Análise temática sobre a autonomia na aprendizagem na concepção dos educadores de uma escola democrática Norte Fluminense do Rio de Janeiro

Thematic analysis on autonomy in learning through the concept of educators from a democratic school in the northern Rio de Janeiro

 

Elizangela Tonelli

Instituto Federal do Espírito Santo, Espírito Santo, Brasil

eliztonelli@gmail.com - https://orcid.org/0000-0003-0595-632X

 

Vera Lucia Deps

Universidade Estadual do Norte Fluminense "Darcy Ribeiro", Rio de Janeiro, Brasil

mielveh@gmail.com - https://orcid.org/0000-0003-3994-2452

 

Recebido em 05 de fevereiro de 2021

Aprovado em 29 de junho de 2022

Publicado em 13 de outubro de 2022

 

 

RESUMO

 

Este estudo investigou de que forma      os educadores de uma escola de educação democrática entendem a autonomia na aprendizagem, suas concepções e atribuições      e quais os desafios dessa prática educativa, considerada inovadora em relação ao que se conhece historicamente como ensino tradicional. Para isso, foram realizadas entrevistas e aplicação de questionários com 12 educadores de uma escola privada do Norte Fluminense. A Análise Temática evidenciou que os educadores consideram a autonomia como um protagonismo que se fortalece na liberdade de escolhas e na responsabilidade. A tutoria do professor e o apoio familiar foram evidenciados como essenciais para o reforço das responsabilidades e para o engajamento autônomo do aluno em seus projetos individuais de aprendizagem. Entre os desafios, encontram-se as pressões do sistema tradicional, a falta de recursos financeiros e de capacitação dos professores. Concluiu-se que a promoção da autonomia está intrinsecamente ligada às escolhas responsáveis e a um contexto escolar que respeite a singularidade dos alunos. Assim, sugere-se que as práticas educativas sejam orientadas por abordagens pedagógicas dialógicas que respeitem a autonomia do educador e do educando, de maneira a contribuir para a formação integral do indivíduo em termos cognitivos e emocionais. As limitações do estudo também foram apontadas.

Palavras-chaves: Autonomia na aprendizagem; Prática educativa; Escola democrática.

 

ABSTRACT

 

This study investigated how educators in a democratic school understand learning autonomy, its conceptions and attributions and what the challenges of this educational practice, considered innovative to which is historically known as traditional teaching, are. To this end, interviews and questionnaires were applied with 12 educators from a private school in the North of Rio de Janeiro. The Thematic Analysis showed that educators consider autonomy as a protagonism that is strengthened in freedom of choice and responsibility. Teacher tutoring and family support were shown to be essential for reinforcing responsibilities and for the student's autonomous engagement in their individual learning projects. Among the challenges are the pressure from the traditional system, the lack of financial resources and teacher training. It was concluded that the promotion of autonomy in learning is intrinsically linked to responsible choices and a school context that respects the students' uniqueness. Thus, it’s suggested that the teaching practices should be oriented by dialogic pedagogical approaches that respect the autonomy of both teacher and student, aiming to contribute to the entire cognitive and emotional formation of the individual. The limitations of the study were also pointed out.

Keywords: Learning autonomy; Educational practice; Democratic school.

 

 

Introdução

A perspectiva humanista defende que há uma tendência natural dos indivíduos para a autonomia e para a autogestão de suas ações em direção aos seus objetivos pessoais (ROGERS, 1973), e que a verdadeira aprendizagem decorre de processos naturais e espontâneos da curiosidade, do interesse e da autonomia percebida (DEWEY, 1916; PIAGET, 1994; FREIRE, 2011; RYAN, DECI, 2000). Esses pressupostos têm direcionado pesquisas voltadas para o contexto escolar no intuito de identificar quais ações e intervenções pedagógicas têm contribuído para que o indivíduo se engaje, de forma volitiva, em atividades acadêmicas (REEVE, NIX, HAMM, 2003; REEVE, JANG, 2006; JANG, REEVE, HALUSIC, 2016; STREB et al, 2015; RYAN, DECI, 2017).

Segundo Sokol, Grouzet e Muller (2013), o termo autonomia envolve um amplo campo semântico que tem sido estudado em diversas áreas do conhecimento e contextos como, por exemplo, a filosofia, a moral, a política, a economia, a psicologia e a educação. Contudo, observa-se      que há um uso generalizado do termo, que por vezes não traz uma definição clara das atribuições que caracterizam uma pessoa autônoma, em especial, no que se refere à      autonomia na aprendizagem em contextos escolares.

Na educação, a promoção e o respeito à autonomia têm sido relacionados a uma prática educativa democrática, libertária e dialógica, centrada no aluno. O pensamento básico de educação democrática é que a escola é uma comunidade de aprendizagem, onde todos são responsáveis por todos (SINGER, 2010; PACHECO, 2014).

Nesse sentido, a fim de obter significados claros sobre o conceito de  autonomia e contribuir para o reconhecimento da realidade dos contextos educativos, retratados como democráticos, o objetivo deste estudo foi identificar concepções de autonomia na aprendizagem a partir dos relatos dos educadores de uma escola campista que, inspirada na Escola da Ponte de Portugal, propõe uma projeto educativo com fins de promoção da autonomia, por meio da democraticidade, da responsabilidade e da solidariedade entre seus membros.

