Letramentos dos corpos: direitos linguísticos e existenciais das pessoas negras surdas

Literacies of the bodies: linguistic and existential rights of the deaf black people

Ícaro Augusto Santos

Professor substituto do Departamento de Libras e Tradução da Universidade Federal de Goiás, Goiânia, Goiás, Brasil.

icaaro7@ufg.br - https://orcid.org/0000-0001-7645-6184

 

Tânia Ferreira Rezende 

Professora associada da Universidade Federal de Goiás, Goiânia, Goiás, Brasil.

taferez@ufg.br - https://orcid.org/0000-0003-3954-2758

 

Recebido em 16 de março de 2021

Aprovado em 17 de junho de 2021

Publicado em 04 de novembro de 2021

 

RESUMO

O capitalismo, colocado em operação a partir dos processos da colonialidade, utiliza-se da dominação da natureza e de tudo o que dela faz parte para a manutenção desse sistema econômico mundial. A colonialidade implementa a tecnologia da dominação e da exploração dos corpos. O objetivo central desta discussão é suscitar a reflexão sobre como os corpos de pessoas negras surdas, situados no sistema-mundo, estruturado pela colonialidade e pelo capitalismo neoliberal, enunciam sentidos, tensionando, assim, as relações de poder nas quais se envolvem. Para tanto, foi realizada uma pesquisa bibliográfica, por meio de uma seleção de títulos da área que abordam, especificamente, as questões de raça, surdez e direitos linguísticos. Elencamos os principais resultados e hipóteses, a partir dos quais iniciamos nossa reflexão, na perspectiva da interseccionalidade. Nosso pressuposto é que o sistema-mundo é opressor e subalterniza as pessoas negras surdas, impondo-lhes visões branco-ouvintistas para a manutenção da supremacia da colonialidade. A subalternização e a dominação dos corpos negros surdos estão ligadas à negação dos direitos linguísticos e existenciais da população negra e das pessoas surdas brasileiras, como um todo. Esse pressuposto se sustenta na revisão da literatura que aborda a intersecção entre corpo (raça, surdez) e direitos linguísticos. A partir das referências selecionadas, foram sintetizadas reflexões teóricas que possibilitam evidenciar a colisão das estruturas de cultura/linguagem/epistemologia, raça/cor, gênero/sexualidade, classe e outras categorias de classificação e de identificação sociais. No final, foi possível constatar que a opressão e marginalização dos corpos das pessoas negras surdas são resultantes das colisões criadas pelo racismo estrutural, mantido pela colonialidade e sustentado pelo capitalismo globalizado, reverberando, assim, a negação dos direitos linguísticos e existenciais de pessoas negras surdas.

Palavras-chave: Interseccionalidade; Pessoas Negras Surdas; Direitos linguísticos e existenciais.

 

ABSTRACT

The capitalism, that operates through the lens of the coloniality processes, works towards the domination of the nature and all its constituents for the maintenance of this world economic system. The coloniality dominates and exploits bodies and their intersections. The main objective of this study is to reflect on how the bodies of deaf black people, located in the colonial-capital world, enunciate meanings, transforming the power relations embedded in their existence. For this purpose, we developed a bibliographic research, by selecting studies related to the topics of race, deafness, and linguistic rights. We highlighted the main results and hypotheses whereby we drawn our reflection through the framework of intersectionality. Our assumption is that the dominating economic system subordinates and oppresses black death people, imposing white non-disabled people’s views, thus maintaining the colonialist supremacy. This phenomenon is linked to the denial of the linguistic rights and the existence of the Brazilian deaf black population. These assumptions are supported by the explored literature which approaches the relationship between body (race and deafness) and the linguistic rights. From the selected studies, we also highlighted theoretical reflections on the confrontation between the structures culture/language/epistemology, race/color, gender/sexuality, class and other categories or identity systems. In the end, we perceived that the oppression and marginalization of these people's bodies are the result of confrontations coming from structural racism, created by coloniality and maintained by the globalized capitalism, thus reverberating the denial of linguistic rights and the existence of black deaf people.

Keywords: Intersectionality; Deaf Black People; Linguistic and existential rights.

Introdução

O capitalismo, como sistema comercial e como estrutura financeira, sempre existiu, mas não como um sistema financeiro e econômico mundial, menos ainda como um sistema estruturante de mundo. A mundialização do capitalismo e sua estruturação como sistema-mundo foi um empreendimento do colonialismo decorrente, principalmente das invasões dos continentes subalternizados pelos europeus: África, Ásia e América. O colonialismo ou colonização foi um empreendimento fundador do capitalismo como sistema-mundo, valendo-se para isso da invasão e dominação da natureza e da subalternização e dominação de corpos, pela força de trabalho escravizada, o corpo negro africano, como a principal mão de obra. 

O colonialismo, em princípio, como estrutura de dominação, utilizou-se do controle da política, dos recursos de produção e do trabalho de uma população, para o domínio de qualquer outra, considerada “diferente” (QUIJANO, 2010). Com a colonialidade, o capital foi transformado no capitalismo, um sistema mundial de produção e de economia. Isso se deu, uma vez que a colonialidade é

 

um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial do poder capitalista. Sustenta-se na imposição de uma classificação racial/étnica da população do mundo como pedra angular do referido padrão de poder e opera em cada um dos planos, meios e dimensões, materiais e subjetivos, da existência social quotidiana e da escala societal (QUIJANO, 2010, p. 84).

