Corpo, estereótipo e educação: convenções ideológicas e formação

Body, stereotype and education: ideological conventions and formation

 

Eduardo Oliveira Sanches

Universidade Estadual de Maringá, Paraná, Brasil

eduardo.uem@hotmail.com - http://orcid.org/0000-0001-9810-5764

 

Eduardo Borba Gilioli

Faculdade Intermunicipal do Noroeste do Paraná, Paraná, Brasil

eduardo.gilioli@escola.pr.gov.br - https://orcid.org/0000-0002-5356-6230

 

Maria Terezinha Bellanda Galuch

Universidade Estadual de Maringá, Paraná, Brasil

mtbgaluch@uem.br - https://orcid.org/0000-0001-5154-9819

 

Recebido em 04 de março de 2021

Aprovado em 06 de abril de 2021

Publicado em 27 de dezembro de 2022

 

RESUMO

Discute-se neste estudo, de natureza teórica, a dimensão ideológica dos estereótipos de beleza e de estética corporais que, na sociedade tecnológica, estão presentes em divulgações midiáticas. Examinam-se os processos de adequação e de reordenação das aspirações e da sensibilidade dos indivíduos voltados à estrutura social de consumo. Pensar uma educação crítica sobre a  estandardização da consciência humana, buscando-se fundamentos na Teoria Crítica da Sociedade, contribui para se compreender a manipulação individual no âmbito da sociedade de consumo atual. Verificam-se  sutilezas pelas quais a indústria cultural transfere aos produtos e aos serviços comercializáveis, voltados à beleza, estética e à boa forma físicas, aspirações humanas capazes de levar os sujeitos a incorporarem  estereótipos consumistas nos investimentos sobre os seus corpos. Nesse sentido, a educação pode ser um espaço de formação para a resistência, ao conduzir um ensino que revele as falsas relações entre estética, saúde e desempenho corporal, robustecidas pela indústria cultural.

Palavras-chave: Corpo; Estereótipo; Educação.

 

ABSTRACT

This article discusses the ideological dimension of stereotypes of beauty and body aesthetics that, in technological society, are present in media reports. The processes of adapting and reordering the aspirations and sensitivity of individuals focused on the social structure of consumption are examined. Thinking about a critical education about the standardization of human conscience, looking for foundations in the Critical Theory of Society, contributes to understanding individual manipulation in the context of contemporary society. There are subtleties by which the cultural industry transfers to tradable products and services, focused on physical beauty and fitness, human aspirations capable of leading individuals to incorporate consumer stereotypes in investments in their bodies. In this sense, education can be a training space for resistance, by conducting teaching that reveals the false relationships between aesthetics, health and body performance, strengthened by the cultural industry.

Keywords: Body; Stereotype,Education.

 

 

Introdução

 

O Belo é sempre bizarro. Não digo que seja voluntariamente, friamente bizarro, pois, em tal caso, seria um monstro fora dos trilhos da vida. Digo que contém sempre aquele pouco de estranheza que o faz ser particularmente Belo.

 

Charles Baudelaire.

 

            Força, agilidade, beleza, feiura, leveza, obesidade – cultura , estas são algumas das muitas expressões que, associadas ao corpo, dotam de múltiplas possibilidades de representação a materialidade que constitui os seres. Nesse sentido, a concepção de beleza pode ser compreendida como um valor inconstante e variável segundo o momento histórico e cultural em que a existência do corpo e o seu correspondente de beleza são pensados (ECO, 2004).

            Este estudo objetiva refletir sobre o entrelaçamento entre sociedade de consumo e corpo, no contexto em que a este é delegado um padrão mercantil de beleza como algo inerente às suas representações. No atual estágio do desenvolvimento do capital, o corpo é visto como um foco importante de investimento individual. E, assim, a sua inserção social também ocorre por mecanismos de consumo que, por sua vez, se estabelecem como meios eficazes para escoar a dinâmica produtiva.            

Na atualidade, um aparato complexo foi criado para absorver as demandas e as necessidades do corpo, indicando tantas outras que retroalimentam o atual modelo produtivo (HORKHEIMER; ADORNO, 1985).

 

Cuidar do seu corpo tendo em vista a melhor aparência a ser projetada em público, vai se tornando gradativamente uma necessidade para os indivíduos. O estabelecimento de tal necessidade é acompanhado pelo crescimento de uma gama de conhecimentos relativos ao corpo nas áreas de estética, saúde e educação e de técnicas e objetos que lhes correspondem. Estrutura-se, dessa forma, um mercado de aparências representado por um sem-número de profissionais especializados e instrumentos de atuação (SILVA, 2001, p. 57).

 

            O considerado belo, nesse ambiente, dita ao corpo como ser melhor valorizado no mercado sócio-afetivo, não raro, ensinando os indivíduos o quê e como consumir para agregar ‘mais valor’ à corporeidade. Nessa lógica, o próprio corpo se torna um objeto cambiável, uma mercadoria valorizada segundo seus atributos morfobiológicos e os acessórios utilizados que também obedecem a um padrão de qualidade e de beleza (SANCHES; FABIANO, 2013; HANSEN; VAZ, 2006; ALBINO; VAZ, 2008).

Por sua vez, o corpo, como habitação individual e meio para a expressão e a afirmação da individualidade, está

 

[...] à mostra como nunca, provocando desejos e anseios, sobretudo de alcançar promessas de liberdade, felicidade e sucesso que se encontram encarnadas nas aparências tidas como belas e saudáveis. Corresponde a esse movimento toda uma pedagogia que combina a produção de subjetividades que encontram no corpo a sua realização contemporânea (...). É necessário, no entanto, um material didático que se dissemina em jornais diários, revistas ilustradas semanais e mensais, programas de televisão aberta e por assinatura. Têm como território os salões de beleza, as academias de ginástica e musculação, os consultórios nutricionais e de cirurgia plástica, alastrando-se para as residências, locais de trabalho e confundindo-se com os espaços de lazer (ALBINO; VAZ, 2008, p. 199-200).

