Constituição da Identidade Profissional Docente
Constitution of the Identity Teaching Professional
Constitución de la identidad profesional docente
Antonia Zulmira Silva
Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, São Paulo, Brasil
profantoniazs@gmail.com - https://orcid.org/0000-0003-1274-3648
Maria Lourdes Ramos da Silva
Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil
mlramos@usp.br - https://orcid.org/0000-0003-3456-3218
Recebido em 31 de maio de 2021
Aprovado em 22 de junho de 2021
Publicado em 30 de setembro de 2022
RESUMO
Neste artigo apresenta-se um recorte da pesquisa que investiga os processos identitários de professores da Educação Básica da rede pública Estadual de São Paulo. O desenvolvimento da pesquisa possibilitou a discussão sobre a constituição da identidade profissional docente, juntamente com um quadro teórico da temática. Assim, o propósito deste artigo é apresentar as percepções dos professores em relação à docência e compreender como ocorre o processo da constituição da identidade profissional, a partir das narrativas dos professores, assim como dos quadros teóricos. A investigação se deu a partir da abordagem qualitativa, como procedimento central de investigação, foram realizados questionários e entrevistas aplicados aos sujeitos da pesquisa, professores. Para análise teórica utilizou-se o método de análise de conteúdo. Com as análises dos dados coletados, pode-se dizer que a identidade docente se dá num processo vivo e evolutivo, que pode ser influenciado por fatores internos e externos, bem como pelas relações no contexto profissional, podendo ser mais ou menos duráveis, dependendo das circunstâncias nos diferentes momentos e contextos.
Palavras-chave: Identidade Profissional; Docentes; Processos Identitários.
ABSTRACT
The present paper shows a cutout of the research that investigates the processes of identity of Elementary School teachers of São Paulo state public school network. The development of the research promoted a discussion on the constitution of teaching professional identity, along with a theoretical framework on the topic. Therefore, the purpose of the present paper is to present the teachers’ perceptions regarding teaching and to understand how the process of constitution of professional identity occurs, based on the teachers’ statements and theoretical frameworks. The investigation has a qualitative approach; as the main procedure of the investigation, questionnaires and interviews were conducted with the research subjects, the teachers. For theoretical analysis, the method of content analysis was developed. From the analyses of collected data, we may infer that teaching identity develops through a lively and evolving process that can be influenced by internal and external factors, as well as by the relationships in professional context, which can be long or short depending on the circumstances of different moments and contexts.
Keywords: Professional Identity; Teachers; Processes of Identity.
RESUMEN
En este artículo se presenta una síntesis de la investigación que sondea los procesos de identidad de los docentes de Educación Básica en la red pública del Estado de São Paulo. El desarrollo de la investigación permitió discutir la constitución de la identidad profesional docente, junto con un marco teórico del tema. Así, el propósito de este artículo es presentar las percepciones de los maestros en relación a la docencia y comprender cómo se da el proceso de constitución de la identidad profesional, a partir de las narrativas de los docentes, así como los marcos teóricos. La investigación se desarrolló desde el enfoque cualitativo, como procedimiento central de investigación, se aplicaron cuestionarios y entrevistas a los sujetos de investigación, docentes. Para el análisis teórico se utilizó el método de análisis de contenido. Con el análisis de los datos recolectados, se puede decir que la identidad docente se da en un proceso vivo y evolutivo, el cual puede estar influenciado por factores internos y externos, así como por las relaciones en el contexto profesional, y puede ser más o menos duradero, dependiendo de las circunstancias en diferentes momentos y contextos.
Palabras clave: Identidad profesional; Maestros; Procesos de identidad.
Introdução
As discussões apresentadas neste texto provêm, originalmente, do desenvolvimento da pesquisa junto a professores da Educação Básica da rede pública estadual de São Paulo (SILVA, 2020). O desenvolvimento da pesquisa possibilitou a discussão sobre a constituição da identidade profissional docente com base em pesquisadores que estudam a temática.
Sabemos que a identidade docente tem passado por inúmeras transformações sociais, marcadas essencialmente pela transição de uma sociedade industrial para outra pós-industrial, exigindo do sujeito pós-moderno uma maior reflexão sobre a organização social do trabalho, tais como novas competências na formação e no desenvolvimento profissional, exigindo a construção e reconstrução de uma formação identitária dos sujeitos contemporâneos para atuar como docente.
A identidade pressupõe sempre o “entrelaçamento de dois aspectos indissociáveis: o individual e o social, pois sempre que nos questionamos sobre nós mesmos e como os outros nos percebem, esbarramos necessariamente em nossas identidades”. Assim, a construção da identidade pode ser estudada de diversas formas, em termos de continuidade e/ou em termos de ruptura (SILVA, 2009, p.47).
Essa visão é intrigante pelo seu caráter de inconstância e, por outro lado, é positiva, porque permite desestabilizar a identidade do passado e desenvolver nova identidade para um mesmo sujeito ou para um grupo de profissionais (HALL, 2011).
Nessa perspectiva, a identidade profissional se relaciona com o processo de socialização na profissão, por meio do qual o indivíduo assume papéis, valores e normas do grupo profissional ao qual pertence. Nesse sentido, Guimarães (2005) afirma que “a identidade profissional do professor tem sido referida predominantemente à maneira como a profissão docente é representada, construída e mantida socialmente”. O autor ressalta, ainda, que a identidade profissional que os professores constroem e o modo como a profissão é representada estão intimamente ligados. Logo, “as características que a profissão docente foi adquirindo historicamente e as formas objetivas que contribuíram para que essas características se formassem são interdependentes” (GUIMARÃES, 2005, p. 59).
Ressaltamos que toda a discussão aqui apresentada tem como base a pesquisa sobre a construção da identidade profissional docente (SILVA, 2020), mas neste artigo será tratado um recorte referente a identidade profissional docente, com o objetivo de apresentar as percepções dos professores em relação à docência e compreender como ocorre o processo da constituição da identidade profissional, a partir das narrativas dos professores, assim como dos quadros teóricos.