 

Para a sustentação do capitalismo, foram imperativas a dominação e a exploração de territórios, de povos e de corpos. Em outras palavras, foi fundamental, nesse processo, dominar a natureza e tudo o que dela fizesse parte na perspectiva do dominador: povos, saberes, recursos e corpos. Nesse sentido, a dominação e a exploração dos corpos, sexo, gênero e sexualidade (QUIJANO, 2010), desde o colonialismo, e a raça, depois, são estruturantes da colonialidade (LUGONES, 2014). Equivale a dizer que a colonialidade somente foi possível devido à dominação e à exploração dos corpos nos territórios invadidos, pelas práticas do sistema-mundo que hierarquizam gênero/sexualidade e raça/cor, bem como histórias e perspectivas simbólicas de mundo.

Com base em Quijano (2010) e Lugones (2014), partimos do pressuposto que “gênero/sexualidade” e “raça/cor” são invenções da colonialidade, portanto, são ficções que criaram a diferença colonial (MIGNOLO, 2003) e geraram a ferida colonial (ANZALDÚA, 2012). Nessa perspectiva, gênero/sexualidade e raça/cor nada têm a ver com as diferenças culturais e morais atribuídas às características biológicas, genotípicas e fenotípicas das pessoas. Essa associação tem como objetivo a hierarquização e subalternização de corpos, enraizadas pelo pensamento científico europeu do século XVIII e estadunidense do século XX em diante, fortalecido pelo imperialismo europeu, a partir da segunda metade do século XIX (PEREIRA, 2013).

Logo, para que possamos entender melhor o constructo da colonialidade, é necessário que compreendamos que o conceito de raça está enraizado em ideologias coloniais que mantêm as estruturas dominantes, uma vez que

 

o uso do termo “raça” para nomear e identificar ou falar sobre pessoas negras deve-se, também, ao fato de que a “raça” nos remete ao racismo, aos ranços da escravidão e às imagens que construímos sobre “ser negro” e “ser branco” em nosso país. (GOMES, 2005, p. 45).

 

Dessa forma, a utilização do termo raça está estruturalmente ligada à constituição da imagem semiótica sobre o que é ser uma pessoa negra no Brasil e no mundo. Essa construção semiótica, baseada na categorização do corpo do outro, é utilizada pela colonialidade para a manutenção do seu poder sobre aquilo ou aquele que é diferente, e inferior, na matriz colonial.

Podemos afirmar que se trata da racionalidade (ou pensamento) moderna/colonial no controle das formas de produção – da família, da autoridade, do trabalho e do conhecimento. A racionalidade moderna/colonial, dada como científica, é a que valida até hoje o conhecimento e a construção do conhecimento na academia, em oposição ao senso comum da sociedade. É também um instrumento mundial de controle do trabalho e da mobilidade social.

Existe um sujeito universal, o único que pode enunciar o conhecimento válido: o homem (masculino cis-hétero) branco, euro-cristão, com fortuna. Esse sujeito dita as normas que devem ser seguidas na produção de conhecimento. Assim, as teorias produzidas devem seguir esses padrões para serem validadas como pressupostos universais e objetivos, tornando o conhecimento uma propriedade exclusiva da branquitude (KILOMBA, 2019), atualmente, uma branquitude euro-eua-cristã, cis-heteronormativizada. Esse conhecimento é validado como neutro e objetivo.

Ao contrário, defendemos, que todo conhecimento é localizado e corporificado, isto é, não existe conhecimento universal nem neutro, pois o conhecimento determinado como universal é situado no corpo e no centro de poder epistemológico. Todo conhecimento parte da geopolítica e da corpo-política do conhecimento (MIGNOLO, 2008).

O conhecimento dado como neutro é o produzido pelo corpo não marcado, aquele que é visto como não racializado, anteriormente caracterizado. Seguindo ainda o raciocínio de Lugones (2014), gênero/sexualidade e raça/cor, as principais marcas de diferenciação entre o colonizador/superior e o colonizado/inferior, são indissociáveis. A indissociabilidade entre essas categorias, em Akotirene (2018) e em Lugones (2014), é entendida como interseccionalidade.

A jurista negra Kimberlé Crenshaw (1989) sistematizou e nomeou o conceito de interseccionalidade, empregando a metáfora de avenida, com os cruzamentos, para o entendimento da intersecção das opressões que atingem as mulheres negras. Sua proposta conceitual representou um avanço para os movimentos feministas negros e para os movimentos antirracistas dos Estados Unidos da América (AKOTIRENE, 2018).

Tanto o feminismo branco quanto o antirracismo cis-heterocentrado, por só considerarem o lado visível do sistema de gênero criado pela modernidade, universalizam a categoria “mulher” e a categoria “corpo”, não considerando as múltiplas versões de mulheres e de corpos racializados gerados pela colonialidade e pelo capitalismo euro-eua-centrado globalizado, não contemplando, assim, as muitas várias mulheres e os muitos vários corpos racializados.

Lugones (2014) defende que as categorias de análise que organizam o mundo são binárias e hierarquizantes e que foram pensadas dessa forma separada, por um lado, para construir e manter o binarismo e a hierarquização, e, por outro lado, para que sua estrutura não seja percebida. Por isso, a perspectiva da intersecção é importante, pois quebra com o binarismo e, portanto, com a hierarquização.

