As relações de poder entre as crianças: estado da arte a partir das pesquisas produzidas no Brasil, no período de 2000 a 2019.[1]

Power relations among children: state of the art based on research produced in Brazil, from 2000 to 2019.

 

Rebeka Rodrigues Alves da Costa

Universidade Federal do Ceará, Ceará, Brasil

rebekacomk@gmail.com - https://orcid.org/0000-0003-0121-939X

 

Ana Maria Coelho Monte Frota

Universidade Federal do Ceará, Ceará, Brasil

anafrota@ufc.br - https://orcid.org/0000-0003-4890-5821

 

 

Recebido em 24 de novembro de 2020

Aprovado em 31 de março de 2022

Publicado em 13 de outubro de 2022 

 

 

RESUMO

O presente trabalho buscou fazer uma síntese do conhecimento produzido no Brasil sobre o tema das relações de poder entre as crianças, com base na análise bibliográfica das dissertações e teses defendidas nos programas de pós-graduação do país e disponíveis na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), dos artigos publicados no portal de periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e dos pôsteres e trabalhos apresentados na Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), no grupo de trabalho sobre educação de crianças de 0 a 6 anos (GT07), no período de 2000 a 2019. Foi possível concluir que as relações sociais das crianças são atravessadas por desigualdades sociais, econômicas e questões de gênero que, por sua vez, produzem comportamentos e falas infantis que expressam relações de poder na infância. Tanto a família como a escola configuraram-se, a partir da análise dos textos supracitados, como espaços de reprodução de estereótipos e preconceitos, bem como lugar de resistência e transformação. A temática das relações de poder entre as crianças ainda é pouco explorada no país e o número de trabalhos acadêmicos que relacionam as relações de poder às interações que se estabelecem entre as crianças é muito pequeno, se considerarmos a quantidade de pesquisas realizadas no âmbito da educação.

Palavras-chave: Relações de poder. Crianças. Educação Infantil.

 

ABSTRACT

The present work sought to synthesize the knowledge produced in Brazil on the subject of power relations among children, based on the analysis of dissertations and theses defended in the country's graduate programs and available at the Brazilian Digital Library of Theses and Dissertations (BDTD), the articles published on the journals portal of the Coordination for the Improvement of Graduate Education Personnel (CAPES) and the posters and papers presented at the National Association of Graduate Studies and Research in Education (ANPEd), in the working group on education of children from 0 to 6 years old (GT07), in the period from 2000 to 2019. Through this work, it was possible to conclude that the social relations of children are crossed by social and economic inequalities and gender issues that, in turn, produce behaviors and children's speech that express power relations in childhood. Both the family and the school were configured, from the analysis of the above texts, as spaces for the reproduction of stereotypes and prejudices, as well, as places of resistance and transformation. The theme of power relations among children is still little explored in the country and the number of academic studies that relate power relations to the interactions that are established between children is very small, if we consider the amount of research carried out in the field of education.

Keywords: Power relations. Children. Children education.

 

Introdução

O presente artigo buscou fazer uma pesquisa bibliográfica sobre as relações de poder entre as crianças com base na produção científica brasileira, produzida no período de 2000 a 2019. Para tal, realizamos um levantamento do Estado da Arte que, como esclarece Ferreira (2002, p. 258), trata-se de um processo que tem o “desafio de mapear e de discutir uma certa produção acadêmica […] sobre o tema que busca investigar”. Este artigo surgiu a partir da necessidade de inventariar e desvendar os conhecimentos que já foram elaborados cientificamente acerca das relações de poder que se estabelecem entre as crianças, a fim de apontar os enfoques e as possíveis lacunas ainda existentes sobre este assunto, assim como trazer reflexões e descobertas recentes no cenário acadêmico nacional.

O levantamento bibliográfico foi realizado nas bases da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) e do portal de periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), nas quais os descritores “relações de poder” e “crianças” deram a conhecer a produção científica acerca desta temática. Outras bases de dados foram analisadas, tais como a Biblioteca Eletrônica Científica Online (Scielo) e o Repositório Institucional da UFC. No entanto, verificamos que muitos dos trabalhos desenvolvidos sobre essa temática já estavam sendo contemplados. Deste modo, para evitar duplicidade de informação, restringimos a pesquisa às três bases já mencionadas.