Considerando as particularidades da comunidade escolar, em relação à sua realidade social e cultural e da intencionalidade formativa do seu projeto, este estudo buscou, a partir de uma análise temática, identificar e interpretar padrões e significados nos relatos dos educadores, que se mostraram mais direcionados às concepções, atribuições e desafios que envolvem a autonomia que dispuseram a apoiar e a desenvolver nos educandos. A relevância é que outras concepções poderão ser evidenciadas a partir de um contexto ou grupo específico, de forma a conhecer outras realidades escolares e a corroborar com o que já se tem discutido até o momento sobre as práticas educativas consideradas inovadoras e voltadas para melhorias na qualidade da educação brasileira.

 

 

 

Autonomia e educação: delimitando um campo de estudo

        O entendimento geral que se tem sobre o termo autonomia advém de sua etimologia auto-(si mesmo) e–nomia (lei), ou seja, aquele que se autogoverna e se sente no controle, opondo-se à heteronomia, hetero- (outro) e –nomia (lei), que é ser governado por outro ou por regras impostas ou experimentadas como pressões externas de recompensa e punição (SOKOL, GROUZET, MULLER, 2013; RYAN, DECI 2017). Embora o sentido denotativo do termo autonomia possa abarcar um entendimento bem próximo do que se pretende discutir neste estudo, Sokol, Grouzet e Muller (2013) consideram de suma importância que se delimite um campo temático de estudo e se descreva a heteronomia a que esta se opõe.

Assim, conforme sugere o título desse artigo, o contexto é a Educação. Especificamente dentro de uma concepção contemporânea que compreende que educar é garantir o desenvolvimento integral do sujeito, em todas as suas dimensões – intelectual, física, afetiva, social e simbólica – e não apenas focada na formação acadêmica (ARROYO, 2010). Prevista na Lei 13.415/2017, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB),  a Educação, no sentido integral, tem seu foco na formação de sujeitos críticos, autônomos e responsáveis consigo e com o mundo ( COSTA, 2020).

Mas, afinal, de que autonomia se está falando? Nesse     e estudo, refere-se à autonomia promovida por contextos educacionais que respeitam a singularidade, a liberdade de experiência e de expressão e que apoiam a aprendizagem solidária e volitiva. Dessa forma, entende-se que a aprendizagem autônoma se opõe ao sentido de aprendizagem heterônoma, que se mostra centrada em relações puramente verticalizadas entre educador e educando, em função das concepções meramente instrutivas e utilitárias da educação (FREIRE, 2011).

Martins (2002), ao delinear uma trajetória histórica sobre o tema autonomia e Educação, considera que as tendências pedagógicas liberais e libertárias tornaram-se um marco da quebra de paradigma entre as seculares práticas educativas diretivas e autoritárias em prol de práticas mais humanizadas, centradas nos processos naturais de desenvolvimento e aprendizagem (ROGERS, 1973). Nessa direção, as transformações promovidas pela visão das “escolas livres” têm se tornado um campo profícuo para as discussões teórico-práticas sobre a autonomia na aprendizagem (DEBUS, 2018, p. 49).

Graças a esses movimentos, a criança passou a ser considerada o centro do processo de ensino e da escola, reconhecida com um ser original em sua individualidade, com suas próprias necessidades e interesses, e não como um adulto em miniatura. De acordo com Martins (2002), essas mudanças trouxeram implicações no sentido de repensar a organização da escola, os mecanismos de ensino e a relação entre educador e educando. Insere-se, nessa tendência pedagógica, o pensamento do educador escolanovista John Dewey (1859-1952), que elaborou os conceitos de “aprender fazendo”, “aprender pela vida e para a democracia”, e o pensamento de Ovide Decroly (1871-1932), que elaborou a ideia de “uma aprendizagem que se efetivasse por meio da observação, da expressão e da associação de ideias, possibilitando à criança interferir no meio educativo” (MARTINS, 2002, p. 225).

Acerca dessas transformações, Zimring (2010) destaca que as contribuições da psicologia humanista de Carl Rogers (1902-1987) trouxeram novos olhares para as práticas educativas centradas na “liberdade para aprender” acerca das relações pessoais entre aquele que facilita a aprendizagem e aquele que aprende.

Contrário às práticas puramente transmissíveis e verticalizadas no contexto escolar, Rogers (1973) enfatiza que as relações educativas precisam estar centradas na empatia, na autenticidade, na confiança das potencialidades do ser humano, na pertinência do assunto a ser aprendido, na aprendizagem participativa, na totalidade da pessoa, na autoavaliação e na autocrítica. Essas ações implicam na necessidade de mudança no clima institucional, e que as inovações e as capacidades criativas dos gestores, professores e alunos devem ser estimuladas e não abafadas (ZIMRING, 2010).

Desse modo, o respeito à autonomia do estudante também foi defendido por Paulo Freire (2011). Para o educador brasileiro, a autonomia pressupõe uma concepção emancipatória de educação, sobretudo baseada na dialogicidade. Segundo o autor, “[...] ninguém é autônomo primeiro para depois decidir. A autonomia vai se construindo na experiência de várias, inúmeras decisões que vão sendo tomadas” (FREIRE, 2011, p. 107). É nesse sentido que uma pedagogia da autonomia tem de estar centrada em experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade, vale dizer em experiências respeitosas da liberdade.

Sobre esses aspectos, Pacheco (2012) enfatiza que não existe autonomia no isolamento, pois essa é um produto da relação e convive com a solidariedade, e que

[...] é essencialmente com os pais e os professores que a criança encontra os limites de um controle para progredir na autonomia, que é liberdade de experiência e expressão dentro de um sistema de relação e trocas sociais. (PACHECO, 2012, p.11).

