não perca o ensino que se ministra ao filho” (LEITE, [cartas jesuíticas avulsas], 1931, p.60).
Ensinavam as letras, principalmente aos gentios convertidos e visitar as tribos sistematicamente com o intuito de levar a catequização:
[...] às segundas e terças-feiras, visito três ou quatro aldeias, às quartas e quintas, aldeias mais distantes e às sextas-feiras volto à cidade para fazer a exortação a uma companhia de disciplinantes cuja devoção tem aumentado muito, pela graça de Deus” (LEITE, [cartas jesuíticas avulsas], 1931, p.62).
As aldeias e recolhimentos proliferam nas propriedades e fazendas dos jesuítas e concomitantemente o provincial padre Manoel da Nóbrega, em terras basílicas, fundou colégios jesuítas entre 1560 e 1570 para educar os filhos de não indígenas. No entanto, algumas crianças indígenas frequentavam esses colégios:
[...] parece-me que muito cedo me porei a ensinar [...] está já a gente dessa terra, e os gentios pacificados, desejosos de mandar seus filhos a aprender: quererá Nosso Senhor que se aproveitaram assim no ler e escrever como nos bons costumes [...]” (LEITE, [cartas dos ilheos], 1565, p. 477).
Observa-se que educabilidade dos jesuítas para com os indígenas, significa uma relação desigual e hierárquica. Busca-se adestrar, disciplinar, moldar o nativo para os ofícios úteis e obediência ao rei. Praticaram ações de exploração, intrigas, formalismos morais, negação da identidade e dos rituais de sua cultura, cabendo aqui o conceito de civilidade: “esses poucos índios que ficaram são nossa causa de muita consolação [...] esses rapazes pequenos são toda a nossa alegria, se os pais não os levassem no melhor, mas também dos grandes tem Nosso Senhor como Fé” (LEITE, [carta da Bahia, 1558], p. 180 - 192).
Herdeiros da visão essencialista de homem, os jesuítas imprimiam o conceito de educabilidade, na catequização, evangelização e conversão das almas. Muitos indígenas embrenhavam-se nas matas, outros se sujeitaram aos ofícios e muitos foram dizimados.
Com o aumento de indígenas sob a tutela dos jesuítas, a questão do ofício foi posta em discussão e todos foram disciplinados para uma educação funcional, mais instrutiva: “porque o número de gentios crescia e a casa estava ocupada com outros índios cristãos deu-se que aqueles que já eram instruídos na Fé se pusessem a ofício e os outros que queriam a conversão tomassem o lugar nos colégios” [CARTA DA BAHIA, 1557, p.187].
E exortando a superioridade dos portugueses sobre os indígenas, os jesuítas afirmavam que “[os índios] querem ser como nós” (LEITE, [carta da Bahia, 1552], p. 120). Neste processo de dizimação forjaram os princípios de autoridade, hierarquia e predestinação atribuindo uma índole pacífica aos índios a quem descrevem como “gente servil e por medo fazem tudo” (LEITE, [carta jesuítica avulsa i], 1549, p. 45).
Para Tomás de Aquino, a perfectibilidade nos é inata porque somos criaturas da perfeição e para ela fomos criados. O fim do ser humano é o aperfeiçoamento constante e a aproximação inevitável da perfeição do Criador. Na Suma Teológica assim se expressa:
Verificamos que alguns seres são mais ou menos verdadeiros, mais ou menos bons. Ora, diz-se o mais e o menos de coisas diversas segundo a sua aproximação diferente de um máximo. Existe, pois, alguma coisa que é o mais verdadeiro, o melhor, por conseguinte, o mais ser. Ora, o que é o máximo num gênero é a causa de tudo que pertence a este gênero. Existe, portanto, um ser que é para todos os outros causa de ser, de bondade, de perfeição total, e este ser é Deus. (AQUINO, 2001, p.13)
Percebe-se que a perfeição natural em Tomás de Aquino possui uma finalidade natural, para alcançar a perfeição divina. Defensor do poder decisivo da graça de Deus, já que para ele os homens não alcançam a perfeição por seus talentos e habilidades. A doutrina de Tomás de Aquino buscava uma uniformização da visão de mundo e forneceu as bases para o Ratio Studiorum, um conjunto de regras gerais, disciplinares e orientações detalhadas das funções de cada agente envolvido na educação postulada pelos jesuítas. Nele estão firmadas as bases da disciplina e da obediência nos colégios e nas propriedades da Ordem. Com vistas à descoberta das virtudes humanas e ao serviço das ações celestes, o alcance da perfeição envolvia o desenvolvimento da pureza e da disciplina aparece descrito em trechos do Ratio Studiorum o seguinte:
Pureza de alma e intenção. - Esforcem-se, antes tudo, os nossos escolásticos por conservar a pureza de alma e ter nos estudos intenção reta, não procurando neles senão a glória de Deus e a salvação das almas. Nas suas orações peçam freqüentemente a graça de adiantar na ciência e de se tornar capazes, como deles espera a Companhia, de cultivar, com a doutrina e o exemplo, a vinha de Cristo Senhor Nosso. (RATIO, REGRAS DOS ESCOLÁSTICOS DA NOSSA COMPANHIA, REGRA 1).