A constituição da identidade
Falar sobre identidade não é simples, pois não há uma única definição do conceito entre as diferentes áreas de conhecimento, tais como Filosofia, Sociologia, Educação e Psicologia. Entretanto, as diferentes áreas apontam singularidades epistemológicas em seus estudos, sendo possível identificar elementos correlatos a respeito dessa temática, que podem ser analisados a partir de dois posicionamentos teóricos, a concepção essencialista e a não essencialista da identidade.
Enquanto o essencialismo requer a existência de uma essência, de um núcleo fixo e imutável, o qual se mantém inegociável ao logo do tempo, no posicionamento não essencialista, a identidade não se concebe como uma essência única que se mantém sólida durante toda a trajetória de vida de cada sujeito. As características fundamentais desse posicionamento se dão “por meio dos significados produzidos pelas representações que dão sentido à nossa experiência e àquilo que somos” e a identidade passa a ser definida biologicamente, mas sim historicamente, por meio do discurso.. (WOODWARD, 2006, p.17)
A respeito desse assunto, Dubar (2009) esclarece que o posicionamento “essencialista” pressupõe essências que garantem a permanência dos seres de maneira definitiva, de modo que a identidade é o que faz com que “permaneçam idênticos, no tempo, à sua essência”. Já no posicionamento não essencialista, “não há essência eterna e tudo está submetido à mudança.” (DUBAR, 2009, p. 13-14). Desse modo, a identidade de qualquer sujeito depende da época considerada, do contexto e do ponto de vista adotado.
Na atualidade, o posicionamento da identidade como essencialista é visto como um fardo que ninguém quer carregar, pois, em tempos modernos, as identidades não são mais estruturas primordiais que determinam as nossas vidas, mas sim uma tarefa em constante construção, a ser escolhida entre diversas alternativas. Nesse sentido, a mudança é um fator fundamental para a constituição das identidades dos sujeitos em tempos contemporâneos (BAUMAN, 2005).
Conforme Hall (2011), no posicionamento não essencialista, os sujeitos vivem em constante transformação. Assim, o “eu” real passa por mudanças sociais e/ou adaptações estruturais e institucionais. Portanto, as mudanças ocorridas nas relações pessoais e sociais são elementos que contribuem para a constituição da identidade. Segundo esse ponto de vista,
[...] as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno. A assim chamada “crise de identidade” é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social. (HALL, 2011, p. 7)
Em meados do século XX, os sujeitos passaram por rupturas, gerando o “descentramento”, no período denominado modernidade tardia. Para Hall (2011), esses sujeitos possuem características de um ser inacabado, contraditório e com fronteiras inconclusas.
Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a ideia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta perda de “sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. (HALL, 2011, p. 9)
Nessa perspectiva, as identidades que habitam o sujeito moderno são atravessadas por diferentes divisões e contradições sociais, produzindo uma grande variedade de “proposições de sujeitos”, gerando, assim, uma gama de identidades. Por essa razão, Stuart Hall (2011) descreve que elas estão sendo continuamente deslocadas para uma convivência/adaptação ao meio em que vivem, isto é, a sociedade. É uma concepção complexa em relação ao sujeito, pois as identidades estáveis (do passado) são desarticuladas para a criação de novas identidades.
Para Bauman (2005), a modernidade oferece infinitas possibilidades de escolha, e são essas escolhas que caracterizam as identidades dos sujeitos. De acordo com o autor, “uma identidade coesa, firmemente fixada e solidificada, construída seria um fardo, uma pressão, uma limitação da liberdade de escolha”. Assim, a instabilidade é uma característica da sociedade atual, favorecendo as múltiplas identidades de acordo com as situações vividas pelos sujeitos (BAUMAN, 2005, p.60).
Há também três elementos que estão sempre presentes ao se discutir a temática, sendo estes “a existência de um sujeito que se conserva no tempo [...]; a noção de uma unidade, que estabelece os limites para a distinção entre um sujeito e outro; a relação entre dois elementos, que permite o seu reconhecimento como idênticos” (MELUCCI, 2004, p. 44).
Nesse sentido, podemos refletir sobre identidade a propósito de um indivíduo ou de um grupo, entretanto, sempre aludindo às características de continuidade do sujeito, à delimitação desse sujeito e à capacidade de se reconhecer e de ser reconhecido em um determinado contexto (MELUCCI, 2004).
Certamente, a identidade é um dos temas importantes deste século, para tentarmos compreender não somente a história de vida dos sujeitos, mas também seus processos identitários, uma vez que estes são influenciados pelos meios sociais, culturais e políticos, especialmente, em tempos modernos, pelos papéis que os indivíduos assumem, tanto biográficos como sociais e/ou profissionais.
A constituição da identidade profissional
Até o momento, pudemos verificar que cada sujeito pertence a uma pluralidade de grupos, gerando múltiplos papéis sociais que fazem parte dos relacionamentos que desenvolve ao longo da vida, de maneira que cada “eu” se torna múltiplo. Portanto, a identidade pessoal se insere em uma complexidade, dada a particularidade das experiências vivenciadas ao longo da vida. Por essa razão, podemos reconhecer múltiplas identidades que nos atravessam, como, por exemplo, a pessoal, a social e a profissional (MELUCCI, 2004).
Para Dubar, a identidade pode ser compreendida como o “resultado a um só tempo estável e provisório, individual e coletivo, subjetivo e objetivo, biográfico e estrutural dos diversos processos de socialização que, conjuntamente, constroem os indivíduos e definem as instituições”, sempre articulada às múltiplas relações da vida, que são complementares ou, até mesmo, contraditórias. (DUBAR, 2005, p. 136).
De acordo com o autor, é pela socialização no trabalho que se configuram as identidades profissionais. O autor parte da dualidade entre a socialização primária e a socialização secundária para explicar a socialização no trabalho. A socialização primária é marcada pelo papel exercido pela família, pais/responsáveis e outras pessoas significativas para a construção da realidade na qual se encontra o sujeito e, assim, para a aquisição de seus primeiros valores sociais. Já a socialização secundária é a integração de saberes especializados/profissionais de um determinado campo específico; pode ser uma continuação da socialização primária ou uma ruptura.
