Letramento memeático: extrapolando os espaços formais de educação e prática política
Memeatic literacy: extrapolating formal spaces of political education and practice
Milla Benicio
Instituto Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
milla.camara@ifrj.edu.br - https://orcid.org/0000-0002-6154-5472
Recebido em 18 de fevereiro de 2021
Aprovado em 05 de maio de 2021
Publicado em 04 de outubro de 2022
RESUMO
Muito se fala sobre letramento digital em um mundo cada vez mais estruturado segundo a lógica de rede. Mas quais devem ser os objetivos de um tal letramento e como é possível orientá-lo no sentido da emancipação? Conduzindo-se por tais questionamentos, o presente artigo propõe uma reflexão sobre esferas que extrapolam as instituições formais de educação e prática política, compreendendo que algumas delas sejam decisivas para a deliberação democrática. Partindo do conceito de conversação cotidiana, a análise terá como foco temático os efeitos políticos do humor, em especial dos memes, na percepção dos brasileiros sobre pautas relevantes no cenário nacional e no modo como compreendem e exercem sua cidadania. O objetivo da pesquisa é ponderar sobre quando e como a participação, de fato, fortalece o exercício da cidadania, já que o fim de qualquer letramento é possibilitar que o cidadão possa incidir em sua própria sociedade. A metodologia empregada foi a revisão bibliográfica na construção do referencial teórico e o estudo de caso do projeto Da piada à política, executado pelo Laboratório de Cultura Digital (IFRJ-CNIT) na análise de resultados. Essa seção examinará iniciativas concretas de letramento memeático, com vistas ao seu escrutínio. A conclusão alcançada é de que a memealização pode ser uma prática bastante efetiva de letramento digital, já que abrange processos individuais e coletivos. Esse duplo movimento é indispensável num contexto em que o aqui forma-se na convergência de múltiplas conexões.
Palavras-chave: Letramento digital; Memes; Política.
ABSTRACT
Much is said about digital literacy in a world increasingly structured according to network logic. But what should be the objectives of such literacy and how is it possible to guide it towards emancipation? Guided by such questions, this article proposes a reflection on spheres that go beyond formal institutions of education and political practice, understanding that some of them are decisive for democratic deliberation. Starting from the concept of everyday conversation, the analysis will focus on the political effects of humor, especially memes, on the perception of Brazilians on relevant guidelines in the national scenario and on the way they understand and exercise their citizenship. The objective of the research is to consider when and how participation, in fact, strengthens the exercise of citizenship, since the end of any literacy is to enable the citizen to influence his own society. The methodology used was the bibliographic review in the construction of the theoretical framework and the case study of the project From the joke to the policy, carried out by the Laboratory of Digital Culture (IFRJ-CNIT) in the analysis of results. This section will examine concrete initiatives for memeatic literacy with the purpose of scrutinizing them. The conclusion reached is that memealization can be a very effective practice of digital literacy, since it covers individual and collective processes. This double movement is indispensable in a context where the here is formed in the convergence of multiple connections.
Keywords: Digital literacy; Memes; Politics.
Introdução
Durante as eleições de 2018, minha timeline do Facebook tornou-se um campo de guerra entre colegas e familiares em lados opostos no front eleitoral. Certo dia, após uma acalorada discussão permeada por conceitos equivocados e dados suspeitos, um amigo – também professor e pesquisador – confessou-me no privado: “Acho que as redes sociais foram a pior invenção da humanidade (sic)”.
A verdade é que, naquela altura, era grande a tentação de concordar com ele. Ali estávamos nós, ambos doutores com carreiras acadêmicas consolidadas, debatendo política de igual para igual com primos de 14 anos e tios engajados em teorias conspiratórias. Refém do meu próprio esclarecimento, limitei-me a questionar se não haveria usos mais produtivos das plataformas digitais, sem inquirir afinal se a contenda no Facebook com primos, tios e afins já não seria uma modalidade legítima de exercício da cidadania.
Justifico minha má vontade: sempre me identifiquei com uma certa tradição kantiana que vê na política uma esfera de liberdade necessariamente excludente, por ter como base a razão. Há muito, adotei como ideal o modelo habermasiano de democracia deliberativa, concebido a partir de uma “comunicação pública orientada para o entendimento”. (HABERMAS, 1990, p. 43)
Segundo Jürgen Habermas, é preciso institucionalizar os procedimentos e pressupostos comunicativos, devido ao risco do esfacelamento da esfera pública pela impossibilidade de comunicação numa sociedade de massa. Por isso, o filósofo formula uma hermenêutica dedicada à construção do sentido com vistas à compreensão mútua. A partir de uma perspectiva pragmática, elabora regras para a discussão coletiva pautadas no princípio da racionalidade.
No entanto, os usos políticos das redes sociais me fizeram inquerir onde afinal começaria a esfera deliberativa e, ainda, se haveria mecanismos para regulá-la caso o conceito abrangesse níveis mais informais e descoordenados de discurso e de ação. Este artigo trabalha com um corpo de hipóteses referentes a tais questionamentos, que foi analisado a partir de revisão bibliográfica e aplicado no projeto Da piada à política, desenvolvido com alunos do Ensino Médio Técnico do IFRJ-Niterói. A iniciativa vincula-se ao grupo de pesquisa Laboratório de Cultura Digital, vinculado ao mesmo instituto.
