O Sujeito e a Educação sob a Perspectiva da Complexidade
The Subject and Education from the Perspective of Complexity
Rosinei Ronconi Vieiras
Instituto Federal de Ciência e Tecnologia do Espírito Santo, Espírito Santo, Brasil
rosineirv@hotmail.com - https://orcid.org/0000-0001-5161-6209
Helen Moura Pessoa
Universidade Federal do Espírito Santo, Espírito Santo, Brasil
helen.brandao@ufes.br - https://orcid.org/0000-0003-0106-3735
Recebido em 24 de fevereiro de 2021
Aprovado em 03 de maio de 2022
Publicado em 18 de novembro de 2022
RESUMO
Este texto problematiza algumas questões relacionadas ao sujeito e suas conexões com a complexidade e a educação. Aproxima-se teoricamente de Morin, Hall e Stengers. O diálogo com os autores e a autora, dentre outros que vão aparecendo, potencializa a narrativa em torno da educação/escola e as singularidades que lá ensinam, aprendem e criam. Nessa narrativa, algumas pistas encontradas nas obras de Morin, nos lança a pensar em uma perspectiva da complexidade, uma vez que o sujeito em questão não se trata de algo fechado e imutável, mas múltiplo, plural e multidimensional, assim como os conhecimentos/pensamentos que permeiam os espaçostempos escolares/acadêmicos. É nesse terreno fluido e impreciso que é tecido este texto, entre esboços inacabados de um sujeito e suas conexões com uma educação/escola, que pode escapar das tentativas de representação ou padronização, convidando a todos e a todas a acreditar na capacidade de imaginar juntos, com os outros e graças aos outros, a criação de saídas e/ou alternativas ao que aprisiona, caminhando, assim, para as novas/outras possibilidades.
Palavras-chave: Sujeito; Complexidade; Edgar Morin.
ABSTRACT
This text problematizes some issues related to the subject and his/her connections with complexity and education. This study is theoretically based on Morin, Hall and Stengers. The dialogue with the authors enhances the narrative around education and the singularities about teaching, learning and creation in this environment. In this narrative, some insights found in Morin's studies shed light about a perspective of complexity, since the subject in question is not someone closed and immutable, but multiple, plural and multidimensional, as well as knowledge/thoughts that permeate school/academic time-spaces. It is in this fluid and imprecise base that this text built, woven, between unfinished sketches of a subject and his/her connections with an education/school that may escape attempts at representation or standardization, inviting everyone to believe in the ability to imagine together, with the others and thank to the others, the creation of exits and/or alternatives to what is imprisoned, and then moving towards new/other possibilities.
Keywords: Subject; Complexity; Edgar Morin.
Introdução
O acompanhar dos espaçostempos[1] escolares/acadêmicos, seja como professor(a) ou estudante, nos provoca a pensar sobre os/as praticantes que por lá aprendem, ensinam, pensam e imaginam. As relações que podem ser tecidas nesses ambientes de estudo requerem, muitas vezes, uma maior compreensão sobre os/as que lá criam e inventam, cotidianamente.
Neste pensamento, o quão provocante e complexo é falar do sujeito, o ser em suas singularidades e tensões. Seja ele qual for ou em qualquer perspectiva. Se em algum momento histórico esse sujeito foi reivindicado com tanto vigor, como se dele fôssemos dependentes (ao menos de sua suposta consistência, consciência e soberania de si), em outros, senão rejeitado, ao menos olhado com desconfiança, sendo que tais quesitos já não se apresentam com a mesma certeza ou solidez.
Falar de sujeito, portanto, é como caminhar sobre as dunas em um deserto, aquelas que se movem e/ou trocam de posição frequentemente, dificultando uma precisa localização. A própria etimologia da palavra sujeito já dá sinal de um antagonismo, de uma ambiguidade e de sua complexidade.
Embora acreditemos que a semântica adquirida seja mais interessante que a etimologia, não deixa de ser curioso notar que subjectus, particípio passado de subicere, de onde se origina a palavra sujeito, é formado por sub que significa colocar sob ou abaixo de e por jacere que representa lançar ou atirar. Assim, ao mesmo tempo, a palavra tanto pode representar um colocar-se abaixo de como também um projetar-se sobre.
É, pois, nesse contexto ambíguo, antagônico, paradoxal e, portanto, complexo que acreditamos se mover a noção de sujeito. Ou seja, é por um terreno movediço, inseguro e plural que tal perspectiva tem se apresentado e, aqui, em nossa problematização não será diferente.
Nesse sentido, ser sujeito e estar sujeito, portanto, podem implicar diferentes conotações, independentemente de sua origem etimológica, como já observado, ou mesmo da semântica adquirida ao longo dessa sua história, pois inclusive esta não se apresenta uniforme. Se estar sujeito pode caracterizar um certo apagamento ou subordinação, o mesmo não pode ser dito do ser sujeito que implica, dentre outras coisas, uma ideia de protagonismo e emancipação.
Entretanto, esse ser sujeito consciente e emancipado se relativiza em meio à complexidade de uma vida e/ou de estar vivo na contemporaneidade. Esse protagonismo que outrora a ele pertencia ou se submetia agora se estilhaça entre/para diferentes dimensões. Esse sujeito, agora desenraizado de uma planificação unívoca, seja ela física ou metafísica, existencial ou fenomenológica, ganha contornos pluridimensionais.
Se já é desafiante falar de sujeito com toda essa complexidade que a expressão comporta, com atualização adquirida ao longo de sua trajetória no espaço-tempo contextual em que se situa, tal empreitada se torna ainda mais intrigante e desafiadora quando relacionamos as problematizações com o contexto educacional.
Sabemos que são muitas as teorizações produzidas em torno do sujeito, assim, procuramos nos envolver, principalmente, com o pensador francês Edgar Morin, pelo seu trabalho em torno da complexidade, dialogando também com outros autores que potencializam essa problematização.
