Existências mínimas em educação: algumas considerações sobre construção e escala

Minimum existences in education: some considerations about construction and scale

 

 

Luiz Carlos Quirino da Silva

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil

luizcabelo1@hotmail.com - http://orcid.org/0000-0003-4715-8932

 

Máximo Daniel Lamela Adó

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil

maximo.lamela@gmail.com - http://orcid.org/0000-0002-7643-1785

 

Recebido em 26 de fevereiro de 2021

Aprovado em 03 de maio de 2021

Publicado em 08 de novembro de 2022

 

RESUMO

Partimos da ideia de que o pensamento diferencial, em educação, é caracterizado por um maquinismo que compreende duas dimensões principais: a da construção (ou produção) e da escala (ou perspectiva). Dentre todas as formas de construção, privilegiamos a que é engendrada pelo que chamamos – reverberando algumas proposições de Deleuze e Guattari – de máquina literária ou ficcional e que opera através de uma perspectiva de leitura, produzindo um discurso que não poderia ser considerado nem verdadeiro nem falso, pois é destinado àquilo que ainda não existe ou que existe somente em potência. Argumentamos, ainda, que a realidade é produto de uma espécie de intertextualidade conformadora das existências, ou pelo menos no que diz respeito a seu sentido e valor. Na articulação de tais mecanismos são maquinadas as existências. Contudo algumas delas, apesar de existirem, possuem uma realidade bastante precária. Por isso, acompanhando as leituras de Étienne Souriau feitas por David Lapoujade, afirmamos que povoar o mundo – e consequentemente a educação – de ficções (que são uma radicalização dos seres identificados como virtuais pelos autores) consiste em um procedimento inseparável da defesa dessas existências frágeis.

Palavras-chave: Educação; Máquina ficcional; Existências mínimas.

 

ABSTRACT

We start from the idea that differential thinking in education is characterized by a mechanism that includes two main dimensions: the construction (or production) and scale (or perspective). Among all forms of construction we privilege that which is engendered by what we call – reverberating some propositions of Deleuze and Guattari – literary or fictional machine and it operates from a reading perspective, producing a speech that could be considered neither true nor false, because it is destined for what does not exist yet or which exists only in potential. We also argue that reality is the product of a kind of intertextuality that shapes existences or at least with regard to its meaning and value. In the articulation of such mechanisms, existences are machined. However, some of them, although they exist, have a very precarious reality. Therefore, following the readings of Étienne Souriau done by David Lapoujade, we assert that populating the world with fictions and consequently education (which are a radicalization of beings identified as virtual by the authors) it consists of an inseparable procedure for the defense of these fragile existences..

Keywords: Education; Fiction machine; Minimum existences.

 

 

Questões de construção e escala       

 

Existe uma história, contada por Ricardo Piglia, que se repete tanto no primeiro volume de seus diários, intitulado Anos de formação: os diários de Emilio Renzi (PIGLIA, 2017), quanto na coletânea de textos chamada O último leitor (PIGLIA, 2006). Trata-se da narrativa de um homem que vive trancado em sua casa e dedica todo seu tempo e energia à construção de uma réplica da cidade onde vive. A reprodução possui uma escala tão pequena que podemos contemplar sua totalidade de uma só vez. Piglia afirma que não se trata, no entanto, de uma maquete, muito menos de um mapa – mais do que uma réplica da cidade, seu trabalho apresenta-se como uma máquina sinóptica onde a cidade está concentrada no que poderíamos descrever como sendo sua essência. “A cidade é Buenos Aires, porém modificada e alterada pela loucura e pela visão microscópica do construtor.” (PIGLIA, 2006, p. 11; 2017, p, 288). Gostaríamos de sugerir que tal imagem dialoga com determinado mecanismo que poderia igualmente ser posto em operação na educação. Mas, por ora, sigamos um pouco mais.  

Do relato apresentado por Piglia podemos extrair dois atributos importantes de uma mesma questão que nos acompanhará ao longo de todo este texto: a de que a existência dos humanos é inseparável de sua relação com o mundo circundante e mediada por características vinculadas a movimentos de construção (ou de produção) e de escala (ou de perspectiva). E, mais do que a algum tipo de essência pouco definível, mesmo a subjetividade humana talvez esteja muito mais diretamente ligada a um trabalho dinâmico de produção de si e do mundo. Pois nos parece que, na contemporaneidade, numa maior intensidade do que em períodos anteriores, “[...] o sujeito vaza por todos os lados” (TADEU, 2009, p. 9). A realidade (seja lá o que isto queira dizer) habitada pelos humanos é caracterizada, cada vez mais, pela indiscernibilidade entre aquilo que seria natural e aquilo que seria produto da atividade humana. A ideia de uma divisão clara entre tais esferas se volatiza e transforma-se numa nuvem metafísica pouco operacional: nada menos concreto do que acreditar na concretude do muro – dado que a linha que anteriormente separava agora parece também unir. Vivenciamos um deslocamento de perspectiva: “Não existe nada mais que seja simplesmente ‘puro’ em qualquer dos lados da linha de ‘divisão’: a ciência, a tecnologia, a natureza puras; o puramente social, o puramente político, o puramente cultural.” (TADEU, 2009, p. 11). Como Deleuze e Guattari já haviam igualmente percebido, se existe uma natureza humana ela é inseparável de tal produção de si e do mundo: “[...] a essência humana da natureza e a essência natural do homem se identificam na natureza como produção e indústria [...]” (2010, p. 11).