Apresento, assim, minhas hipóteses de trabalho:
1) Uma vez que a agenda coletiva é também definida em instâncias anteriores às instituições formais de educação e prática política ou às demais modalidades de organizações sociais, compreendo que tais instâncias sejam decisivas para a deliberação democrática. Partindo do conceito de Jane Mansbridge de conversação cotidiana, esta análise debruçar-se-á especificamente sobre os efeitos políticos do humor, em especial dos memes, na sociedade brasileira contemporânea;
2) Tendo-se estabelecido que: a) o desejo por maior participação direta na política é uma das demandas mais antigas e recorrentes das democracias representativas, e que b) a internet hoje representa um novo meio para que esse desejo se concretize, c) acredito ser essencial questionar quando e como a participação, de fato, fortalece o exercício da cidadania;
3) Os cidadãos engajados no universo digital são estimulados a um tipo específico de participação, que mobiliza antes intensidades (em resposta a motivações de fundo econômico e técnico das próprias plataformas), em detrimento de condutas também comprometidas com o pensamento crítico. Esse cenário é bastante favorável a segmentos reacionários da sociedade que se utilizam do potencial viral do humor na internet para normalizar pautas extremistas e antidemocráticas;
4) Todo letramento foca no indivíduo a ser letrado, sendo-lhe, portanto, intrínseca uma proposta de esclarecimento. Este trabalho, no entanto, compartilha com a teoria de Knobel e Laksheare de que a memealização pode ser uma prática bastante efetiva de letramento digital, já que abrange processos individuais e coletivos. Esse duplo movimento é indispensável num contexto em que o aqui forma-se na convergência de múltiplas conexões.
Os limites da esfera deliberativa
Após nossas últimas eleições presidenciais, é difícil refutar que os memes tenham incidência no processo político. Mas bem antes disso, pesquisadores se mobilizavam para analisar o alcance da relação entre os novos dispositivos discursivos proporcionados pela web e a participação política.
Wilson Gomes aponta que, na década de 2010, cresceu consideravelmente o número de estudos sobre internet que a vinculavam ao valor democratizante da rede. A atenção dos trabalhos acadêmicos daquele momento estava voltada para os “protestos digitais, ativismo online, e-movimentos, ação coletiva digital e engajamento online, desde a Primavera Árabe à explosão de protestos com base digital mundo afora” (GOMES, 2018, p. 84).
Mais especificamente dentro do nosso recorte, há pesquisadores como Viktor Chagas, que coletava já em 2014 dados no Twitter para discutir o potencial retórico e persuasivo do meme no cenário eleitoral. A conclusão de Chagas referente a tal pesquisa foi de que a linguagem memística poderia funcionar como uma espécie de apropriação da propaganda política pelo cidadão comum em seu ambiente conversacional, não só sob a forma de pôsteres políticos digitais, mas também com o uso de slogans, citações diretas e gráficos. (CHAGAS, 2018, p. 22)
Extrapolando o contexto estritamente eleitoral, podemos pensar que os memes têm papel relevante na esfera pública contemporânea ao contribuir para gerar identificação de grupo; promover disputas ideológicas; difundir ou desmentir rumores; testar a aceitação de ideias sob a máscara do humor, dentre inúmeras funções. Ou seja: as piadas que compartilhamos diariamente em nossos círculos de relacionamento podem ter outros desdobramentos para além do riso.
Como afirma a cientista política Jane Mansbridge, a conversação cotidiana é parte fundamental da deliberação democrática. Devemos entender esse conceito como uma dinâmica bem distante da tomada de decisões em assembleias públicas. Para Mansbridge, os resultados coletivos da conversação cotidiana são produzidos, de forma descoordenada, na interação entre indivíduos isolados. E o mais importante: é possível que, muitas vezes, ela seja meramente expressiva e não tenha em vista uma ação imediata, embora ocasionalmente gere efeitos concretos. (MANSBRIDGE, 2009, p. 210)
A autora lembra que as micronegociações contribuem para testar algumas ideias no contexto das realidades diárias, configurando, de certa forma, o que deve ser discutido em esferas tidas socialmente como mais elevadas. O argumento de Mansbridge, que se aplica à conversação cotidiana de uma forma geral, aproxima-se da análise de Chagas sobre os usos da brincadeira no cenário político atual.
Chagas ressalta que a ambivalência da cultura digital tem nublado ainda mais os limites entre uma retórica extremada e piadas politicamente incorretas. Ele demonstra que as brincadeiras promovidas por setores reacionários, mais do que uma simples expressão de humor, prestam-se à conformação de identidades e de expectativas morais. (CHAGAS, 2020, p. 8)
Resta-nos, pois, compreender como o humor e a brincadeira são mobilizados estrategicamente na disputa pelo domínio da cena política. Chagas evoca a cultura troll para nos indicar que a piada pode se converter em capital de visibilidade, contabilizada pelos usuários como lulz – “uma derivação de lols (ou laughing out loud, rindo muito alto)” (CHAGAS, 2020, p. 17). Aqui, o autor dialoga com Whitney Phillips, para quem a trolagem, longe de ser exceção, é a própria lógica do ambiente digital.