 

Na perspectiva da Teoria da Autodeterminação (Self-Determination Theory - STD) de Richard Ryan e Edward Deci (1985), a autonomia é considerada como uma das três necessidades psicológicas básicas, juntamente com a necessidade de competência (sentir que sabe fazer) e de vínculo social (pertencido a um grupo) que, quando suprida e apoiada pelo ambiente, aumenta a motivação intrínseca e o bem-estar. A necessidade de autonomia é definida como o imperativo de ações e decisões que são internalizadas em conformidade com os valores pessoais e com um nível alto de reflexão e consciência (RYAN, DECI, 2020).

Ryan (1993) explica que o processo de internalização é uma aquisição dos regulamentos do meio sociocultural, considerados como importantes por parte da pessoa. Assim, uma concepção de autonomia, no sentido de independência, não se configura nesses propósitos, pois o indivíduo necessita de um ambiente que promova e apoie a sua autonomia, a noção de pessoa individual, singular e distinta das outras (DECI, RYAN,1985; RYAN, DECI, 2017).

Segundo Ryan e Deci (2020), uma maior internalização e integração é possível apenas em um contexto de apoio à autonomia. De acordo com      os autores, para considerar um regulamento como importante, a     s pessoas devem entender seu significado e sintetizá-lo em relação aos seus objetivos e valores. É nesse sentido que o apoio parental e escolar à autonomia fortalece a internalização da responsabilidade e a atribuição de valores e significados àquilo que, gradualmente, o indivíduo precisa aprender.

Reeve e Jang (2006) destacam que a autonomia percebida é o endosso para as ações do estudante e, consequentemente, para o seu envolvimento na aprendizagem. Nesse sentido, estudos empíricos no escopo da literatura especializada (DECI et al, 1991; REEVE, NIX,  HAMM, 2003; REEVE, JANG, 2006; JANG, REEVE, HALUSIC, 2016; STREB et al, 2015; RYAN, DECI, 2017; 2020) têm evidenciado que o apoio à autonomia em contextos familiares e escolares traz contribuições significativas para os processos de aprendizagem em termos cognitivos, motivacionais, afetivos e sociais; o seu oposto, a heteronomia − controle excessivo, imposição de regras, uso de recompensas ou castigos − pode produzir efeitos negativos, como desmotivação e falta de engajamento nos processos de aprendizagem.

Tendo como pressupostos que o interesse e a curiosidade são fontes naturais de motivação e de aprendizagem, pesquisas sobre esse viés (por exemplo, REEVE, NIX, HAMM, 2003; MARAYAMA  et  al, 2015; JANG, REEVE, HALUSIC, 2016; PATALL, ZAMBRANO, 2019; SCHUTTE, MALOUFF, 2019; RYAN, DECI, 2000; 2020) têm mostrado que ambientes escolares, que não excedem no controle e que promovem escolhas, estimulam a curiosidade, especialmente para aqueles que possuem baixa autonomia e desempenho, e reforçam os sentimentos de competência frente às tarefas.

Esses aspectos reforçam o papel privilegiado do professor na autonomia da aprendizagem, quando se mostra mais sensível às perspectivas e às potencialidades do educando, permitindo-lhes escolhas de tarefas que envolvam seu interesse, mediando seus processos cognitivos e seus níveis de autonomia (RYAN, DECI, 2020). Para Vygotsky (1984), os processos de mediação viabilizam os processos de desenvolvimento da autonomia e da aprendizagem, uma vez que o “outro”, mais experiente, promove uma ação mais significativa do sujeito sobre o objeto, de modo que o educando passa a transformar, dominar e internalizar conceitos, papéis e funções sociais presentes na sua realidade.

Sob a égide do paradigma da aprendizagem, a autonomia é promovida quando o aluno é colocado no centro de gravidade dos projetos de educação escolar, permitindo-lhe valorizar suas aprendizagens e reforçar sua recusa às intenções e ações heterônomas de professores que, sob o paradigma da instrução, ainda tendem a submeter os estudantes a programas de ensino padronizados, com foco no resultado e não no processo (TRINDADE, COSME, 2016).

Essa ruptura com os modelos de ensino puramente instrucionais é visível nos projetos educativos de centenas de Comunidades de Aprendizagem que, inspiradas na Escola da Ponte de Portugal, apoiam a educação democrática. Entre as pioneiras e já consolidadas destacam-se a Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) “Desembargador Amorim Lima”, em Vila Indiana (SP); a EMEF “Presidente Campos Sales”, em Heliópolis (SP); e a Organização Não-Governamental (ONG) Escola Projeto Âncora, em Cotia (SP).

Essas escolas, independentemente de suas particularidades, trazem características em comum, como uma gestão participativa que inclui estudantes, educadores, funcionários, pais e uma organização pedagógica na qual os estudantes definem suas trajetórias de aprendizagem (SINGER, 2010).

Segundo Pacheco (2014) o projeto educativo da Escola da Ponte tem sido referência para essas escolas, não como um modelo a ser copiado, mas como uma orientação para as possíveis mudanças e adaptações, tanto relacionadas ao projeto pedagógico quanto à reorganização do espaço físico, dos componentes curriculares, das funções dos educadores e da instrumentalização da aprendizagem.

Diante dos argumentos teóricos e empíricos que apontam a autonomia como um tema central no contexto das práticas educativas democráticas contemporâneas, esse estudo teve como objetivo identificar e discutir as concepções de educadores de uma escola democrática campista sobre a temática da autonomia na aprendizagem.

