Bauman, uma biografia

 

Rosemary Roggero

Universidade Nove de Julho, São Paulo, São Paulo

roseroggero@uol.com.br - https://orcid.org/0000-0003-3084-4979

 

Recebido em 22 de fevereiro de 2021

Aprovado em 17 de dezembro de 2022

Publicado em 04 de outubro de 2022

 

Zygmunt Bauman tornou-se, sem dúvida, um dos maiores pensadores da história, especialmente, do início do século XXI. A curiosidade a respeito de como constituiu-se essa mente brilhante já estava instalada há tempo e a socióloga polonesa Isabela Wagner propôs-se esse trabalho, pautada na Escola de Chicago quanto à análise de trajetórias de vida vistas num contexto mais amplo de relações permeadas por dois eixos: o sentimento de identidade (Quem sou eu?) e o master status (Como os outros me percebem?), em que a autora se apoia em inúmeras entrevistas e documentos.

A pesquisa partiu de um projeto que se iniciou em 2013 e traz uma riqueza muito grande em detalhes contextuais, cuja construção demonstra o excelente trabalho de investigação. As entrevistas com Bauman permitem perceber que os muitos e muitos duros momentos vividos pelo pensador tornavam a fala sobre eles uma tarefa emocional desgastante. O resultado de todo o processo, no entanto, revela não apenas o método, mas a sensibilidade, a seriedade e a competência com que Isabela Wagner vai narrando a trajetória do acadêmico, filósofo, intelectual público, que foi se transformando de ativista em pensador global – testemunha e participante ativo do seu tempo e do seu lugar de origem, a partir da pergunta central e que acompanha cada um dos quinze capítulos do livro: “Como isso aconteceu?”.

O primeiro capítulo traz a ancestralidade judaica de Bauman, nascido, em novembro de 1925, numa Polônia e numa cidade, Poznán, das mais antissemitas. Ao longo de toda a sua trajetória, mesmo nas circunstâncias mais improváveis, como quando foi expulso da Polônia, em 1968, numa situação predominantemente articulada entre antissemitas do partido, Bauman ainda refletiu, num texto para as filhas, que:

“Ser polonês” não significa proteger fronteiras bem constituídas e delimitadas, mas estabelecer limites que ainda não existem – construir realidades em vez de expressá-las. Havia na polonesidade um traço constante de incerteza, de “até segunda ordem” – uma espécie de condicionalidade precária sobre a qual pouco sabem outras nações, mais seguras. (p. 20)

 

É bem isso que se apresenta desde os seus primeiros anos de vida, quando a escolarização estava condicionada a cotas para judeus que conseguissem aprovação nos exames, mas que se sentariam nos “bancos dos excluídos”, ao fundo das salas, jamais valorizados pelo seu bom desempenho, sempre vítimas do bullying dos colegas e até dos professores. Essa foi a experiência de Bauman, até os 14 anos, quando a família fugiu, às pressas, para a Rússia, em razão da perseguição aos judeus durante a Segunda Guerra Mundial.

Apesar disso, o primeiro capítulo, intitulado Uma infância feliz “em tais circunstâncias” e o segundo, Um aluno como nenhum outro, apontam que, apesar de todas as dificuldades experimentadas pela família simples e pelo próprio Zygmunt, filho caçula de Maurycy Bauman e Zofia Cohn, com apenas uma irmã seis anos mais velha – Tauba – sentia-se relativamente bem com a vida, gostava muito de estudar, escrevia muito bem e demonstrava facilidade com idiomas.

A guerra obrigou a família a refugiar-se na Rússia, o que é narrado no terceiro capítulo: O destino de um refugiado de guerra. A partir daí, os capítulos 4. O êxodo russo, 5. Guerra santa, 6. Oficial do Corpo de Segurança Interna, e 7. Um homem numa sociedade socialista, vão descrever toda a adolescência e início de vida adulta, uma vida de precariedades, de sofrimentos, de insegurança, atravessada por breves períodos de relativa tranquilidade e até de situações impensáveis, como quando a Rússia, ignorando o antissemitismo polonês, decidiu formar um exército de judeus poloneses, quando Bauman se alistou alcançando a condição de Oficial do Corpo de Segurança Interna, que lhe valeu muito no retorno à Polônia do pós guerra, permitindo-lhe abrigar a família, que sobreviveu à guerra.