Se, em seu nascimento, a expectativa era a de que a internet facilitasse o exercício da cidadania, hoje o horizonte nos parece menos otimista. Seja pela trolagem de políticos profissionais ou pela participação ativa de cidadãos desavisados (ou, pior, mal intencionados), muitas vezes, somos tomados pelo desejo (infrutífero) de que as redes sociais se recolham à sua função de entretenimento e não interfiram no processo deliberativo. Mas elas interferem – e talvez justamente por divertirem.
Como nota Wilson Gomes, a agenda democrática precisa pautar-se nos indivíduos reais de nosso tempo, que não mais se dispõem a sacrifícios em nome de um ideal coletivo. É nesse sentido que o autor afirma ser tão importante aspectos relacionados ao desejo quanto aqueles “relacionados a meios, motivos e oportunidades de participação” (GOMES, p. 36-37).
Assim, é possível que a questão sobre o acesso à participação política seja um falso dilema, e o foco de nossas análises deva recair sobre quais caminhos nos levam ao fortalecimento da cidadania e como eles devem ser trilhados. Em outras palavras: em vez de despender energia tentando fechar as portas da esfera pública a nossos primos de 14 anos e tios com tendências conspiratórias, talvez seja mais produtivo pensar em como transformar os ambientes digitais em espaços de educação, debate e ação mais interessantes para o processo democrático, ao mesmo tempo em que sejam capazes de atrair diferentes tipos de indivíduos.
Pensando a participação
Embora o curso da história tenha desviado a atenção das chamadas Jornadas de Junho, pode-se dizer que o episódio de 2013 foi um primeiro sinal de alerta sobre a necessidade latente do cidadão por participação política no Brasil. Quando os brasileiros se identificaram com manifestações que se opunham ao aumento das passagens de ônibus, é possível que se tenham identificado, na verdade, com a própria possibilidade de se opor.
“Não é só por vinte centavos”, repetia-se nas manifestações físicas e virtuais, ainda que se tivesse dificuldade de articular, enfim, quais seriam as demandas prioritárias. O sentimento de indignação geral acabou por levar às ruas uma massa heterogênea de jovens (ou não tão jovens) “saída do Facebook” (como muitos se autodenominavam) com palavras de ordem que iam desde “Diga não à PEC 37” até “Queremos Kinder Ovo a preço de R$ 1,00”.
Em Cidades Rebeldes, o historiador Lincoln Secco defende que a adesão da classe média e da mídia aos atos fez com que, no fim, prevalecesse uma pauta de debate massificada, que apenas aparentemente nascia de baixo, de forma espontânea. Secco ressalta que os manifestantes virtuais foram incapazes de organizar sua insatisfação em termos de representação: criticavam-se os governantes de forma generalizada (e moralizante, diga-se de passagem), ignorando-se o modo de produção da política. (SECCO, 2014, p. 125).
Raquel Rolnik (2014, p. 16), por sua vez, reconhece que já havia, no Brasil, um grande distanciamento entre a política e a participação popular, em função do pacto de governabilidade firmado entre partidos ou entre políticos. Nesse cenário, as instituições democráticas tradicionais foram perdendo espaço para o que Pierre Rosanvallon chamou de democracia da supervisão, em que um tipo de soberania negativa é exercida pela sociedade civil sob a forma de vigilância, por meio de coalizões negativas. Se em 2013 isso já era perceptível, a eleição de Jair Bolsonaro em 2018 a partir de uma aliança anti-PT tornou ainda mais plausível tal teoria.
Podemos observar, assim, que a própria desconfiança em relação à representatividade contribui para a sensação – já antiga – de que o ponto fraco da democracia é a falta de participação do maior interessado no processo político: o cidadão. Destarte, a internet talvez apenas se tenha apresentado como uma nova alternativa a um velho problema.
No entanto, conforme nota Wilson Gomes, a participação não deveria ser tomada como um valor em si, mas como um meio para assegurar os aspectos de fato essenciais à democracia: a igualdade política, as liberdades fundamentais, a livre deliberação, dentre outros. (GOMES, 2017, p. 24) Assim, o investimento exclusivo em participação política não garante que a cidadania se fortaleça, pois ela pode ser “inútil, inócua e do tipo errado” (GOMES, 2017, p. 34).
Outro ponto importante é aquele levantado por Mansbridge (2009, p. 224): para a boa deliberação existir, não é necessário que todas as interações sejam marcadas por valores democráticos, mas que o sistema em que elas se insiram sejam capazes de refletir tais valores. Em suma, nem só de participação se sustenta a democracia e nem toda participação pode indicar a qualidade de seu exercício.