Nessa perspectiva, os argumentos de Dubar a respeito da identidade profissional ocorrem a partir da socialização, entendendo que:
Se a socialização já não é definida como “desenvolvimento da criança”, nem como “aprendizado da cultura” ou “incorporação de um habitus”, mas como “construção de um mundo vivido”, então esse mundo também pode ser desconstruído e reconstruído ao longo da existência. A socialização se torna um processo de construção, desconstrução e reconstrução de identidades ligadas às diversas esferas de atividade (principalmente profissional) que cada um encontra durante sua vida e das quais deve aprender a tornar-se ator. (DUBAR, 2005, p. 17)
Dessa forma, a identidade é um fenômeno resultante da dialética entre o sujeito e a sociedade por meio das relações estabelecidas, e estas são constituídas por meio dos processos biográficos e/ou relacionais. O processo biográfico é como o sujeito se declara, o que pensa ser, ou seja, é a identidade para si. Já o processo relacional é como o outro pensa quem sou, isto é, a identidade que o outro atribui a um sujeito.
Isso nos leva a observar que o processo identitário profissional se dá pela relação entre a identidade para si e a identidade para o outro; as “configurações identitárias constituem, então, formas relativamente estáveis, mas sempre evolutivas, de compromisso entre os resultados dessas duas transações diversamente articuladas” (DUBAR, 2005, p.141).
As transações são definidas como externas (objetivas) quando ocorrem “entre o indivíduo e outros significados, visando acomodar a identidade para si à identidade para o outro”, enquanto as internas (subjetivas) advêm do “indivíduo, entre a necessidade de salvaguardar uma parte de suas identificações anteriores (identidades herdadas) e o desejo de construir para si novas identidades no futuro, com vistas a tentar assimilar a identidade para-o-outro à identidade-para-si” (DUBAR, 2005, p.140).
São nessas interações, chamadas de transações, que a identidade para si e a identidade para o outro se estabelecem, inseparáveis pela equivalência da identidade para si à do outro e de seu reconhecimento. Dessa maneira, o processo de construção da identidade social (identidade individual e coletiva) está relacionado à articulação da transação subjetiva, pois esta depende, de fato, das relações para com o outro, que são constitutivas da transação objetiva (DUBAR, 2005).
A constituição da Identidade Profissional Docente
No contexto atual, a profissão docente passa pelo reconhecimento do conjunto de características do ato de ensinar, admitindo que “não é possível separar o eu pessoal (individual) do eu profissional (nós coletivos), sobretudo, numa profissão fortemente impregnada de valores e de ideias e muito exigente do ponto de vista do empenho e da relação” entre seres humanos, consequentemente, requer firmeza e coerência entre discurso e ação (NÓVOA, 1995, p. 19).
A profissão docente precisa ser vivida pelos atores que escolheram representar esse papel, assumindo todas as dimensões do trabalho que se inicia na escolha da profissão, visto que a educação é um campo atravessado por diversos desafios, tanto no aspecto macro (políticas) como no micro (ações, decisões, posicionamentos cotidianos no espaço escolar). Assim, a profissão docente comporta “uma dimensão coletiva, que é parte integrante de uma profissão, e uma dimensão individual, ligada ao modo como cada docente se prepara e se coloca face a ela, a prática, partilha cultura do grupo e constrói a sua identidade profissional” (ESTRELA, 2014, p.11).
Também é possível inferir que as diversas imagens da profissão docente estão ancoradas na socialização primária e na socialização escolar do professor, pois quando solicitado para:
[...] evocar qualidades desejáveis ou indesejáveis que quer encarnar ou evitar como professor, ele lembrar-se-á da personalidade marcante de uma professora do quinto ano, de uma injustiça pessoal vivida na pré-escola ou das intermináveis equações impostas pelo professor de Química no fim do segundo grau. A temporalidade estruturou, portanto, a memorização de experiências educativas marcantes para a construção do Eu profissional. (TARDIF, 2010, p. 67)
Na construção do eu profissional, o sujeito, a partir das memórias de suas socializações, pode se identificar ou não, de modo a tentar reproduzir ou não as experiências vividas. Por essa razão, “a identificação de e pelo outro” varia e depende de seu contexto de definição que fomenta a imagem que o professor tem de si mesmo e o que ele pensa que os outros pensam a seu respeito. Esse movimento é um princípio da transação fundamental nas configurações identitárias, uma vez que não há identidade sem alteridade (DUBAR, 2009, p.13).
Considerando os processos relacional e biográfico que ocorrem na constituição da identidade, esses perpassam o espaço e o tempo e supõem a “definição do conceito de identidade não como algo estável e acabado, mas como processo dinâmico que envolve, individualmente e coletivamente, os actores e os seus contextos de acção” (FERREIRA, 1996, p. 309).
Em relação à profissão docente,
[...] como cada um vive a profissão de professor é tão (ou mais) importante do que as técnicas que aplica ou os conhecimentos que transmite; os professores constroem a sua identidade por referência a saberes (práticos e teóricos), mas também por adesão a um conjunto de valores etc. Donde a afirmação radical que não há dois professores iguais e de que a identidade que cada um constrói como educador baseia-se num equilíbrio único entre as características pessoais e os percursos profissionais. (NÓVOA, 1997, p. 33)
Nessa perspectiva, a forma de estar na profissão é intrinsecamente ligada aos processos identitário dos professores. Para Nóvoa (1997, p. 34-35), esse processo passa por um “triplo AAA”, já que ser professor implica Adesão, Ação e Autoconsciência. Enquanto Adesão, implica sempre na adesão a princípios, valores e projetos, a Ação se define pelas escolhas no modo de agir e a Autonsciência se relaciona a processo de reflexão (NOVOA, 1997, p. 35).