Es     se estudo não pretendeu quantificar os dados e tampouco considerou um conceito de autonomia a priori. A intenção da Análise Temática, do tipo reflexiva (BRAUN, CLARKE, 2006; 2017), foi buscar, a partir da interpretação dos relatos dos educadores, padrões e significados que possam elucidar suas concepções sobre a temática que, a posteriori, foram dialogadas com os argumentos teóricos.

    

Metodologia

 

Caracterização do estudo

Esse estudo foi classificado, quanto à sua abordagem, em qualitativo, considerando que o interesse do pesquisador foi a busca de significado por meio da descrição e interpretação do sentido daquilo que foi relatado pelos participantes (BOGDAN, BIKLEN, 1994). Trata-se de um estudo de caso que em relação aos procedimentos se caracteriza como ex-post-facto, considerando que os dados foram coletados após a suspensão das atividades letivas da escola. Quanto ao tipo, classifica-se o estudo como descritivo e de caráter exploratório, com a utilização da técnica de entrevista e questionário para coleta de dados (GIL, 2017). Esse estudo refere-se a uma das etapas da análise dos dados coletados da pesquisa de doutorado, em andamento, intitulada “Autonomia e Autorregulação da Aprendizagem: um estudo sobre as práticas educativas de uma escola brasileira inspirada na abordagem pedagógica da Escola da Ponte”. O projeto de pesquisa foi submetido e aprovado pelo Conselho de Ética em Pesquisa, sob o parecer nº 3.984.294/20, e os dados foram coletados com a anuência de aceite e cooperação da gestão escolar e com o consentimento dos participantes, garantidos de que suas identidades seriam preservadas.

 

Contexto escolar da pesquisa

Trata-se de uma escola de Educação Básica da rede privada, sem fins lucrativos, localizada na região Norte Fluminense do Rio de Janeiro. A escola iniciou suas atividades em 2006 e se manteve dentro de uma prática educativa tradicional, semelhante à maioria das escolas brasileiras, por quase 10 anos. Porém, em 2015, reformulou o seu Projeto Político Pedagógico, concebendo a gestão democrática e adotando a abordagem pedagógica da Escola da Ponte, de Portugal, como princípio educativo. No mesmo ano, a escola foi mapeada e certificada pelo Projeto Inovação e Criatividade na Educação Básica, do Ministério da Educação (MEC), como uma escola que possui um plano de ação inovador por escolher, como inspiração teórico-pedagógica, a tese do trabalho como princípio educativo, que defende e respeita a singularidade do percurso educativo do indivíduo em suas formas próprias de apreensão da realidade e do conhecimento, a partir da instrumentalização de um currículo que é tutelado e avaliado pelos educadores, pelo próprio educando e seus pais (BRASIL, 2015).

O processo de transição da abordagem tradicional para a abordagem inovadora ocorreu de forma gradual entre os anos 2016, 2017 e 2018. Em 2019, a escola suspendeu, temporariamente, suas atividades letivas devido à necessidade de reformas e adaptações em sua sede. Semelhante à Escola da Ponte e às Comunidades de Aprendizagem brasileiras, nessa escola não havia turmas seriadas divididas por sala de aula e programas de ensino padronizados. Os alunos eram agrupados em núcleos de projetos e todos os professores eram orientadores educativos nos variados núcleos e ciclos de aprendizagem.

Na dinâmica da aprendizagem, os alunos escolhiam um tema de pesquisa que fosse de seu interesse, elaboravam e desenvolviam seus projetos individuais de aprendizagem e, conforme a densidade multidisciplinar desses projetos, eram inseridos os conhecimentos baseados nos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs (currículo objetivo). Sob a mediação dos orientadores educativos e dos tutores, professores de diferentes áreas do conhecimento, os alunos eram orientados e tutelados para a adoção de comportamentos e responsabilidades (currículo subjetivo), considerando seu nível de desenvolvimento e de autonomia.

Em termos de avaliação e promoção, os currículos tinham peso igual, pois somente o currículo subjetivo, conjunto de aquisições de cada educando, validava a pertinência do currículo objetivo e, por conseguinte, a aprendizagem ativa, individualizada e autônoma.

Retratada como uma escola democrática, o projeto da escola campista sustenta que a promoção da autonomia só é possível nas trocas solidárias, na cooperação e no vínculo com o grupo. Assim, a intencionalidade formativa da escola orienta-se no sentido de formar pessoas e cidadãos competentes, autônomos, responsáveis e democraticamente comprometidos com a construção coletiva de projeto de sociedade que potenciem as qualidades de cada ser humano (PPP da escola, 2018).

É nesse sentido que o projeto descreve que a relação da escola com os demais agentes da educação, professores, alunos e pais é de parceria e complementaridade no processo de produção do conhecimento, que, em sua essência, tem as crianças e os jovens como protagonistas.

 

Participantes

Os sujeitos da pesquisa foram 12 educadores, sendo 10     professores de diversas áreas do conhecimento da Educação Básica, 1     coordenadora e 1     gestora. Os educadores tinham idade entre 22 a 45 anos, havendo predominância na faixa etária de 25 a 30 anos, exceto a gestora (mais de 50 anos).      O principal critério para participação no estudo foi ter trabalhado na escola      por um tempo mínimo de um ano, entre os períodos de 2016 a 2018, ocasião em que se implementou a abordagem pedagógica da Escola da Ponte na escola.  Ressalta-se que todos os sujeitos concordaram em participar da pesquisa após tomarem ciência do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), aprovado pelo comitê de Ética em Pesquisa, com a garantia de que suas identidades seriam preservadas.