Nesse sentido, creio que o foco de nossa ação não deva ser descobrir mais e mais meios de participação. Tampouco, a batalha (de antemão perdida) para esclarecer todo e qualquer indivíduo que participe da esfera pública (ou ainda sonhar com sua expulsão), mas colaborar para que se aprimore o sistema em que tal interação dar-se-á.
É aqui que entram meus questionamentos sobre o letramento digital, que tem sido visto como condição sine qua non para o empoderamento pessoal e coletivo na sociedade contemporânea, marcada por interações virtuais e em rede. No entanto, para pensarmos esse conceito a partir de uma perspectiva mais complexa, devemos ultrapassar concepções que o restringem ao mero acesso às tecnologias.
Mensagens, códigos ou canais inéditos demandam habilidades específicas para que o indivíduo participe efetivamente do processo comunicativo. Logo, presume-se que o letramento digital apenas se dê caso o uso das novas tecnologias seja acompanhado da competência de se gerir de forma crítica seus conteúdos, sob o risco de se formar uma geração de analfabetos digitais funcionais.
Assim, proponho, no rastro de Henry Jenkins, uma mudança de foco: das frequentes questões sobre acesso para outras relativas à participação e às competências necessárias ao seu efetivo exercício (JENKINS et al., 2009, p. xiii). Outro ponto indicado por Jenkins é que a maior parte da discussão pública sobre as mídias digitais está polarizada entre duas posições contrastantes: de defesa ou de ataque à técnica. É comum, no meio educacional, transitarmos entre visões salvacionais ou apocalípticas em relação à influência da tecnologia nos processos pedagógicos atuais.
Para o autor, essa polarização se deve ao fato de refletirmos sobre as tecnologias da informação e comunicação (TICs) de forma isolada, quando seria mais interessante uma abordagem interrelacional entre as diferentes TICs, as comunidades culturais que crescem ao seu redor e as atividades a que dão suporte (JENKINS et al., 2009, p. xiii). Dessa forma, os sistemas de mídia não devem ser resumidos às tecnologias, mas a todo o aparato “social, cultural, político, legal e econômico”, além das práticas e protocolos que as acompanham.
Esses dois pontos sublinhados pelo autor não estão desconectados, uma vez que a mudança de foco proposta se deve justamente à importância do complexo constituído pelas relações culturais e tecnológicas. Jenkins observa que “a interatividade é uma propriedade da tecnologia, enquanto a participação é uma propriedade da cultura” (JENKINS et al., 2009, p. xiii), embora seja importante de dizer que a primeira não necessariamente implique a segunda.
Para mim, está claro que a web propicia relações intersubjetivas inéditas, impelindo “a constituição de modalidades interativas capazes de promover a construção coletiva de novos significados, novas identidades e novas perspectivas de ação” (DURAN, 2018, p. 12). Marc Prensky – que cunhou o termo nativos digitais para designar a geração dos nascidos online – chega mesmo a afirmar que o declínio da educação formal nos EUA se deve à mudança radical dos estudantes. Para ele, o sistema educacional foi projetado para pessoas bastante diferentes daquelas que hoje ocupam as escolas e universidades (PRENSKY, 2001, p. 1).
Obviamente, Prensky está pensando essa virada à luz das próprias mutações técnicas. Observa-se, em especial, na última década – e não apenas em relação aos jovens –, o que Wilson Gomes chama de hiperconexão: estamos sempre próximos a dispositivos (muitas vezes, com funções redundantes) permanentemente ligados ou conectados à rede. Dentre algumas das funcionalidades de tais aparatos estão o acesso à informação; contato social; compartilhamento de dados; entretenimento; localização; cumprimento de agendas de trabalho; etc. (GOMES, 2018, p. 80).
Gomes aponta ainda a existência de outros fenômenos relacionados a esse estado de hiperconexão, sendo o principal deles a internet social, cuja base são as mídias e redes sociais digitais, com intenso consumo e produção de conteúdo. Como lembra o autor, se na década de 90 popularizaram-se os PCs e a internet, a marca do fim do século foi a “interação online abundante na forma de fóruns eletrônicos e chats da web, mas também em ferramentas digitais para comunicação instantânea.” (GOMES, 2018, p. 46).
Essas conexões se consolidaram, ainda segundo Gomes, na primeira metade dos anos 2000, resultando “na internet de relacionamentos, de compartilhamento e de mídias sociais” (GOMES, 2018, p. 46): o Orkut é de 2004, o Youtube, de 2005, e o Twitter e Facebook (na sua versão aberta para todos) são de 2006.
Com isso, os ambientes digitais passaram a desempenhar funções de referência em diferentes dimensões da vida pública ou privada, interferindo nas nossas disposições intelectuais e políticas, em nossos afetos ou mesmo na construção de nossa identidade (GOMES, 2018, p. 81). Isso porque a mutação nas tecnologias comunicacionais e nas dinâmicas sociais impactou os ecossistemas de mídia. Há alguns anos, os fluxos de informação eram organizados de forma razoavelmente estável, tendo bem delineados (e separados) os espaços de entretenimento, notícia, publicidade, educação, sociabilização, etc.