O descentramento do sujeito
O contexto de descentramento, aqui apresentado neste início, tem uma base teórica no pensador jamaicano Stuart Hall (2006). O autor, ao problematizar algumas noções de identidade cultural na modernidade, tece, também, uma análise histórico-social da fragmentação e descentramento do sujeito. O autor traça três concepções de identidade as quais ele chama de sujeito do Iluminismo, sujeito sociológico e sujeito pós-moderno.
O primeiro, o sujeito do Iluminismo, é dotado de razão e altamente centrado. Segundo Hall (2006), esse centro é, essencialmente, sua identidade e uma identidade masculina. Esse sujeito zela pela consciência de si. Ele é individualista e, em certo grau, trazendo para os dias atuais, meritocrático, pois acredita que apenas ele, o seu Eu, basta para realização de seus sonhos, ele é autossuficiente e desconsidera outras forças, como também as diferentes condições e circunstâncias, além dos diferentes contextos histórico-sociais que marcaram/marcam as trajetórias individuais de cada sujeito.
Essa perspectiva de sujeito no campo educacional se mostra presente, mesmo que disfarçadamente, quando responsabilizamos unicamente o/a estudante pela sua aprendizagem, por exemplo. Expressões do tipo: “Ensino do mesmo jeito para todos, você não aprende porque não se interessa”; “Ele aprende se quiser, que tudo depende dele”, dentre outras. Estas afirmações emitem/transmitem uma mensagem de que o indivíduo basta a si mesmo, ignorando tantos outros fatores e a própria arquitetura da construção social de nossa realidade.
A segunda concepção de sujeito, o sujeito sociológico, segundo Hall (2006), não se apresenta muito diferente do anterior, pois ainda conserva certa essência, um Eu interior ou, como Hall menciona, um eu real. A diferença, segundo o autor, está no fato de que, agora, esse interior e o exterior interagem. Essa concepção preenche o espaço entre o particular e o público. Um sujeito forjado na relação com outras pessoas e seus símbolos, ou seja, com a cultura do mundo em que habita. A problematização realizada nessa concepção está no fato de que a internalização desses valores (culturais), tornando-os parte de nós, contribui ou faz com que a identidade costure o sujeito à estrutura, estabilizando tanto os sujeitos quanto os mundos culturais habitados (HALL, 2006).
Aí está outra concepção de sujeito que, de certa forma, atravessa os cotidianos escolares. Mas, de que forma? Acreditamos que nessa concepção está também presente uma noção conservadora de cultura, em que a percebe como estável, assim como deveria ser o sujeito que, mesmo forjado na interação, terá sempre um núcleo, fixo e unificado. No campo educacional é perceptível como essa noção [diria até saudosista] de cultura ainda se faz presente, principalmente quando procura identificar os sujeitos com uma determinada cultura, geralmente aquela hegemônica. Uma cultura como artefato, estática e ostentada na qual procuram atar o sujeito.
Na terceira e última concepção de sujeito, Hall (2006) evidencia o sujeito pós-moderno, segundo o qual não apresenta uma identidade fixa ou permanente. Nessa concepção o sujeito assume diferentes situações, diferentes identidades, inclusive contraditórias. Sua simpatia por essa concepção se expõe nessa linha de pensamento, o autor vai apontando o que considera como processos de descentramento do sujeito cartesiano, ocorridos ao longo dos séculos.
O que mais nos interessa, nesse momento, é relacionar essa perspectiva das identidades contraditórias apontadas pelo autor, na qual está presente o sujeito, também contraditório, fugaz e descentrado de uma essência, com a perspectiva da complexidade elaborada pelo pensador francês Edgar Morin. E nossa aposta segue nesse diálogo com o sujeito complexo apresentado por Morin, considerando a relação desse sujeito com suas identidades descentradas e suas implicações com o campo educacional, que vai se delineando ao longo do texto.
A pluralidade e multidimensionalidade do sujeito
Cada indivíduo é uno, singular, irredutível. Contudo é, ao mesmo tempo, duplo, plural, incontável e diverso. Ainda aqui, encontramos o problema da unidade múltipla. (MORIN, 2007b, p. 82)
Em algumas de suas obras, Edgar Morin pluraliza a noção de sujeito procurando abarcar diferentes dimensões e se afastar de um monismo conceitual tanto quanto de determinadas noções. Em seu trabalho intitulado X da questão: O sujeito à flor da pele (MORIN, 2003b), o autor expõe as descontinuidades e contradições que nos constituem a todos enquanto sujeitos.
Ao falar das cavernas do homem o autor procura mostrar a fragilidade humana ao tentar manter nas profundezas as inseguranças e medos que constituem o sujeito e “[...] basta um leve tremor na fina camada civilizada para que brotem as demências subterrâneas [...]” (MORIN, 2003b, p. 121).
Para Morin (2003b), a histeria, vista por ele como uma dualidade-duplicidade estrutural do sujeito, deixa de ser uma categoria patológica para se tornar condição inerente ao humano. E parte da concepção de que a histeria abriu o primeiro acesso às cavernas,[2] sendo o ser histérico a condição constitutiva do sujeito, assim como a presença da afetividade no homem, entendida como uma inter-relação interior-exterior, se constitui como condição desse sujeito complexo.
Segundo o pensador francês, integrar a afetividade à concepção da histeria generalizada se constitui fundamental para estabelecer a Teoria do eu. Nessa teoria, o sujeito agrega uma pluralidade de personalidades, onde há um núcleo desdobrado do eu, personalidade dominante, personalidades satélites, papéis-personagens sociais e tantos outros.