Pode-se dizer que a pedagogia jesuítica no processo de doutrinação moral e na catequização exerceu influência sobre a plasticidade educativa dos indígenas a partir da observação de seus costumes e também por meio da disciplina. Os jesuítas atuaram para conhecer os costumes, a língua, a cultura, as preferências e as estruturas sociais dos indígenas, para sobrepor esse conhecimento em favor de seus objetivos: transformar o indígena em um homem útil, civilizado para servir ao modo de produção e circulação capitalista, pela religião cristã e pelos valores morais e de civilidade europeia.
Conceitos de perfectibilidade e educabilidade em Rousseau
O século XVIII evoca o surgimento da Ilustração com os valores iluministas, e que resulta das transformações econômicas, políticas e nas ciências movimentou as teorias sobre moralidade, política, sociedade e educação. O filósofo genebrino na obra Da Educação ou Emilio (2014) afirma que “Tudo é perfeito nas mãos do criador e tudo degenera nas mãos do homem” e ainda” tudo que não temos ao nascer é educação” Rousseau afirma que o homem é essencialmente bom, por natureza, e ao ser inserido na sociedade paulatinamente foi corrompido pela civilização.
Os estudos de Arcos Júnior (2018) apontam que para Jacques Rousseau existia uma descontinuidade entre animalidade e humanidade demonstrando que a perfectibilidade é uma característica de distinção entre os homens e os não humanos. Ao enfrentar as circunstâncias e infortúnios na natureza, o homem busca elevar-se para suprir suas necessidades de sobrevivência em meios às adversidades. Assim, a perfectibilidade é a capacidade que o homem tem de aperfeiçoar-se, desenvolver-se e elevar-se. Essa faculdade existe e se desenvolve no estado de natureza e com a ajuda das circunstâncias e necessidades, sucessivamente acelera todas as outras faculdades e, se encontra, entre nós, tanto na espécie quanto no indivíduo (ARCOS JR, 2018).
Nesse entendimento, a perfectibilité surge, ao lado da liberdade, como um fator decisivo na sociabilidade humana: é por meio desta permanente capacidade de se aperfeiçoar que o homem pode romper progressivamente com a fixidez de sua carga instintiva e, com isso, produzir cultura. (DALBOSCO, 2012, p.21).
No entanto, se o homem teve que aprender a vencer os infortúnios, teve também que atuar para preservar a sua subsistência. Em Emilio temos que “tudo que não tem é educação...” Deste modo, nos seres humanos a perfectibilidade é a capacidade de fazer escolhas, decidir e atuar para satisfazer sua subsistência familiar e a auto preservação da comunidade. Em outra obra, Discurso, Rousseau (1973) afirma que animalizar o ser humano, não o reduz à animalidade, permanecendo o homem em seu estatuto próprio; assim, se o homem do puro estado de natureza pode ser, sob certos aspectos, considerado um animal, ele já é, sob outros, definitivamente homem - o que lhe permitirá acender à cultura” (ARCOS, JR. 2018, p.139).