Com o avanço do meio digital, essas esferas se interpenetram ou até mesmo se fundem no sistema híbrido da mídia, moldado por aquilo que Andrew Chadwick chamou de “forças complexas e multifacetadas” (CHADWICK, 2013, p. 18), sendo este, inclusive, um dos motivos para que espaços informais de educação e de exercício da política tenham conquistado maior atenção dos pesquisadores. Para Chadwick, tais forças têm sido capazes de remodelar os ambientes de comunicação política das democracias ocidentais.
O mais interessante na visão do autor é que ele não investe na ideia de uma ruptura entre antigas e novas mídias, mas na continuidade da relação entre comunicação e política, o que, em alguma medida, assemelha-se à posição defendida por Jenkins que há pouco citei. Assim, se pensarmos as transições no âmbito midiático entremeadas por seus contextos políticos, tais arranjos podem ser “reconhecíveis por sua linhagem”, embora sejam ao mesmo tempo “genuinamente novos” (CHADWICK, 2013, p.14). Ou seja, é possível que a evolução tecnológica se preste antes à manutenção da ordem social do que à sua subversão.
Talvez um bom exemplo disso seja a observação de Christian Fuchs de que, em plataformas como Twitter ou Facebook, não existe efetivamente paridade nas comunicações. Segundo Fuchs, aqueles que já detinham o controle da cena política, social ou cultural para além da internet tendem a conquistar mais visualizações, cliques, amigos e conexões – em suma, no mundo digital, tendem a manter estruturas de poder similares. Em suas palavras: “alguns – especialmente grandes empresas, atores políticos estabelecidos e celebridades – são ‘mais iguais’ do que os outros, têm mais visualizações, cliques, amigos, conexões, que refletem as reais desigualdades de poder da sociedade” (FUCHS, 2014, p. 86).
Por algum tempo, em especial quando começou a se tornar acessível ao público em geral, a internet foi tida como uma promessa de democratização dos saberes, do debate público e, portanto, da política. Hoje, com algumas ilusões perdidas, compreendemos a complexidade dos arranjos de poder no ambiente online, devido, principalmente, à plataforma técnica sob a qual operam nossas interações, e cuja lógica é estabelecida, em grande medida, por algumas poucas empresas.
Isso não significa, no entanto, que a sociedade em rede e seus dispositivos não tenham, de fato, um potencial emancipador a ser explorado – e é esse horizonte que nos leva ao letramento memeático.
O letramento memeático
Para Wilson Gomes, há, pelo menos, dois tipos de iniciativas democraticamente relevantes no campo das comunicações digitais. O primeiro orienta os cidadãos em sua participação política, aparelhando-os para um envolvimento posterior (que pode, inclusive, ser decorrente das informações aqui obtidas). Gomes cita como exemplo de ações do primeiro tipo acompanhar o noticiário, blogs ou vídeos de política no YouTube. Já o segundo tipo de iniciativa consiste na participação estrita, como “fazer campanha online, escrever petições eletrônicas, manifestar-se no fórum eletrônico ou numa consulta orçamentária digital e postar vídeos políticos” (GOMES, 2017, p. 35).
O que nos interessa particularmente na fala de Gomes é sua percepção de que iniciativas do primeiro tipo favorecem tanto a ação política quando as do segundo. Primeiro, porque qualificam a participação quando esta vier a ocorrer, e ainda, por orientar a escolha de quais modalidades de atuação podem ser mais benéficas para cada um de nós e para a coletividade em que nos inserimos.
Não é difícil constatarmos que, embora haja uma série de oportunidades de inserção política, tendemos a alguns poucos meios, com lógicas bastante similares. O mais comum é nos informarmos a partir de grandes portais ou mesmo por notícias e textos compartilhados nas redes sociais e em aplicativos de mensagem instantânea; assistirmos vídeos, produzirmos conteúdo e nos relacionamos com outras pessoas em ambientes como YouTube, TikTok, Facebook, Instagram, Twitter, Whatsapp, Messenger e Telegram, dentre alguns outros.
Whitney Phillips (2020, b) constata que tais interações se dão em redes construídas para maximizar o compartilhamento, os lucros e a “tirania de quem fala mais alto”. Presos em círculos de amplificação, não raro tornamo-nos reféns de uma lógica da intensidade, facilmente monetizada pelo mercado. A teoria de Phillips é de que precisamos recuar em nossa atuação online e pensar estrategicamente, já que o modo como a web se constitui nos impele a agir de formas que não nos beneficiam, nem à democracia.
Ela ilustra sua hipótese ao demonstrar como somos empurrados para comportamentos raivosos – que acabam por gerar mais engajamento, visibilidade e, por consequência, relevância. Ao observar algumas das forças que perpassam as interações online, Phillips sublinha um padrão de estímulo à agressividade que vai desde a comoditização de dados (transformando as comunidades e seus engajamentos em mercados) à nossa restrição a recursos como o compartilhamento, que fragmentam a experiência de debate.
O mesmo se aplica ao uso do humor e dos memes na internet. Embora o Brasil seja o país onde the zuera never ends, cada vez mais o riso se presta a dar suporte a discursos extremistas ou antidemocráticos. Assim, em que pese toda a familiaridade do brasileiro com piadas e brincadeiras, muitos ignoram a complexidade de suas camadas de significado, endossando de forma acrítica posicionamentos profundamente problemáticos, como nos mostra Viktor Chagas (2020, b), em ensaio recente.