É nesse contexto que Morin (2003b) faz o esboço do eu, defendendo a tese de um sistema que apresenta a figura chave da antropologia psicoafetiva, onde a radiação lúdico-imaginária-onírica do eu e a estrutura organizada da alteridade-multipersonalidade constituem o mesmo sistema.
Este sistema pode ser concebido a partir de duas abordagens. A primeira abordagem pode ser concebida como o sistema em si mesmo, onde,
[...] o núcleo desdobrado constitui o sistema estruturante e as personalidades constituem estruturas-pattern que se atualizam e virtualizam conforme a modificação de um elemento do sistema, seja sob o efeito de uma pulsão interna, seja sob o efeito de uma intervenção proveniente do meio exterior (à qual ele reage conforme um feedback desestruturante-reestruturante). (MORIN, 2003b, p. 136)
Contudo, o autor observa que, mesmo a personalidade dominante, no caso a estrutura-pattern mais estável, está sujeita a eclipses (MORIN, 2003b). Dessa forma, Edgar Morin nos apresenta a arquitetura psicoafetiva do sujeito (Figura 1), que deve ser concebida em um sistema “microfísico” que considere a reversibilidade das massas em energias. Esse sistema, ao mesmo tempo em que é complexo, é fundado em elementos tão ambivalentes que os milhares de estímulos suscitam a semi-atualização de personalidades imaginárias, oníricas e fantasmagóricas, onde certas alterações ditas de humor mudam a personalidade. Para o autor, essas alterações seriam a atualização de uma personalidade virtual e virtualização de uma personalidade que estava atualizada.
Figura 1 – Esboço sistemático do eu, por Edgar Morin
Fonte: MORIN (2003b, p. 138).
Acreditamos que esse sistema, que mais se aproxima de um esboço inacabado, apresentado pelo pensador francês, longe de tentar decifrar o sujeito, demonstra a complexidade de apresentar algo subjetivo, fluido/fugaz e sempre aberto aos constantes processos que são tecidos ao longo de suas vidas. Os desdobramentos e virtualidades, ditas como fantasmagóricas pelo autor, mostram as fugas que Morin realiza em sua tentativa de apresentar a complexa subjetividade humana: aberta, volátil e imprecisa.
Sujeito que, apesar de ser singular, em suas peculiaridades, é múltiplo, em suas personalidades e relações. Um continuum sem início ou final, apenas meio. Uma multidão de forças que tentamos reprimir em uma única representação de personalidade.
Assim, a representação unívoca de uma personalidade é uma fantasia, como expõe Hall (2006, p.13), ao inferir que “A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia [...]”. O autor continua sua exposição lembrando que estamos sempre sendo confrontados por uma multiplicidade cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais seria possível nos identificar, mesmo que temporariamente (HALL, 2006).
Tanto a perspectiva de um sujeito complexo como a do sujeito descentrado, com identidades múltiplas, plurais e cambiantes, apontam ou desenham, senão um sujeito pós-moderno, ao menos aquele em que está incorporando outras possibilidades. Sim, usamos a expressão incorporando, pois acreditamos que se a complexidade sugere um tecido junto, como nos ensina Edgar Morin, podemos daí inferir que o seu lado moderno ou mesmo iluminista ainda pode se fazer presente. Podemos realizar semelhante análise dos múltiplos processos de identificação apontado por Hall (2006), pois na perspectiva desse autor, embora o sujeito tenha ganhado outros contornos podendo ele se desfazer de identidades com outros processos de identificações, entendemos, também, que esse mesmo sujeito pode ser atravessado por processos cuja razão iluminista, em certos momentos, se faça presente.
Mas que implicações disso podemos extrair para o campo em que nos propomos relacionar/problematizar, no caso, o educacional?
Sem adentrar nas diferentes concepções de escolas ao longo do tempo, mas já sinalizando para um afastamento daquelas que a enquadram como espaço meramente de reprodução social, acreditamos que, de forma semelhante às problematizações realizadas em torno da noção de sujeito, também podemos situar o espaço escolar (como tudo que nele acontece) dentro de uma perspectiva complexa em meio a múltiplos processos de identificações.
A abordagem nesse momento trata-se menos de colocar num mesmo plano sujeito e instituição, e mais em mostrar que seus processos também são múltiplos e plurais não devendo limitar-se às análises unívocas que consideram a escola, com tudo que há e o que nela se faz, como um espaço de reprodução social que conforma os sujeitos em seus devidos papéis.
Não ignoramos esses mecanismos normalizadores dos sujeitos ou mesmo o papel institucional que desempenham no processo de domesticação dos corpos, como aqueles apresentados, em riqueza de detalhes, pelas pesquisas realizadas do filósofo/pensador francês Michel Foucault. Em suas pesquisas, Foucault (1987), ao analisar as relações de poder, observa que não se trata apenas de uma força exercida verticalmente, de forma unidirecional em que um submete o outro, mas sim atravessando diferentes espaços sociais, muitas vezes de forma discreta em que a norma e o controle disciplinar procuram ser exercidos nesse caso, acreditamos, o espaço escolar.
No entanto, acreditamos que, assim como o sujeito, também a escola ou o espaço escolar é complexo e, no sentido de estar junto ou tecido junto é que trazemos a perspectiva de uma escola como “[...] arranjo particular de tempo, espaço e matéria em que os jovens são colocados em companhia de (alguma coisa) o mundo de um modo específico” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2017, p. 23). Os autores, procurando tecer outras análises sobre a escola e o que nela acontece, sem romantismo, se enveredam por um caminho mostrando e nos dando pistas e sinais de que nesse espaço há uma língua própria, uma responsabilidade para com o mundo, por meio dos sujeitos que nela estão. Um espaço com grande potencial de transformação, criação e produção de subjetividades. E se é assim, o é porque nela estão sujeitos que, também, apresentam esse mesmo potencial, como na máxima freireana em que não é a educação que transforma o mundo, mas sim os sujeitos transformados pela educação (FREIRE, 1979).