Um corpo é uma unidade e uma totalidade: um corpo é, a um só tempo, mulher/feminino/homo/lésbico/negro/surdo e é com essa conjunção de sentidos e de significações que esse corpo é lido e interpretado. Não há separação ou fragmentação quando esse corpo é olhado, visto e avaliado.

Nessa perspectiva, propomos aqui como objetivo central do estudo refletirmos sobre os corpos de pessoas negras surdas[1] para pensarmos se as opressões que as subalternizam estão histórica e intrinsicamente ligadas à negação dos direitos linguísticos e existenciais, interseccionalmente, do povo negro e do povo surdo[2] brasileiro. Buscamos também entender se é possível estabelecermos, nos termos desta discussão, relações entre essa negação de direitos e suas vivências de gênero e de sexualidade, uma vez que, de acordo com Lugones (2014), as categorias que marcam e ferem o corpo são indissociáveis.

Salientamos ainda que

 

quando escrevemos sobre experiências de grupos aos quais não pertencemos, devemos pensar sobre a ética de nossas ações, considerando se nosso trabalho será usado ou não para reforçar e perpetuar a dominação. (hooks, 2019, p. 101).

 

Por isso, essa escrita tende a ser usada como enfrentamento aos poderes que perpetuam a dominação dos corpos de pessoas surdas, assumindo aqui o nosso lugar de privilégios como ouvintes. Para isso, usamos as teorias e epistemologias propostas por mulheres negras, tais como Lélia Gonzalez, Angela Davis, bell hooks, Kimberlé Crenshaw, Carla Akotirene, entre outras intelectuais feministas negras, que metodologicamente interseccionam as categorias de raça, gênero, sexualidade, nação (território) e classe, na luta contra as opressões criadas pelo cisheteropatriarcado, colonialismo, imperialismo, pela colonialidade, nos fundamentos, consolidação e manutenção do capitalismo globalizado.

Assim, compreendemos que “é da mulher negra o coração do conceito de interseccionalidade” (AKOTIRENE, 2018, p. 17) e outros conceitos e perspectivas que mobilizamos nesta discussão. Com isso, pretendemos refletir sobre as opressões nos corpos de pessoas negras surdas, de gênero e sexualidade, não necessariamente marcados, e como seus direitos linguísticos são negados e, assim, sua existência é negada pela colonialidade do poder, que sustenta a matriz colonial de poder.

Com relação ao corpo surdo, segundo Strobel (2008),

 

a presença do povo surdo é tão antiga quanto a humanidade. Sempre existiram surdos. O que acontece, porém, é que nos diferentes momentos históricos nem sempre eles foram respeitados em suas diferenças ou mesmo reconhecidos como seres humanos. (STROBEL, 2008, p. 42).

 

Dessa maneira, nossos posicionamentos e questionamentos se justificam, tendo em vista que no Brasil e no mundo, a história e as políticas linguísticas e educacionais das pessoas surdas são marcadas pelo não reconhecimento de sua humanidade, de seus direitos e por sua subalternização, por meio da opressão e do apagamento de seus corpos. A sociedade, durante séculos, considerou os(as) surdos(as) incapazes de serem alfabetizados(as), assim como era impossível que eles(elas) pudessem produzir conhecimento válido.

Nas situações relacionadas à vida social e educacional dos(as) surdos(as), a “história” da humanidade sempre objetivou estereótipos em seus corpos. Na antiguidade, por exemplo, eles(elas) eram tidos(as) como “anormais”, ao ponto de, na Roma antiga, os(as) recém-nascidos(as) com alguma deficiência serem sacrificados(as), com base na ideologia grega do culto à perfeição física. Quando não eram sacrificados(as), os(as) surdos(as) eram presos(as) em celas e calabouços, feitos(as) de escravos(as) ou marginalizados(as) e excluídos(as) da sociedade, pois para ser “normal” era necessário ouvir e falar (STROBEL, 2006).

Muitas dessas práticas estavam ligadas à religião e eram decorrentes das violentas perspectivas da Igreja Católica, que fornecia arcabouço metafísico e ideológico para justificar a destruição de pessoas apresentadas como “anormais”, a exemplo, as mulheres acusadas de serem “bruxas”, que durante séculos foram perseguidas e executadas, na busca incessante da manutenção do poder da Igreja, que visava à purificação do corpo para salvar a alma do impuro (FEDERICI, 2017).

A partir do século XX, os(as) surdos(as) passam a ser “resgatados(as)” do anonimato, tendo em vista que as práticas da medicina se modificaram e objetivaram ‘curar’ os(as) surdos(as) (STROBEL, 2006). Essas práticas corroboraram para que os(as) próprios(as) surdos(as) não se compreendessem e não subjetivassem uma identidade, bem como não compreendessem a importância da comunicação através de uma língua própria, a Língua de Sinais, que fortaleceria o processo de sua construção identitária e cultural.

Na percepção de quem dominava a situação, o fortalecimento da identidade poderia causar problemas sociais, emocionais e intelectuais na aquisição de linguagem desses sujeitos (MONTEIRO, 2006), principalmente porque de tanto lhe falarem que eram incapazes e enfermos, os(as) surdos(as) já estavam convencidos(as) de sua “incapacidade” (FREIRE, 2011).