O recorte temporal adotado buscou abranger pesquisas desenvolvidas uma década antes e uma década após a homologação da Resolução CNE/CEB nº 5/2009 (BRASIL, 2009) que fixou as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2010), notadamente um dos marcos mais importantes da legislação para a primeira etapa da educação básica no Brasil. Perguntamo-nos se tal documento poderia ter exercido algum tipo de influência na produção científica sobre esse tema. Como forma de ampliar as discussões sobre como as interações sociais entre as crianças são atravessadas por relações de poder, apresentaremos a seguir alguns conceitos que consideramos fundamentais para o entendimento dessa temática.

As relações de poder entre as crianças: conhecendo alguns conceitos

As relações entre adultos e crianças e, sobretudo, entre as próprias crianças se configuram como contextos privilegiados de interações e de processos significativos de socialização na infância. De acordo com Ferreira (2004a), o processo de socialização das crianças[2] propicia experiências que envolvem a partilha de ideias, de sentimentos, de perspectivas, de papéis e de atividades em conjunto. Contudo, as interações estabelecidas entre elas fazem emergir, também, outros tipos de situações em que são necessárias a negociação interpessoal, a discussão de ideias e a resolução de conflitos. Tais interações revelam que, se por um lado os pares[3] são agentes de socialização e contribuem na aprendizagem social das crianças, por outro podem fazer emergir desiguais relações sociais de poderes.

Segundo Foucault (1979), o poder está presente em todas as relações sociais. Por sua vez, o poder não é algo que se possa possuir, como o fazemos com uma coisa ou um objeto, mas é exercido na trama social composta pelas relações de uns sobre os outros. O poder é, portanto, relacional e nesta perspectiva “[...]não se dá, nem se troca, nem se retoma, mas [...] se exerce e só existe em ato” (FOUCAULT, 1999, p. 21). Funciona “como uma rede de dispositivos ou mecanismos a que a nada ou ninguém escapa[...]Rigorosamente falando, o poder não existe; existem sim práticas ou relações de poder” (MACHADO in FOUCAULT, 1979, p. XIV). Assim, as relações de poder constituem-se enquanto forças exercidas pela ação de uns sobre as ações de outros. Em vista disso, as crianças, no seu processo de socialização, encontram-se imersas em redes de relações de poder e, tanto são constituídas nessas redes como também se constituem. Deste modo, para ser compreendido, o poder precisa ser analisado a partir das relações entre os indivíduos, dentro de uma rede de sociabilidade. São os indivíduos que, imersos num contexto de socialização, estabelecem relações que expressam um mecanismo de poder entre eles.

 

A socialização, definida por Plaisance (2004, p. 03) como um “processo geral que abrange toda a vida humana, ou seja, que constitui os seres humanos como seres sociais”, se forma na contínua e complexa interação entre os pares. No entanto, a simples convivência com outras crianças através de atividades rotineiras não implica, necessariamente, ser parte integrante e ativa de um grupo. Como postulam Berger e Luckmann (1999, p. 137), “o indivíduo não nasce membro de uma sociedade. Nasce com predisposição para a sociabilidade e torna-se membro da sociedade”, portanto é a partir da dialética da sociedade, no caso das crianças a dialética do grupo de pares, que elas passam a fazer parte dele e tornam-se membros ativos. Tal compreensão faz emergir uma relação entre as crianças e uma identificação do indivíduo para com o grupo. O que é característico do grupo de pares passa a ser partilhado, discutido, defendido, reproduzido e legitimado pelos indivíduos que o compõem, constituindo-se em discursos de verdade. Foucault (1999, p. 29) conceitua que

[...] a verdade é a norma; é o discurso verdadeiro que, ao menos em parte, decide; ele veicula, ele próprio propulsa efeitos de poder. Afinal de contas, somos julgados, condenados, classificados, obrigados a tarefas, destinados a uma certa maneira de viver ou a uma certa maneira de morrer, em função de discursos verdadeiros, que trazem consigo efeitos específicos de poder. Portanto: regras de direito, mecanismos de poder, efeitos de verdade.