Na perspectiva de Masschelein e Simons (2017) o espaço escolar apresenta um arranjo e uma prática pedagógica para tornar as coisas públicas e para reunir pessoas. Nesse espaço, todos esses diferentes sujeitos com toda a sua complexidade vivenciam, mesmo com subjetividades singulares, certa igualdade: seja aquela de receber o mesmo conteúdo trabalhado pelo mesmo professor seja pelo fato de ocupar e partilhar o mesmo espaço e tempo, indistintamente.
Sobre a igualdade, também podemos produzir pistas com as reflexões de Stengers (2015). A autora, ao problematizar sobre as relações da escola, coloca sob rasura a questão da igualdade:
O que faz da escola, colocada oficialmente sob o signo da igualdade, uma produtora sistemática de desigualdades, desigualdades que são, além disso, geralmente ratificadas pelos interessados. Que se pense na triste reivindicação da ‘igualdade de oportunidades’. O que significa essa reivindicação a não ser a abstração de um ‘qualquer um’ que pretende fazer reconhecer seu pertencimento ao conjunto daqueles que lhe oferecem a ‘mesma’ oportunidade que a todos os outros, um pouco como um bilhete de loteria tem a mesma chance que todos os outros de ser premiado? Com a única diferença de que a reivindicação pode facilmente ter por correlato uma transmissão da responsabilidade de seu destino a quem não soube agarrar a oportunidade que lhe foi dada. (STENGERS, 2015, p. 124)
Nesse contexto, a autora propõe potencializar a [...] criação dos meios para fazer passar a igualdade através das diferenças” (STENGERS, 2015, p. 136). É fato que somos diferentes. A questão é como cada um age/pensa com essa realidade. Realidade que nos provoca a dizer que “igualdade de oportunidades” é um discurso capturado pelas engrenagens dominantes que, além de não conseguir criar meios pelos quais as oportunidades sejam iguais para todos, produzem cada vez mais desigualdades.
Entendemos que a pensadora Belga esteja, com sua crítica ao modelo de escola reprodutivista, também nos provocando a pensar. Não o já pensado, mas para além daquilo que está posto. Se a escola, ao longo de seu processo e com sua sistemática, produz desigualdades, no sentido em que se transfere ao sujeito-indivíduo e unicamente a ele a responsabilidade pelo aprender, responsabilidade essa que deveria ser coletiva, não significa que essa mesma escola não possa ser outra coisa. Ser um espaço em que se provoque/estimule o pensamento e o compartilhamento de ideias, experiências e conhecimentos. Um compartilhamento sem a arrogância hierárquica e verticalizada do saber, mas sim a partir de sua horizontalidade. Um compartilhamento de saberes produzidos e/ou engendrados na diferença.
Dessa forma, pensamos que nesse ambiente, onde as diferenças e complexidades se encontram e convivem, dificilmente de forma harmoniosa, mas sempre comportando um grande potencial formativo, precisamos potencializar processos que fazem passar a igualdade através das diferenças, como uma liga entre heterogêneos, como nos sugerem a autora. É nesse encontro das diferenças e da pluralidade sob um mesmo espaçotempo é que reside um potencial múltiplo e, ao mesmo tempo, eco-organizador[3] da realidade coletiva em sua volta.
Dilatando a relação sujeito e complexidade, em um dos volumes de sua principal obra, O Método, Morin (1980) faz uma interessante provocação quanto à noção de sujeito, ao dizer: “[...]. Julgo que podemos propor uma noção de sujeito não só subjectiva, mas biológica, porém com a condição de repudiar os ‘maus sujeitos’ humanistas, metafísicos e antimetafísicos [...]” (MORIN, 1980, p. 152).
Nessa proposta, presente no segundo volume de O Método, intitulado A vida da vida, o autor ressalta a complexidade da noção de sujeito, ao inferir que:
A noção de sujeito começa a emergir na sua realidade complexa. Vemos cada vez mais claramente que o sujeito vivo não é um sujeito puro, como o sujeito transcendental dos metafísicos, como o sujeito puramente auto-referente duma lógica abstracta, ou como o actor puramente egoísta duma teoria simplificada dos jogos [refindo-se a Von Neumann]. O sujeito não constitui nem uma essência nem uma substância: trata-se de uma qualidade ou modalidade de ser própria do indivíduo vivo, ligada indissoluvelmente à auto-(geno-feno)-organização. Comporta por isso, em si mesmo, traços infra, supra, meta-subjectivos [...] (MORIN, 1980, p. 165)
Podemos notar, nessa observação do autor, a inserção da complexidade na elaboração de uma possível ideia da noção de sujeito. Ao fazer isso, o autor procura também afastar-se de uma perspectiva essencialista e/ou transcendental para produzir uma elaboração imbricada com diferentes dimensões da vida: biológica, subjetiva, social, etc.
Na busca por encontrar a noção do sujeito, o pensador francês continua esse diálogo entre o mundo científico e o mundo filosófico. Em A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento (MORIN, 2003a), o autor observa que em Althusser, Lacan e Lévi-Strauss há o desejo de liquidar o sujeito humano expulsando-o das ciências. Porém, a partir das concepções de Foucault e Barthes, Morin ressalta que mesmo tardiamente há um retorno ao sujeito, entretanto uma volta existencial, que acompanhou a volta do eros, a volta da literatura, e não uma volta do sujeito ao âmago da teoria (MORIN, 2003a). No contexto dessas observações, o autor propõe a tentativa de uma definição de sujeito partindo de uma base bio-lógica e não do sentimento ou da racionalidade (MORIN, 2007b).