Como se nota, a “história” da humanidade visou estereotipar os corpos das pessoas surdas, o que demonstra a construção do domínio do ouvintismo. Por “ouvintismo” entendemos “um conjunto de representações ouvintes, a partir do qual o(a) surdo(a) está obrigado(a) a olhar-se e narrar-se como se fosse ouvinte” (SKLIAR, 1998, p. 15). Nesse domínio, as decisões sobre o povo surdo sempre foram tomadas por ouvintes. Essas práticas refletem a manutenção e a força da colonialidade do poder pela linguagem, uma vez que, aquele(a) que ocupa a posição de poder nas relações sociais sempre fala pelo(a) subalternizado(a) (KILOMBA, 2019). Podemos, então, ampliar a semiótica do corpo padrão da matriz colonial de poder: homem (masculino cis-hétero) branco, euro-eua-cristão, com fortuna e ouvinte: o que decide e fala por todos(as).

Quando escrevemos sobre o corpo surdo, escrevemos com nossas interseções impostas pelo colonialismo e pela colonialidade, do nosso lugar de existência, com o intuito de visibilizar a cultura surda, bem como suas intersecções que são indissociáveis e constituem a comunidade surda (ouvintes e surdos(as)). Por isso, assim como bell hooks, acreditamos que:

 

Estamos enraizados na linguagem, fincados, temos nosso ser em palavras. A linguagem é também um lugar de luta. O oprimido luta na linguagem para recuperar a si mesmo – para reescrever, reconciliar, renovar. Nossas palavras não são sem sentido. Elas são uma ação – uma resistência. A linguagem é também lugar de luta (hooks, 2019, p. 73).

 

Logo, por estarmos enraizados(as) na linguagem e entendendo que esse lugar é um lugar de luta, esta discussão, constrói conhecimento para a militância, pois como ato de resistência, escrevemos sobre e para os(as) meus(minhas), para promover uma agenda antirracista, antissexista, anticapacitista, antiouvintista e anticapitalista.

Por fim, esta discussão utiliza dos conhecimentos construídos pelo grupo de estudos Obiah[3], que, por meio da Sociolinguística Ativista[4], entende que linguagem, conhecimento e sociedade são entrelaçados, estabelecendo aqui posicionamentos políticos de resistência e de enfrentamento ao racismo e a qualquer prática opressora de corpos situados à margem, nas fronteiras da pseudo “História” da humanidade.

Para fundamentar as discussões foi realizada uma revisão teórica, com uma seleção de títulos relevantes da área, que, de modo algum, pretende ser exaustivo ou esgotar o referencial temático em relação às questões de raça, surdez e direitos linguísticos, bem como as suas intersecções e opressões nos corpos de pessoas negras surdas. Essa seleção, apesar de suas limitações, nos permitiu a exposição de problematizações sobre os temas, nos propiciando outras problematizações, observações diversas e críticas à normalização da violência ao corpo negro surdo, nosso objetivo principal.

Este artigo está assim estruturado: Introdução; Movimentos sociais de pessoas surdas e negras no Brasil; Direitos linguísticos e existenciais na interseção das opressões dos corpos negros surdos; Considerações finais; e as Referências.

Movimentos sociais de pessoas surdas e negras no Brasil

De acordo com o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (vide Gráfico 1), são denominadas pessoas com deficiência auditiva[5] aquelas que “foram assim classificadas quando tiveram 'alguma dificuldade', 'grande dificuldade' ou 'não conseguiam de modo nenhum' respostas para a pergunta 'tem dificuldade permanente de ouvir?” (IBGE, 2010)

 

Gráfico 1 – Pessoas com deficiência auditiva conforme o IBGE


 

Fonte: IBGE, Censo Demográfico (2010).

 

Como podemos perceber com o Gráfico 1, no Censo 2010, a população classificada pelo IBGE “com deficiência auditiva” foi o total de 9.717.318, dentre as quais, cerca de 4.856.506 são negros(as), (preto(as) e pardos(as)). Dos quase 10 milhões de sujeitos “com deficiência auditiva”, espalhados pelo país, cerca de 3,8 milhões estão na região Sudeste, 3 milhões na região Nordeste, quase 1 milhão e meio na região Sul, 737 mil no Norte e 633 mil no Centro-Oeste do Brasil. Outro dado importante é que nas regiões Sudeste e Sul, a maior parte dessa população é branca, ao passo que nas demais regiões o maior quantitativo é de pessoas negras, tanto para homens quanto para mulheres. O censo destaca que a maior concentração da população “deficiente auditiva” identificada como negra, quase 70%, está numa das regiões do país, a Nordeste, mais empobrecida pelo saqueio e exploração históricos. Esse é um caso clássico de “negligência sociolinguística”, de “geo-ontoepistemicídio” e de “elo geográfico de preconceito e descaso” (SILVA; LIMA; REZENDE, no prelo; REZENDE, no prelo). 

Na busca por terem suas diferenças respeitadas, os movimentos sociais[6] de surdos(as) no Brasil têm seus desdobramentos com a institucionalização do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), fundado em 26 de setembro de 1857 (antigo Instituto dos Surdos-Mudos), no Rio de Janeiro - RJ, por ordem do Imperador Dom Pedro II. A criação do INES foi importante para a educação dos(as) surdos(as) e para a divulgação da Libras, pois, depois de estudarem no INES, os(as) estudantes surdos(as) voltavam para suas cidades e estados e desencadeavam a divulgação da Libras e, principalmente, propiciavam articulações como movimentos sociais com a criação de associações de surdos(as) em todo o país (MONTEIRO, 2006).