 

A produção

 

Pode até parecer que estamos falando de engenharia de produção (e talvez, sob determinado ponto de vista, estejamos), porém este texto trata (principalmente, mas não somente) de educação. Da educação como certo deslocamento envolvido na fabricação dos mecanismos de ensino e apendizagem. Educação entendida aqui como inseparável do engendramento de pensamento; da produção de pensamento como movimento indissociável da constituição da realidade; da realidade como sentido inventado através da linguagem. Talvez seja importante chamarmos a atenção para o fato de que nossa utilização da noção de invenção ampara-se na leitura que Virginia Kastrup (2005) faz de Gilles Deleuze. Para ela, a invenção se diferenciaria da mera criatividade, enquanto esta diria respeito à capacidade de solução de problemas, como eles se apresentam, aquela estaria relacionada à invenção dos problemas mesmos, à invenção de problemas ainda não pensados, à realidade como problemática e inseparável de certo estranhamento. Porquanto nega a “invariância das condições de possibilidade da cognição” (KASTRUP, 2005, p. 1274) e a vincula à potência diferencial contida no processo de fabricação da realidade – ou sua invenção.   

A invenção-construção da realidade humana, alicerçada na linguagem e na produção de sentido, possui muitos pontos de contato com a escrita ficcional. Então tentar compreender e produzir o sentido do mundo passaria igualmente por um esforço de leitura das diversas camadas de intertextualidade que o compõe: algo que “[...] se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto (KRISTEVA apud SAMOYAULT, 2008, p. 16). Deleuze e Guattari, por sua vez, inventaram um “maquisnismo generalizado” (LAPOUJADE, 2015, p 147) – para descrever o que estamos chamando aqui de intertextualidade e que movimenta as engrenagens da realidade alimentadas pelo desejo – e com isso lançaram as bases de uma “filosofia inteiramente prática” (LAPOUJADE, 2015, p 147). Esse maquinismo nos apresenta os humanos como seres irremediavelmente ligados às outras formas de vida, com as quais se relacionam na posição de produtor e de produto, num moto-contínuo. E se fazemos alusão à leitura das camadas intertextuais que compõem o que estamos chamando um tanto indefinidamente de real, defendemos tal procedimento como eminentemente prático e produtivo. “É assim que todos somos ‘bricoleurs’; cada um com suas pequenas máquinas. Uma máquina-órgão para uma máquina-energia, sempre fluxos e cortes. [...] Algo se produz: efeitos de máquinas e não metáforas.” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p, 11). Numa realidade engendrada pela linguagem (e por isso dela inseparável), fazemos da bricolagem um procedimento ficcional, existencial e de constituição de sentido.

Ricardo Piglia sugere, no entanto, que a ficção circula por uma zona pouco determinável – na sua ambígua intersecção com a verdade. Por isso, por não possuir uma posição própria, pode agir sobre os mais diferentes substratos que ajudam a tramar a realidade. “A ficção [...] conduz à ideologia, aos modos convencionais da realidade e, claro, também às convenções que fazem verdadeiro (ou fictício) um texto.” (PIGLIA, 2001, p. 7, tradução nossa). A literatura produz um discurso que não pode ser considerado nem verdadeiro nem falso, segundo Piglia (2001), pois sua potência reside justamente neste jogo, nesta indecidibilidade entre a verdade e a falsidade. “A ilusão da verdade dos críticos é a ilusão positivista. [...] A literatura é um campo de lutas.” (PIGLIA, 2001, p. 7, tradução nossa). Um jogo de forças onde está sendo disputada a produção de sentido e, de alguma forma, a decisão dos rumos a serem socialmente seguidos. Visto que a potência ficcional destina-se sempre ao futuro, àquilo que ainda não existe (PIGLIA, 2001).  Não pretendemos, entretanto, negar o valor da verdade em si – antes, “[...] que não é princípio mas produto; produto de um trabalho ficcional, subjacente a todo pensamento preocupado em agenciar o múltiplo [...]” (PELLEJERO, 2012, p. 282).  

Tal maquinaria de invenção da realidade pode adquirir as mais variadas formas; no entanto, um traço fundamental que perpassa todas as máquinas, descritas por Deleuze e Guattari, é sua conectividade infinita com outras máquinas-peças. Nesse sentido, a literatura (ou a produção ficcional) pode ser considerada mais uma máquina, dentre tantas, que funciona através do emaranhado de conexões que estabelece – no caso, aqui sugerido, máquinas literárias: “[...] Considerado como agenciamento, ele está em conexão com outros agenciamentos, em relação com outros corpos sem órgãos.” (DELEUZE; GUATTARI, 2011a, p. 18). Assim como as muitas máquinas, socialmente disseminadas, caberia à máquina literária (ou ficcional) nos auxiliar a cortar o caos constitutivo da realidade. Funcionando como máquina sintático-semantizadora, possibilitando o alcance de um plano de difícil acesso, plano das coisas ainda não formadas, onde a vida se mostraria em toda sua potencialidade, espaço de circulação das forças informes constitutivas das existências. Para tanto, é necessário que a máquina literária entre num estado de devir, que logre tocar essa via de circulação caótica: zona das coisas-acontecimentos não formados ou imprevistos (DELEUZE, 2011).  