Para definir o sujeito, Morin (2003a) lança mão de algumas ideias que têm se introduzido no campo científico, como a do indivíduo como um ser vivo com autonomia relacional e relativa, autonomia essa dependente de seu meio ambiente (biológico, cultural ou social). Outra ideia parte do pressuposto da interação indivíduo/sociedade, em que as interações entre os indivíduos produzem a sociedade que, por sua vez, produz os indivíduos-sujeitos. Segundo o autor, para se chegar à noção de sujeito é preciso, também, da dimensão cognitiva para constituí-lo. É o cômputo[4] que permitirá o tratamento de estímulos, dados, signos e mensagens para agir dentro de um universo exterior e interior, e conhecê-los. Essas ideias compõem a noção de sujeito em sua complexidade.
Há quatro princípios de identidade do sujeito em Morin, no primeiro ele apresenta dois níveis de subjetividade: cerebral (mental) e do organismo (imunológico) em que distingue o exterior a si. No segundo princípio se evidencia a auto-referência, apesar e através das transformações ocorridas. No terceiro e quarto princípios estão os de exclusão, em que o eu é único para cada um, e o de inclusão em que o eu está em um nós. Esse quarto princípio se manifesta desde o nascimento, na necessidade do outro, de sorrir, de ser embalado, ou seja, a necessidade de estar em nós. É o que reafirma o autor em A humanidade da humanidade quando observa que o “O sujeito não está sozinho porque o Outro e o Nós moram nele [...]” (MORIN, 2007b, p. 81).
O sujeito para Morin comporta um duplo princípio de inclusão e exclusão, oscilando entre o egocentrismo absoluto e a devoção absoluta e possuindo um cérebro triúnico, três seres em um sujeito: o impulsivo (cérebro réptil ou paleocéfalo), o afetivo (cérebro mamífero) e o racional (córtex e o neocórtex). Esses seres não coexistem em equilíbrio, mas em uma situação de constante instabilidade. Oscilando entre um e outro... com um e com outro.... Morin vai discorrendo assim sobre o sujeito complexo:
Nos casos de duplicação de personalidade, temos duas pessoas inteiramente diferentes, que têm escritas diferentes, caracteres diferentes, às vezes até doenças diferentes, e a pessoa que domina é a que diz ‘Eu’, isto é, a que ocupa o lugar do sujeito. E digo mais: o que chamamos de nossas mudanças de humor são modificações de personalidade. Não apenas desempenhamos papéis diferentes, mas também somos tomados por personalidades diferentes durante todo o percurso de nossa vida. Cada um de nós é uma sociedade de várias personalidades. Mas há este ‘Eu’ subjetivo, esta espécie de ponto fixo, que é ocupado ora por uma, ora por outra. (MORIN, 2003a, p. 124)
Morin, portanto, propõe uma definição de sujeito completamente diferente daquela que define o sujeito pela consciência. A consciência, segundo ele, é a emergência última da qualidade do sujeito e extremamente frágil, podendo enganar-se muitas vezes (MORIN, 2003a).
O autor, ao examinar a ideia de liberdade, golpeia novamente uma suposta centralidade e independência do sujeito, problematizando a autoria da própria voz, quem fala quando ele fala? Seria realmente ele ou nós (o grupo, a pátria, a cultura, o partido, etc.)? E sobre essa questão, podemos nos aproximar de Guattari (1987) para um possível diálogo.
Segundo Guattari (1987), nos comunicamos em agenciamentos coletivos de enunciação, de forma que, mesmo quando pensamos falar com a própria voz, as ressonâncias que nos contextualizam reverberam em nossa forma de agir, sentir, pensar e imaginar.
Dentro dessa perspectiva, Morin e Kern (2003) também se posicionam contrariamente aos dogmas que fixam o sujeito, seja aquele para o qual o sujeito é tudo, seja outro para o qual o sujeito é nada. Para os autores, o sujeito oscila entre o tudo e o nada, da mesma forma que oscila entre o egoísmo e o altruísmo.
Esse é o Homo sapiens demens, inacreditável ‘quimera... novidade... monstro... caos... sujeito de contradição, prodígio! Juiz de todas as coisas, imbecil verme da terra; depositário do verdadeiro, cloaca de incerteza e de erros; glória e escória do universo’ [...] (MORIN; KERN, 2003, p. 177)
Para Morin, o sujeito recusa a morte que o devora, no entanto é capaz de oferecer a sua vida por seus ideais, pela pátria e pelo outro. Aí está, para o autor, a complexidade própria da noção do sujeito, e conclui essa noção dizendo:
[...] o sujeito não é uma essência, não é uma substância, mas não é uma ilusão. Acredito que o reconhecimento do sujeito exige uma reorganização conceptual que rompa com o princípio determinista clássico, tal como ainda é utilizado nas ciências humanas, notadamente sociológicas [...] é preciso conceber o sujeito como aquele que dá unidade e invariância a uma pluralidade de personagens, de caracteres, de potencialidades [...] (MORIN, 2003a, p. 128)
Esse sujeito-personagem, que assume vários papéis, ora se vestindo ora se despindo, é também dotado de potencialidades. Para o campo educacional corresponderia perceber que, da mesma forma, nele se encontra a contradição, mas sem minar sua potencialidade. Não é pelo fato da presença autoritária/dominadora ou mesmo (e menos ainda) de determinadas situações de violência que se encerra a escola, muito pelo contrário. Pensar que na escola reina a harmonia com seus sujeitos conscientes e coerentes é, no mínimo, uma ingenuidade. Esse espaço é contraditório e caótico, mas com muitas potencialidades. Compreender o sujeito e a escola sob essa perspectiva, apontada pelo autor, corresponde a complexar nossos pensamentos. Situá-los assim pressupõe uma ruptura com determinadas tendências ainda muito presentes em nossa sociedade, como aquelas em que procuramos razões, certezas, receitas, explicações e coerências para nossas vidas, ações e relações.