No ano de 1977, surgiu no Brasil, a Federação Nacional de Educação e Integração dos Deficientes Auditivos (Feneida), devido à necessidade de uma organização nacional que representasse os interesses das pessoas surdas brasileiras. Dentro da própria organização, foi necessária a reivindicação de demandas pela comunidade surda, tendo em vista que, inicialmente, a Feneida era composta exclusivamente por pessoas ouvintes (FENEIS, 2019).

Marcada, mais uma vez, pelo domínio ouvintista, a comunidade surda não era representada por surdos(as). Em 1983, o movimento de surdos(as) criou a Comissão de Luta pelos Direitos dos Surdos, mas só conseguiram a presidência da Feneida em 16 de maio de 1987, reestruturando, assim, o estatuto da instituição, passando a ser chamada de Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (FENEIS). A partir daí, representada pelos(as) próprios(as) surdos(as), passou a defender de forma mais fidedigna políticas linguísticas, educacionais, culturais, entre outras, para a comunidade surda (FENEIS, 2019). Outro ponto a refletir é que embora haja um movimento social articulado, ele nem sempre será capaz de atender todas as demandas de uma comunidade, principalmente dos grupos localizados à margem do movimento.

O movimento negro, no Brasil, por seu turno, é tão antigo quanto o próprio escravagismo do povo negro, considerando os levantes e as formações quilombolas. Nesta discussão, devido aos objetivos deste estudo, vamos tratar somente dos movimentos sociais negros do século XX. Assim, paralelo aos movimentos de pessoas surdas, o movimento negro no Brasil, da década de 1930 em diante, tem seu marco na Frente Negra Brasileira (FNB), que se torna a maior organização política dos(as) negros(as) brasileiros(as) no século XX. Daí em diante, o movimento vai ganhando força e, a partir de meados de 1970, em plena ditadura militar, instaurada desde 1964, ao buscar a chamada “consciência da negritude”, contra a ideia de “branqueamento” e “democracia racial” no país (GOHN, 2011), há sua eclosão.

No dia 07 de julho de 1978, nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, ocorre um marco para o movimento negro brasileiro. Motivados(as) pela revolta, após a morte de um homem negro dentro de uma delegacia de São Paulo e também pela proibição da entrada de quatro jovens jogadores de vôlei no Clube de Regatas Tietê, pelo fato de serem negros, ocorre um ato público no Teatro, a fim de cobrar explicações e justiça ao Estado. Após grande repercussão mundial do ato, é fundado, no mesmo ano, o Movimento Negro Unificado (MNU) (GOHN, 2011).

Sendo assim, entendemos o movimento negro como um movimento social, com suas particularidades, englobando

 

o conjunto de entidades, organizações e indivíduos que lutam contra o racismo e por melhores condições de vida para a população negra, seja através de práticas culturais, de estratégias políticas, de iniciativas educacionais etc. (GOHN, 2011, p. 110).

 

Assim como no movimento de surdos(as), no movimento negro, houve diversas questões desnaturalizadas, principalmente o “Mito da Democracia Racial”, considerado como um “dispositivo ideológico de reprodução das relações raciais” (SALES JUNIOR, 2009, p. 15). Por impedir a tematização pública do racismo, o “mito da democracia racial” sempre foi usado para deslegitimar as pautas de luta dos movimentos negros, pois estabelece que no Brasil há uma democracia racial. Entretanto, a população negra sempre soube e sabe, na prática, e sente na pele que essa democracia racial nunca existiu.

Compreendemos o racismo como,

 

por um lado, um comportamento, uma ação resultante da aversão, por vezes, do ódio, em relação a pessoas que possuem um pertencimento racial observável por meio de sinais, tais como: cor da pele, tipo de cabelo, etc. Ele é por outro lado um conjunto de ideias e imagens referente aos grupos humanos que acreditam na existência de raças superiores e inferiores. O racismo também resulta na vontade de se impor uma verdade ou uma crença particular como única e verdadeira (GOMES, 2005, p. 52).

 

Concordamos, então, que “uma sociedade é racista ou não é” (FANON, 2008, p. 85), não existe meio termo, não existe um lugar mais racista que o outro. As práticas racistas são opressoras e violentam os corpos negros de inúmeras formas, mas todas têm o mesmo intuito de desumanizar e exterminar a existência da população negra.

De acordo com Lélia Gonzalez (1988), no Brasil, pratica-se o racismo por denegação. Conforme o modus operandi da cristandade, as pessoas ou reprovam o racismo sendo racistas, negando que o são, ou se assumem racistas, culpabilizando a vítima, ou, ainda, se justificam, dizendo que têm amigos(as) ou familiares negros(as) e, muitas vezes, até se autodeclarando negros(as). Essa prática é chamada de “racismo cordial”, pois coloca a raça como estereótipo social (SALES JUNIOR, 2009).

Os preconceitos, como o racismo, são sistemas abstratos que se materializam nas práticas sociais cotidianas, como as práticas sociodiscursivas. Os conflitos de interesses acirram as disputas sociais e trazem à tona as ideologias e as subjetividades resguardadas pelos discursos politicamente corretos. As práticas sociodiscursivas revelam as subjetividades tensionadas nos conflitos ideológicos.

Um exemplo desses tensionamentos são as políticas de ações afirmativas que conquistaram a reserva de vagas para ingresso nas universidades públicas para pessoas negras (pretas e pardas), indígenas e quilombolas (PPI), Lei Federal 12.711/2012, e para Pessoas Com Deficiências (PCD), Lei Federal 13.409/2016. Com a conquista desses direitos de reparação histórica, os preconceitos que tomam o corpo como o “marco zero” da construção de sentidos, ou seja, o racismo e o capacitismo, foram profundamente potencializados, insurgindo nas malhas sociodiscursivas das práticas sociais cotidianas.      