 

            As técnicas de publicidade e de propaganda da indústria cultural, enredadas ao arcabouço ideológico da sociedade administrada, acabam influenciando as práticas educativas escolares,  já que  em determinadas situações, por exemplo em aulas práticas de educação física, os indivíduos têm maior possibilidade de expressar, conscientemente ou não, suas concepções de beleza e de desempenho corporal que, por vezes, são acompanhadas de preconceitos alimentados pela estereotipia dos próprios conteúdos formativos.

Acreditamos que essa perspectiva de educação pode, inclusive, ser fundamental para o discernimento, para a compreensão crítica e para o posicionamento político a respeito de afirmações – mesmo que não tenham sido feitas no ambiente escolar – que podem trazer sérias consequências à população. Recentemente, uma frase proferida por Bolsonaro, diante dos efeitos da pandemia da Covid-19 no Brasil, ganhou os holofotes midiáticos em diversas partes do mundo. Assim se manifestou o presidente brasileiro: “No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar, nada sentiria, ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha […]” (REVISTA VEJA, 2020, s/p).

Em que pesem as motivações e as reverberações dessa narrativa, neste artigo nos interessa destacar a força e a falácia desse discurso que, em maior ou em menor grau, representa a concepção de um coletivo social, influenciado ou não pelo carisma do líder político. A realização de exercícios físicos por um determinado período de tempo não acarreta alterações fisiológicas ad infinitum, as quais em tese poderiam tornar os indivíduos mais resistentes às infecções, incluindo a causada pelo coronavírus. Também há que mencionarmos que pesquisas que relacionam o aumento da resistência imunológica à Covid-19 ao exercício físico ainda são incipientes, sendo, por isso, prematura a afirmação aqui reproduzida (PRATA; SILVA; ALVES JÚNIOR, 2020).

Cabe salientar que muitos praticantes de exercícios físicos, considerados heróis do esporte, que ostentam corpos esculpidos, com um baixo percentual de tecido adiposo e com muita massa magra, são frequentemente avaliados como pessoas perenemente saudáveis, bem sucedidas e felizes (RUBIO, 2008).

Portanto, refletir sobre as falsas relações entre estética, saúde e desempenho corporal, robustecidas pela indústria cultural, é uma importante contribuição da educação que se preocupada com o desenvolvimento da sensibilidade.

 

Cultura, individualidade e processo civilizatório

Ao se estabelecer uma reflexão sobre o modo pelo qual o ser humano constitui os processos psíquicos secundários[i], quais sejam: atenção, concentração, ajuizar, pensamento, discernimento, controle motor voluntário (FREUD, 2003), não devemos nos furtar de compreender a função dos aspectos simbólicos nesse processo. A partir da constatação feita por Adorno (1995, p.47) de que “[...] a manipulação racional do irracional constitui um privilégio dos totalitários”, percebemos que os elementos culturais constituem uma parcela decisiva do processo civilizatório do sujeito, bem como a possibilidade da emancipação, por outro lado, esses mesmos elementos culturais, por meio de estereótipos mercantis, estão comprometidos com os aspectos ideológicos de sua época. Assim, buscamos neste estudo, primeiramente, relacionar considerações feitas por Freud sobre cultura e processo civilizatório àquelas apresentadas pela primeira geração da Escola de Frankfurt sobre o modo pelo qual a cultura tem sido construída na era industrial, bem como, as consequências dos estereótipos sobre o corpo no que se refere à experiência e a semiformação.

No último parágrafo do texto “Sobre música popular”, Adorno e Simpson (1986) descrevem dois elementos que tomamos como base para discorrer, a partir da psicanálise Freudiana, o processo de desenvolvimento das funções psíquicas secundárias como elemento fundamental para o processo de subjetivação e o seu entrelaçamento com o suporte simbólico dado pela cultura.

O primeiro elemento trazido pelos autores, é o questionamento sobre “[...] até que ponto ainda se justifica toda a distinção psicanalítica entre o consciente e o inconsciente”, uma vez que “[a] As atuais reações das massas são bem pouco veladas da consciência”.  O segundo seria a questão do investimento libidinal no processo de sublimação explicitado pelos autores ao escreverem que “[...] Para ser transformado em um inseto, o homem precisa daquela energia que eventualmente poderia efetuar a sua transformação em homem” (ADORNO; SIMPSONS, 1986; p. 146).

Ambos os elementos destacados pelos autores se entrelaçam na teoria freudiana por esta pensar o sujeito e o processo de singularização contextualizados historicamente. Logo, os determinantes sociais organizados, ou seja, a cultura, fornecem os suportes simbólicos, os objetos para o investimento pulsional e influenciam no desenvolvimento das funções psíquicas secundárias que, por sua vez, permitem ao sujeito analisar de forma mais complexa seu contexto e assim distinguir realidade de fantasia (ADORNO, 2015).

A ambiguidade da relação entre consciente e inconsciente foi evidenciada por Freud (2003) na década de 1920(, ao afirmar que a distinção da qualidade inconsciente ou consciente seria uma questão atinente à capacidade perceptiva do sujeito, permitindo-lhe anuir se percebe ou não a presença de algo.

O estado de consciência foi descrito por Freud como sendo extremamente frágil, mas fundamental para o reconhecimento de si e de sua inserção social. Para o autor, o recurso cognitivo que garante ambas as condições é a capacidade de pensar, pois esta articula os elementos obtidos por meio da percepção com os registros de experiência/memória, colocando ambas para dialogarem de forma a mediar a inserção social mais adequada às condições materiais e subjetivas do indivíduo. Thá (2004, p.127) enfatiza essa relação, ao dizer que o homem, segundo a compreensão freudiana, “pensa com seu corpo e com sua experiência”.