Pensar um sujeito que fuja desse estereótipo, de alguém consciente, dono de si, conhecedor de si, senhor de sua história, não é algo simples, muito embora estejamos constantemente dando mostras justamente do seu oposto.
O esboço de um sujeito complexo e suas implicações com a dimensão educacional
Percebemos que a noção de sujeito sob uma perspectiva complexa encontra em Edgar Morin uma rica formulação e/ou desenvolvimento teórico-epistemológico em torno da ideia/noção da complexidade, sendo essa uma expressão recorrente que se lança do autor em muitas de suas obras. Para ser mais preciso, a complexidade, embora bastante discutida por vários autores, encontra em Edgar Morin uma sistematização muito bem elaborada, que atravessa e/ou é atravessada por outras diferentes questões, como a do sujeito, por exemplo.
Mas, o que seria esse sujeito complexo? Que implicações essa noção de sujeito e complexidade tem para o campo educacional?
Em uma interessante obra, intitulada Introdução ao pensamento complexo, Morin (2007a) traz sua ideia de complexidade tencionando-a com a da simplificação e completude, nos apontando uma complexidade como impossibilidade de isolamento, conclusão e certeza.
Com relação à simplificação, para o autor francês Edgar Morin, a ideia de complexidade não conduz a eliminação da simplificação, mas a engloba, surge na falha desta, avança naquilo que a simplificação mutila.
O pensamento complexo agrega assim todos os possíveis modos simplificadores de pensar, entretanto não dá espaço ou se vincula com as simplificações redutoras. Da mesma forma, ao contrapor a ideia de completude – algo que Morin julga impossível de se alcançar – o autor desenvolve uma noção de incompletude e incerteza, que aspira a um saber não fragmentado e não redutor, que reconhece o inacabamento de qualquer conhecimento e sua incompletude, permitindo-se sempre ser questionado e reformulado. Ao pensar sobre uma definição para complexidade, Morin (2007a) observa:
À primeira vista é um fenômeno quantitativo, a extrema quantidade de interações e de interferências entre um número muito grande de unidades. De fato, todo sistema auto-organizador (vivo), mesmo o mais simples, combina um número muito grande de unidades da ordem de bilhões, seja de moléculas numa célula, seja de células no organismo [...]. Mas a complexidade não compreende apenas quantidades de unidade e interações que desafiam nossas possibilidades de cálculo: ela compreende também incertezas, indeterminações, fenômenos aleatórios. A complexidade num certo sentido sempre tem relação com o acaso (MORIN, 2007a, p. 35).
O autor nos apresenta então uma complexidade que se enamora com a incerteza, tanto daquela proveniente dos limites de nosso entendimento como da inscrita nos fenômenos. O conceito de auto-eco-organização desenvolvido por Edgar Morin, por exemplo, procura expressar uma inter-relação do Eu com o Mundo, uma imbricação sujeito-objeto, ou ainda, certa interdependência entre o dentro-fora, pois:
Um pensamento de organização que não inclua a relação auto-eco-organizadora, isto é, a relação profunda e íntima com o meio ambiente, que não inclua a relação hologramática entre as partes e o todo, que não inclua o princípio de recursividade, está condenado à mediocridade, à trivialidade, isto é, ao erro... (MORIN, 2005, p. 193)
Nesse sentido, a auto-eco-organização, ao mesmo tempo em que alimenta, é alimentada pela relação com os demais sistemas com os quais interage. Esta ideia compreende a complexidade em que o sujeito em Morin se situa e a mesma que o constitui. O sujeito, nessa perspectiva, e também concomitantemente em que é subjectus, se encontrando numa posição de subordinação ou sujeição, possui certo grau de auto-eco-organização no sentido em que não há centralidade, mas sim codependência em relação a todo um coletivo socialnatural / naturalsocial.
É interessante ressaltar que, para o autor, essa perspectiva auto ou ego não é isolada ou se encerra num solipsismo, mas se compõe com o mundo, portanto, “A ideia de autoprodução ou de auto-organização não exclui a dependência em relação ao mundo externo: pelo contrário, implica-a. A auto-organização é, de fato, uma auto-eco-organização” (MORIN, 2005, p. 283).
Ao problematizar a noção da autonomia do/no sujeito, por exemplo, o autor considera que ser sujeito “[...] é ser autônomo, sendo ao mesmo tempo dependente. É ser alguém provisório, vacilante, incerto, é ser quase tudo para si e quase nada para o universo” (MORIN, 2007a, p. 65). A ideia de autonomia, também, é problematizada pelo autor:
A noção de autonomia humana é complexa já que ela depende de condições culturais e sociais. Para sermos nós mesmos precisamos aprender uma linguagem, uma cultura, um saber, e é preciso que esta própria cultura seja bastante variada para que possamos escolher no estoque das idéias existentes e refletir de maneira autônoma. Portanto, esta autonomia se alimenta de dependência [...] (MORIN, 2007a, p. 66)
Quando discute a relação sujeito-objeto, Morin (2007a) realiza interessantes provocações e desdobra sua perspectiva a respeito do sujeito, observando que este emerge ao mesmo tempo que o mundo, de forma inseparável e recíproca. Assim, mundo (como objeto) e sujeito aparecem “[...] como as duas emergências últimas inseparáveis da relação sistema auto-organizador/ecossistema” (MORIN, 2007a, p. 39).
Desse modo, essa inseparabilidade do mundo ou do objeto define a perspectiva que o autor tem do sujeito, destacando que “[...] só existe objeto em relação a um sujeito (que observa, isola, define, pensa) e só há um sujeito em relação a um meio ambiente objetivo (que lhe permite reconhecer-se, definir-se, pensar-se, etc., mas também existir)” (MORIN, 2007a, p. 41).