Diante dos três AAA referenciados por Nóvoa, podemos dizer que a escolha profissional, a tomada de decisão em sala de aula e o ato de refletir sobre a prática pedagógica são fatores fundantes para a identidade profissional dos professores independentemente de segmento de ensino ou área de conhecimento. Assim, para o autor, a identidade docente:
[...] é um lugar de lutas e de conflitos, é um espaço de construção de maneiras de ser e de estar na profissão. Por isso, é mais adequado falar em processo identitário, realçando a mescla dinâmica que caracteriza a maneira como cada um se sente e se diz professor. (NÓVOA, 1997, p.34)
O modo como cada um encara a profissão docente faz toda a diferença na forma de conviver e agir no espaço institucional (escolar), pois o trabalho constitui um espaço de negociação entre várias identidades, que dará origem a um coletivo, ou seja, à identidade profissional. Por sua vez, a identidade profissional resulta das relações e interações no ambiente de trabalho a partir das diferentes representações existentes nesse grupo (coletivo).
No campo da identidade docente, de acordo com Day et al. (2006):
Os professores definir-se-ão a si próprios não apenas através do seu passado e das suas identidades atuais, em função das histórias pessoais e sociais e dos papéis atuais, mas através das suas crenças e valores acerca do tipo de professor que aspiram ser, tendo em conta as inevitáveis mudanças a nível das circunstâncias políticas, sociais, institucionais e pessoais. (DAY et al., 2006, p. 610)
Dessa maneira, a identidade docente se dá num processo vivo e evolutivo, que pode ser influenciado por fatores internos e externos, bem como pelas relações no contexto profissional, podendo ser mais ou menos durável, dependendo das circunstâncias nos diferentes momentos e contextos. Ao ser um processo de construção dinâmica, a identidade docente é “um lugar de lutas e de conflitos, é um espaço de construção de maneiras de ser e de estar na profissão” (NÓVOA, 1995, p.16).
Assim, a identidade profissional
[...] Constrói-se, também, pelo significado que cada professor, enquanto actor e autor, confere à actividade docente no seu quotidiano a partir de seus valores, de seu modo de situar-se no mundo, de sua história de vida, de suas representações, de seus saberes, de suas angústias e anseios, do sentido que tem em sua vida o ser professor. (PIMENTA, 1999, p.19)
De acordo com Pimenta, a constituição da identidade profissional é um processo complexo, que envolve a apropriação do sentido da história pessoal e profissional do sujeito, no qual a maneira de "ser e estar na profissão não se dão sem lutas e conflitos". Dessa forma, é necessário “um tempo para refazer identidades, para acomodar inovações, para assimilar mudanças” (NÓVOA, 1995, p.16).
Por outro lado, a identidade docente não pode se perder numa diluição ou degradação das condições de vida e trabalho por meio de discursos que descaracterizam a profissão de professor, como é ressaltado por Nóvoa (2017) a seguir.
É certo que a profissão docente deve alargar-se a missões de gestão, de pesquisa, de animação, e de acção pública, mas a partir de um núcleo identitário docente, e não ao contrário, numa diluição da profissão numa miríade de ênfases ou perfis. (NÓVOA, 2017, p. 1112)
É imprescindível que a identidade profissional docente possua um quadro de referência com rumos claros sobre a formação inicial e a continuada para que os profissionais possam construir suas próprias ideias e compreensão a respeito de ‘como ser professor’, ‘como agir’ e ‘como compreender’ seu trabalho e o seu lugar na sociedade (FLORES, 2015).
À vista das observações anteriores, podemos dizer que “a identidade possui um núcleo que nos une a todos (os professores) e ao qual nos mantemos fiéis, apesar da mudança da sua significação ao longo do processo sócio/histórico” (LOPES, 2008, p.35).
Esse núcleo pode ser um quadro de referência da docência, que precisa trazer os aspectos funcionais da profissão bem como os seus objetivos e os marcos éticos, tendo em vista que o conjunto de profissionais partilharão um referencial comum, já que os sujeitos devem se apropriar dos valores enquanto elementos pertencentes a um grupo profissional específico, em que cada profissão é caracterizada por finalidades, crenças e valores singulares. Assim, a identidade docente resulta não só dos aspectos coletivos inerentes às instituições de ensino e aos processos de referência da formação inicial e continuada, mas, ao mesmo tempo, é produto das características individuais do sujeito e das vivências biográficas que o caracterizam como um ser singular.
Nessa perspectiva, a identidade do professor se constitui num processo de interações no contexto profissional, e nesse, há múltiplas identidades em uma profissão, sendo que essas se constituem como processo identitário, tendo em vista que “ninguém constrói a sua identidade profissional fora de um contexto organizacional e de um posicionamento no seio de um colectivo que lhe dê sentido e densidade” (NÓVOA, 2017, 1118).
Metodologia: Caminhos percorridos
O estudo que trata deste artigo aqui apresentado possuiu uma abordagem qualitativa, realizado com doze professores da educação básica da rede pública do estado de São Paulo. Os critérios para a seleção dos professores foram os seguintes: estar em efetivo exercício da docência e ter no mínimo cinco anos como professor titular de Matemática (SILVA, 2020).
Assim, a amostra foi composta por professores de Matemática que estão ativos no exercício da docência há mais de cinco anos. Esses responderam Questionário e Entrevista, os quais objetivaram levantar dados para a caracterização dos sujeitos e recolher dados que dificilmente poderiam ser investigados apropriadamente por questionário.
O questionário aplicado aos doscentes foi composto por duas partes. A primeira parte destinada à coleta dos dados de identificação e a segunda parte destinou-se ao conhecimento da formação acadêmica dos professores. Já a entrevista almejou levantar os dados e ampliar as informações para desenhar as possíveis categorias de análise de acordo com os referenciais teóricos. Vale salientar que as perguntas, tanto do questionário como do roteiro das entrevistas, podem ser consultadas na integra na pesquisa de Silva (2020).