Gilles Deleuze, Michel Foucault e Maurice Blanchot, através de leituras e de influências recíprocas, teorizaram sobre as condições de produção do pensamento e sua relação com a linguagem, indissociável de um trabalho visando ao alcance do maior grau possível de “variação intensiva” (LAPOUJADE, 2015, p. 223). O pensamento seria dependente do contato com as forças a ele exteriores, caóticas e indomáveis, a que os autores supracitados chamaram de Fora – sua possibilidade mesma, que não seria uma faculdade inata, mas o produto de um encontro (PELBART, 2007). Para Deleuze, principalmente, interessa desfazer o equívoco (ou pelo menos desviar-se dele, tomando outro caminho) de correlacionar pensamento e necessidade ou verdade: “[...] a verdade como um correlato exterior ao espírito, independente deste e idêntico a si (a realidade e sua essência)” (ZOURABICHVILI, 2016, p. 37). Tal forma da verdade seria expoente de um tipo de pensamento, chamado por ele de dogmático, que estabelece uma imagem antecipada ao que é exterior a si. Pensamento que transporta o “[...] verdadeiro concebido como universal abstrato [...]” (DELEUZE, 2018, p. 133), sem que se leve em consideração os jogos de forças envolvidos em sua produção. Pois aquilo que se avalia como sendo “o verdadeiro” – pelo menos na leitura deleuziana de Nietzsche a que aqui nos reportamos – é sempre produto da “[...] efetuação de um sentido ou da realização de um valor [...]” (DELEUZE, 2018, p. 134). Efetuação de uma relação de forças entre pensamento e coisa que igualmente se apropriam de algo que se encontra Fora deles. O pensamento deveria ser avaliado, sobretudo, segundo as forças que o impelem ao movimento e que lhe impõem uma forma (DELEUZE, 2018). Movimentar as engrenagens que engendram o pensamento é igualmente movimentar maquinismos de produção de sentido. E, caso continuemos insistindo na noção de verdade (sempre evanescente), deveríamos pelo menos ter alguma consciência de sua indissociabilidade de tais mecanismos. Da verdade como produto problemático de certa sintaxe socialmente constituída.

Interessa-nos lançar alguma luz sobre a máquina social e suas conexões com as máquinas ficcionais (ou literárias); sobre a possibilidade de invenção de sintaxes (e consequentemente de sentidos) inesperadas e de, através de sua função fabuladora, formas de vida e expressão que ainda não existem ou que existem apenas potencialmente. Máquinas ficcionais que operam inventando desvios na língua majoritária ou comum. Fazendo do pensamento, da vida e de seu sentido um tipo de saúde aberta às possibilidades. “Fim último da literatura: pôr em evidência no delírio essa criação de uma saúde, ou essa invenção de um povo, isto é, uma possibilidade de vida.” (DELEUZE, 2011, p. 16).      

 

O maquinismo, a leitura e a escala

 

Além de seus textos – o que já não seria pouca coisa –, Jorge Luis Borges legou à arte literária certo mecanismo, cifrado na produção de sua própria escrita. Trata-se da ideia subjacente de que a ficção é – muito mais do que somente resultado da pretensão de quem a escreve – uma disposição de quem a decodifica ou lê. E, apesar de nem tudo ser produto de uma vontade de ficção, tudo poderia ser lido como ficção (PIGLIA, 2006). Inventar uma máquina literária, não como metáfora, mas como proliferação de novos sentidos no mundo concreto (de possibilidades renovadas), é igualmente exercitar a leitura deste mesmo mundo, como povoação de ficções que se encadeiam, como maquinismo produtivo e generalizado. No conto borgeano Tlön, Uqbar, Orbis Tertius (BORGES, 2007), por exemplo, a constituição do mundo, ou pelo menos de seu sentido e valor, depende da posição do leitor e do tipo de leitura feita por este. Sobre isso, escreverá Piglia: “Há certa inversão do bovarismo, sempre implícita em seus textos; não se lê a ficção como mais real do que o real, mas o real perturbado e contaminado pela ficção.” (2006, p. 28). Onde o mundo “real” e a ficção se contagiam mutuamente. Segundo Ricardo Piglia, a leitura em Borges institui um espaço entre o imaginário e o real, dissolvendo (ou pelo menos embaralhando) a divisão metafísica (ou o binarismo simplista) entre ilusão e realidade. No ato de ler efetuaríamos a composição entre o que é real e o que é ilusório (PIGLIA, 2006). Algo que se aproxima muito do conceito deleuziano de devir – porquanto este consiste em se posicionar entre alcançar uma zona de indiferenciação ou de vizinhança (DELEUZE, 2011).     