Se, portanto, acreditamos na imprevisibilidade e mutabilidade do mundo, seu constante movimento e incessante processualidade, estando o sujeito intrinsecamente ligado e em imanência com este mundo, de forma semelhante tais características “mundanas” também caberiam ao sujeito.
E, ainda, se a complexidade procura considerar aquilo que o processo de simplificação mutilou, também, na concepção do sujeito interessa considerar a/sua complexidade. Nesse aspecto, vale destacar, dentre os princípios da complexidade apresentados por Morin (2007a), os três de maior relevância à problematização que vinculamos ou aproximamos ao sujeito.
No primeiro princípio, está a dialógica, em que se mantém a dualidade no seio da unidade, associando termos ao mesmo tempo antagônicos e complementares. O sujeito, portanto, não apenas convive, mas ele próprio é ordem e desordem, é antagônico e caótico ao mesmo tempo em que diferentes lógicas dele se apossam e desapossam.
O segundo princípio nomeado pelo autor corresponde ao da recursão organizacional. Neste, a linearidade da relação causa e efeito é rompida, dando espaço para um processo recursivo em que o efeito retroage sobre a causa e o produto sobre o que o produz. Assim, o sujeito não é apenas a causa ou o efeito de algo, mas também é causante e produtor de uma mesma realidade que o produz, já que, segundo o autor, tudo que é produzido volta-se sobre o que o produz num ciclo ele mesmo autoconstitutivo (MORIN, 2007a).
No terceiro e último princípio está o hologramático. Para este princípio não apenas o todo está na parte como também a parte está no todo. Este princípio se engendra com os demais apresentados e nele podemos observar que tanto o todo possui elementos singulares em relação às partes quanto essas também mantêm singularidades em relação ao todo. Algo semelhante ocorre com o sujeito na medida em que este carrega uma singularidade em relação ao todo social e ao mesmo tempo em que o todo social apresenta singularidades em relação ao sujeito, ou seja, mesmo que o mundo esteja em nossa mente e a nossa mente esteja no mundo, não nos reduzimos a um ou outro.
Esses princípios interligados formulam a complexidade que constitui e/ou compõe o sujeito. Esse sujeito complexo, portanto, não é apenas o resultado objetivo e subjetivo de um número maior de elementos e conexões, ou mesmo, somente aquele/aquilo capaz de subjetivar e objetivar o mundo. Ele é múltiplo, plural e multidimensional, oscilando entre o tudo (pelas múltiplas dimensões em que o compõem) e o nada (pelo fato de não ter/ser essência ou mesmo fixidez alguma).
O pensamento/ideia expostos até então, em nosso entender, apresenta semelhanças e/ou implicações com a dimensão educacional. Dimensão essa constituída por diferentes campos de estudos/conhecimentos. Em primeiro lugar, vale ressaltar o afastamento das formulações que enquadravam a escola dentro de um único modelo discursivo no qual era possível antever inclusive o seu fim (ILLICH, 1985). Não que o pensamento do autor não possua fundamentos, pois não estamos completamente na contramão disso. Mas, a sociedade sem escola com a qual Illich (1985) pensava, acreditamos nós, corresponderia justamente a esse modelo iluminista/positivista em que o controle exercido sobre os corpos/mentes inibiam a criatividade e a espontaneidade. Em vez disso, ressaltamos nesse texto que é justamente esse tipo de escola e/ou o pensamento uniformizante sobre o tempo escolar que a ideia de complexidade coloca em questão.
Se o controle e a prática da reprodução social foram/são colocados como elementos problemáticos e presentes no espaço escolar, igualmente, esse mesmo espaço nos tem dado sinais de outras realidades e possibilidades. Observando os princípios da complexidade apresentados por Morin (2007a), inferimos que o espaço escolar também assim se apresenta. Nele, os princípios se fazem presentes, pois pensamos que o espaço escolar é hologramático, recursivo e dialógico.
Hologramático no sentido em que, no corpo escolar, o todo e as partes se comunicam e interagem. Tanto os indivíduos que o compõem, nesse caso os sujeitos praticantes[5] desse espaço, quanto a própria escola constituem-se como elementos que apresentam suas especificidades. O espaço escolar, como um todo, influencia as partes (indivíduos/sujeitos) e esses interagindo no/com esse espaço também o modificam, semelhante ao processo recursivo. Nesse processo, a relação de causa e efeito é uma via de mão dupla. Pensar que o indivíduo é um produto da escola e essa um produto da sociedade é negar a complexidade presente no mundo.
O processo dialógico trata a coesão de lógicas diferentes e até antagônicas, sem exclusão de nenhuma e nem mesmo da necessidade de alguma síntese. O espaço escolar é atravessado pela presença de múltiplas dimensões e não somente aquelas ligadas à educação. Também é forte a presença de lógicas distintas que embalam o correr cotidiano desse espaço. Embora, em muitos momentos estejamos abarrotados da narrativa em torno da necessidade de unificação, coerência e organização, não podemos negar a presença da incoerência, do pensamento dissonante e até mesmo do caos. Tudo isso convive e muitas vezes concomitantemente. Aí se encontra o desafio: lidar com essa complexidade sem abolir, negar ou invisibilizar as diferenças.
Considerações finais
O sujeito humano é complexo por natureza e definição. (MORIN, 2007b, p. 81)
Antagônico e não dialético (no sentido em que não há síntese possível que contemple o sujeito) pluridimensional, afetado e afetivo, biológico e social, antropológico-cultural, subjetivo e objetivo, egoísta e altruísta, tudo e nada. Esse é o sujeito pensado por Edgar Morin. Essa composição inacabada, indefinida, incerta e complexa corresponde à noção que atravessa o pensamento do autor a respeito do sujeito.