Diante do exposto, cabe frisar que a entrevista utilizada foi a semiestruturada, em que o pesquisador elabora um roteiro sobre o tema que será levantado, porém permite que o entrevistado fale livremente sobre os assuntos que vão surgindo como desdobramento do tema principail.
Cabe ressaltar que a pesquisa de Silva (2020) foi submetido à apreciação do Comitê de Ética com Seres Humanos da Universidade de São Paulo (USP) e aprovado por meio de Certificado de Apresentação para Apreciação Ética - CAAE: nº.03465818,7,0000, 5561.
Os dados coletados por meio da aplicação dos questionários e das entrevistas, formaram o conjunto de observações proeminentes e forneceram subsídios na busca de respostas ao problema de pesquisa (SILVA, 2020), bem como a discussão aqui abordada sobre a constituição da identidade docente.
Para apoiar a organização das informações para análise, pautamo-nos na análise de conteúdo, que é “um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores [...] que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção [...] destas mensagens” (BARDIN, 2011, p.42).
Para Bardin (2011, p.45), o “analista é um arqueólogo, pois trabalha com os vestígios” deixados nos “documentos”. Nesse sentido, os documentos são as entrevistas semiestruturadas apoiadas nos “procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens”. Esses passaram pelas fases de pré-análise (organização e escolha dos documentos que iriam compor a análise), exploração do material (processo pelo qual os dados coletados foram sistematicamente tratados de modo a permitir a descrição pertinente das características das categorias de análise) e, por fim, da análise, que se deu por meio de tratamento das informações e suas descrições por meio de inferência e interpretação das mensagens coletadas pelos documentos.
Resultados e discussões dos dados coletados
Inicialmente apresentaremos a caracterização dos sujeitos da pesquisa
As informações decorrentes da aplicação do questionário aos professores possibilitaram a apresentação da caracterização dos sujeitos da pesquisa, conforme o exposto no Quadro 1, com a distribuição dos participantes por idade, gênero e tempo de docência, a seguir.
Quadro 1: Distribuição dos participantes por idade, gênero e tempo de docência
|
Participantes |
Idade |
Gênero |
Tempo de Docência |
|
P01 |
58 |
F |
35 |
|
P02 |
37 |
F |
16 |
|
P03 |
29 |
F |
10 |
|
P04 |
53 |
M |
21 |
|
P05 |
47 |
M |
25 |
|
P06 |
51 |
M |
30 |
|
P07 |
30 |
M |
8 |
|
P08 |
44 |
M |
19 |
|
P09 |
47 |
F |
25 |
|
P10 |
26 |
M |
7 |
|
P11 |
37 |
F |
8 |
|
P12 |
40 |
F |
20 |
Fonte: Silva (2020, p.97)
Outra caracterização dos participantes que importa evidenciar é a organização a partir do intervalo de tempo de docência, gênero e faixa etária. Dessa forma, podemos ver que são subgrupos bem heterogêneos, a partir dos intervalos de tempo de experiência como professor, conforme exposto no Quadro 2 a seguir.
Quadro 2: Disposição dos participantes por tempo de docência, gênero e faixa etária
|
Participantes |
Tempo de Docência |
Gênero |
Faixa etária |
|
P03 |
07 a 15 anos |
F |
21 a 30 |
|
P07 |
M |
21 a 30 |
|
|
P10 |
M |
21 a 30 |
|
|
P11 |
F |
31 a 40 |
|
|
P02 |
16 a 24 anos |
F |
31 a 40 |
|
P04 |
M |
51 a 60 |
|
|
P08 |
M |
41 a 50 |
|
|
P12 |
F |
31 a 40 |
|
|
P01 |
25 anos ou mais |
F |
51a 60 |
|
P05 |
M |
41 a 50 |
|
|
P06 |
M |
51 a 60 |
|
|
P09 |
F |
41 a 50 |
Fonte: Silva (2020, p. 99)
A caracterização dos participantes foi essencial à interpretação das informações contidas nos documentos das entrevistas, relacionando-as com a temática identidade profissional. Assim, com base na transcrição e leitura detalhada das entrevistas, foi possível agrupar elementos que gerou a categoria ‘Trajetória profissional e significados atribuídos à docência’, que se desdobrou em trajetória profissional e significados que os professores atribuem à profissão, tendo em conta elementos relacionados aos sentidos revelados pelos professores, os quais envolvem a identidade individual e profissional.
Apresentação da análise e discussão da categoria denominada de ‘Trajetória profissional e significados atribuídos à docência’
A discussão sobre a ‘Trajetória profissional e significados atribuídos à docência’, proporcionou as seguintes subcategorias: Escolha profissional; Ser professor: aprender a ser professor; Autoimagem: identidade para si e para o outro; Características profissionais do ‘bom professor’.
Essas subcategorias não são estanques; foram articuladas de forma específica na história de vida dos diferentes sujeitos, de modo a considerar a identidade a partir dos papéis que os sujeitos assumem objetivamente, para uma sequência de papéis frente à sociedade, e subjetivamente, como o sujeito constrói sua história pessoal (SILVA, 2020).
Num primeiro momento, a interpretação dos dados coletados pelas entrevistas se deu a partir da nuvem de palavras, criada com base nas unidades de registros de cada um dos participantes.
Figura 1: Nuvem de palavras da categoria ‘Trajetória profissional e significados atribuídos à docência’
Fonte: Silva (2020, p.104)
A nuvem de palavras possibilita vislumbrar imediatamente os termos mais repetidos. A saber, quanto maior a palavra que se destaca na nuvem, mais ela foi citada nas declarações dos entrevistados, possibilitando, assim, fazer as primeiras inferências dessa categoria.
Como podemos verificar, as palavras mais citadas foram: professor, aula, alunos, matemática, fazer e sala. Uma das palavras com maior frequência nos relatos dos professores foi a palavra matemática, pois obviamente ela aparece como uma importante identificação com a disciplina de Matemática, considerando que o grupo de professores selecionados para esta pesquisa são de Matemática, e estes declararam que possuem paixão ou têm grande facilidade com os cálculos desde a Educação Básica.