Entretanto, na transição do estado de natureza para o estado social, vivendo em comunidade, outras necessidades, linguagens, culturas, educação e contrato social ensejaram alterações sociais, políticas e econômicas no contexto da Ilustração europeia. Naquele alvorecer circulam concepções filosóficas e pedagógicas assentadas na vertente antropológica que se distanciavam da visão essencialista de homem e pregavam a educabilidade humana, isto é, o caráter aberto, relacional, plural e maleável do comportamento humano. Nas palavras de Dalbosco:
No âmbito da formação e educabilidade humana ela caracteriza o facto antropológico-pedagógico de que a "natureza humana" é capaz tanto de se deixar moldar como de moldar-se a si mesma, caracterizando, portanto, em última instância, o próprio fato da educabilidade humana. (Dalbosco, 2012, p.112). Nesse sentido, a educabilidade pertence aos humanos e nos distingue dos não humanos. Uma vez garantido a subsistência e ultrapassados os infortúnios, “tudo que o homem não tem e precisa é da educação” para o desenvolvimento como ser social.
Dalbosco (2018) discute as ideias de sociedade pensadas por Rousseau que remetem a uma relação entre historicidade, condição humana e teoria educacional trazendo à educabilidade e a condição humana em duas obras de Rousseau, o Segundo Discurso e Émile, e apresenta a visão de educabilidade do amor-próprio presente em Émile. Neste movimento e circulação das ideias iluministas do século XVIII, Rousseau defendeu os direitos civis, de liberdade, privacidade, igualdade e coloca as luzes da razão para iluminar uma sociedade sob os pilares do racionalismo, a igualdade jurídica, democracia e a liberdade econômica liberal.
O filósofo genebrino articulou o homem natural e suas qualidades específicas como perfectibilidade, liberdade, igualdade, bondade, piedade, amor próprio e consciência, tensionadas pela realização das faculdades e capacidades humanas que são modificadas pelos estatutos sociais que as corrompem e limitam. Nessa situação ocorreu a passagem do estado de natureza para o estado social em que cada homem se associa ao conjunto de pessoas e comunidades orientado pelas normas e direito constitucional, princípios democráticos e republicanos. Nos ideais educativos de Rousseau, o fenômeno da passagem do homem natural para o homem social:
É um espetáculo grandioso e belo ver o homem sair, por seu próprio esforço, a bem dizer do nada; dissipar, por meio das luzes de sua razão, as trevas nas quais o envolveu a natureza; elevar-se acima de si mesmo; lançar-se, pelo seu espírito, às regiões celestes; percorrer com passos de gigantes, como o sol, a vasta extensão do universo; e, o que é ainda maior e mais difícil, penetrar em si mesmo para estudar o homem e conhecer sua natureza, seus deveres e seu fim (ROUSSEAU, 1973, p. 341).
Naquele contexto, Rousseau antecipou os princípios democráticos e republicano de sociedade, sinalizando a sociabilidade, a autônoma e soberania do indivíduo, além de distinguir a vontade de todos da vontade geral. Para Rousseau, mesmo que, com esse processo de mudança do estado natural para o estado civil, o homem, ser educável se priva de proveitos e vantagens concebidas pela natureza, isso faz com que ele adquira ou desenvolva outras de equivalente importância: as faculdades humanas se desenvolvem, as suas ideias se expandem e suas emoções se equilibram e a perfectibilidade se realiza. É nesse momento que o indivíduo é socializado:
Não é de pouca monta o empreendimento de distinguir o que há de original e de artificial na natureza atual do homem e de bem conhecer um estado que já não existe, que talvez não tenha existido, que provavelmente não existirá, e do qual é necessário, porém, ter noções exatas para bem julgar nosso estado presente (ROUSSEAU, 2013, p. 321).
Rousseau apresenta, no Emílio, uma abordagem da educação a partir da primeira infância focando a educabilidade na capacidade humana de autodeterminação e educação do amor-próprio, que deve ser um sentimento construtivo que visa a formação de seres humanos e sociais guiados pela liberdade e perfectibilidade, essa definida como a capacidade de aperfeiçoar-se, justamente por ter que sobreviver aos infortúnios e às circunstâncias. Nesse caso específico, as circunstâncias são criadas pelo contato direto com a natureza, pela imitação e pela mediação constante, se desenvolve e passa a exercer o domínio sobre os outros e enfrentar as fraquezas e valentias inerentes ao convívio social.