Conforme debatido aqui anteriormente, setores reacionários de nossa sociedade têm-se utilizado de piadas para normalizar ataques a minorias e a inimigos políticos. As investigações em torno do chamado gabinete do ódio apontam para a apropriação da trolagem pelo próprio governo, numa extensa rede de desinformação, que se vale da ambiguidade do riso para desestabilizar seus oponentes.
Com vistas a desmistificar essas brincadeiras ardilosas, Chagas analisa em dois níveis a desinformação que usa o humor como suporte: a partir de seu grau de facticidade ou de sua intenção maliciosa. Proponho pegar esse gancho para retomar minha hipótese inicial de que é absolutamente necessário estendermos a deliberação a espaços de informalidade, já que uma das maiores características da esfera pública tradicional – almejar a ação de forma intencional – pode ser facilmente constatada até mesmo na zoeira de internet.
Não é exatamente nova a ideia de que rumores e fofocas, em geral, vinculados à vida privada, incidem na coletividade. Robert Elias (2000) explorou os meios pelos quais simples mexericos influenciavam na autoimagem e na hierarquização das classes operárias inglesas na década de 1950; Robert Darnton (2012) foi além com a hipótese de que libelos foram determinantes para o clima político que culminou na Revolução Francesa. Isso para citar apenas dois dentre vários autores.
Talvez a internet tenha apenas tornado mais tênues as fronteiras entre esfera pública e privada; intimidade e publicidade; brincadeiras e assuntos sérios. Por esse motivo, é tão necessário hoje investirmos em espaços de afinidade que, nas palavras de Michele Knobel e Colin Lakshear (2020, p. 97), “consubstanciam participação, colaboração, distribuição e difusão de expertise, e relacionamentos”.
Se os espaços de afinidade se prestam à deliberação, é importante que também sejam pensados como espaços de letramento. Knobel e Lakshear (2020, p. 113) afirmam que os conceitos mais usuais de letramento digital se relacionam a competências técnicas de informática ou à capacidade de checar informações, avaliar a qualidade de um texto e a relevância de um autor, etc.
Contudo, ainda segundo os autores, quando se pensa o letramento apenas em termos da utilidade dos conteúdos, ignora-se uma série de relações sociais implicadas ao se compartilhar ideias. Ao mesmo tempo em que difunde uma piada, por exemplo, o indivíduo apropria-se dela por meio da remixagem, refinamento ou de sua mera aplicação a contextos específicos. É por esse motivo que os memes são tão relevantes para a cultura e para a criatividade. Assim, Knobel e Lakshear apontam a memealização como prática de letramento, valorizando-se iniciativas que envolvam “gerar, proliferar, e desfrutar de memes que circulam na mídia como parte de uma atividade que pressupõe o envolvimento com outros em torno de interesses compartilhados e modos de ser no mundo” (KNOBEL; LAKSHEAR, 2020, p. 97).
Embora o foco do letramento sempre recaia no indivíduo a ser letrado, Knobel e Lakshear sugerem uma distinção entre duas dimensões, uma mais individual (letramento) e outra mais coletiva (Letramento). A primeira dimensão referir-se-ia a processos materiais específicos implicados nas conexões entre ideias, a partir do uso de palavras e símbolos (como escrever, escutar, manipular imagens, etc). Já a segunda concerniria ao reconhecimento de um “padrão maior de ser/estar no mundo” (KNOBEL; LAKSHEAR, 2020, p. 111).
Essa tensão permanente entre realidades particulares e contextos mais amplos aparece igualmente no trabalho de Phillips. Segundo a autora, é necessário um zoom out para que se dê conta da complexidade das cosmologias locais – conceito de Jeffrey Tolbert que expressa nossa experiência subjetiva de existir no aqui, ainda que premidos por forças, grupos e pessoas frequentemente invisíveis (TOLBERT; RUPERT, 2019, p.1).
O letramento memeático que ora proponho constitui-se justamente a partir dessa tensão. Importa-me especialmente a compreensão dos memes como fórmulas discursivas ou artefatos culturais “capazes de despertar ou demonstrar o engajamento político do sujeito ou ainda socializá-lo com o debate público, através de uma linguagem metafórica e orientada à construção de um enredo ou enquadramento próprios” (CHAGAS, 2018, p. 14). Por fim, ressalto que o objetivo desse letramento é contribuir para que se equilibre o potencial antipolítico dos memes (entendendo-se antipolítica como uma força desestabilizadora das instituições e processos democráticos) com seu forte apelo à deliberação.
Resultados e considerações finais
Em 2019, dei início, no IFRJ campus Niterói, a um projeto de pesquisa denominado Da piada à política: um estudo dos memes mais populares da internet. Com três alunos bolsistas dos cursos de Ensino Médio Técnico em Administração e em Informática, meu intuito era promover seu letramento midiático a partir do estudo de memes relevantes, utilizando ferramentas de análise do discurso.