Também podemos dizer que ela se refere ao fato de que a identidade profissional dos professores se constitui no ambiente de trabalho, por meio das interações e relações de trabalho. O seu contexto de trabalho específico é a sala de aula, e o objeto de trabalho é o ser humano (aluno). Consequentemente, o cenário para o trabalho docente está posto, cabendo ao professor a tomada de ação, isto é, as decisões que são tomadas em sala de aula.
As outras palavras nos remetem a algumas inferências e discussões, como as seguintes: quais são os saberes necessários para a profissão docente no século XXI? O que os impulsionou para a escolha pela docência? Qual é o sentido da docência para esse grupo? Qual é a imagem que fazem de si mesmos? As faculdades ou universidades estão formando profissionais capazes de continuar aprendendo ao longo da sua trajetória profissional para poderem exercer a docência de forma competente?
Apresentação de como se deu a escolha profissional dos professores
Sobre a escolha profissional, foi apresentado um leque de fatores que impulsionaram os professores para a escolha pela docência: circunstâncias particulares, influência de professores, influência familiar, admiração pela profissão.
O fator relacionado às circunstâncias particulares, indica que a profissão docente não foi escolha intencional, um desejo, e sim circunstâncias particulares que encaminharam o sujeito para a docência. Os P05 e P08 iniciaram[1] o curso de licenciatura, mas não com o objetivo de exercer a docência. No entanto, os fatores determinantes foram a necessidade de um trabalho ou a escolha de um trabalho que levaram esses sujeitos a serem professores.
A escolha motivada pela admiração pela profissão docente ficou clara nos relatos dos professores P01, P04 e P06, quando questionados por que escolheram ser professor e ao responderem como chegaram à docência.
De modo geral, fica implícito o quanto o processo de escolha pela docência é significativo e abrange os sentidos objetivos e subjetivos de ser professor para cada um desses sujeitos.
Percepção de ser professor: aprender a ser professor
A partir dos questionamentos sobre ‘o que é ser professor’ e ‘como aprendeu a ser professor’, buscamos conhecer qual é o sentido (significado) da docência, revelado pelos professores em seus processos biográficos. Para alguns professores, o exercício da docência se dá em contexto de múltiplas relações, mas acentuam o significado de dedicação diária e de responsabilidade.
O sentido atribuído à docência é o de ser uma profissão complexa, cujo objeto de trabalho é o ser humano. Portanto, trata-se de um trabalho coletivo e temporal de resultados incertos, uma vez que depende da cooperação dos alunos (LE BOTERF, 2003; TARDIF, 2010).
O professor P04 deixa claro que ação docente “é estar trocando experiência todos os dias com os alunos”. Com isso, rompe qualquer ideia de uma profissão simples.
Esses sentidos atribuídos à docência nos remetem a uma reflexão, pois como cada sujeito “vive a profissão é tão (ou mais) importante do que as técnicas que aplica ou os conhecimentos que transmite, os professores constroem a sua identidade por referência a saberes (práticos e teóricos), mas também por adesão a um conjunto de valores e etc.” (NÓVOA, 1997, p. 33).
Para a professora P03, “ser professora é uma responsabilidade gigantesca, [...] porque você ‘tá’ ali na frente da sala com 40 ou 30 alunos com a responsabilidade de ensinar [...]”. As professoras P02 e P05 corroboram a fala da professora P03, que revela o sentido da dedicação.
No que se refere aos sentidos atribuídos pelo conjunto dos professores, cabe salientar que há uma tentativa de mudança de paradigma assumida por esse grupo, não somente o de ser transmissor de um conhecimento científico que é de extrema importância, ou seja, a competência técnica de um saber disciplinar que vem sendo perpetuado há muito tempo, mas também o de assumir responsabilidades próprias com a as atividades sob sua responsabilidade. Assim, as outras dimensões que caracterizam um profissional e que são fundamentais na ação docente estão presentes nas declarações dos participantes deste estudo, como, por exemplo, o comprometimento.
Os professores P02, P03, P04, P06, P07, P08, P09 e P11 relatam que aprenderam somente quando iniciaram a sua trajetória enquanto docentes.
Os professores P05, P10 e P12 compartilham a mesma visão, pois todo dia estão aprendendo a ser professor, já que a dinâmica da sala de aula está constantemente em pleno movimento.
Mesmo o professor P05 estando há mais de vinte anos na docência, chama a atenção para a compreensão de acompanhar as mudanças externas à escola, uma vez que seus alunos fazem parte dessa sociedade, confirmando a mudança da visão de ser um mero professor transmissor de saberes disciplinares. Já a professora P10 é a mais nova (sete anos) no exercício da profissão.
Apenas a professora P01 citou o estágio, relatando: “[...] na prática, porque na escola normal, a regência ou estágio era bem direcionado, você estava lá na frente dando aula, tinha o seu professor assistindo a sua aula [...] com formulário te avaliando. Naquela época, o estágio/regência era muito válido”.
As considerações a respeito de como os sujeitos desta pesquisa aprenderam a ser professor chamam a atenção para a formação inicial desses profissionais nos cursos de Licenciatura, pois ficou evidente nos relatos que o estágio nem sempre possibilita o aprendizado prático, o qual favorece o engajamento na preparação para a profissão (BRASIL, 1996).
Percepção da autoimagem: identidade para si e para o outro
A subcategoria Autoimagem possibilitou analisar o que os professores pensam de si mesmos e o que eles imaginam que os outros pensam a seu respeito. Para Dubar (2003), não há identidade sem alteridade, tampouco a identidade é imposta ao indivíduo, já que ela resulta de suas transações biográficas e relacionais.
Nessa perspectiva, “a identidade é, em cada caso, uma relação que compreende nossa capacidade de nos reconhecer e a possibilidade de sermos reconhecidos pelos outros”. Desse modo, “o paradoxo da identidade é que a diferença, para ser afirmada e vivida como tal, supõe uma certa semelhança e uma certa reciprocidade” (MELUCCI, 2004, p.47-50).