Em Emílio, Rousseau periodiza as fases de educação infantil e aplica a premissa de que se devem preservar os instintos nos anos iniciais que vão sendo orientados a uma liberdade regrada na qual convivem os princípios do desenvolvimento da criança e o alcance de uma diretividade adulta mínima: A natureza quer que as crianças sejam crianças antes de ser homens. Se quisermos perturbar essa ordem, produziremos frutos precoces, que não terão nem sabor e não tardarão a corromper-se; teremos jovens doutores e crianças velhas. (ROUSSEAU, 2014, p. 60)
Nesse sentido, educabilidade e perfectibilidade são fundamentos da condição humana, nutrem-se mutuamente, na medida em que, sendo faculdade dos humanos, nos humaniza e pode aprender, criar, desenvolver, inventar, valorar e aperfeiçoar. Os estudos de Dalbosco (2018) situam educabilidade e perfectibilidade em Rousseau:
[...] a perfectibilidade, como “capacidade das capacidades” [...] a perfectibilidade justifica a noção de pluralidade da condição humana numa dupla perspectiva: por ser inerente à condição humana, não se restringe a este ou àquele gênero, a esta ou àquela raça; por assinalar a maleabilidade da condição humana, concebe-a como aberta e indeterminada, podendo se desenvolver nas mais diferentes direções. (DALBOSCO, 2018, p.21)
Na visão antropológica e pedagógica a perfectibilidade engendra a educabilidade como capacidade de autodeterminação, ou seja, “como poder do sujeito de dirigir-se a si mesmo” (DALBOSCO, 2018, p.06) fundamentos que estão no projeto educacional de Rousseau. Nesse entendimento, a educabilidade integra duas condições de educar e de poder ser educado revela sua faceta bilateral: aquele que educa usou sua dimensão de ser educável para sustentar a seleção de todo o aparato para educar. E aquele que será educado, por meio da perfectibilidade, estará a postos para receber a educação.
A educabilidade em Rousseau envolve o homem naturalmente bom em busca de um amor-próprio controlado que almeja jamais se afastar do bem natural e que caminha para o ideal do homem social, do indivíduo civilizado: Ponhamos como máxima incontestável que os primeiros movimentos da natureza são sempre retos: não existe perversidade no coração humano; não se encontra nesse nenhum só vício que não se possa dizer como e por onde entrou. A única paixão natural no homem é o amor de si mesmo ou o amor-próprio tomado num sentido amplo (ROUSSEAU, 2014, p. 63).
Eis aqui a dimensão pedagógica da educabilidade, segundo Rousseau, pois remete para a plasticidade e a maleabilidade como condições de perfectibilidade do ser humano. Plasticidade, que pode ser inata, relacionando-se à natureza humana. O homem traz em si características naturais, que por meio da perfectibilidade serão aprimoradas, enriquecidas por meio da educabilidade e atingirão o desenvolvimento do amor-próprio. Com o advento do amor-próprio o homem poderá dirigir-se a si mesmo e a educabilidade sustenta a vontade e as escolhas. Em outra instância, a educabilidade remete para um nível em que a educação surge como uma necessidade decorrente do caráter descontinuado do ser humano enquanto ser natural e assim fica acentuada a essência educável do homem e sua indefinível perfectibilidade.
Nesta dimensão antropológica, a perfectibilidade impele ser humano para ser sujeito do desenvolvimento da sua capacidade de autodeterminação. Observa-se aqui o vir a ser, é, mas ainda não é homem. As ações humanas se distinguem das ações dos animais, pois pelo pensamento o homem antecipa as ações, escolhe, constrói e modifica. Ainda que não esteja pronto, esse homem relaciona-se com a natureza, precisa formar-se constantemente. Essa capacidade de si educar, escolher e imitar deve ser o ponto de partida do processo educativo.