Aqui se evidencia o destaque dado às condições objetivas de experiência para a elaboração do registro de memória, uma vez que estas fornecem os objetos, os valores, os modelos, enfim os suportes simbólicos para os investimentos pulsionais e a construção de sua identidade. Nesse contexto, o corolário de informações e de estímulos e os estereótipos mercantis oriundos do âmbito social, incorporados pelo ser humano, são de fundamental importância para que ele   transite melhor entre seus desejos e as possibilidades de nomeação de tais desejos, entre mundos interno e externo.

A dimensão simbólica, no processo anteriormente descrito, viabiliza ao sujeito a comunicação consigo mesmo e com o outro. O artefato simbólico que o sujeito incorpora nesse processo representa as convenções sociais de um tempo e um espaço histórico determinado, apontando caminhos que fortaleçam, entre outras coisas, por exemplo, conceitos como o individualismo ou a alteridade.

            A história das civilizações; a concepção de homem e de mulher e seus respectivos papéis em diferentes épocas; os códigos linguísticos dos distintos idiomas existentes no mundo; o modo pelo qual o sujeito exterioriza sua vontade por sexo, por carinho e por afetos; as consistências dos vínculos afetivos os atributos humanos são atravessados pelo conjunto simbólico e alegórico do momento histórico do sujeito.

Se considerarmos que o desejo sexual faz parte dos sujeitos desde os primórdios da vida humana, não podemos negar as várias e distintas formas que a expressão desse desejo apresentou desde o homem da era pré-histórica até a atualidade, no século XXI. Nesse longo trajeto, não só as dinâmicas sexuais sofreram interferências dos elementos simbólico-históricos de cada época, mas as várias formas de expressão humana, como a Arte, a Ciência, a Economia, bem como os significados consequentes desses recursos de exteriorização da expressão humana.

            Compreender a necessidade dos elementos simbólicos para organizar a vida subjetiva e objetiva e a função social desses ícones que condensam em si as configurações de um momento histórico, leva-nos a tentar perceber as interferências que os artefatos simbólicos recebem da ideologia de mercado e dos estereótipos na contemporaneidade. 

            Na era industrial, principalmente no momento em que os meios de comunicação ganharam maior grau de sofisticação e de permeabilidade social, os elementos simbólicos, pouco a pouco, adquiriram maiores características mercantis. O corpo, a sexualidade, a sensualidade, os afetos, a felicidade, os anseios e aspirações, atributos humanos que impelem o sujeito a alguma forma de movimento em relação a si e ao outro, foram mesclados às determinantes do modelo social capitalista pós-revolução industrial.

            As formas de expressão e de representação que, em tempos ancestrais, foram fundamentais para que se pudesse construir o início do que chamamos de civilização, atualmente envolvem o sujeito em uma complexa trama nas quais estereótipos e sucedâneos se impõem como substitutivo de necessidades humanas. Tais clichês e chavões, por meio de mecanismos ideológicos, aparecem como resultado daquilo que subjaz o próprio ser humano e suas necessidades e não como derivação de arranjos e de desarranjos históricos e econômicos. Aquilo que é absolutamente necessário para a manutenção do capital surge como se fosse imprescindível à sustentação da vida humana. Nesse sentido,

 

na atual fase do capitalismo industrial os níveis da sofisticação tecnológica na produção de mercadoria passaram a determinar uma dimensão altamente consumista na moderna vida social. Não é mais possível conceber a sociabilidade sem a mediação do consumo. O valor de troca, como nunca na história da humanidade impôs-se como forma determinante das relações humanas nesse tipo de organização social. Os produtos produzidos nesse contexto social industrializado tornaram-se integrantes da expressão corpórea e ao corpo também determinaram a sua necessidade. (SANCHES; FABIANO, 2013, p. 192).

 

            . Na mescla entre símbolos lúdicos e lúbricos, em que divertimento, arejamento do espírito e distração são atravessados por sutilezas ideológicas, à percepção humana, pouco a pouco e num crescente, vai sendo educada e impulsionada a incorporar a ideologia de modo prazeroso. Em tal contexto, as experiências que envolvem uma dimensão estereotipada do corpo, ao serem ofertadas como forma de prazer efêmero e reduzido a si mesma, isolam-se da totalidade histórica. Em tal meio, o sujeito tem minada a constituição de sua subjetividade, pois parte significativa de sua formação já está comprometida a priori com uma dimensão simbólica fetichizada e, portanto, com a indústria cultural. Neste caso,

 

a renúncia à individualidade que se amolda à regularidade rotineira daquilo que tem sucesso, bem como o fazer o que todos fazem, seguem-se do fato básico de que a produção padronizada dos bens de consumo oferece praticamente os mesmos produtos a todo cidadão. Por outra parte, a necessidade, imposta pelas leis do mercado, de ocultar tal equação conduz à manipulação do gosto e à aparência individual da cultura oficial, a qual forçosamente aumenta na proporção em que se agiganta o processo de liquidação do indivíduo (ADORNO, 1999, p. 80).

 

            As experiências se danificam por atributos mercantis que permeiam a construção do sujeito em um espaço em que o real e o fantástico são deslocados para o contexto de um diálogo ideológico. Tal deslocamento se presta a atribuir aos valores e às necessidades legitimamente humanas o interesse e a motivação estritamente econômica. Por um constante jogo de tensão e de relaxamento com a percepção do indivíduo por meio dos bens culturais, articulam-se situações e são disseminados valores dominantes e hegemônicos, ou seja, estereótipos travestidos de interesse coletivo.