Retomando as análises das falas dos professores, verificamos que eles se definem de três formas: bom professor, professor comprometido e professor aprendente. Essas imagens coincidem com a forma como eles acreditam que os outros os percebem. Entretanto, os professores P05 e P09 declaram que nunca pensaram como os seus colegas os percebem como profissionais.
Os professores P04, P08, P10, P11 e P12 se autodefinem como professores dedicados e responsáveis em sua ação docente. Entendemos que ser dedicado e responsável é da pessoalidade de cada professor, uma vez que são qualidades pessoais. Essas qualidades “são os recursos mais difíceis de expressar e de escrever, no entanto, não devem ser negligenciados” na atuação docente (LE BOTERF, 2003, p.124).
Já as preocupações apresentadas nas falas dos professores P05 e P07 nos levam a refletir sobre a incompletude do ser humano, o reconhecimento de sua constante procura e sobre sua curiosidade e sua capacidade de transformar a realidade ao seu redor. Como afirma Paulo Freire:
[...] o inacabamento do ser ou a sua inconclusão é próprio da experiência vital. Onde há vida, há inacabamento. [...] Gosto de ser gente porque, inacabado, sei que sou um ser condicionado, mas, consciente do inacabamento, sei que posso ir mais além dele. [...] a inconclusão que se reconhece a si mesma implica necessariamente a inserção do sujeito inacabado num permanente processo social de busca. (FREIRE, 1996, p. 34).
Assim, podemos dizer que a biografia pessoal e a profissional se cruzam, de modo que “complementam e interpenetram as dimensões da pessoalidade e da profissionalidade”. Também, apontam, sobretudo, as “experiências que constituem a base da identidade do professor, considera como a forma segundo a qual os indivíduos se pensam a si próprios como professor, isto é, a imagem de ‘si-como-professor’.” (GONÇALVES, 1996, p. 363).
Dessa forma, diante da complexidade que envolve a discussão sobre autoimagem, os relatos permitem analisar não só a identidade para si, mas como esta se relaciona com a identidade para o outro, tendo em vista que a autoimagem de todos os professores resulta de suas transações biográficas e relacionais. Suas trajetórias individuais e profissionais são atravessadas pelos valores humanos e éticos da profissão. Consequentemente, reverberam no compromisso profissional e na atuação em sala de aula. Em última instância, “a imagem que o profissional tem de si mesmo é o que faz intervir”, com base na “instrumentalização dos saberes, saber-fazer e das qualidades e a instrumentalização de recursos do meio” (LE BOTERF, 2003, p.133).
Percepções das características profissionais do ‘bom professor’
As características apontadas nos relatos dos professores quando questionados acerca do que é ser um ‘bom professor’ foram as seguintes: ter domínio dos temas a serem ensinados, saber se relacionar com os alunos, ter uma boa didática e, por último, buscar novas metodologias para ensinar. É importante salientar que nos discursos de oito professores estiveram presentes duas características: domínio dos temas a serem ensinados e saber se relacionar com os alunos.
Os relatos dos professores confirmam a necessidade de ter o domínio dos saberes teóricos (área de conhecimento); porém, nos dias atuais, o domínio dos saberes teóricos não é suficiente à atuação docente. É necessário também desenvolver o relacionamento interpessoal, isto é, a capacidade de se relacionar tanto com os alunos como com os demais profissionais no ambiente de trabalho. Evidenciam ainda a competência comportamental e emocional (intrapessoal e interpessoal), e o saber se relacionar assume cada vez mais importância no exercício da docência, pois a “capacidade de escuta, as atitudes de acolhida, a capacidade de iniciativa, a tenacidade e a autoconfiança são qualidades cada vez mais requeridas nas situações profissionais” (LE BOTERF, 2003, p. 125).
Na característica ‘ter uma boa didática’ como uma das características profissionais do ‘bom professor’, verificamos que ela apresenta relação com a busca de novas metodologias para ensinar, como foi apresentado nos argumentos dos professores P03, P05, P06 e P09.
O discurso do professor P05, além de trazer aspectos que supõe ser de um ‘bom professor’, também apresenta a clareza “de buscar o que é importante e o que é mais importante e por que é importante, ou seja, qual é a importância dos conteúdos” que o professor pretende ensinar aos seus alunos. Essa consciência de saber quais são as ideias fundamentais das áreas de conhecimento apresentadas nos currículos é fundamental à ação docente (MACHADO, 2009).
Também encontramos a característica ‘ter uma boa didática’ implícita na fala da professora P09, em forma de desabafo quando fala sobre a dificuldade que percebe nos novos colegas de trabalho.
Eu acho que é o professor que consegue entrar em uma sala e dominar a situação. É você conseguir dar a sua aula, sem derrubar a sala e sem atrapalhar quem está do seu lado dando aula. É você conseguir ir trabalhar todos os dias, porque o professor novo não consegue. E também manter uma rotina de trabalho todos os dias em suas salas de aula, por exemplo, começar um assunto e dar sequência e terminar de maneira que os alunos consigam ver sentido na aula, sabe? (P09).
Esse relato chama a atenção, “porque ser professor implica sempre a adesão de princípios e valores, a adopção a projetos”. O relato da professora P09, no auge dos seus 25 anos de experiência como professora de Matemática na Educação Básica, remete aos três AAA que sustentam a atividade docente, de acordo com Nóvoa (1997, p. 34), Adesão, Ação e Autoconsciência, que estão diretamente relacionados com a subcategoria Escolha da profissão.
Ainda sobre o ‘bom professor’, Nóvoa (2007, p.27) destaca algumas disposições que caracterizam o trabalho docente na atualidade, como, por exemplo, o conhecimento, a cultura profissional, o tato pedagógico, o trabalho em equipe e o compromisso social. Essas disposições são essenciais “à definição de professores nos dias de hoje”. Essas disposições não divergem das descritas a partir das falas dos participantes.