Por isso, os movimentos sociais são de fundamental importância na busca e consolidação de uma sociedade com equidade e novas possibilidades para as populações que ainda se encontram jogadas às margens pela colonialidade e relegadas à não existência. Cabe ainda ressaltarmos que os movimentos sociais são atos de resistências herdados de nossos(as) ancestrais, principalmente das mulheres negras, que

 

sustentavam o terrível fardo da igualdade em meio à opressão, se gozavam de igualdade com seus companheiros no ambiente doméstico, por outro lado elas também afirmavam sua igualdade de modo combativo, desafiando a desumana instituição da escravidão. Resistiam ao assédio sexual dos homens brancos, defendiam sua família e participavam de paralisações e rebeliões (DAVIS, 2016, p. 31).

 

Nossas ancestrais negras, mesmo escravizadas, resistiram contra as inúmeras barbáries advindas do poder colonial e da incessante manutenção da subalternização de seus corpos pela colonialidade do poder. É do(a) negro(a) e do(a) indígena que herdamos a força da resistência.

Direitos linguísticos e existenciais na intersecção das opressões dos corpos negros surdos

Após o Congresso de Milão (1880), no qual se instituiu o método do oralismo como mais adequado para a educação de surdos(as), o mundo todo persistiu na aplicação do método, na busca de estratégias de ensino que fossem capazes de fazer com que os(as) surdos(as) falassem e ouvissem, fazendo com que os próprios órgãos governamentais investissem enormes verbas para a aquisição de equipamentos que pudessem contribuir e potencializar os restos auditivos (STROBEL, 2006).

Muito dessas práticas de ensino do oralismo acontecia de forma violenta e opressora. Diante dessas opressões sofridas, a educação de surdos(as) foi predominantemente realizada a partir de modelos clínicos. Há relatos de surdos(as) que tinham suas mãos amarradas para que não se utilizassem de uma língua de sinais ou fizessem algum gesto, tendo seus corpos literal e fisicamente contidos, para serem normatizados, em uma violenta relação de poder.

Retomemos os dados do Censo de 2010 do IBGE, em que a maioria das pessoas negras surdas se concentra no Nordeste, para problematizarmos as colisões que violentam os corpos subalternizados. Compreendemos a interseccionalidade, com base em Kimberlé Crenshaw (1989), como uma instrumentalidade teórico-metodológica que viabiliza à inseparabilidade estrutural das categorias que sustentam o capitalismo: racismo, cisheteropatriarcado e classe. Segundo a autora, raça, gênero/sexualidade e classe são as estruturas produtoras de avenidas identitárias, onde mulheres negras são, repetidas vezes, atingidas pelo cruzamento, por estarem à margem, na subalternização. Nesta discussão, acrescentamos aos cruzamentos de Crenshaw (1989) mais um elemento de colisão ao corpo subalternizado: a surdez (deficiência, anormalidade).

Assim, entendemos que no capitalismo euroeuacentrado globalizado, ultraliberal, o corpo marcado/ferido pela surdez (a falta da audição, na ideologia colonial do déficit), pelo racismo e pelo cisheteropatriarcado tem menos chance de existência histórica e política: mobilidade social e deslocamento de classe. Esse corpo é um corpo que está marcado para ficar no cativeiro do empobrecimento e do esquecimento. Quase um século depois do início da educação de surdos(as) no Brasil, com o não sucesso do oralismo e com o surgimento das práticas bilíngues, no ano de 1948, é proclamada e publicada a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), que tem a prerrogativa de que todos os seres humanos podem invocar seus direitos, independente “de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação” (DUDH, 1948, [p. 1]). Tal declaração passa a exercer papel fundamental na busca para o mínimo de humanidade a populações antes totalmente oprimidas.

Em 1988, fundamentada no texto da DUDH, é publicada a Constituição da República Federativa do Brasil (CF), tendo em seu Art. 3º, que dispõe dos objetivos fundamentais da república, a promoção do bem de todos, “sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (BRASIL, 1988, [p. 1]). Outro ponto importante da CF é que em seu Art. 5º, inciso XLI, estabelece que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” (BRASIL, 1988, [p. 2]).

Apesar de toda a abertura à democracia e à cidadania, em seu Art. 13º, a CF/1988 declara a língua portuguesa como o único idioma oficial da República Federativa do Brasil e, assim, determina o monolinguismo do país. Herança colonial de relações de poder, o monolinguismo vem como ferramenta para deslegitimar as demais línguas existentes no território brasileiro, mantendo a colonialidade do poder.

As propostas bilíngues utilizadas hoje na educação de surdos(as) surgiram após a Declaração de Salamanca (1994), que estabeleceu que as escolas deveriam juntar todas as crianças, independentemente das suas condições físicas, sociais, linguísticas e outras (DECLARAÇÃO DE SALAMANCA, 1994). Além disso, propôs que a escola incluísse “as crianças com deficiência” e/ou superdotada, bem como, crianças em situação de rua ou crianças trabalhadoras, crianças de populações imigradas ou nômades, crianças de minorias linguísticas, étnicas ou culturais e crianças de áreas ou grupos desfavorecidos ou marginais (MONTEIRO, 2006).