 

Procedimentos de coleta dos dados

O corpus de dados consistiu em entrevistas com a coordenadora e com a gestora da escola e aplicação de questionários semiestruturados com os professores. As entrevistas foram individuais e presenciais, seguidas por um roteiro elaborado com 12 perguntas direcionadas aos relatos sobre a história da escola, a implementação da gestão democrática (aspectos estruturais e pedagógicos), os processos de promoção da autonomia na aprendizagem e os desafios de se trabalhar com um ensino considerado inovador em relação ao que se conhece como tradicional.

O questionário dos professores foi elaborado com 30 itens direcionados às experiências vivenciadas na escola em relação à abordagem pedagógica, à prática educativa e aos desafios, considerando aspectos relacionados à autonomia e à amplitude do tema de investigação da pesquisa de doutorado. O instrumento foi enviado aos professores por meio de um link de acesso ao Google Forms, por e-mail e por WhatsApp.

Os extratos selecionados dos itens das entrevistas e dos questionários, que formaram o “conjunto de dados” dessa análise, ou seja, “itens de especial interesse analítico” (BRAUN, CLARKE, 2006, p. 80), referem-se às questões que versaram sobre os relatos dos educadores acerca das concepções e atribuições relacionadas à promoção da autonomia na aprendizagem e dos seus desafios vivenciados no exercício da docência em uma escola democrática.

 

Tratamento dos dados

As transcrições das entrevistas e as respostas aos questionários foram submetidas à Análise Temática (AT) de Braun e Clarke (2006). A AT se aplica às pesquisas de cunho qualitativo, pois se trata de um método flexível que visa       identificar, analisar e relatar padrões (temas) dentro dos dados, sem, necessariamente, serem submetidos a priori      a um quadro teórico. Embora a Análise de Conteúdo (AD) de Bardin (2011), também pudesse atender os objetivos do estudo, considerou-se a AT mais adequada devido a flexibilidade do método, no sentido de que a intencionalidade da análise foi construir concepções de autonomia na aprendizagem a partir dos próprios relatos dos educadores      (considerada como fonte primária dos dados)      por meio de uma abordagem indutiva, alinhada à questão científica. Caracterizada como uma AT do tipo reflexiva, as fases de codificação e elaboração dos temas ocorreram de forma fluida e flexível, pois o ponto principal não foi alcançar acurácia, mas a imersão e o profundo engajamento com os dados.

Assim, considerando as orientações de Braun e Clarke (2006; 2017), o conjunto de dados (extratos de relatos) recebeu o tratamento seguindo as fases da AT (Quadro 1). Como recursos foram utilizados os softwares Atlas.ti (codificação dos dados) e Cmap Tools (construção dos mapas temáticos).

 

Quadro 1: Fases da Análise Temática (AT)

Fase

Descrição

1. Familiarização com os dados

Transcrever os dados e anotar ideias iniciais.

2. Gerando códigos iniciais

Codificar aspectos interessantes dos dados e reunir extratos relevantes a cada código.

3. Buscando temas

Reunir os códigos em temas potenciais.

4. Revisando os temas

Checar as relações entre os temas e os extratos; gerar mapa temático da análise.

5. Definindo e nomeando os temas

Gerar definições e nomes claros a cada tema.

6. Produzindo o relatório

Fornecer exemplos vívidos e relações dos extratos com a pergunta de pesquisa e a literatura.

 

Fonte: Souza (2019, p.56)

 

Resultados e discussão

Na fase 5 da análise (quadro 1), após ter feito o agrupamento dos códigos em temas potenciais e ter conferido as relações entre os temas e os extratos, foi gerado um mapa temático (     ) no qual se nomeou três temas subjacentes às concepções de autonomia na aprendizagem: (1) Autonomia (2) promoção e apoio, (3) desafios no contexto escolar      e suas respectivas definições (subtemas). Esses temas serão discutidos separadamente em tópicos, nos quais foram inseridos alguns extratos e relatos dos entrevistados (identificados por Educ.1, Educ.2, Educ.3, etc.,) de maneira a dar veracidade aos fatos e visibilidade aos aspectos interpretados e relacionados a cada tema. Os resultados foram dialogados com os argumentos teóricos, no sentido de imbricar e ampliar a discussão sobre os achados e a questão de pesquisa.

 

 

 

Autonomia na aprendizagem    

Conforme mostra a figura 1, a interpretação dos extratos evidenciou que na concepção dos educadores de uma escola democrática, a autonomia é      vista como ‘protagonismo’, ‘liberdade’ e ‘responsabilidade’. Os educadores consideram a autonomia como uma atitude de ‘protagonismo’ que se mostra na descoberta do ‘aprender a aprender’ por parte do aluno.  Esse percurso, orientado por educadores e familiares, é guiado pelo valor e pelo significado que o aluno atribui ao próprio projeto de aprendizagem. Esse processo envolve questões sobre o que se deseja aprender, o que é necessário aprender e como se pode aprender.

O protagonismo ocorre quando o aluno se percebe como um pesquisador e utiliza estratégias próprias de aprendizagem (Educ.1).

 

Quando eles [alunos] entendem que podemos ‘aprender a aprender’, a autonomia se torna a chave para todo o processo de melhoramento do desempenho (Educ.3).