A educação, entendida como processo de formação humana, busca sentidos para as concepções que os homens fazem do ideal de sua humanização. O homem no estado social relaciona-se em comunidade colocando em discussão as relações entre as diversas dimensões da ética, estética, filosofia e política que prevaleceram como fundamentos da compreensão da própria natureza da educação e da formação humana. No livro I de Emilio, Rousseau destaca:
Viver é o ofício que quero ensinar-lhe. Ao sair de minhas mãos, concordo que não será magistrado, nem soldado, nem padre; será homem, em primeiro lugar; tudo o que um homem deve ser, ele será capaz de ser, se preciso tão bem quanto qualquer outro; e, ainda que a fortuna o faça mudar de lugar, ele sempre estará no seu. (ROUSSEAU, 2014, p. 15)
Observe que Rousseau introduz elementos de historicidade e da cultura na sua proposição. Historicidade na medida em que situa o processo em que o homem atua, interage sob circunstâncias adversas e infortúnios. Na cultura na medida em que, no estado civil, além dos limites naturais e das fronteiras de convivência com os outros, suscitam os elementos de educabilidade, isto é, ao se relacionar, o homem, se educa e educa outros, age e atua sobre a natureza. E nesse vir a ser o homem torna-se capaz de aperfeiçoar as capacidades humanas.
Há outra qualidade muito específica que distingue o homem do animal, e acerca da qual não pode haver contestação: é a faculdade de se aperfeiçoar, faculdade que, com a ajuda das circunstâncias, desenvolveu sucessivamente todas as outras e reside entre nós, tanto na espécie como no indivíduo; ao passo que um animal, ao cabo de alguns meses, é o que será o resto da vida, e sua espécie, ao cabo de mil anos, o que era no primeiro ano desses mil anos (ROUSSEAU, 2013, p. 78).
Em termos pedagógicos, observa-se uma ideia da educação com uma finalidade intrínseca de cunho mais antropológico, uma forma de organizar a sociedade saudável e de homens livres capazes de participar das escolhas, fazer associações e expressar a vontade geral. Essa reflexão sobre a educação implica igualmente indicar o lugar da prática educacional, tal como ela se manifesta nas condições histórico-culturais em constantes mudanças da cultura ocidental.
Para Rousseau o indivíduo é o fundamento da ordem social. E como teórico da liberdade defende a liberdade como uma característica própria do ser humano “todos nascem livres e iguais” vive pelo amor a si mesmo. No entanto, em outra fase, vê o indivíduo dotado de capacidade de aperfeiçoar-se, adquiri diferentes qualidades próprias dos humanos, busca sobreviver, preservar, relacionar-se, e assim, emerge a vida coletiva, o homem social. Do humano, com liberdade e autonomia começa a se estender para o ser educável, é que ele adquire primeiro a sensibilidade e, depois as noções do bem e do mal que constituem “verdadeiramente as características homem como parte integrante de sua espécie” (ROUSSEAU, 2013, p. 299).
A formação do homem no Ratio Studiorum evoca o argumento da autoridade, em que a força está na fé, nas ideias de quem fala. Assentado no princípio metafísico que entende Deus como a origem de todas as coisas. Daí o projeto de catequese jesuítico comprometido com a salvação das almas, a colonização e exploração de riquezas das terras basílicas. A coroa portuguesa contou com o apoio dos jesuítas para transformar o indígena em um homem virtuoso idealizado do Ratio Studiorum, convertido à fé católica por intermédio da catequese e da alfabetização em língua portuguesa. Nesta atuação, os jesuítas empreenderam um projeto pedagógico, administrativo, financeiro e cultural conforme trecho da introdução das cartas avulsas jesuíticas:
Mas vieram os Jesuítas. Veiu com elles a virtude. Para os colonos, que a esqueciam e repudiavam, passada a linha. Para os índios, cannibaes, intemperantes, sensuaes, que jamais conheceram freio e reserva. Não só a virtude, porém a justiça ou a equidade entre as duas raças, brancos e negros (como eram chamados por opposição), que uma escravizava a outra, "ferrando" as "peças", como se foram animaes, dellas usando e abusando. E a ambas as raças, dominadores e dominados, dominou, por fim, a moral privada e publica dos Jesuítas. Depois, foram mestres e instruíram. Instruíram filhos de reinóes, os primeiros brasileiros, e instruíram os brasis, pães e filhos, forros e escravos, aprendendo a língua da terra, e pela grammatica, a lógica, o latim, passando o humanismo, para chegar á theologia moral e á philosophia. Educaram costumes, intelligencias, sentidos. Aulas, cerimônias religiosas, folguedos, canto, musica, autos sagrados e profanos, classes superiores, não desprezando officios manuaes. Aqui mesmo irmãos eram feitos sacerdotes, e, mais algumas décadas, um Vieira, alumno na Bahia, se fará mestre em Olinda, e, tornando, com o que no Brasil adquiriu, fará maravilha em Portugal. E se impediam ao Gentio de se guerrear, e de se comer, promoviam accordo difficil entre as discórdias continuas e os ódios enviscerados dos colonos, sempre uns contra os outros: a desunião foi e é o nosso trivial. (LEITE, [cartas avulsas 1550-155, introdução], p.07)
As realizações jesuíticas descrevem o projeto de catequização, evangelização e o homem definido no Ratio Studiorum. As missões e os caminhos jesuíticos tinham um objetivo moral baseado na fé católica e nas ações missionárias que serviram para uma transformação social do homem indígena e pretendia civilizar (aqui com conceito de tornar o cidadão submetido às leis civis) os indivíduos, para que ele fosse um ideal humano adaptado para servir à sociedade proposta pela coroa portuguesa.