São os discursos de verdade que orientam as condutas e os comportamentos dos pares e preservam o funcionamento da ordem social do grupo. Neste sentido, Ferreira (2004b) afirma que a ordem social infantil elaborada pelas crianças reflete a sua maneira de ser e estar no mundo e engloba, no seio de sua estrutura, uma série de ações, conhecimentos, competências sociais, princípios e valores próprios, os quais, apropriados pelas crianças, caracterizam e orientam a cultura de pares e a(s) ordem(ns) social(ais) do grupo.

Estudando a cultura de pares infantis, Corsaro (2011, p. 128) define cultura como sendo “[...] um conjunto estável de atividades ou rotinas, artefatos, valores e preocupações que as crianças produzem e compartilham em interação com as demais”. Sendo assim, o autor reconhece que ela é fundamental ao desenvolvimento infantil, pois permite à criança apropriar-se da realidade cotidiana que a rodeia, reinventando-a e reproduzindo-a.

Enfatizar essas interações entre as crianças como práticas sociais é chamar a atenção para a emergência de estruturas de poder e hierarquias de estatuto que se desenvolvem nas relações entre os pares. Tanto as relações de poder, a negociação das regras e princípios do grupo de pares, quanto as relações de respeito mútuo serão obstáculos que as crianças terão que ultrapassar na sua relação com a coletividade, dados os conflitos e a distribuição diferenciada de recursos e poderes. A superação destas e a construção de um ambiente social saudável e bem ajustado implicará:

A negociação da hierarquia de autoridade, a avaliação e a monitorização do comportamento dos outros, o reconhecimento diferenciado das intenções dos outros, a actuação em termos de padrões flexíveis de modo a proteger o seu território e negociar sentidos comuns (FERREIRA, 2004a, p. 196).

 

Compreender esse processo é revelar os modos como as crianças expressam a sua identidade individual e coletiva, jogam e trocam estrategicamente recursos múltiplos e mobilizam saberes e competências para controlar e vigiar comportamentos que venham a se tornar ameaçadores à ordem instituinte do grupo.

Nesta primeira seção enunciamos alguns conceitos com vistas a uma melhor compreensão sobre a temática. A seguir, apresentaremos o levantamento das pesquisas desenvolvidas no Brasil no período histórico de 2000 a 2019 a fim de conhecer as evidências produzidas sobre as relações de poder entre as crianças e identificar possíveis lacunas que demandem uma maior discussão e/ou aprofundamento.  

 

As relações de poder entre as crianças: O que dizem as produções científicas?

Para conhecer o que as produções científicas revelavam acerca das relações de poder entre as crianças no período de 2000 a 2019, investigamos as bases de dados da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) e do portal de periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), utilizando para isso algumas palavras-chave.

A consulta às plataformas, inicialmente, buscou trabalhos através da relação entre três descritores. Utilizamos combinações como: relações de poder, crianças e Educação Infantil; relações de poder, crianças e interações, dentre outras. Porém, além da busca ter apresentado poucas pesquisas, a grande maioria delas fazia referência às relações de poder que se estabelecem entre adultos e crianças no contexto da Educação Infantil, e desejávamos relações de poder entre as crianças. Em seguida, realizamos uma busca utilizando somente a expressão “relações de poder” e, dessa vez, muitos trabalhos surgiram. Porém, grande parte das pesquisas não fazia nenhuma referência ao objeto de estudo pretendido, surgindo trabalhos sobre as relações de poder entre professores e alunos, entre médicos e enfermeiras, expressas na legislação, dentre outros.

Levantamos a possibilidade de que a expressão “relações de poder” não fosse um termo utilizado em pesquisas realizadas com crianças. No entanto, por se tratar da questão central de investigação da pesquisa em curso, optamos por mantê-la e utilizamos, nas três bases digitais, os descritores “relações de poder” e “crianças”. O intuito era ampliar a margem de pesquisa e a quantidade de resultados obtidos, visto que a tentativa inicial de busca a partir da combinação de três palavras-chave tinha apresentado um número reduzido de produções científicas nas plataformas pesquisadas.