Embora, a princípio, a empreitada tivesse me parecido relativamente simples, sua execução logo se provou complexa. Como elegeríamos os memes mais populares da internet de uma perspectiva que não fosse meramente subjetiva? E qual seria a plataforma mais relevante para esse fim? Como lidaríamos com as interações às piadas? Após uma breve pesquisa exploratória, tínhamos dúvidas até mesmo sobre o que era um meme.
Foi neste momento me aproximei do Laboratório de Pesquisa em Comunicação, Culturas Políticas e Economia da Colaboração (coLAB) e do #MUSEUdeMEMES, ambos iniciativas da UFF, coordenadas por Viktor Chagas. Minha participação no grupo durante um estágio pós-doutoral foi determinante para definir os rumos do projeto que eu já executava no IFRJ.
Em primeiro lugar, é preciso falar um pouco sobre o #MUSEUdeMEMES. Wilson Gomes defende que o primeiro aspecto a ser considerado na esfera da participação política “são iniciativas com alto teor democrático, socialmente interessantes, tecnologicamente bem resolvidas e atraentes do ponto de vista do design” (GOMES, 2017, p. 26). Estas foram características que identifiquei no webmuseu e que busquei imprimir às minhas investidas posteriores.
Figura 1 – #MUSEUdeMEMES (página inicial)
Fonte: www.museudememes.com.br
Segundo seu criador, Viktor Chagas, o #MUSEUdeMEMES tem a função de preservar a memória dos memes, disponibilizando seu acervo ao público. Ao mesmo tempo, o museu é ele próprio uma brincadeira, com o objetivo de estimular a reflexão e disseminar questionamentos (CHAGAS, 2019, p. 6). Assim, se somos frequentemente levados ao riso nesse espaço, aqui também os memes são ressignificados como vetores de memória, com múltiplas camadas de sentido para serem interpretadas.
Embora seja um espaço de curadoria e exposição, o #MUSEUdeMEMES não simula a experiência de um museu físico, mas investe nas peculiaridades de seu meio de comunicação, ou seja, a internet. A ideia é que se estimulem mecanismos de associação e agregação, de forma que o visitante se aproprie do espaço tendo em vista suas próprias referências, fazendo com que o museu passe a fazer parte da cosmologia local daquele indivíduo.
Dentre algumas das atividades do grupo vinculado ao museu estão: a construção de um acervo de memes relevantes no contexto brasileiro; a organização de referências sobre o tema; e a realização de eventos, com o propósito de estimular um debate mais qualificado sobre o universo memístico (os mais recorrentes são os #MEMECLUBES, seminários temáticos, que debatem uma determinada pauta a partir dos memes difundidos sobre o assunto). Falarei aqui mais especificamente sobre o acervo, pois foi esta iniciativa que inspirou os desdobramentos do meu próprio projeto.
Figura 2 – #MUSEUdeMEMES (#MEMECLUBE)
Fonte: www.museudememes.com.br/mediakit/
O acervo conta com várias famílias de memes, que contribuem para mapear diferentes conteúdos. Em vez de trabalhar em torno de um único meme, os pesquisadores documentam um grupo de peças que trazem variações da mesma piada. O resultado é a produção de um verbete que conta a história de vida daquela narrativa: sua origem, difusão, formato e exemplos notáveis.
Figura 3 – #MUSEUdeMEMES (acervo)
Fonte: www.museudememes.com.br/acervo/
Com o meu ingresso no CoLAB, os bolsistas do projeto Da piada à política tornaram-se curadores do #MUSEU, criando periodicamente verbetes para famílias de memes, determinadas por estudantes de mestrado e doutorado da UFF, também vinculados ao grupo. Posso dizer que – embora tivéssemos tido um percurso teórico prévio do início do projeto até aquele ponto – os alunos (que, afinal, eram jovens ainda no Ensino Médio) me surpreenderam com a qualidade da pesquisa e do texto desenvolvidos. Logo compreenderam também o funcionamento do site e a dinâmica de postagem. E o mais interessante: demonstraram um orgulho autoral daquilo que produziram.
Sem que houvesse qualquer demanda nesse sentido, meus bolsistas divulgaram o acervo e o museu entre os amigos e em outros projetos nos quais estavam envolvidos. O resultado foi que seus verbetes geraram um nível de engajamento mais alto que a média. Também pude observar que, a partir do trabalho de curadoria, os alunos assimilaram melhor as questões anteriormente trabalhadas a partir de uma perspectiva teórica. Em seminários acadêmicos, passaram a demonstrar maior segurança na exposição de conceitos e em análises contextuais.
Ministramos três Oficinas de Letramento Memeático para os seguintes públicos:
· Projeto #Tamo Junto 9º ano, com alunos da rede pública estadual, tendo como resultado a produção de memes pelos inscritos como forma de expressão política;
· Grupo de pesquisadores do Literatro (IFRJ): apresentação de conceitos e análise conjuntural de memes com professores e alunos do IFRJ e da UFF;
· Grupo de pesquisadores do projeto Museus e Escolas (IFRJ): apresentação de conceitos, análise conjuntural e parceria na estruturação da exposição Você gosta de memes? Conte-me mais sobre isso..., no espaço físico do IFRJ campus Niterói.