            No entremeio de tal oscilação perceptiva, conceitos mercantis são associados a sensações de euforia, de bem-estar, de angústia, de alegria, de tristeza, de adrenalina, de imagem de corpo, entre outros, tendendo a uma forma de padronização dos significados de aspectos importantes à constituição da subjetividade. Constituídos por elementos simbólicos como os descritos, debilita-se uma formação mais crítica justamente pela deformação perceptiva educada e induzida a perceber somente o que satisfaz o sujeito de modo mais fácil e imediato. Assim, a “[...] ‘semiformação’ constitui a base social de uma estrutura de dominação” (MAAR, 1995, p. 23).

            É importante salientar que, no nível das sensações, o processamento da informação ainda não atingiu organização suficiente como síntese do que se sente. Ela é apenas uma forma decomposta da realidade que chegou ao ser humano pelas portas de acesso a seu espírito. Sobre essa questão, Chauí (2003, p.133) menciona que “a passagem da sensação para a percepção é, nesse caso, um ato realizado pelo intelecto do sujeito do conhecimento, que confere organização e sentido às sensações”.

            Nesse caso, reportar-se às conclusões de Freud sobre a constituição da identidade do sujeito[ii] é afirmar que a indústria cultural, ao se utilizar de estereótipos mesclados às informações divulgadas, afere e direciona o foco primário do que o indivíduo deve perceber e compreender sobre um determinado fato. Logo, já nas primeiras instâncias em que o conhecimento se processa para formar a subjetividade humana e seu conteúdo reflexivo, o arcabouço ideológico faz-se presente. Na tentativa de distrair e de entorpecer os sentidos humanos, a sociedade liga a percepção individual aos projetos de expansão comercial. A maneira totalitária com que se impõe aos sentidos uma conotação comercial no diálogo daquilo que é interno com o que é externo ao sujeito leva-o, segundo demonstra Adorno (1991), a renunciar a própria individualidade e deixá-la ser formatada àquilo que é regular e rotineiro, como lugar comum, bem como àquilo que se impõe como senso de ‘ser bem sucedido’ em nossa sociedade.

            Ao incorporar os símbolos próprios da sociedade mercantil e do consumo em massa, o sujeito passa a nomear seus desejos e seus anseios mais íntimos por meio de insígnias e ícones carregados de elementos fetichizados, o que resulta em uma falsa experiência social. O processo descrito, segundo afirma Maar (1995, p. 23), “representa uma determinada satisfação concreta dos sentidos.”. Ocorre que, por ser uma satisfação que se estabelece com o nexo do consumismo e não o do próprio desejo do indivíduo, é o engodo da satisfação. Nesse caso, conforme evidencia o autor, “é uma satisfação que trava as possibilidades da experiência formativa, provoca uma regressão dos sentidos.” (MAAR, 1995, p. 23). Pelos recursos sociais de manipulação do sujeito, até mesmo os aspectos mais subjetivos podem ser condicionados às estruturas sociais de dominação.

            Com uma perspectiva utilitarista, os elementos simbólicos são utilizados, conjuntamente com outros mecanismos, para formatar uma vasta gama de elementos sinestésicos e perceptivos em uma vertente alienada. Os componentes sensoriais ou pré-racionais que indicaram o início da cadeia reflexiva sobre a realidade já são, a priori, condicionados pelos aparelhos conceituais antes que a percepção ocorra. De tal modo, Horkheimer e Adorno (1985, p. 83) mencionam que

 

Kant antecipou intuitivamente o que só Hollywood realizou conscientemente: as imagens já são pré-censuradas por ocasião de sua própria produção segundo os padrões do entendimento que decidirá depois como devem ser vistas. A percepção pela qual o juízo público se encontra confirmado já estava preparada por ele antes mesmo de surgir.

 

Ao ser bombardeado por estímulos com acentuado imediatismo e sucedâneos próprios da indústria cultural, tornam-se prejudicadas as possibilidades de o indivíduo desenvolver experiências que fortaleçam a constituição de seu ego. Em tal contexto, o aparelho sensorial fica subjugado à reprodução das instâncias econômicas que sobre ele exercem influências. Nesse caso, por dinâmicas que levam a uma sobreposição de momentos de excitação e de relaxamento da percepção humana, voltada ao preenchimento simplista do tempo livre, limita-se a possibilidade de o sujeito constituir sua experiência simbólica.

            No cotidiano do trabalhador, os usos feitos dos símbolos e representações humanos para fins econômicos, além dos já mencionados, podem ser verificados nos rituais que se destinam às festividades e às datas comemorativas, em que os ambientes são preparados para envolver o sujeito nas esferas consumistas. A casinha do “Papai Noel”, o “Coelho da Páscoa”, o dia das crianças, as homenagens às mães, aos pais e aos namorados, em suma, as histórias que mexem com o imaginário e a fantasia popular são momentos direcionados a alimentar a expressão dos sentimentos, a troca de afeto, o exercício da convivência em um plano mercantil. O sujeito é levado, por um ambiente cultural estereotipado, a ser envolvido por uma aura em que a luminosidade dos ambientes e objeto, as músicas, os cenários e as personagens de ocasião são recursos lúdico-simbólicos empregados com a mais elevada dose de pragmatismo para aliciar os desejos, voltando-os ao consumo alienado.

 

Corpo, Sucedâneo e Indústria Cultural

 

Para a Teoria Crítica da Sociedade, o desenvolvimento histórico da humanidade é marcado por relações de violência e de dominação. No período mitológico, o homem é subjugado pela natureza; já na sociedade tecnológica, a natureza, inclusive o corpo humano, passa a ser objeto de controle e de monitoramento, ou seja, apesar das possibilidades objetivas e subjetivas para a reconciliação entre natureza e cultura, a racionalidade instrumental que rege as relações sociais sob a égide da indústria cultural, mantém a cisão iniciada nos primórdios da civilização (HORKHEIMER; ADORNO, 1985).