A pesquisa na plataforma da BDTD gerou, ao nível das escritas de teses e dissertações, 149 resultados. Selecionamos trabalhos que faziam alusão ao tema no título, nas palavras-chave e/ou no resumo, ou que de alguma forma traziam em suas considerações finais alguma informação sobre as relações de poder nas interações entre as crianças.

A partir do levantamento de dados selecionamos 7 trabalhos, sendo 4 dissertações (WOLFF, 2006; MEIRELES, 2008; SOUZA, 2010; MICHEL, 2011) e 3 teses (AZEVEDO, 2003; SOUZA, 2007; BUSS-SIMÃO, 2012a). Para uma melhor organização temporal, analisaremos os trabalhos levando em consideração o ano de sua defesa. Abaixo apresentamos a tabela 1 que explicita tais resultados.

 

 

Tabela 1 – Quantitativo de pesquisas disponíveis na BDTD no período de 2000 a 2019 sobre as relações de poder entre as crianças

PERÍODO

DISSERTAÇÕES

TESES

2003

-

1

2006

1

-

2007

-

1

2008

1

-

2010

1

-

2011

1

-

2012

-

1

Total parcial

4

3

TOTAL GERAL

7

Fonte: Elaborada pela autora a partir de informações obtidas no site da BDTD no ano de 2020.

A tese de Azevedo (2003), a primeira encontrada nas buscas da plataforma BDTD, foi realizada na Faculdade de Educação de São Paulo - FEUSP/SP e trazia como tema “Brinquedos e gênero na educação infantil: Um estudo do tipo etnográfico no estado do Rio de Janeiro”. O objetivo do estudo era identificar as principais representações sociais, de gênero, circulantes no contexto da Educação Infantil, bem como conhecer como se estabelecem as relações de gênero/poder nesse contexto, sob uma perspectiva foucaultiana. A autora optou por uma pesquisa do tipo etnográfica, sendo realizada em uma instituição pública de Educação Infantil de ensino pré-escolar, sediada no Rio de Janeiro.

A partir da análise do currículo, das práticas pedagógicas e da observação das relações que se estabelecem entre as crianças, principalmente nos momentos de brincadeira, a pesquisadora verificou representações e relações de gênero/poder que poderiam se constituir em desigualdades e discriminações entre meninos e meninas que, por conseguinte, seriam capazes de interferir no processo de formação das identidades de gênero das crianças. Foi apontada a necessidade de se buscar medidas e ações, no plano das políticas públicas e da organização do cotidiano escolar para que a díade gênero/poder pudesse ser desconstruída no espaço da Educação Infantil.

A pesquisa de Wolff (2006), assim como a de Azevedo (2003), tinha como foco de estudo as relações de gênero na Educação Infantil. A pesquisa foi realizada na Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC/SC e apresentava como tema “Como é ser menino e menina na escola: um estudo de caso sobre as relações de gênero no espaço escolar”. A pesquisa trazia as crianças como sujeito central de investigação e tinha como objetivo investigar os significados, manifestações e estratégias presentes nas relações entre as crianças, com o intuito de verificar quais as manifestações de gênero que apareciam ou tornavam-se visíveis no espaço escolar, nas brincadeiras e manifestações da socialização das crianças das séries iniciais de ensino fundamental. Para tanto, foi feito um estudo de caso em uma escola pública, por meio de observação participante, registros de diário de campo, fotografias, registros e análises dos desenhos das crianças, para além de conversas informais nos momentos em que juntos, pesquisador e crianças, caminhavam pelo pátio da escola.

Com base na análise do material construído durante a investigação, o pesquisador denunciou como se produzem estereótipos de gênero a partir das relações de poder na escola, seja entre professor-criança, seja entre as próprias crianças. A pesquisa ressaltou, no entanto, que esse poder não se configura de modo unilateral, uma vez que as crianças não somente reproduzem os estereótipos em suas condições de gênero, raça/etnia, idade e classe social, mas também os reinterpretam, refutando-os e elaborando estratégias de oposição.