É nesta incerteza e na tessitura da complexidade que se encontra o sujeito moriniano. Nada simples tampouco completo. Com suas particularidades e pluralidades que jamais poderão ser suprimidas, comprimidas e/ou renegadas em prol de uma adequação a sujeitos-padrão. Para Morin, essa perspectiva não existe!
Quando se supõe um acabamento e/ou enquadramento do sujeito dentro de uma determinada concepção, ele escapa, se dissolve e/ou conjura contra a tentativa de sua apreensão. Sua conformação é provisória e a conspiração contra um ajustamento se torna uma constante.
Pensar e apresentar o sujeito sob essa perspectiva é desafiador e provocativo, principalmente para um mundo cartesiano/moderno, que preza pela certeza e coerência. É preciso entender, também, que tal perspectiva não se constitui como elemento discursivo utilizado para explicar ou se esquivar de qualquer problemática. No entanto, acreditamos que tem implicações em diferentes dimensões da vida.
Se reconhecer incoerente/contraditório ou mesmo efêmero em determinadas situações, e tal reconhecimento não se constituir como peso moral sobre sua relação consigo e com o mundo, pode contribuir com a potencialização de outras subjetividades, menos assujeitadas e/ou assujeitantes.
Em uma dimensão mais coletiva podemos pensar estas implicações no âmbito da educação, na relação com o conhecimento e no próprio processo de desenvolvimento da aprendizagem. Implicações múltiplas e plurais. O sujeito docente e o sujeito discente, suas sujeições e seus protagonismos. Implicações recíprocas e experiências compartilhadas, papéis sociais reproduzidos e atos desconstrutivos e criativos constituídos.
Uma escola sob essa perspectiva provoca uma “suspensão” ou ao menos uma parada no modo como ela vem/vinha sendo tomada. Não mais aquela aprisionada ao papel de um aparelho ideológico do Estado – fazendo menção à expressão de Altusser (1980). A suspensão ou parada aqui não significa a negação da existência/presença, mas sim a constituição de um processo de adição, um “e” que estabelece ou reconhece algo a mais, além do já dado. Aqui, acreditamos em nos aproximar de Stengers (2015), quando a autora, seguindo o rastro de Espinosa, traduz/chama/aproxima a experiência de uma nova capacidade de agir e pensar com a alegria.
Acreditar na capacidade da escola, esse lugar de encontros, de imaginar juntos, com os outros e graças aos outros, a criação/produção de saídas e/ou alternativas ao que nos aprisiona e empurra aos abismos. Tudo isso, no entanto, deixamos em aberto, como provocações. Quem sabe, em outros espaçostempos, surjam novas/outras problematizações.
Referências
ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. 3 ed. Lisboa: Editorial Presença/Martins Fontes, 1980.
ALVES, Nilda. Imagens das escolas: sobre redes de conhecimentos e currículos escolares. Educ. Rev. [on-line], n.17, p. 53-62, 2001.
CERTEAU, Michel De. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2005.
FOUCAULT, Michel. Os corpos dóceis. In: FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987.
FREIRE, Paulo. Educação e mudança. Tradução de Moacir Gadotti e Lilian Lopes Martin. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
GUATTARI, Félix. Revolução molecular: pulsações políticas do desejo. Tradução de Suely Belinda Rolnik. 3. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2006.
ILLICH, Ivan. Sociedade sem escolas. Tradução de Lúcia Mathilde Endlich Orth. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 1985.
MASSCHELEIN Jan; SIMONS Maarten. A língua da escola: alienante ou emancipadora? In. Elogio a escola. Organização de Jorge Larrosa. Tradução de Fernando Coelho. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.
MORIN, Edgar. O Método II: a vida da vida. Tradução M. G. de Bragança. 2. ed. Portugal: Europa-América, 1980.
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Tradução Eloá Jacobina. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003 (a).
MORIN, Edgar. X da questão: o sujeito à flor da pele. Tradução Fátima Murad. 1. ed. Porto Alegre: Artmed, 2003 (b).
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Tradução de Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Tradução Eliane Lisboa. 3. ed. Porto Alegre: Ed. Sulina, 2007 (a).
MORIN, Edgar. O Método V: A humanidade da humanidade: a identidade humana. Tradução Juremir Machado da Silva. 4. ed. Porto Alegre: Sulina, 2007 (b).
MORIN, Edgar; KERN, Anne-Brigitte. Terra-pátria. Tradução Paulo Azevedo Neves da Silva. 4. ed. Porto Alegre: Sulina, 2003.
STENGERS, Isabelle. No tempo das catástrofes: resistir à barbárie que se aproxima. Tradução de Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
Notas
[1] Como uma imbricação entre os conceitos – um não pode ser dissociado do outro –, Nilda Alves (2001) observa o espaçotempo escolar como dimensão material do currículo, composto de relações múltiplas entre múltiplos sujeitos, com saberes múltiplos, que aprendem/ensinam o tempo todo múltiplos conteúdos de múltiplas maneiras (ALVES, 2001).
[2] Morin refere-se à revolução psicológica de Freud que ao elaborar a hipótese de que a causa da histeria era psicológica, e não orgânica, abriu caminhos para estudos que antigamente se encontravam em um plano imaginário.
[3] Segundo Edgar Morin (1980), o ser humano seria um sistema auto-eco-organizador, onde o mundo está no sujeito e o sujeito está no mundo.
[4] Ato pelo qual o sujeito se constitui posicionando-se no centro de seu mundo para lidar com ele, considerá-lo, realizar nele todos os atos de preservação, proteção, defesa, etc. (MORIN, 2003a, p. 120).
[5] Expressão utilizada pelo pensador francês Michel De Certeau (2005) para expressar aqueles e aquelas que criam e inventam o cotidiano, escapando silenciosamente do lugar que lhe é atribuído.
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