 

Um dos educadores ressaltou que “o aluno precisa ser protagonista para ser aprendiz” (Educ.11), ou seja, no sentido espontâneo e não puramente mecânico, e que “[...] os educadores precisam ter predisposição para inovar, mesmo com os contratempos e as pressões contrárias” (Educ.11). É com esse propósito que a escola democrática, respaldada na aprendizagem solidária e na dialogicidade, apoia a autonomia do educador e do educando em escolher a maneira mais prazerosa de ensinar e aprender, simultaneamente (SINGER, 2010).

A concepção de autonomia, no sentido de ‘liberdade’, na perspectiva dos educadores, foi interpretada como uma “vontade própria” que se concretiza na oportunidade de escolha dos próprios projetos de aprendizagem.

[...] eles [alunos] passam a se sentir mais firmes nas próprias expectativas que colocam em seus projetos. A vontade de desenvolver, de avançar para alcançar, vai se tornando parte da rotina autônoma e responsável deles (Educ.3).

 

Esses apontamentos corroboram com estudos que evidenciaram que as escolhas estimulam o interesse, a curiosidade e a motivação, especialmente daqueles que possuem baixa autonomia e/ou baixo desempenho (RYAN, DECI 2020; MARAYAMA et al, 2015; SCHUTTE, MALOUFF, 2019). Isso significa que, ao escolher e definir um assunto de pesquisa, o aluno reforça o seu interesse, sente-se no comando de suas ações e potencialmente se mostra mais engajado, pois, implicitamente, essa liberdade torna-se uma autonomia percebida e apoiada pelo contexto (REEVE, NIX E HAMM, 2003; RYAN, DECI, 2020).

Na concepção dos educadores, a autonomia também se evidenciou como ‘responsabilidade’. Para os educadores, não há autonomia na aprendizagem sem atribuições de responsabilidades. Conforme afirmou um dos educadores entrevistados, “[...] os alunos possuem liberdade, mas é na autonomia com responsabilidade que eles irão compreender que é possível alcançar os resultados desejados e esperados” (Educ. 2).

Um dos educadores (Educ.12) explicou que a importância de se trabalhar a tríade autonomia-liberdade-responsabilidade em um contexto de educação democrática configura-se pelo fato de que a autonomia se encontra intrinsecamente ligada à responsabilidade, desde a escolha do projeto até sua autoavaliação. Isso inclui processos de conscientização do educando sobre as dificuldades e também de      atitudes éticas em reconhecê-las e dizer ao tutor que não conseguiu cumprir os prazos, e      o porquê de não ter conseguido. Transcrevendo a fala de um dos educadores, “[...] ser autônomo é ser ético. É cumprir seus deveres e ser responsável pelas próprias atitudes” (Educ.11). Isso significa que as escolhas geram responsabilidades, e a responsabilidade define a ética.

Os professores consideraram que a consciência de responsabilidade é um processo gradual e contínuo que deve ser constantemente reforçada pelos educadores e pelos pais. Por isso essa responsabilidade, que integra o conceito de autonomia, “[...] deve ser promovida e incentivada desde os primeiros anos de escola, porém somente se torna possível com o apoio e reforço familiar (Educ. 9). Esses apontamentos destacam a importância do apoio parental e escolar à autonomia dos estudantes para que ocorra a internalização das responsabilidades e o reforço à atribuição de valor e significado àquilo que o estudante aprende e precisa aprender.

A autonomia, enquanto liberdade de expressão e do pensamento crítico e, foi ressaltada como um fenômeno que é percebido e fortalecido pelo vínculo social. “A importância de trazer para o coletivo os resultados da autonomia individual é o que fortalece o seu processo de construção enquanto transformadora e enriquecedora do sujeito que se engaja” (Educ.6). Sobre esses aspectos, Ryan e Deci (2020) reforçam que os vínculos afetivos e sociais fortalecem a autonomia, uma vez que essa necessidade, quando suprida, promove maior aceitação e respeito mútuo pelo grupo que o acolheu.

Em suma, as concepções dos educadores sobre a autonomia na aprendizagem mostraram coerência, sendo a autonomia um produto da liberdade e do protagonismo atrelado à responsabilidade que se desenvolve nas trocas solidárias e colaborativas entre o indivíduo e o coletivo. Por essa razão, Pacheco (2014) reforça que se faz necessário que os pais e os professores encontrem os limites de um controle que permita, à criança e ao adolescente, progredirem numa autonomia, que é expressão de liberdade dentro de um sistema de relação e de trocas sociais. É nesse sentido que Freire (2011) defende que      uma pedagogia da autonomia tem de estar centrada em experiências estimuladoras da decisão, ou seja, em experiências respeitosas de liberdade e responsabilidades

 

Promoção e apoio à autonomia

Conforme mostra a figura 1, a interpretação dos extratos dos relatos dos educadores revelou que promoção e o apoio à autonomia ocorrem por meio do ‘respeito à singularidade’, da ‘oportunidade de escolha’, da ‘mediação e tutoria do professor’ e do ‘apoio familiar’.

Os educadores enfatizaram que o ‘respeito à singularidade’ do aluno é a expressão máxima em termos de respeito à autonomia e aprendizagem individualizada, pois “cada aluno possui um ritmo e um jeito próprio de aprender, independente da capacidade e das potencialidades que eles venham a apresentar” (Educ. 9). Convencidos de que não é possível respeitar as singularidades ensinando todos de maneira padronizada, os educadores mostraram-se favoráveis a uma prática pedagógica direcionada por um currículo flexível e um ensino dinâmico que “reconheça as múltiplas inteligências dos alunos e que não incentive a competitividade” (Educ. 12). Sobre essas questões, um dos educadores enfatizou que, em um contexto de escola democrática, “não existe quem sabe mais ou quem sabe menos. O que há é um processo individual e progressivo de construção do conhecimento” (Educ. 11).