Souza (2007), em sua tese de doutorado, realizou uma pesquisa qualitativa, utilizando uma metodologia chamada bricolagem[4], unindo transcrição de entrevistas, observações de diário de campo, documentos, fotos e figuras, com o intuito de realizar uma análise interpretativa e avaliativa da cultura dos indivíduos envolvidos na pesquisa. Seu trabalho “Desvendando práticas familiares e escolares a partir das relações de gênero: uma reflexão sobre a educação de meninos e meninas” foi realizado durante o doutorado em educação pela Universidade Estadual Paulista - UNESP/SP. O objetivo da pesquisa era verificar que concepções de gênero são manifestadas no ambiente familiar e escolar e que significados contemplam na socialização das crianças.

A pesquisadora verificou, a partir dos discursos dos(as) pais/mães, que é feita uma diferenciação, por parte da família, entre meninos e meninas, privilegiando um gênero em detrimento do outro, revelando relações de poder. Isso é expresso na forma como são ensinados aos meninos e às meninas modos distintos de comportamento, sendo cobrados deles ações diferenciadas para homens e mulheres. No entanto, destaca que é também no espaço familiar que os gêneros podem vir a ser confrontados e as representações estereotipadas podem ser desconstruídas.

Meireles (2008), na dissertação realizada na Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF/MG, analisou o que as relações de poder entre as crianças revelavam a respeito das configurações que a infância pode assumir, a partir das práticas discursivas produzidas no contexto escolar. Sua pesquisa intitulada “A infância nas tramas do poder: um estudo das relações entre as crianças na escola” foi qualitativa, e utilizou como metodologia a análise do discurso à moda foucaultiana, através de observação participante, entrevistas individuais, diário de campo e gravação em vídeo.

A pesquisa reafirmou a existência de relações de poder entre as crianças, expressas em disputas permanentes. Comprovou a premissa de Foucault (2005) de que o poder só existe em relação, configurando-se como jogos de força que se definem de forma provisória, a partir do papel social que cada um vai assumindo na sua relação com o outro. Ademais, verificou que esta permanência das disputas se configurava como resistências na interação estabelecida entre as crianças e que isto situavam-nas em suas relações como “crianças, como amigas, como obedientes, como meninas ou meninos, cujas posições também iam orientando seus modos de agir, suas escolhas, seus discursos” (2008, p. 134) a partir dos discursos de verdade construídos para cada papel social assumido pelas crianças perante o grupo.

Souza (2010), na pesquisa desenvolvida na Universidade Federal do Ceará - UFC/CE ao nível do mestrado em Psicologia, realizou uma investigação com vistas a compreender o processo de singularização de crianças na Educação Infantil, a partir de suas interações na situação lúdica de jogo protagonizado. O autor partiu do pressuposto de que o jogo protagonizado tanto é produto como produz nas crianças tendências e desejos de querer ocupar o lugar do adulto e compreender as relações que estabelecem com os adultos, com as outras crianças e com os objetos, o que implica numa nova forma de a criança interagir com a realidade à sua volta. O trabalho intitulado “Um estudo sobre o processo de singularização de crianças através do jogo protagonizado” compreendeu observação participante com inspiração etnográfica, utilizando como construção de dados de pesquisa, filmagens e um estudo das atividades discursivas das crianças em situações de interação.

As relações de poder[5] foram um dos principais elementos na análise do jogo protagonizado pelas crianças. Os resultados obtidos apontaram que a forma como as crianças se guiavam nos momentos de negociação, as posturas assumidas frente aos colegas, no que diz respeito às atitudes de distanciamento e aproximação, as relações de poder estabelecidas entre eles, o modo como protagonizavam o jogo e os mecanismos criados por elas ao argumentar e reconstruir suas relações sociais, foram evidenciados no processo de singularização no jogo.

No ano seguinte, Michel (2011) problematizou em sua pesquisa, intitulada “Interações infantis e relações de poder: fios que tecem uma trama”, as temáticas das interações infantis e das relações de poder, enquanto potência de produção, buscando analisar de que modo as relações de poder atravessam, constituem e possibilitam as ações próprias das crianças. A pesquisa foi realizada na Universidade Federal do Rio Grande - UFRG e teve como base os estudos pós-estruturalistas. Assim como Souza (2007), foi utilizada como metodologia científica a bricolagem, lançando mão do diário de campo, de observações, fotografias e conversas-entrevista.