As caracterizações profissionais do ‘bom professor’ perpassam pelos saberes docentes. Esses saberes, segundo Tardif (2010), são a base dos conhecimentos para o exercício da profissão docente, assim:
[...] os saberes docentes são elementos constitutivos da prática docente. Essa dimensão da profissão docente lhe confere o status de prática erudita que se articula, simultaneamente, com diferentes saberes: os saberes sociais, transformados em saberes escolares através dos saberes disciplinares e dos saberes curriculares, os saberes oriundos das ciências da educação, os saberes pedagógicos e os saberes experienciais. Em suma, o professor ideal é alguém que deve conhecer sua matéria, sua disciplina e seu programa, além de possuir certos conhecimentos relativos às ciências da educação e à pedagogia e desenvolver um saber prático baseado em sua experiência cotidiana com os alunos. (TARDIF, 2010, p. 39).
As declarações de Nóvoa e Tardif reforçam que há características fundamentais para o exercício da docência, e essas são constituídas a partir de múltiplos saberes, como foi apontado pelos participantes desta pesquisa, de maneira a delinear atributos presentes na ação docente, que vão além de conhecer sua disciplina/área de conhecimento.
Por fim, apresentamos um panorama dos aspectos mais evidenciados agrupando elementos relacionados aos sentidos revelados pelos professores, tendo em vista que esses elementos envolvem a constituição da identidade pessoal e profissional, já que ambas estão imbricadas, como exposto no organograma abaixo.
Figura 2: ‘Trajetória profissional e significados atribuídos à docência’, seus desdobramentos e os aspectos mais evidenciados em cada um deles.
Fonte: Silva (2020)
A partir das análises apresentadas na pesquisa de Silva (2020), podemos dizer que a escolha profissional se dá por fatores diversos, também não houve o relato da escolha por ‘amor à criança’. Isso evidencia a docência como uma profissão que deixou para trás a escolha pelo sacerdócio, tendo em vista que o professor pode e deve ser um profissional comprometido com a sua própria formação, e não aquele “que se qualifica unicamente por seus dotes pessoais de sensibilidade, paciência e gosto no trato com crianças, adolescentes e jovens adultos” (BRASIL, 2000, p. 29).
No contexto dos significados atribuídos à profissão docente, admitimos que se trata de uma profissão complexa e que se faz com responsabilidade e comprometimento. Essa responsabilidade é entendida como um princípio axiológico que sustenta a docência e a direciona à ética. Os valores éticos são aqueles predominantes em uma determinada sociedade, assim como os da profissão docente ou de qualquer outra profissão.
No desdobramento da autoimagem revelada pelos professores, há relação com o posicionamento desse profissional no âmbito de seu trabalho, de modo que o posicionamento do indivíduo reflete em sua atuação, isto é, em sua ação docente. Desse modo, a configuração identitária se relaciona ao modo como é percebido e reconhecido pelo outro.
Ao longo da história, sempre houve questionamentos sobre as características de qualidades ou atributos do ‘bom professor’, mesmo entendendo que é impossível pré-estabelecer um conjunto de características definidoras para o professor, pois as características que qualificaram a ação docente no século XX não são mais suficientes para o século XXI, porque essas são atravessadas pelas mudanças sociais e políticas.
Considerações finais
Pretendeu-se neste artigo abordar a discussão sobre a constituição da identidade docente, frente às mudanças culturais e sociais que impõe o contexto atual da ação docente na Educação Básica. Para tanto, foram apresentadas as análises e discussões sobre a trajetória profissional e os significados atribuídos à docência, com base no estudo de Silva (2020).
Dessa forma, conhecendo diversos fatores que encaminharam os sujeitos à profissão docente, uns por circunstâncias particulares, outros por influência de professores ou da família, ou também por admiração à profissão. Em relação aos significados atribuídos pelos professores à docência, o mais indicado foi o de ser uma profissão complexa, posto que necessita de responsabilidade e dedicação diária, além de exigir domínio dos temas a serem ensinados, didática (saber ensinar), saber se relacionar com os alunos, e ainda buscar novas metodologias para ensinar.
Assim, podemos falar que a trajetória de vida diz muito sobre os desejos que cada sujeito possui em sua profissão, pois estes refletem na constituição da identidade profissional docente. Também a forma como cada sujeito se coloca frente à profissão pode interferir em suas relações.
Podemos dizer que a profissão docente se relaciona ao modo como o professor se posiciona no âmbito de seu trabalho. Esse posicionamento, por sua vez, não é de modo algum estático, podendo mudar em sua trajetória, pois o posicionamento é construído ao longo do processo de experiência e vivência tanto pessoal como profissional. A construção do posicionamento dentro da profissão docente é atravessada por vários fatores, tais como a escolha profissional, o processo de se reconhecer e o modo como se percebe na profissão. Esses processos fazem com que cada sujeito assuma concepções diversas sobre quais são as características necessárias para exercer a docência na atual sociedade.
Ainda consideramos que o processo da constituição da identidade profissional se inicia com o primeiro contato com a profissão. No caso dos docentes, esse processo se inicia no curso de formação inicial, ou seja, nos cursos de licenciatura.
Em suma, a identidade profissional é atravessada por um processo dinâmico que envolve “tanto a questão do desenvolvimento e da revisão de saberes, quanto as disposições profissionais do professor” frente ao “que a profissão lhe nega e oferece”. É por isso que a identidade profissional tem um caráter dinâmico e evolutivo (GUIMARÃES, 2005, p.59).
Assim, a identidade docente se dá num processo vivo e evolutivo, que pode ser influenciado por fatores internos e externos, bem como pelas relações no contexto profissional, podendo ser mais ou menos durável, dependendo das circunstâncias nos diferentes momentos e contextos.
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[1] As narrativas, os trechos, dos sujeitos que embasam este artigo podem ser consultadas na pesquisa de Silva (2020)