Horkheimer e Adorno, na obra Dialética do Esclarecimento, inauguram o conceito de indústria cultural, a fim de especificar o caráter fetichista do processo de produção e de veiculação da cultura como mercadoria cultural, da cultura como meio para a circulação da ideologia. Desse modo, buscou-se desfazer o que os autores reconheciam como uma forma de ambiguidade da expressão cultura de massa como representação de uma cultura procedente das massas, dotando o termo de um possível sentido democrático e popular. “Produzida não pelas massas mas para elas, a cultura de massa tem na passividade seu elemento e os bens culturais não são também mercadoria, mas só mercadoria” (MATOS, 1997, p.156).

            Na análise sobre a ideia de indústria cultural, o estereótipo tem uma função fundamental. Os estereótipos sociais podem ser compreendidos por meio do que Horkheimer e Adorno (1985, p. 123) denominaram de “[...] sucedâneo do idêntico”, ou seja, pela constante repetição de conteúdos ideológicos criam-se estereótipos, modelos mercantis mediante os quais educa-se a sensibilidade a reconhecer-se na mercadoria. Segundo Marcuse (1979, p. 31), “[...] essa identificação não é uma ilusão, mas uma realidade [na qual] o sujeito [...] é alienado e engolfado por sua existência alienada”. Em Crochík (1996) encontramos elementos que aprofundam a ideia de que os estereótipos caracterizam-se por serem compostos por um conjunto de predicados fixos atribuídos ao objeto – pode ser o corpo, a mulher, o homem, entre outros.

 

O estereótipo retira o seu predicado principal e os derivados de distinções estabelecidas pela cultura entre sexos, ocupações, doenças, raças, povos, religiões, idade etc. e assim, de alguma maneira, as classificações culturais colaboram com ele. Mas não é somente com a nomenclatura que a cultura contribui, ela atribui também juízos de valores às suas distinções. Assim, historicamente o trabalho inteleclual tem sido mais valorizado do que o trabalho manual; o sexo masculino tem sido considerado mais adequado ao trabalho na esfera pública e o sexo feminino ao trabalho doméstico; os deficientes são desvalorizados por não poder participar da construção e da manutenção da sociedade; as raças e os povos que adentraram posteriormente na civilização ocidental são discriminados frente à raça branca dos povos europeus, e assim por diante (CROCHÍK, 1996, p. 49).

 

Nesse sentido, o atual modelo produtivo, por meio da estereotipia criada para vender seus bens e sua visão de mundo, tenta convencer o indivíduo que ele é o produtor dos conteúdos e dos conceitos vinculados aos estereótipos e veiculados pela mídia, enquanto tenta, ao mesmo tempo, manter ocultas as ardilosidades provenientes de um contexto consumista que tem na indústria cultural um importante aliado de manutenção do status quo. Como poucos elementos do cotidiano escapam do filtro da indústria cultural, o corpo é redimensionado a cada momento histórico, seguindo as tendências de mercado que, por sua vez, são expressas nos estereótipos e nos sucedâneos sobre o que é um corpo belo e saudável. “Essa ideologia chega a tal ponto que provoca o desaparecimento da consciência dos indivíduos de que há outras possibilidades e comportamentos possíveis ante a sua dimensão corporal” (SILVA, 2001, p. 63).

A mídia, ao se estabelecer como referência para as análises relacionadas ao cotidiano, cumpre um papel primordial ao veicular conceitos ideologizados de beleza, de felicidade, de juventude, de amor, de sexo, de saúde, de boa forma, entre outros. Dessa maneira, a indústria cultural assenta como princípio o nexo do idêntico e do imitativo, constituindo um verdadeiro sistema, no qual o cinema, o rádio, as telenovelas, os blogs, os sites de busca, as revistas voltadas ao corpo, entre outros meios distintos de comunicação, articulam-se com o objetivo de manter fortalecidos os mecanismos de manipulação de massa. O sujeito acaba bombardeado por pressupostos ideológicos oriundos de todas as esferas midiáticas tangíveis. Assim, se estabelece uma trama de estereótipos, em função da qual, uma rede de manipulação se instaura, fragilizando possíveis formas de reação e de resistência.

 

O estereótipo, assim, é um produto cultural que nasce no próprio processo de adaptação do homem à natureza, que na nossa cultura implicou uma dominação a mais, visto que o poder entre os homens - exercido inicialmente pela força – transformou-se em violência sublimada, propagada pelas palavras na própria divisão social do trabalho (CROCHÍK, 1996, p. 52).

 

Como consequência do modo totalitário como o capital se apropriou da cultura como formação e a submeteu à ideologia de mercado, criando tipificações, “[...] a subjetividade fica comprometida com a incorporação de valores culturais identificados com os interesses ideológicos vigentes, cuja finalidade é reforçar e perpetuar o seu processo de reificação” (FABIANO, 2002, p. 228). Ao se evidenciar nos meios de difusão de informação e de entretenimento uma certa dose de intimismo e de individualidade, o sujeito parece ter resgatado a interioridade diluída no processo de expropriação, tendo a sensação de estar integrado à esfera social. No entanto, ele não se dá conta de que apenas está realizando uma “[...] identificação imediata (...) com a sociedade em seu todo” (MARCUSE, 1979, p. 31), ou seja, encontra-se manipulado no íntimo de seu gosto.