Com Borges aprendemos que a invenção ficcional parte, ou faz parte (estejamos conscientes disso ou não), do que poderíamos chamar de uma poética (MONEGAL, 1980) ou de uma teoria (PIGLIA, 2006) da leitura.  De leituras que se encadeiam labirinticamente na produção de um universo ficcional, em devir, na intersecção entre o real e o ficcional até perderem-se e encontrarem-se infinitamente. “O que importa neste universo de leitor é a potencialidade leitora, ou seja, as ínfimas relações que podem ser provocadas em leituras cruzadas.” (ADÓ, 2016, p. 136).

Sugerimos, acima, que a verdade (constituída por material relativamente maleável) apresenta-se como resultado da efetivação de um sentido ou da concretização de um valor, ou seja, de forças em choque e agenciamento. A leitura, por sua vez, pode apresentar-se como ferramenta de agenciamento de tais forças que se manifestam como sentido e valor. Na perspectiva de leitura, estabelecida por aquele que lê, encontra-se a chave da transformação de um texto em máquina literária (ou ficcional): “[...] fazendo com que ciência, filosofia e arte se cruzem em uma inseparável relação disposta ao conhecimento, ou seja, disposta às potências de transformação de nós mesmos e da vida” (ADÓ, 2016, p. 137). O que alguns chamam de criatividade talvez seja apenas (não que seja pouco) certa competência de leitura que estabelece conexões entre os textos mais improváveis. Procedimento parecido com o que foi identificado por David Lapoujade ao analisar a filosofia de Gilles Deleuze. Ele sugere que tal filosofia poderia ser “[...] concebida como movimento aberrante de criar conceitos [...]” (LAPOUJADE, 2015, p. 10) – pois estes derivam de movimentos e cortes (ou seja, leituras) forçados ou limítrofes. Um tipo de leitura aberrante.

 

Escala e perspectiva leitora

 

A ficção – como já argumentamos, a partir de Ricardo Piglia e Gilles Deleuze principalmente – utiliza-se de certa semântica e sintaxe envolvida na trama da própria realidade. Produzindo narrativas ou discursos que não poderiam ser considerados, a priori, nem verdadeiros nem falsos. Pois visam sempre ao futuro, àquilo que ainda não existe ou existe apenas potencialmente. E essa seria a força ficcional: a de ajudar a conceder um pouco mais de “realidade” às coisas que existem apenas potencialmente, uma vez que dependem da afirmação de sua existência. Acreditamos, amparados por algumas formulações de Ricardo Piglia, que a gênese literária se apresenta como deslocamento de leitura numa cadeia de remissões infinitas. Onde cada obra assume a posição de peça ou engrenagem numa nova máquina. Porque o leitor (filiado àquela linhagem inaugurada por Borges) inexoravelmente aplica uma perspectiva ao texto lido, realiza um trabalho de escala, provocando um deslocamento, por mais ínfimo que seja: “[...] a leitura é uma arte da microscopia, da perspectiva e do espaço [...] a leitura é questão de óptica, de luz, uma dimensão física” (PIGLIA, 2006, p. 20). Aquele que se lança nas águas revoltosas da escrita (sempre o desdobramento de uma leitura) empreende a produção de combinações semânticas e sintáticas (quiçá inéditas) e, no limite, contribui para o povoamento ficcional da realidade. Um povoamento que não pode ser considerado nem real nem falso, pois se desloca no espaço entre ambos, animando os seres virtuais em direção ao futuro.

 

Alguns modos de existência

 

David Lapoujade possui um bonito livro, chamado As existências mínimas (2017), onde – partindo de leituras do filósofo Étienne Souriau – reflete sobre (e ao mesmo tempo defende) a existência dos seres virtuais, que poderiam ser definidos como sendo aqueles que são trazidos à realidade (entendida como movimento contínuo de constituição de si) pelas forças ficcionais. Como um tipo de radicalização destas.

Uma primeira distinção importante, para compreendermos seu argumento, é a que responde à pergunta sobre como seria possível a existência de seres cuja realidade se apresentasse como incerta ou pelo menos precária. Ele afirmará que nossa descrença está alicerçada num equívoco: na falta de sensibilidade em perceber a sutil distinção entre existência e realidade. Pode ser que um indivíduo, por exemplo, experimente a sensação de existência, em determinado espaço-tempo, entre as coisas concretas do mundo: árvores, prédios, automóveis... No entanto, ao mesmo tempo, pode experimentar a sensação de alheamento em relação a esses mesmos seres, de carência de realidade (LAPOUJADE, 2017). Existem, contudo, inúmeras formas através das quais uma existência pode adquirir maior realidade, maior força, poderíamos dizer, até mesmo, maior tangibilidade – “[...] uma dor que aumenta, um temporal que ameaça cair, [...] a construção de um edifício, a execução de uma partitura [...]” (LAPOUJADE, 2017, p. 11). E, a despeito dos exemplos habitarem planos diferentes, eles fazem parte de um processo análogo. São amostras de dois tipos de existência: a dos seres que, apesar de intensificarem a realidade de sua existência, permanecem no mesmo plano e a dos seres que, para intensificarem sua realidade, precisam mudar de plano de existência. O segundo caso ilustra a dinâmica dos seres virtuais (LAPOUJADE, 2017).  A reflexão subjacente ao livro de Lapoujade (que reverbera as indagações de Souriau) diz respeito ao problema de como dotar de um pouco mais de realidade o que já existe ou trazer à realidade o que existe apenas potencialmente.