Figura 4 – Oficina de Letramento Memeático
Fonte: Laboratório de Cultura Digital
A exposição supramencionada foi planejada como culminância do primeiro ano de projeto. A curadoria será feita a partir do diálogo com alunos, servidores e egressos do campus. Um formulário foi disponibilizado questionando quais seriam seus memes favoritos, para que posteriormente a história destes seja contada pelo Laboratório de Cultura Digital.
A partir da consulta, escolhemos 30 memes, que serão expostos junto com seus respectivos verbetes, o nome da pessoa que os escolheu e por quê. Desta forma, o evento poderá gerar vínculos de afinidade com a comunidade do IFRJ, engajando, especialmente, todos os que fizeram parte do processo de escolha.
Também é importante dizer que o evento será parte das dependências da escola, enquanto estiver em vigor. Serão adesivadas paredes, portas e tetos de espaços de grande circulação no campus. Nosso acervo contará com peças do #MUSEUdeMEMES (quando a escolha coincidir com verbetes já disponíveis no site) e com outras produzidas pela nossa equipe. Esperamos, com isso, promover um amplo debate sobre as articulações entre participação política e humor.
A ideia é, assim como o webmuseu, promover a reflexão sobre a construção de sentidos por meio do humor, e brincar com seus visitantes a partir da própria disposição das peças. Além dos memes, que são objetos divertidos por si só, a exposição ocupará espaços irreverentes, como as portas internas dos banheiros. Além disso, haverá dois displays com 1,40 m de altura por 0,90 m de largura, com os memes da grávida de Taubaté e da nota de R$ 200, para que os visitantes possam colocar seus rostos como parte do meme.
Figura 5 – Display da exposição Você gosta de memes? Conte-me mais sobre isso...
Fonte: Laboratório de Cultura Digital
Infelizmente, a exposição precisou ser adiada devido ao isolamento social imposto pela pandemia de Covid-19 e será realizada na ocasião do retorno presencial das aulas. Como solução provisória, realizamos a exposição virtual Memes na pandemia: rindo de nervoso, na plataforma Artsteps. Sua proposta consistiu na análise de alguns dos principais eventos ocorridos durante a pandemia, expressos a partir de famílias de memes.
Figura 6 – Exposição Memes na pandemia: rindo de nervoso
Fonte: https://www.artsteps.com/view/60195f23941a925b5c3d6a26
Para concluir este artigo, recorro novamente a Habermas, que prioriza um uso da linguagem que performatiza a ação comunicativa (cuja finalidade é o entendimento) em detrimento da ação estratégica (que visa ao convencimento para fins privados). Em suas palavras: “O formato das condições requeridas para a racionalidade das ações de fala bem-sucedidas não é o mesmo das condições para o sucesso da racionalidade da atividade que visa fins” (HABERMAS, 1990, p. 70).
Com essa frase, acredito poder justificar por que, face ao programa de esclarecimento que critiquei no início do artigo, escolho ainda um caminho que investe no uso da razão e no poder da crítica como fundamento da esfera pública – compreendendo, claro, não ser a racionalidade autossuficiente nesse processo. Como disse anteriormente, ao propor o projeto Da piada à política, tinha como intenção primeira o letramento de jovens em novas modalidades textuais. No entanto, minha concepção inicial de letramento punha foco no indivíduo – como um vazio a ser preenchido – e não na linguagem (nesse caso, memética), e nas condições necessárias para que ela se constitua também como locus de discussão.
Assim como indica Chagas, não devemos negligenciar os usos do meme que contribuam para “simplificar e tornar rasas as percepções sobre a realidade.” (CHAGAS, 2018, p. 14). Por outro lado, é preciso admitir que tal dispositivo amplia “o debate a camadas que habitualmente se mantinham apartadas da política.” (CHAGAS, 2018, p. 14).
Assim, ao reconhecermos as redes como espaços legítimos (ou ao menos consolidados) de discussão pública, somos levados a reavaliar a ideia mais ou menos difundida de que o brasileiro não se interessa por política – e nosso incômodo com amigos e familiares no Facebook é um exemplo acabado disso. Gostemos ou não, o fato é que o meme tornou-se uma forma de participação, e as plataformas ou aplicativos de interação social, seu meio por excelência.
O caminho que ora afirmo é o de abraçar esses artefatos como elementos de uma esfera que hoje se presta, dentre outros usos, à deliberação política. Sendo assim, devemos contribuir para que haja condições de diálogo nesse mesmo universo, construindo espaços normatizados de debate, memória, pesquisa, criação ou difusão da informação – tal como faz o #MUSEUdeMEMES e como tenho buscado fazer na minha própria experiência como pesquisadora. Talvez seja esta a forma mais eficaz de letramento memeático, já que habilita essa fórmula discursiva, em vez de renegá-la. Afinal, como já diria o slogan do #MUSEU: “Nós amamos os memes e vamos protegê-los”.
Referências
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