A educação do corpo pelos estereótipos nasce com a intenção de perpetuar o lastro que fundamenta a sociedade industrial desde seus primórdios: a “[...] indústria só se interessa pelos homens como clientes e empregados e, de fato, reduziu a humanidade inteira, bem como cada um de seus elementos, a essa fórmula exaustiva” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p.137). Com a educação do gosto mediada pela uniformidade, fragiliza-se nos indivíduos a perspectiva crítica e dialética sobre os conteúdos propagados pelos agentes da indústria cultural. Assim, como o valor de troca se universaliza, as aspirações e os anseios referentes à autoimagem produzem, em uma esfera massificada, a ideia de que se pode adquirir “o corpo perfeito”, o qual, por sua vez, será mais valorizado na esfera das relações humanas e profissionais, obviamente mediadas pelas estruturas de consumo como bares, shoppings, hipermercados, salões de beleza, cremes da marca “x”, shampoo da atriz “y”, entre outros.

Segundo Adorno (1992), é preciso ponderação ao analisar a produção cultural, pois tão funesto quanto romantizar a cultura, é analisá-la apenas em seus aspectos negativos. Ambiguamente, a indústria cultural, tanto gera estupidez, como contribui para o desenvolvimento da inteligência (ADORNO, 1972).

Portanto, há de ser criticado não o padrão corporal em si, mas a sua conversão em estereotipia, a qual fortalece o preconceito e a alienação, pois não há formação cultural que prescinde de modelos e de incorporação da autoridade, não obstante, alguns padrões corporais estabelecidos pelos avanços da ciência nos ajuda a pensar em saúde e em bem-estar.

Por exemplo, avaliações e medidas estandardizadas como o Índice de Massa Corporal (IMC), a Relação Cintura Quadril (RCQ) e a Circunferência Abdominal (CA) nos fornecem importantes informações, tendo em vista que níveis elevados de adiposidade corporal, particularmente da gordura localizada na região do tronco e nas vísceras, incidem em maior risco cardiovascular e na elevação da morbimortalidade.

Em suma, o alvo da crítica devem ser os modelos que debilitam a individualidade e que são retroalimentados por esse enfraquecimento e não os que estão ligados à possibilidade de uma melhor qualidade de vida, ainda que esse conceito não se restrinja ao âmbito das decisões individuais, quer seja com relação aos fenômenos sociais, quer seja quando nos referimos às questões biológicas.

 

Corpo e estereótipo

Uma das funções dos estereótipos no contexto da sociedade de consumo atual é determinar comportamentos alienados em relação às necessidades reais do corpo. Este, ao assumir o estereótipo como conduta orientadora de sua performance, coaduna-se com a valorização mercadológica do corpo, segundo os interesses ideológicos do consumismo reinante. Os estereótipos referentes à beleza corporal veiculados pela mídia, contribuem para educar o humano a, simbolicamente, satisfazer suas necessidades referentes ao corpo desejado que, em tese, por meio do consumo de produtos, tornarão o corpo mais valorizado e mais aceito nas trocas afetivas e nas sociais.

Segundo Laplanche e Pontalis (1976, p. 626), simbolismo pode ser compreendido como um “[...] modo de representação indireta e figurada de uma ideia, de um conflito, de um desejo inconsciente; nesse sentido, podemos em psicanálise considerar simbólica qualquer formação substitutiva”. Neste caso, simbólica é a maneira pelo qual um sujeito manifesta de forma consciente um desejo contido em seu inconsciente. Assim, podemos dizer que o desejo incitado pelos estereótipos acerca da boa forma física e do corpo belo, forte e saudável transita no inconsciente coletivo. Ao manifestar-se sob a forma consciente, tal desejo é escamoteado e direcionado para o consumo de produtos. Essa alienação, substitutivamente, representa o anseio e o desejo do consumidor em ter um corpo análogo àqueles veiculados pelos meios de comunicação de massa, sob a forma de propaganda de produtos e serviços como um auxílio da ciência e da tecnologia para modificar o corpo.

 

Nesse sentido, a estereotipia veiculada instiga e reforça a necessidade do indivíduo identificar-se aos modelos ideologicamente determinados por uma carga imensa de padrões comportamentais. Estar em forma, sentir-se feliz ou diferenciar-se, sair do anonimato significa identificar-se ao ídolo tal, a atriz do momento, ao cantor de sucesso e aos produtos por eles anunciados ou que a eles se referem (SANCHES; FABIANO, 2013, p.199-200)

 

 Tais mecanismos são empregados com tamanha perspicácia e sutileza que o desejo de consumir é estabelecido como necessidade individual do consumidor e não como uma imposição ao coletivo. Nessa perspectiva, “[...] a produção irresistível da indústria de diversão e informação traz consigo atitudes e hábitos prescritivos (...) que prendem os consumidores mais ou menos agradáveis aos produtores e, através deste, ao todo” (MARCUSE, 1979, p. 32).

 Em clichês de enunciados voltados aos públicos feminino e jovem[iii], percebem-se apelos ideológicos que os acompanham, como: “Selecionamos 40 cosméticos que resolvem os problemas da sua pele”; "Suplementos: Shakes de proteínas, tudo sobre o produto que garante boas doses desse nutriente para seus músculos”; “Plástica: como a ciência pode deixar você mais bonita”; “Dieta do supermercado: o que comprar para não engordar”. Observamos, ainda, anúncios e apelos comerciais, tais como: “Dez dicas para atingir o orgasmo ao lado de quem ama”, “a mulher que você nunca imaginou existir vai fazer loucuras com o produto “K e H”, “não é feitiçaria, é tecnologia...”. Na internet, não faltam anúncios de toda natureza para “emagrecer em uma semana” e o respectivo produto milagroso, sempre acompanhado de depoimentos daqueles que, ao consumir o produto anunciado, afirmam terem agregado valor à sua mercadoria: o corpo.