O governo que se instalou na Polônia pós guerra era comunista, aliado à Rússia stalinista. O país estava destroçado e sua reconstrução foi uma operação delicada. Por ser membro do exército e pela experiência educativa que vinha desempenhando, Bauman foi aceito no Partido Comunista Polonês, iniciando um período marcado por forte ativismo político do jovem Bauman, que participou muito da reconstrução da Polônia. A habilidade com a escrita, as qualidades de comunicação e de liderança marcaram esse período, cuja principal atribuição era produzir textos e formar soldados e novos membros do partido, na perspectiva marxista. Ele considerava empolgante para um jovem de 19 anos recém-chegado da linha de frente, o trabalho de erguer um país de séculos de atraso e penúria. Por isso, esses capítulos trazem uma grande riqueza de informações, apresentando personagens e eventos marcantes.

O oitavo capítulo – Um jovem acadêmico – e o nono – Anos de esperança – permitem-nos ver Bauman avançar nos estudos, sonho adiado durante a guerra, e o lindo encontro com Janina, seu grande amor, primeira mulher, mãe de suas três filhas com quem viveu durante 62 anos, e que foi sua maior colaboradora. Janina e Zygmunt relataram como esse encontro foi amor à primeira vista, ao ponto de o jovem pedi-la em casamento nove dias depois de se terem conhecido e ela ter aceito!

Ambos trabalhavam. Ele na escola militar, ela num órgão público de cultura. Então, vemos um Zygmunt que compartilha as tarefas domésticas, também cuidando das filhas Anna, Irena e Lydia, sobretudo depois do nascimento das gêmeas, devido a um longo período em que Janina esteve doente e que ela relembra e admira muito. Nesse contexto, Bauman concluiu a graduação em Sociologia, fez o mestrado (orientado por Adam Schaff, com quem mantinha uma relação mais cortês que íntima) e lhe permitiu assumir o posto de professor assistente na Universidade de Varsóvia; e o doutorado sobre a concepção de socialismo do Partido Trabalhista, alcançando reconhecimento sob a orientação de Julian Hochfeld, grande mestre e amigo.

Ao longo de toda a narrativa, chama muito a atenção a capacidade de trabalho, a disposição e a saúde de Bauman, incluindo os períodos de fome, como o da guerra e, mais tarde, quando teve oportunidade de ir para Londres, fazer um pós doutorado, por ter conseguido uma bolsa, recurso que para render no sustento da família, o levou a uma economia extrema quanto à moradia e alimentação, ao longo de um ano. É incrível como, apesar de tudo, constituiu fluência em russo e inglês, predominantemente.

Apesar de todas as dificuldades para que se conseguisse viajar para fora da Polônia, o que exigia autorizações do partido, Bauman teve algumas boas oportunidades em outras universidades e países europeus, onde pôde conhecer e estabelecer relações com muitos outros sociólogos. Sua curiosidade com as ideias discutidas no mundo era muito grande, o que ampliava seus horizontes para além do marxismo, fato que incomodava membros do partido.

Os capítulos 10 – Um romance frustrado com a polícia de segurança – e 11 – O ano de 1968 – relatam mais um período bastante crítico que levou ao novo exílio. Janina escreveu sobre esse ter sido um período inimaginável de traições e rupturas. Interesses diversos foram alçando o casal à categoria de “inimigos públicos” pelas atividades políticas e acadêmicas de Bauman, mas sobretudo por sua origem étnica.

Incomodava o partido que Bauman se abrisse a outras teorias, para além da marxiana. Mas isso ainda não era determinante. O clima geral no país levava a uma atenção muito maior em relação à educação e à cultura – justamente as áreas de atuação de Zygmunt e de Janina. O fato de terem carreiras bem construídas não foi suficiente para protegê-los deste momento que culminou com a perda de seus empregos e da cidadania polonesa. Saíram do país com as filhas adolescentes, num carro velho, levando nele o pouco que puderam, não sem passar por inspeções e confiscos. Muita coisa se perdeu. Foi um momento extremamente doloroso.