Acerca desses enunciados, Trindade e Cosme (2016) defendem que as opções pedagógicas perspectivadas a partir do paradigma da aprendizagem, e há tempos legitimadas por estudiosos (exemplo, Dewey, Decroly, Rogers, Montessori, Anísio Teixeira), concentram-se em ações que atendem ao ritmo de cada aluno, considerando seu desenvolvimento cognitivo e as dinâmicas naturais que poderão garantir a ocorrência de aprendizagens.

Na percepção dos educadores, a ‘oportunidade de escolhas’ também se mostrou relacionada e codificada como ação promotora da autonomia, pois considera que as escolhas despertam o interesse dos alunos pelos estudos, aumenta o sentimento de competência e a confiança de que o professor acredita em suas potencialidades. Essas percepções são congruentes com pesquisas que relacionam positivamente o apoio à escolha de tarefas pelo professor ao fortalecimento das relações de afeto e de crenças de competência (PATALL et al, 2019; JANG, REEVE, HALUSIC, 2016).

Em relação aos agentes da promoção da autonomia, os educadores consideraram que a ‘mediação e a tutoria do professor’ são essenciais para o engajamento do aluno na aprendizagem, e ressaltaram a importância de o professor promover diálogos constantes que possam reforçar a competência e o sentimento de autoeficácia no aluno, estimulando-o a formular perguntas, agir e acreditar que ele pode ir além do que lhe foi proposto. Um dos educadores disse que muitos alunos são tolhidos em suas potencialidades quando são limitados a aprender um conteúdo que o professor selecionou. O educador explica que

 

O primeiro passo é externar que todos acreditam nele e que ele é capaz. [...] Vi uma aluna de aproximadamente 12 anos citando e explicando Hannah Arendt em seu trabalho. Ela caminhou com seus próprios pés e foi para uma autora que só costumamos trabalhar na graduação. Se isso não é a prova da eficácia da autonomia, não sei o que é (Educ. 8).

Os educadores ressaltaram a importância do afeto e da cooperação na relação entre educador e educando, em especial nos momentos em que é preciso “chamá-los à responsabilidade” e estabelecer os limites, porém sem exceder na linguagem de controle (Educ. 7). Nesse sentido, tem-se que “o papel do professor é guiar o processo de aprendizagem e reforçar os avanços na autonomia” (Educ. 2). Nessa perspectiva, tem-se, a partir de Vygotsky (1984), que a mediação do professor viabiliza os processos de aprendizagem e também de autonomia, uma vez que o outro mais experiente se mostra como um ‘andaime’ que incentiva e facilita o significado da ação do sujeito sobre o objeto que passa a transformar, dominar e internalizar conceitos, papéis e funções sociais presentes na sua realidade.

No entanto, a autonomia somente florescerá no aluno se houver ‘apoio familiar’.      Um dos educadores (Educ. 6) argumentou que “[...] fica mais fácil construir a autonomia quando há acompanhamento e um exemplo a ser seguido”. Outro educador (Educ. 7) reforçou que,

“[...] sem o apoio dos pais, a aprendizagem nesses moldes pode se tornar um processo cansativo para o professor, pois a autonomia somente surge quando o aluno vê sentido e valor no que ele está fazendo”.

 

Sob esses aspectos, Ryan e Deci (2020) reforçam a importância do apoio parental e escolar na atribuição de valor aos regulamentos, para que estes possam ser internalizados e integrados como coerentes aos valores e interesses dos alunos.  Isso significa que, quando os pais confiam na proposta pedagógica da escola, eles incentivam os filhos em seus projetos individuais de aprendizagem, reforçando suas potencialidades e competências que, consequentemente, podem resultar em atitudes de responsabilidade.

Em relação às ações atribuídas ao papel do professor no apoio à autonomia do aluno, Ryan e Deci (2020) enfatizam que estar atento às necessidades socioemocionais dos estudantes é essencial para a construção de um ambiente educacional potencialmente motivador. Nesse sentido, apoiar a autonomia implica em promover atividades que sejam do interesse do aluno e que estejam dentro dos seus níveis de competências      e fortalecer os vínculos afetivos por meio da redução da linguagem de controle. Ao mesmo tempo, essas ações promovem uma maior aceitação e internalização das regras e, consequentemente, um maior engajamento na aprendizagem.

 

Desafios no contexto escolar na promoção da autonomia

Sob os aspectos que envolvem os desafios de uma prática promotora da autonomia, a análise revelou uma magnitude relacional para as definições (subtemas) ‘pressões do sistema tradicional’, ‘falta de recursos financeiros’, ‘falta de capacitação dos educadores’ e ‘falta de credibilidade na abordagem pedagógica’ (figura 1).

Os educadores relataram que ‘as pressões do sistema tradicional’ interferem nas práticas educativas flexíveis quando promovem a padronização da avaliação em níveis de pontuação, como é o caso dos exames para o ingresso na universidade. Esses aspectos influenciam nas crenças dos pais e também nas dos alunos sobre o rendimento escolar em comparação com escolas de ensino tradicional:

Claramente a questão dos exames para universidades é um fator preocupante para alguns pais. Muitas escolas oferecem modelos sufocantes direcionados apenas para esses testes. Isso é muito comum e tem credibilidade. Por isso há uma desconfiança diante de novos métodos (Educ. 7).