Muito resumidamente, poderíamos dizer que cada ser possui um modo particular de existência (a todo ser corresponde uma maneira de ser distinta) que se manifesta através de um fenômeno correspondente – num tipo de “arte de existir fundamental” (LAPOUJADE, 2017, p. 19). A maneira como cada fenômeno se apresenta está diretamente ligada à sua arte de existir. Os modos de existência consistiriam em determinada forma de ocupar um espaço-tempo: sendo que cada modo produz o próprio espaço-tempo por ele habitado. Existem, todavia, diversos espaços-tempos e eles não se confundem. Eles podem ser espaços-tempos dos fenômenos, das coisas ou dos seres imaginários (LAPOUJADE, 2017). Passemos a uma breve descrição de cada um deles.

Comecemos pelo fenômeno. Ele possuiria uma existência particular, distinta daquelas apresentadas pelos outros modos. Sua existência estaria vinculada ao desvelamento de certa arquitetura fugidia, que revelaria seu brilho sui generis. Espécie de esplendor momentâneo: “[...] uma nuvem rosa no céu, um galho de árvore sacudido pelo vento [...]” (LAPOUJADE, 2017, p. 29). O fenômeno opera por meio de um princípio formal pouco preciso, através de determinada nuance que pouco depende de seu conteúdo sensível ou da materialidade do fenômeno. “Breve aparição de uma estrutura e dissipação.” (LAPOUJADE, 2017, p. 29). Na maior parte das vezes o fenômeno se apresenta como sensação difícil de ser descrita. 

Quando analisamos a coisa, no que lhe concerne, percebemos que possui um modo particular de apresentar sua existência. Talvez o que mais diferencie a coisa do fenômeno seja sua propriedade de persistir, mesmo mudando sua forma de apresentação. Da coisa diríamos que “[...] é aquilo que se mantém através de suas manifestações – contrariamente ao fenômeno, que consiste apenas em (todas) suas manifestações [...]” (LATOUR; STENGERS apud LAPOUJADE, 2017, p. 30). A coisa é o que perdura através do tempo e do espaço, através de sua conquista e realização, que Lapoujade chama de uma “arte de existir” (2017, p. 30). Porém não nos enganemos – muito mais do que A coisa, assentada sobre uma essência ou uma identidade fixa, estaríamos diante de “coisidades” (LAPOUJADE, 2017, p. 30) variadas em suas formas de perdurar no tempo e no espaço. Mas, enquanto o fenômeno existe autonomamente, a coisa depende de um pensamento que produza sua unidade, identidade e cosmicidade. “É preciso um pensamento para manter a coisa na existência, para além de suas manifestações fenomenais, e constituir um cosmos povoado de coisas ligadas entre si.” (LAPOUJADE, 2017, p. 32). O pensamento constitui o elo entre as coisas, é o responsável pela coisidade.  Por outro lado, ele é sempre dependente da coisa, não existe independente dela. 

A essas duas categorias de modos de existência poderíamos acrescentar uma terceira na qual estariam enquadradas algumas “[...] entidades frágeis e inconsistentes [...]” (LAPOUJADE, 2017, p. 34): as existências ficcionais ou imaginárias. Elas operam através de uma dinâmica própria, que não se confunde nem com a dos fenômenos nem com a das coisas. Suas existências são eminentemente sociais, porquanto estão ligadas ao discurso e às crenças. E mais do que isso, justamente por serem socialmente compartilhadas, são fundadas através da crença e dos afetos (o medo ou o desejo, por exemplo). Podemos dizer que existem porque não têm apenas uma existência subjetiva – para além desta, possuem o atributo, por exemplo, de nos fazerem agir ou pensar em função de nossas crenças e da forma que estas lhes atribuem. “Ao mundo dos fenômenos e ao cosmos das coisas, é preciso então acrescentar o reino das ficções, que compreende todos os seres imaginários, isto é, o conjunto dos seres possíveis [...]” (LAPOUJADE, 2017, p. 34).

 

Os virtuais

 