O capítulo 12, Terra Santa, descreve o período dos Bauman em Israel, agradável pelo reencontro com os familiares de ambos, que lá viviam. Mas não tanto no que se refere à vida acadêmica e profissional de Bauman. Houve quem se sentisse ameaçado por sua presença, como o capítulo retrata. Ainda havia toda a tristeza e frustração com essa expulsão da Polônia, o país que ajudou a reconstruir, ao qual era tão apegado. Embora as filhas tivessem se adaptado bem a Israel, era preciso seguir adiante.

Um professor britânico, capítulo 13, relata os tempos de Bauman na Inglaterra, após aceitar o convite da Universidade de Leeds. Bauman parecia não querer grande visibilidade, mas assumiu os cargos acadêmicos e atribuições burocráticas que lhe foram solicitadas e cumpriu-as até sua aposentadoria. Entretanto, essas demandas o ocupavam a ponto de dificultarem a escrita.

Ao aposentar-se, enfim, ficou livre para voltar ao debate público – agora de forma diferente – como descrito no capítulo 14, um intelectual no trabalho, que aponta muito mais para as colaborações e influências de muitos sociólogos contemporâneos em sua obra. Bauman acolhia visões diversas que lhe permitiram amadurecer seu conceito de modernidade líquida e as interpretações do mundo ligadas a ele, com mais material para pensar a realidade.

Janina, sua maior colaboradora, faleceu em 2009, o que deixou Bauman bastante abatido. Porém, em 2010, reencontrou a ex-colega e orientanda de doutorado, Aleksandra Jasinska-Kania. Eles tinham muito em comum, compreendiam bem a história um do outro e reconstruíram suas vidas, juntos, em Leeds. Fizeram muitas viagens pelo mundo e cuidavam um do outro. Bauman continuava com ótima resistência, vitalidade e entusiasmo renovado. Apesar disso, há ataques ao seu pensamento, desde a velha Polônia. Ele não é uma unanimidade na academia a despeito de todas as qualidades do seu trabalho com influência em várias áreas, sobretudo na educação. Os jovens gostam dele. Mas a idade e o desagaste o levaram em 9 de janeiro de 2017. Antes, conheceu o Papa Francisco. Admiravam-se mutuamente.

Bauman deixou um grande legado pela sua capacidade de interpretar e dinâmica social que constitui a civilização ocidental. Mesmo que a principal tensão de sua vida tenha se dado entre as identidades judaica e polonesa, como constatou Isabela Wagner, ela, entre tantos outros, assume que:

 

Ele lançou uma luz sobre o consumismo, a comodificação, a globalização, o neocolonialismo, a migração e a liquefação das relações, processos e estruturas sociais. Baumam sabia como se dirigir a um “público difícil” – vinha lidando com esse público desde a juventude. Ao apresentar a soldados semialfabetizados na União Soviética os complexos temas da igualdade social, da justiça, do marxismo e do socialismo, Bauman não usou o vocabulário das ciências sociais; simplesmente explicou o mundo futuro em que esses soldados teriam de viver. Ele adquiriu essas habilidades de comunicação ainda muito jovem, num ambiente de imensas pressões; sem dúvida, podemos acreditar que ele tinha uma habilidade “natural” nessa área. Seus ouvintes o seguiram no Exército durante a Segunda Guerra Mundial, em escolas militares depois da guerra e em universidades de diferentes países. No último período de sua vida, Bauman manteve essa capacidade como contador de histórias e tradutor do mundo contemporâneo, mas agora com um público que, por seu tamanho impressionante, confirmava a precisão de suas interpretações. Por meio do trabalho de Bauman, o público pôde ter uma avaliação do que era novo em suas vidas, uma realidade que nada tinha em comum com a experiência de gerações anteriores. (pp.502-3)

 

As 640 páginas desse livro dão testemunho de um grande trabalho, numa vida intensa e num contexto árduo. Cada uma delas merece ser lida, por tudo o que Zygmunt Bauman representa, viveu, testemunhou e produziu – e nos é trazido pela competência e generosidade de Isabela Wagner, tão hábil e respeitosa na articulação de tantos elementos e questões delicadas, mas assertiva quanto a apresentar ao leitor tudo o que encontrou em busca de compreender como se constituiu esse pensador tão relevante.

Por meio deste texto, é possível sentir como se o velho e sábio Bauman visse reconhecida sua polonesidade e recebesse de volta sua cidadania e de sua família, ainda que possamos senti-lo muito mais um cidadão do mundo.

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