Rousseau, por sua vez, pensava no indivíduo e sua teoria tendia para o que ele denominava o ser social, livre e coletivo. Os princípios de educabilidade e perfectibilidade aparecem, em suas ideias, atrelados à definição de sociedade civil, que como as leis da natureza, inclui o contrato social como um conjunto de leis que apoiam a conduta de como viver em sociedade.
Em Rousseau o princípio do educar a criança significa retornar o indivíduo ao estado natural livre objetivando transformar a sociedade civil e direcionar a transformação do homem natural para o homem civil, e por isso a educação precisa oferecer caminhos para desenvolver o próprio ser humano, credenciar suas faculdades, desatar seu intelecto e conter seus instintos.
Partindo do pressuposto de que a formação do homem, sapiente e forte, demanda um longo processo educativo, a educação natural de Rousseau dedica-se à infância e seu desenvolvimento colabora para o fortalecimento do corpo e a sensibilização dos sentidos da criança. Um conjunto de princípios essenciais norteia a metodologia da educação natural como a percepção do que é ser humana, a definição de infância, as necessidades da criança, os cuidados do adulto e o relacionamento entre educador e aluno. Apesar de Rousseau não descrever claramente os princípios que fazem parte de seu ideal de educação natural, o conceito de infância e sua relação com uma educação natural permeiam sua filosofia educativa.
Considerações finais
O projeto de colonização e ocupação da terra pelos portugueses permitiu ações jesuíticas de conversão e catequização que na prática, foi reprodutora da sociedade religiosa portuguesa na colônia. Por meio de ações educativas baseadas na crença de homem universal, na rígida disciplina, hierarquia, predestinação, na purificação por meio de exercícios espirituais, os jesuítas modificar o comportamento dos indígenas por meio de suas premissas europeias morais e cristãs, introduziram padrões culturais europeus. E nessa relação conflituosa, os religiosos aprenderam a língua dos indígenas, seus costumes, tradições e cultura, para depois utilizar esse conhecimento a favor da concretização da catequese.
Nos fundamentos da educação jesuítica estavam os conhecimentos: gramática, retórica, filosofia e teologia destinadas à formação dos filhos das famílias abastadas e condutores da sociedade. Às massas iletradas restariam a conversão cristã e alguns rudimentos para “ganhar o pão com o suor de seu rosto; ou Deus ajuda a quem cedo madruga,” foram provérbios disseminados para manter privilégios e injustiças em todo país.
Seguindo essa doutrina cristã católica, os jesuítas empreenderam uma educação no Brasil que se manteve indiferente às desigualdades sociais, de classe e de gênero. Os colégios se dedicavam à educação dos filhos de europeus e também para a formação de novos missionários que continuariam a divulgação da fé católica no Brasil. Os outros: indígenas, pessoas africanas escravizadas, pobres, mulheres ficaram distantes do direito à educação. Tutelados pelas práticas religiosas, mesmo após a expulsão dos jesuítas, em 1759, este grupo de excluídos sequer alcançou as primeiras letras e, em seguida foram lançados e treinados na manufatura, oficinas e indústrias.
No processo de evangelização, conversão e catequização seguiram as práticas de formação de homem ligado ao seu fim único pela fé católica, com a qual ele poderia encontrar a perfeição e a felicidade, mesmo que esses referenciais de perfeição e felicidade, não fossem (e não eram) os mesmos para os indígenas. Esse modus operandi firmou as bases de organização da vida social e escolar brasileira.
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