Entretanto existem seres ainda menores na escala das existências de que estamos tratando. Ainda mais frágeis do que os seres da ficção são os seres virtuais – como um tipo extremo de ficcionalidade, nos parece. Seria impreciso dizer que os seres virtuais não existem – o que acontece é que eles são condicionados por uma realidade a eles exterior. Sobre sua existência Lapoujade dirá ainda que: “Ela se completa do lado de fora, se fecha sobre si mesma no vazio de um puro nada” (2017, p. 36). São tipos de seres que se apresentam como esboço de algo que ainda não existe e que continuaria a não existir se não sofresse nenhuma ação de determinadas forças exteriores. Como, por exemplo, uma casa cuja construção fora abandonada, onde podemos vislumbrar o delineamento do que poderia ter sido caso tivesse sido concluída: assim como um tipo de narrativa sem término. O que separa os seres virtuais da simples não existência é certo esboço prévio que carrega suas propriedades virtuais. Lapoujade sintetiza belamente o lampejo pelo qual os virtuais podem se apresentar: “[...] a aparição de um leque de novas possibilidades, ditadas por apenas alguns fragmentos esboçados” (LAPOUJADE, 2017, p. 37). Dependem, sobretudo, de uma vontade que fixe, de alguma forma, seu rascunho efêmero, porquanto suas formas estão em constante mutação – contíguas às mutações da realidade em que realizam sua aparição. Tal característica está associada ao que o autor chamará da “arte” desenvolvida por cada modo de existência: “[...] arte de aparecer, para os fenômenos, arte de se manter, para as coisas, arte de (se) sustentar para os imaginários [...]” (LAPOUJADE, 2017, p. 38). Os seres virtuais não escapam à regra – eles também possuem uma arte que concretiza sua maneira de ser. Sua arte, contudo, expressa e consolida justamente seu inacabamento como traço fundamental: certa abertura para a realização de si. Sua existência depende de outros seres que a concretizem. Por outro lado, esses seres exteriores, que poderíamos chamar de criadores, necessitam dos virtuais, pois estes são a condição da produção de realidades inéditas. Os seres virtuais abastecem tanto as artes quanto a filosofia e as ciências, fazem parte de todas as esferas da realidade.

Tais leituras de Souriau fizeram Lapoujade deduzir que, muito mais do que para uma ontologia dos modos de existência, os virtuais abrem caminho para pensarmos as existências como algo que pode se transformar e, com isso, intensificar sua realidade ou mesmo, ao se modificar, passar de um modo para outro. Nesse caso, os virtuais ocupariam uma posição de destaque, porque seriam os responsáveis pelo deslocamento de uma existência “modal” para uma “transmodal” (LAPOUJADE, 2017, p. 39). O que quer dizer passar de uma concepção de existência do tipo estática para uma concepção dinâmica: onde importa mais a observação das transformações, dos acréscimos ou decréscimos por que passam as existências do que a apreensão da concretização de uma essência. Uma vez que: “Cada esforço criador, cada investida é como uma proposição de existência à qual o virtual consente ou não, segundo as exigências cambiantes da arquitetura que se esboça.” (LAPOUJADE, 2017, p. 39-40). As condições não estão dadas antecipadamente, pois dependem de um esforço de invenção, cujo sucesso nunca será garantido – os seres virtuais se apresentam como seres problemáticos, sua força é a do problema de que fazem parte.

A importância dos seres virtuais para Souriau, segundo Lapoujade, deve-se ao fato de que, a partir deles, saímos da dimensão da existência como um tipo de essência ou identidade fixa para uma dimensão pouco precisa (guiada pela experimentação) onde as existências afetam-se e transformam-se mutuamente – efetuando uma passagem do existir modal para o transmodal. A partir de então a pergunta que orientará seus escritos será a de como seres marcados por uma existência tão fraca – no limite da inexistência – podem provê-la de uma maior realidade, tornando-a mais robusta; ou qual a arte envolvida neste movimento de acréscimo de realidade.

Para Souriau, perceber os seres distribuídos no mundo nunca é uma operação que se possa realizar externamente a eles. Pelo contrário, é preciso ingressar em seu interior e participar de seu ponto de vista, acoplando nosso ponto de vista ao deles: “[...] no interior de uma espécie de monumento perceptivo do qual exploramos a composição momentânea” (LAPOUJADE, 2017, p. 47). Como se nesse movimento pudéssemos apreender seu princípio de funcionamento e composição. Como se os seres dispostos no mundo nos apresentassem suas perspectivas e nos convidassem a compor com elas algo original.

Então, facilitar a visão de tais perspectivas, perceber sua composição e movimento é igualmente fazê-las existir com maior força. Essa é a arte envolvida em seu ganho de realidade. “Seria preciso imaginar uma espécie de dispositivo ótico que faça perceber as perspectivas, que lhes dê uma realidade mais manifesta.” (LAPOUJADE, 2017, p. 47).  Como podemos conjecturar, trata-se de operação muito mais perspectivista do que existencial, pois é preciso que empreendamos um esforço para nos posicionarmos no ponto de vista de cada existência. Numa operação – destinada a fazer ver classes de seres inéditas, até então invisíveis – a que Souriau chamou de “redução existencial” (LAPOUJADE, 2017, p. 49). Espécie de limpeza da visão que, quando envolvida num campo de experiência, nos proporcionaria perceber as existências, mesmo as mais ínfimas. “Nesse sentido, reduzir é liberar um plano de experiência pura.” (LAPOUJADE, 2017, p. 49). A experiência pura diz respeito ao esforço de construção de uma experimentação que tenta deixar de fora “[...] qualquer forma de identidade ou interioridade preexistente” (LAPOUJADE, 2017, p. 50) – busca o elementar. A figura relacionada a essa busca é a do “idiota” de Dostoievski, mencionada igualmente por Deleuze (2004), ou da criança: pois na base dessa procura está a necessidade de uma depuração do olhar (espécie de grau zero da visão), certa inocência perceptiva de que, por muitos motivos, os demais indivíduos já não seriam capazes (LAPOUJADE, 2017). É preciso aprender a ver de outra maneira, ou reaprender a ver aquilo que já não conseguimos ver, porquanto desaprendemos com o tempo.