Anos depois, em 1996, é proclamada a Declaração Universal dos Direitos Linguísticos (DUDL), que traz em seu Art. 5º “que os direitos de todas as comunidades linguísticas são iguais e independentes do seu estatuto jurídico ou político como línguas oficiais, regionais ou minoritárias” (DUDL, 1996, [p. 6]). Na realidade brasileira, entretanto, o Estado ainda continua a subjugar as demais línguas nacionais.

Esse breve panorama histórico foi necessário e fundamental para compreendermos o texto da Lei 10.436/2002, que reconhece a Língua Brasileira de Sinais, a Libras, como “meio legal de comunicação e expressão da comunidade surda brasileira”, e se contradiz, em seu parágrafo único, ao declarar que a Libras não pode substituir a modalidade escrita da língua portuguesa (BRASIL, 2002, [p. 1]).

Essa prática subjuga política e sociolinguisticamente a comunidade surda, uma vez que, ao mesmo tempo em que reconhece a Libras como meio de comunicação, ela também determina que os(as) surdos(as) deverão ser bilíngues, aprendendo a sua língua e o português escrito (LIMA; REZENDE, 2019), resguardando a hegemonia e o privilégio da sociedade ouvintista. Novamente, podemos notar a política de manutenção da colonialidade do poder.

É notória a disparidade política que privilegia, incontestavelmente, a comunidade ouvinte. É o privilégio ouvinte que a todo tempo violenta os corpos surdos e que, muitas vezes, tem se apropriado das epistemologias construídas pela comunidade surda, a fim de adquirir capital, na oferta de cursos de Libras, bem como nas práticas salvacionistas das religiões que tendem a ensinar Libras para salvarem essas “almas perdidas”.

Além disso, a obrigatoriedade da escrita em português representa o poder do Estado sobre a sociedade, bem como uma estratégia usada para a manutenção da colonialidade linguística, uma vez que “a escrita está vinculada à escola, a subalternização do(a) surdo(a) é construída e sustentada pelo Estado, por meio de políticas linguísticas e educacionais oficiais” (LIMA; REZENDE, 2019, [p.3]), ou seja, a escola ensinará o(a) surdo(a) a escrita do português e o(a) surdo(a) deverá adquirir uma língua de modalidade distinta de sua língua materna, para que, assim, a política linguística do Estado possa ser eficaz ainda que, mais uma vez, continue violentando os corpos que ele subalterniza.

Pensando ainda que as línguas de sinais são baseadas nas experiências visuais e culturais da comunidade surda, tornando-se línguas de modalidade “visoespacial” (QUADROS; KARNOPP, 2004), essa diferença entre canais de recepção e produção das informações entre surdos(as) e ouvintes é responsável por marcar e fortalecer as relações de poderes, resultando na hierarquização do português sobre a Libras (LIMA; REZENDE, 2019).

Além disso, segundo Strobel (2008), a cultura surda sempre foi baseada pela cultura dos(as) ouvintes, que estabelece que só o que o(a) ouvinte vive que está certo ou é melhor. Essa caracterização se assemelha às relações étnico-raciais, em que se baseia a cultura dos povos negros pela cultura europeia, que estabelece que só o que é da Europa (brancos) é válido.

Parafraseando Frantz Fanon (2008, p. 33), defendemos que o não poder sinalizar ou sinalizar e, ao mesmo tempo, ter de escrever na língua oral, é “estar em condições de empregar uma certa sintaxe, possuir a morfologia de tal ou qual língua, mas é sobretudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização”. Estar obrigado(a) ao bilinguismo, numa sociedade monolíngue por poder histórico, é estar obrigado(a) a “suportar o peso de uma civilização” e de um corpo político investido do poder da “normalidade”.

Por isso, pensar o corpo negro-surdo, com suas vivências de sexualidade e com suas existências sociolinguísticas, interseccionalmente, é enxergar a colisão das estruturas de cultura/linguagem/epistemologia, raça/cor, gênero/sexualidade, classe e outras categorias de classificação social e de identidade. Essas estruturas situam de maneira negativa esse corpo no mundo, a fim de excluir ou marginalizar aqueles(as) que são diferentes do padrão cisheteropatriarcal e que continuam dia após dia a assassinar seus semelhantes.

Lélia Gonzalez (1988) chamou atenção para o fato que as narrativas de gênero são baseadas nas experiências das mulheres brancas e de classe média e que as narrativas da raça são baseadas nas experiências de homens negros. Podemos acrescentar que todas essas narrativas são contadas por pessoas ouvintes, nunca por homens ou mulheres surdos(as) e menos ainda por mulheres negras surdas. Mesmo dentro de grupos subalternizados há uma multiplicidade de intersecções, há grupos que são capazes de oprimir e violentar ainda mais os corpos situados às margens. Por meio da interseccionalidade podemos construir meios para lidar com outras marginalizações, tendo em vista que “há uma relação de sustentação entre a língua e a coletividade” (FANON, 2008, p. 49).

No final, essa marginalização e opressão dos corpos de pessoas negras surdas, com suas vivências de sexualidade e com suas existências sociolinguísticas, ocorrem pelas colisões criadas pelo racismo estrutural do capitalismo globalizado, que reverbera nas instituições do Estado e continua a impedir que surdos(as) sejam capazes de adentrarem lugares de poder regidos pela colonialidade do monolinguismo do português brasileiro e provoca a invisibilização de negros(as) surdos(as) na sociedade.