Tais discursos “[...] envolvem o indivíduo em uma rede de estereótipos tão convincentes, que a imagem que ele faz de si mesmo confunde com esse jogo de espelhos ideológicos, no qual a sua identidade é estilhaçada e (re)orientada por tais inculcações consumistas” (FABIANO; PALANGANA, 2001, p. 234). A mediação da imagem e da linguagem nos anúncios publicitários fundem corpo anunciado com produto publicizado em uma única moeda que, de um lado o modelo do momento é almejado como sonho de consumo, do outro lado, a ideologia confere o valor mercantil ao corpo.

 Nesse sentido, é mister entender o comprometimento da individualidade humana na expressão de sua autenticidade e do exercício de emancipação como sujeito histórico (SANCHES; FABIANO, 2013). Devem-se compreender também as contradições sociais ocultadas em tais discursividades, pois

 

[...] discutir os mecanismos de manipulação ideológica subjacentes a uma estética corporal e o consumo incitado pressupõe dizer que não se consome apenas um produto ‘x’ para a busca do ‘corpo perfeito'. Agregada a essa forma de consumo ideologicamente orientado o consumidor ultrapassa o valor em si ofertado para incorporar valores que legitimam a estrutura social (SANCHES; FABIANO, 2013; p. 196).

 

 Não é a beleza do corpo e a de suas formas que adquirem valor, ao serem veiculados de modo objetificados pelos meios de comunicação de massa, mas os valores mercadológicos e os consumistas incitados pela padronização estética.

Como consequência, pode-se falar em um corpo torturado, ou como muito se diz atualmente nas academias “no pain, no gain[iv] – sem dor, sem ganhos –, que, por ser orientado exclusivamente para o trabalho e para o consumo, não se subjetiva nas relações objetivas de trabalho, nem na maneira alienada pela qual busca satisfazer certas demandas internas. O corpo torturado é um corpo estrangeiro de si mesmo, aflito, alienado, impossibilitado de experienciar-se no íntimo de suas relações, pelo fato de viver como experiência (BENJAMIN, 1996) o sucedâneo. Segundo Fabiano (1986, p. 51), é um corpo ausente “[...] que se busca e se tenta encontrar desesperadamente na pulsão de origem então adequada na satisfação através do modelo imposto. Quer seja como padrão, um produto consumível ou um valor que se pretende passar”.

Por esse motivo, o capitalismo produziu um tipo de cultura comprometida ideologicamente – a indústria cultural – por meio do qual busca seduzir o indivíduo para que ele se identifique com o dado ideológico. O estereótipo, para Horkheimer e Adorno (1985, p.114), é “[...] a falsa identidade do universal e do particular”, que educa a sensorialidade humana a mistificar a realidade objetiva. Vivenciar pelos clichês e estereótipos é, nessa perspectiva, a experiência imediata entre o que é desejado e despotencializado em uma cultura totalitária. Ao expor “[...] repetidamente o objeto do desejo, o busto no suéter e o torso nu do herói esportivo, [a indústria cultural] apenas excita o prazer preliminar não sublimado, que o hábito da renúncia há muito mutilou e reduziu ao masoquismo” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p.131). Em tal contexto, a satisfação do desejo de uma estética corporal estereotipada, via consumismo, “[...] impede a integração real dos corpos, pois isso acarretaria um corpo que não se permitiria ao uso das instituições e à exploração econômica” (FABIANO, 1986, p. 51).

Ao se questionar o padrão de beleza corpóreo difundido e aceito, põe-se em questão a violência das consciências e os mecanismos repressivos e opressivos que muito sutilmente manipulam a sociedade. Em termos educacionais, privilegiar discussões que tragam essa questão à tona prima pelo resgate daquela corporeidade prometida nos primórdios do Movimento Iluminista: o corpo emancipado. Livrar o indivíduo desse cárcere é reintegrar, pari passu, a noção de si mesmo e a do outro. Constitui-se um ato revolucionário que Fabiano (1986) denomina de princípio de alteridade.

 

A dimensão da alteridade endereça uma relação efetiva entre os corpos, abominando a sua usurpação enquanto objeto de exploração, minando assim o comando central das sociedades montadas em sistemas de exploração em que o anulamento do corpo erótico é matéria-prima. Fixa-se assim, a ausência da alteridade, ilusoriamente recuperada no investimento erotizado do corpo, pelas opções de consumo enquanto um objeto de gozo e não lugar de possibilidades de revelação do gozo. Pois, na revelação do gozo, o corpo se libera, desmascarando o peso das ideias reinantes que emperram tal possibilidade de revelação, também por interesses ideológicos dominantes (FABIANO, 1986, p. 52).

 

Discutir sobre a alteridade como base das relações sociais democráticas e humanas é imprescindível para que os indivíduos possam expressar suas dores e refletir sobre as suas causas, possibilitando a resistência às relações sociais que alimentam o mal-estar, sobretudo porque a violência social se manifesta e se reproduz nas escolas, a exemplo do preconceito e do bullying. Esses fenômenos são distintos, ainda que por vezes possam estar associados: “[...] o alvo do bullying é qualquer um que possa ser submetido; o do preconceito, em geral, necessita de uma justificativa para a discriminação” (CROCHICK; CROCHICK, 2017, p. 28).

Com relação aos estereótipos corporais que implicam em dominação e em sofrimento, importa considerar que pesquisas como a de Crochick e Crochick (2017) e a de Luna et al. (2020) demonstram haver uma correlação estatística importante entre ser magro e ser autor de violência escolar e entre ser gordo e ser alvo de maus-tratos na escola.

A regressão contida nesses atos de violência está intimamente vinculada aos preconceitos sobre a estética e sobre a ética corporais. Entendemos que essas questões devem ser objeto de reflexão na educação escolar e com vistas à “[...] formação de cidadãos propensos ao diálogo e a conviver pacificamente em regimes políticos democráticos e avessos ao autoritarismo” (CROCHICK; DIAS, 2020, p. 16).