Nada poderia ser criado a partir do zero, como dirá Souriau lido por Lapoujade, nem as coisas dos humanos nem as da natureza. Todos os elementos e as condições causais já estariam dispostos antecipadamente. Apenas o arranjo ou as combinações poderiam se manifestar como novos numa outra forma de apresentação.  O novo carregaria consigo algo de imaterial. Em filosofia, por exemplo, o movimento instaurador se apresentaria como um arranjo inédito das existências, de suas redes de relações, mutuamente implicadas, visando à formação de um cosmos. Através dessa conectividade complexa e múltipla o filósofo empreenderia um corte na massa caótica e lhe imprimiria alguma estabilidade. “Cada cosmos é a expressão de um ponto de vista.” (LAPOUJADE, 2017, p. 84). Em parte, produto da posição daquele que o instaura, de sua perspectiva.

À nossa argumentação, talvez importe mais a ideia de que a obra de Souriau, pelo menos esta é a leitura de Lapoujade, apresenta-se como uma defesa desses seres de existência tão frágil. Uma tentativa de salvar do desaparecimento a diversidade das existências, não importando seu vigor. Com ele aprendemos que defender todas as formas de existência, principalmente as mais frágeis – referimo-nos especialmente às virtuais –, é advogar em sua defesa e proteger seu direito à realidade, conferindo-lhes alguma visibilidade. Da função do advogado podemos aprender o seguinte: “É ele quem convoca a testemunha, quem faz com que toda criação se torne um discurso de defesa a favor das existências que ela faz aparecer, ou melhor, comparecer” (LAPOUJADE, 2017, p. 22).      

 

Considerações sobre construção e escala em educação

 

A educação que defendemos – inseparável da produção de pensamento como deslocamento diferencial – só pode ser construída através de um procedimento calcado na experimentação de si e do mundo, análogo àquele de invenção da realidade, envolvido nos processos de cognição. Para isso, o professor se converteria num leitor, ao estilo borgeano, responsável por assinalar aos estudantes a abundância das forças fictícias que compõem a realidade. Convidando-os a desenvolver sua própria técnica de leitura.

Tal educação só pode se apresentar como experimental, porque é orientada, dentre outras coisas, pela formulação deleuziana de que o pensamento da diferença (ou não dogmático) se opõe ao pensamento como recognição em que: “O objeto pensado é menos o objeto de uma descoberta do que o objeto de um reconhecimento [...]” (ZOURABICHVILI, 2016, p. 41). Ou seja, o pensamento como recognição, em nenhuma hipótese, logrará êxito em produzir algum tipo de novidade, dado que funciona através da adaptação da diversidade exterior a seus modelos previamente estabelecidos. Pois opera através da identidade entre mundo e pensamento: “[...] ‘mundo verídico’, idêntico a si, que seria dócil, fiel a nossa expectativa, na medida em que o conheceríamos” (ZOURABICHVILI, 2016, p. 41). Pensar, nesses termos, seria algo da ordem da invariância e da monotonia.

O pensamento que se desloca através da diferença seria, então, produto de seu encontro com aquilo que não conhece (ou não reconhece): inassimilável a modelos preexistentes. Antes, parte do encontro com signos que o violentam e o obrigam à ação. Para Deleuze, “[...] o essencial está fora do pensamento, naquilo que o força a pensar” (2003, p. 89).  Acima de tudo, o pensamento da diferença é experimental, porque nunca poderá saber antecipadamente os resultados de suas ações. Nem pode esperar saber com antecipação onde suas escolhas o levarão, uma vez que isso (o reconhecimento) excluiria a própria possibilidade de produzir algum tipo de pensamento. Em tal empreitada, busca continuamente: “Estimular a invenção em vez da revelação. A criação em vez da descoberta. [...] O artifício em vez do genuíno” (CORAZZA; TADEU, 2003, p. 10). Por isso todo movimento educativo, apesar da enorme dedicação envolvida em sua preparação, será sempre marcado pela imprevisibilidade. E, mais do que dar certo ou errado, terá seu valor medido pelo deslocamento do pensamento que produziu, pelas dúvidas e questões que gerou – muito mais do que pelas respostas que conseguiu formular. A melhor aula (se é que podemos valorá-la nesses termos) seria um encontro destinado à multiplicação das perguntas – sempre um evento problemático.

Propomos, aqui, que o educador da diferença, ao inventariar a realidade, igualmente a inventa através de um trabalho de multiplicação e disseminação ficcional. Conhecer se confunde com inventar, isto é, com a produção de um tipo de máquina sinóptica como a descrita por Ricardo Piglia: trabalho que implica sempre questões referentes à construção e à escala – à invenção e à perspectiva.   