Considerações finais

Os direitos linguísticos da comunidade surda têm sido, historicamente, negados e continuam sendo negados, apesar de todas as lutas da comunidade surda e mesmo reconhecendo a importância e a validade de todas as conquistas dessa comunidade. Isso se deve ao fato de o Brasil ser um país estruturado sob a matriz de poder colonial, sobretudo a ideologia do monolinguismo.

Refletirmos sobre as construções dos mecanismos de colonização dos corpos, lembrando que todas as intersecções são indissociáveis, e que juntas formam o corpo e que esse corpo, marcado por essas avenidas identitárias resistiu e resiste até hoje contra a manutenção da subalternização de suas identidades. Acrescentamos, ainda, que as discussões aqui apontadas não intentam esgotar as problematizações referentes à subalternização desses corpos.

Essas são contribuições para o debate e visam a instigar novas pesquisas e novos olhares. Em síntese, quais são as avenidas identitárias opressoras capazes de sucumbir uma pessoa negra, surda, mulher, lésbica e periférica? Qual a chance de seu corpo ser alvejado com oitenta tiros? Na verdade, não podemos nem pensar em chance, pois esses corpos são alvos que já estão marcados para morrer, corpos negros foram e são até hoje descartados pela branquitude.

Vidas negras importam, vidas de pessoas surdas importam, vidas LGBTQI+ importam, vidas de mulheres importam, nosso povo importa. Mesmo que para o Estado brasileiro, reprodutor desse sistema e mantenedor do genocídio da população negra e população trans, bem como o maior reprodutor de violência contra a mulher no mundo, cabe a nós, acadêmicos(as) ou não, repensar nossas práticas sociais, e passar a enxergar essas pessoas pelas encruzilhadas.

Nós, como povo negro, só temos uma opção senão a de reexistirmos. Não existe outra saída para a cura de nossas cicatrizes se não a luta. Essa luta se faz presente em diversos espaços e este estudo representa um espaço a mais de acolhimento e questionamento contra a naturalização do genocídio do nosso povo. Não existe nenhuma teoria capaz de superar a (re)existência de um corpo marcado para morrer.

Com a revisão teórica feita, de acordo com a seleção de títulos, constatamos que, no campo dos estudos da linguagem, há estudos que (i) relacionam raça (negros(as)) e surdez, e gênero/sexualidade e surdez, mas não têm a interseccionalidade como perspectiva; (ii) as pessoas surdas não são sujeitos das pesquisas; (iii) as pesquisas que têm as pessoas surdas como sujeito são da área de educação, descrição e política linguística, com outras temáticas.

Esperamos que as pessoas negras surdas olhem para seus corpos, que possam se ver como pessoas e que possam entender como a estrutura, ancorada na matriz de poder colonial, as oprime e exclui dos espaços de decisão.

 

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Notas



[1] Embora os marcadores de um corpo sejam indissociáveis (mulher negra surda lésbica), utilizamos o termo negro/a surdo/a, nessa sequência, por entendermos que no mundo colonial a subalternização dos corpos se dá pelas marcações de gênero, raça, e posteriormente as demais interseções, como, por exemplo, neste caso, a surdez, considerada um déficit ou uma deficiência.

[2] Utilizamos os termos: “povo surdo”, “pessoas surdas” e/ou “pessoas com surdez”, ao nos referimos àquelas que não habitam o mesmo local e que estão ligadas pelas experiências visuais e compartilham de costumes, histórias e tradições culturais (STROBEL, 2008).

[3] Obiah Grupo de Estudos Interculturais Decoloniais da Linguagem, Diretório dos Grupos de Pesquisa do Brasil. Disponível em: http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/7141.

[4] Apoiamo-nos em Homi Bhabha (1998, p. 46), para quem “é um sinal de maturidade política aceitar que haja muitas formas de escrita política, cujos diferentes efeitos são obscurecidos quando se distingue entre o ‘teórico’ e o ‘ativista’. Isso não significa que o panfleto utilizado na organização de uma greve seja pobre em teoria, ao passo que um artigo especulativo sobre a teoria da ideologia deva ter mais exemplos ou aplicações práticas. Ambos são formas de discurso e nessa medida produzem, mais do que refletem, seus objetos de referência”.

[5] O termo “deficiência auditiva” é utilizado no censo do IBGE, com base na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU/2007), ratificada pelo Brasil, que traz a definição: pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas. - Pessoas com deficiência auditiva foram assim classificadas quando tiveram "alguma dificuldade", "grande dificuldade" ou "não conseguiam de modo nenhum" como respostas para a pergunta "tem dificuldade permanente de ouvir? (se utiliza aparelho auditivo, faça sua avaliação quando o estiver utilizando)" (IBGE, 2010). Disponível em: https://www.ibge.gov.br/apps/snig/v1/?loc=0&cat=-1,-2,-3,128&ind=4643

[6] Entendemos “movimentos sociais como “ações sociais coletivas de caráter sociopolítico e cultural que viabilizam distintas formas da população se organizar e expressar suas demandas” (GOHN, 2011, p. 13). São esses movimentos sociais que se articulam e tendem a pressionar o Estado, a fim de terem suas demandas atendidas. É preciso dizer ainda, que o Estado tem a função de buscar a “conciliação” entre os corpos violentados e as práticas colonialistas, não representando, ainda assim, uma verdadeira democracia, porque, na maioria das vezes, legisla com base nos valores hegemônicos.