 

A falta de preparação e ‘falta de capacitação dos professores’ também se mostrou como um dos desafios relacionados às pressões do sistema tradicional. Um dos educadores alegou que “os professores também têm dificuldades em lidar com a autonomia do aluno, pois “às vezes não sabem lidar com questões e demandas que surgem, já que vivemos em um sistema educacional ‘engessado’" (Educ.8). Outro educador complementou:

A aceitação da sociedade é muito difícil porque fomos educados em uma metodologia tradicional, onde o professor é o único detentor do saber. Ir contra essa consciência já instaurada no aluno, na família e até mesmo em nós profissionais da educação, é uma desconstrução quase diária, mas não é impossível (Educ.9).

 

A ‘falta de credibilidade na abordagem pedagógica’ atrelada à ‘falta de recursos financeiros’, ou de parcerias com outras instituições (públicas ou privadas), também se mostrou como um dos desafios que impedem que esses modelos de escola invistam em projetos dos alunos, em melhorias no espaço escolar, paguem salários justos para os educadores e os capacitem de forma a manter um quadro de professores estável.

Contudo, os educadores mostraram-se conscientes de que promover a autonomia na aprendizagem é inovar e romper com a padronização comum da maioria das escolas de educação básica brasileira. O desafio de não se sentir diretamente no controle é o que leva muitos educadores a desistir e a fazer o que a maioria faz: encaixar os alunos em um padrão de ensino que, consequentemente, desrespeita o ritmo e o jeito próprio de cada um aprender (Educ. 12).

Para os que resistem, as implicações de Rogers (1983), acerca da liberdade para aprender, ainda ecoam sobre a necessidade de mudanças no clima educacional, reforçando que as inovações não devem ser temidas, tampouco as capacidades criativas dos professores, gestores e alunos não devem ser abafadas e sim estimuladas.

 

Conclusão

Embora a promoção da autonomia tenha sido legitimada há mais de meio século por psicólogos, educadores e pesquisadores como um dos aspectos que favorece os processos naturais de aprendizagem, os educadores da escola democrática campista consideram sua promoção como uma prática inovadora em relação ao que eles chamaram de sistema ‘engessado’ da maioria das escolas brasileiras. Esse movimento, que se mostra contrário ao paradigma da instrução, exige que a comunidade escolar (pais, alunos, educadores e gestores) esteja consciente de suas atribuições, como: oportunizar escolhas, estabelecer limites sem exceder no controle, respeitar o tempo do aluno, acreditar em suas competências e potencialidades e resistir às pressões do ensino tradicional.

A análise temática revelou que os educadores entendem a autonomia na aprendizagem como um processo gradual intrinsecamente ligado às concepções de liberdade, protagonismo e responsabilidade. Em suas concepções, o indivíduo autônomo é aquele que se mostra ético e responsável consigo e com o grupo. No entanto, conscientizar os alunos da necessidade de aquisição dessas atitudes na aprendizagem revelou-se como um dos principais desafios vivenciados na prática docente.

Embora tenham se mostrado favoráveis de que a abordagem pedagógica democrática é coerente com suas concepções de Educação e de aprendizagem e reconhecerem o importante papel do professor na promoção da autonomia, em seus relatos, os educadores demonstraram certa insegurança sobre como promover consciência aos alunos dos limites entre a liberdade e a responsabilidade, e de como ajudá-los a atribuir valor e significado ao que se aprende.

A partir de uma interpretação mais global dos relatos dos educadores, considera-se, nesse estudo, que essas dificuldades estejam relacionadas à falta de capacitação dos educadores, devido ao curto tempo de experiência com o método (2016-2018) e à falta de remuneração justa que, somadas às pressões do sistema tradicional, dificultam sua prática. Afinal, essas pressões também interferem nas crenças e na confiança dos pais na escola e nos resultados de aprendizagem e, consequentemente, no interesse, nos esforços e na crença de competência dos alunos.

Os achados desse estudo dialogam com a literatura especializada ao dizer que o apoio dos pais e dos educadores é essencial para o desenvolvimento da autonomia e para o êxito nas aprendizagens. Isso se justifica pelo fato de que o protagonismo, a autonomia e o engajamento volitivo demandam reforços e explicações que possam ajudar o aluno a atribuir significado e valor ao que aprende. Assim sendo, o aluno internaliza atitudes e comportamentos coerentes com o pensamento das escolas democráticas de que ‘todos são responsáveis por todos’ em uma verdadeira comunidade de aprendizagem.

É nesse sentido que se sugere que as práticas educativas devem orientar-se por abordagens pedagógicas dialógicas que respeitem a autonomia do educador e do educando e favoreçam um clima escolar acolhedor, de respeito mútuo e de aprendizagem solidária, de maneira que possa contribuir para a formação integral do indivíduo em termos cognitivos e emocionais.

Acerca das limitações desse estudo, entende-se que faltaram informações sobre as ações práticas da mediação e tutoria dos educadores relacionadas às etapas de planejamento, execução e autoavaliação dos projetos individuais de aprendizagem, por exemplo, sobre a clareza de objetivos e o feedback. Acredita-se que a análise dessas ações clarificaria os pontos obscuros acerca das dificuldades dos educadores em promover a autonomia atrelada às responsabilidades.

Em suma, considerando que esse estudo se refere a uma das etapas de análise de um estudo que tem seu escopo mais amplo, acredita-se que outros aspectos relacionados à autonomia na aprendizagem ainda possam ser investigados e evidenciados a partir de outros olhares e outros ângulos de interpretação ao término do estudo.

 

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