A construção envolvida numa educação diferencial carrega consigo algo de produção ficcional, tanto do eu quanto da realidade que o circunda e o compõe simultaneamente – o manuseamento da verdade como realização de um sentido e de um valor – cifra onde talvez possamos ler (se soubermos): “Que esse eu [...] se substancializa com a gramática e se trata de um efeito da linguagem. O eu se configura, assim, como uma variação e um modo de dizer.” (ADÓ, 2016, p. 140-141). Toda construção (trabalho de proliferação ficcional) é necessariamente a concretização de uma perspectiva, de um ponto de vista que edifica um valor, resultado de um embate clandestino: “[...] a ideia de um sentido como efeito produzido por uma certa maquinaria, como efeito físico, óptico, sonoro etc. [...] em uma certa ordem, que é a do pensamento” (DELEUZE, 2006, p. 177).

Tratar-se-ia, por conseguinte, em educação, de um esforço para auxiliar os estudantes a desenvolver sua capacidade leitora – inventiva e crítica –, semelhante àquela realizada por Borges. Dado que sua invenção (a de Borges) parte do modo particular com que lê os diferentes gêneros textuais e os reinventa de maneira a lhes conferir uma perspectiva singular. De nossa parte, entendemos que o procedimento também diz respeito ao modo com que podem ser lidos os elementos semânticos e sintáticos que compõem a realidade – de modo a estabelecer conexões das quais se sobressaia o seu caráter diferenciante –, condição fundamental à produção do pensamento como imagem não dogmática. Lembremos que, fazendo coro com Deleuze, não estamos nos referindo à leitura e à escrita como algo abstrato, sem conexão com o mundo; antes, estamos no domínio da imanência e da inseparabilidade entre as esferas. Tratamos a realidade como algo que pode (e deve) ser escrito. A realidade “[...] como uma pequena máquina a-significante; o único problema é: ‘isso funciona, como é que funciona?’” (DELEUZE, 2013, p. 16). O movimento empreendido pelo leitor apresenta-se como desmontagem e remontagem de máquinas ficcionais (ou literárias), sintático-semantizadoras ou sinópticas. Como na projeção que se modifica segundo o olhar delirante de seu construtor – que exibe a cidade de Buenos Aires, mas ao mesmo tempo outra coisa – no relato apresentado por Piglia. Pois, conforme já sugerimos, a ficção opera numa dimensão que se projeta sempre ao futuro e que não poderia ser considerada nem verdadeira nem falsa: entre a verdade e falsidade, trabalha o campo de possibilidades que se abre através das existências que se apresentam como radicalmente virtuais.

 

Existências virtuais e educação

 

Partindo de certa economia envolvida nos valores de produção do pensamento, poderíamos fazer uma pequena distinção – destinada a ilustrar a centralidade (ou a incontornabilidade) dos seres virtuais num pensar impelido pela diferença – entre aqueles mecanismos que, ao operarem, atribuem “a si os valores em curso” e aqueles que criam “valores novos” (DELEUZE, 2006, p. 165). Trata-se da diferença entre os valores que já se encontram antecipadamente estabelecidos, mesmo antes de nascerem, e se inserem num determinado ordenamento recognitivo e os valores eminentemente novos e intempestivos, que nunca serão totalmente assimilados por uma sociedade (DELEUZE, 2006). De um lado, temos o pensamento como recognição ou dogmatismo. Do outro, o pensamento da diferença ou não dogmático (antidogmático). O tipo de pensamento que defendemos se expressa através dessa segunda categoria e empreende um esforço para fazer ver essas existências tão imperceptíveis, já que faz parte de sua constituição a experiência de uma existência delicada (ou débil), que depende da animação de forças exteriores.

Acreditamos que, através dos mecanismos da máquina ficcional (ou literária), os seres virtuais podem adquirir maior consistência. A produção de tal maquinaria edifica uma arquitetura combinatória, ou citacional – “[...] seriegênese (com repetição implicando pequenas variantes) [...]” (DELEUZE, 2006, p. 186) –, sempre outra, sempre em devir, dos seres virtuais, de modo a lhes conferir maior consistência e melhor visibilidade.         

Uma educação voltada à produção do pensamento diferenciante e diferencial – que tem como objetivo, sempre incerto, é bem verdade, a produção de novas ficções – é uma espécie de militância radical. Pois trabalha visando à amplificação de realidade das existências frágeis, que utiliza como material de composição do pensamento – sempre produto de uma leitura experimental. Tal educação é problemática, experimental e – porque advoga em nome das ficções (ou as convoca como testemunhas no processo) – advoga, igualmente, em defesa dos seres que são maquinados, no arranjo de suas leituras, num mosaico de citações: seres carentes de realidade (pelo menos provisoriamente), porquanto se projetam ao futuro, à abertura de possibilidades. O que poderia ser considerado “o novo”, na perspectiva que defendemos, nada mais é do que a leitura e recombinação do já existente, visto através da perspectiva particular de cada leitor. Mais do que criar, trata-se de fazer ver. Ou, mais precisamente, criar e fazer se fundem e confundem-se com a apreensão da arquitetura erigida pelo leitor-professor ou leitor-estudante, sua habitação e sua defesa.

 

Referências

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 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 /  "This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Finance Code 001.

 

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