 

Considerações finais

            No contexto histórico da indústria cultural, toda forma de acessar o mundo das representações simbólicas do indivíduo é coerente no sentido de se valerem de tais aspirações íntimas para manter a hegemonia do atual modo de organização social. No percurso em questão, quanto mais solapados por meio dos mecanismos de sedução o consumidor estiver, mais distraído estará o sujeito em relação às questões ideológicas, logo, mais facilmente seus desejos e seus impulsos serão nomeados em uma perspectiva utilitarista[v].

            Também concebido como mercadoria, segundo a visão marxiana de análise, o ser humano entra na mesma rede de produção e de consumo. Relações humanas vão se adequando aos mesmos moldes das relações comerciais e tornam-se tão descartáveis quanto os produtos consumíveis. No encantamento perceptivo pelos excessos de estímulos fixa-se a efemeridade do olhar sobre o outro, como valor e generalização, diluindo a possibilidade de vínculos mais profundos entre os sujeitos. Na volatilidade com que se busca simbolizar o prazer na atualidade, tem-se não a sua efetiva realização, mas uma compensação ao esvaziamento da interioridade consequente da organização histórica do modelo social vigente.

            O princípio de alteridade necessário para que a vida coletiva se organize de modo mais justo aos seres humanos fica submetido às instâncias administradas da sociedade atual. A sensibilização e a educação do sujeito para a vida em sociedade vão sendo ofuscadas pela luminosidade dos holofotes da indústria que ligam ao progresso das instâncias privadas os rituais de convivência e o plano cultural. Em nome daquilo que é útil à propriedade privada, padecem as necessidades humanas que, sublimadas em planos culturais mais autênticos, viabilizariam a ordenação da vida coletiva de modo mais justo e igualitário.

A função da educação é romper com a falsa clareza da realidade, pois é ela que promove a constituição de mitos, de preconceitos e de atos regressivos dos indivíduos em sua ação social. Como a educação escolar trata das múltiplas relações que estabelecemos com o real, encontra-se nela um campo favorável, privilegiado, para a crítica sobre os estereótipos relativos à corporeidade no contemporâneo.

Diante disto, educar o sujeito para ganhar maior expressividade e comunicabilidade com o outro não exclui a beleza estética, física, que hoje é tão associada ao ritual calistênico das academias de musculação e de ginástica e ao consumismo. Todavia, inclui instruir a corporeidade para que o sujeito possa preencher em si os vazios de existência que tão prontamente os sucedâneos da indústria cultural se prestam a ocupar.

Ao se resgatar o princípio de alteridade nesse processo, possibilita-se, à medida que o indivíduo toma consciência de si e de seu corpo, que ele apreenda a qualidade do que é o outro. Reorganiza-se não só a noção de subjetividade, mas também a de coletividade. Coloca-se em xeque aquilo que colabora para “[...] o emudecimento dos homens, para a morte da linguagem como expressão, para a incapacidade de comunicação” (HORKHEIMER; ADORNO, 1991, p.80), a saber: um modelo de sociedade que busca perpetuar-se pela aniquilação do sujeito, recalcando aspectos sensíveis importantes à razão, tais como a sensualidade, a sensibilidade e a sensação (MATOS, 1993).

Entender os elementos pelos quais a sociedade manipula e usurpa o sujeito de si, por meio de estereótipos relativos à estética corporal, em termos educacionais, transcende a própria noção de corpo e os questionamentos decorrentes dele. Logo, implica compreender a dimensão existencial consumista a que sucumbiu a realidade na esfera capitalista. E, nesse sentido, educar criticamente, dotando o educando de um repertório teórico que o capacite a analisar a sociedade em que está inserido, torna-se essencial para viabilizar o seu papel como agente histórico para superar a barbárie na civilização.

 

REFERÊNCIAS

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Notas



1 De acordo com a teoria freudiana do aparelho psíquico, o que diferencia a atuação dos processos psíquicos primários dos secundários é a capacidade de se conter a libido e acionar a mediação pelo pensamento amparado na linguagem (FREUD, 2003).

2 Alguns comentários sobre o Conceito de Inconsciente na Psicanálise (FREUD, 1912); Pulsões e Destinos da Pulsão (FREUD, 1915) e O Eu e o Isso (FREUD, 1923) fornecem elementos conceituais para tais conclusões. 

3 Sobre o assunto verificar: ALBINO, Beatriz Staimbach ; VAZ, Alexandre Fernandez . O corpo e as técnicas para o embelezamento feminino: esquemas da indústria cultural na revista Boa Forma. Movimento (UFRGS. Impresso) , v. 14, p. 199-223, 2008.

4 Para se realizar exercícios físicos com o objetivo de aperfeiçoar o nível de aptidão física, requer-se disciplina, esforço e uma certa dose de estresse fisiológico, mas a ideologia do lema ‘no pain, no gain’, próprio de uma sociedade que valoriza a frieza do indivíduo com os outros e consigo próprio, contribui para o flagelo do corpo e para a extrapolação dos limites do organismo humano, implicando o comprometimento da saúde. No limite, propaga-se a falácia de que para se obter ganhos de performance corporal e de saúde, quanto mais dor e sofrimento, melhores serão os resultados.

5 A esse respeito, Horkheimer e Adorno (1985, p.133) tecem a seguinte analogia: “A fuga do quotidiano, que a indústria cultural promete em todos os seus ramos, se passa do mesmo modo que o rapto da moça numa folha humorística norte-americana: é o próprio pai que está segurando a escada no escuro. A indústria cultural volta a oferecer como paraíso o mesmo quotidiano. Tanto o ‘escape’ quanto o ‘elopement’ estão de antemão destinados a reconduzir ao ponto de partida. A diversão favorece a resignação, que nela quer se esquecer.