Do mesmo modo como tem sido constatado nas demais pesquisas aqui apresentadas, o estudo indicou que as interações das crianças são atravessadas e constituídas por relações de poder, podendo ser percebidas enquanto potência de produção. Assim, ao mesmo tempo em que as crianças são afetadas pelos efeitos de poder, também produzem relações de poder nas suas interações com o outro. O momento do recreio configurou-se como esse espaço de criação de estratégias e instrumentos disciplinares que possibilita e mantém os modos de funcionamento da escola, para além de permitir outros modos de ser e estar criança, de organizar brincadeiras e de propiciar a criação de outras regras.

Por fim, Buss-Simão (2012a) em sua tese “Relações sociais em um contexto de educação infantil: um olhar sobre a dimensão corporal na perspectiva de crianças pequenas”, desenvolvida no programa de doutorado em educação da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, investigou os significados e usos que as crianças dão à dimensão corporal. Buscou identificar como e por meio de quais processos as crianças constroem, manifestam, representam e experienciam seus corpos, tendo em conta as definições e determinações de uma ordem institucional adulta, bem como, de uma ordem social emergente das próprias crianças. Para atingir esse objetivo foi realizada uma pesquisa etnográfica, na qual utilizaram-se registros escritos, fotográficos e fílmicos.

A autora destacou que no processo de compreender como as crianças significavam e faziam uso da dimensão corporal nas suas relações sociais, o gênero configurou-se como uma categoria central do seu trabalho na medida em que as crianças utilizavam os seus corpos na negociação de relações de poder entre os seus pares.

Foi ressaltada, em seu trabalho, a necessidade de compreender como as crianças vivenciam e dão significado aos processos de negociação, bem como, quais os conhecimentos e saberes sociais e culturais determinam o mesmo. A pesquisadora destacou que parece ser mais importante ainda para os estudos sociais da infância compreender o modo como as crianças utilizam estes saberes na sua interação com outras crianças e com os adultos com os quais convive no dia a dia da Educação Infantil.

A segunda plataforma digital a ser pesquisada foi a da ANPEd. Ela é composta por 23 grupos de trabalho (GT), que reúnem investigações de áreas de conhecimentos especializados. Por ser o foco deste trabalho as relações de poder que são estabelecidas entre as crianças, optamos por analisar apenas o GT 07, que contém pesquisas sobre a “Educação de crianças de 0 a 6 anos”.

A pesquisa no GT 07 da plataforma da ANPEd, realizada por meio do campo de busca e utilizando-se a expressão “relações de poder” não forneceu nenhum resultado. Ao realizarmos a busca utilizando somente a palavra-chave “crianças” surgiram 39 pôsteres e 175 trabalhos, que se referem ao número total de pôsteres e trabalhos publicados no GT 07. Sendo assim, foi necessária uma pesquisa minuciosa que envolveu a análise individual de todos os pôsteres e trabalhos contidos no referido GT, selecionando os que apresentavam de algum modo nas palavras-chave, no resumo ou no corpo do trabalho o tema das relações de poder entre as crianças. A tabela a seguir revela o quantitativo encontrado.

Tabela 2 – Quantitativo de pesquisas disponíveis na ANPEd sobre as relações de poder entre as crianças.

PERÍODO

POSTER

TRABALHOS

2006

-

2

2012

-

2

2013

-

1

Total parcial

0

5

TOTAL GERAL

5

Fonte: Elaborada pela autora a partir de informações obtidas no site da ANPEd no ano de 2020.

Verificamos que nenhum dos pôsteres fazia referência ao tema em questão. Já entre os trabalhos, cinco faziam alusão às relações de poder entre as crianças no corpo do trabalho (BORBA, 2006; ALCÂNTARA, 2006; BUSS-SIMÃO, 2012b; MAYNART e HADDAD, 2012; ARENHART, 2013). Analisaremos cada um deles a seguir de acordo com o ano de sua publicação.

Borba (2006) em seu trabalho “As culturas da infância nos espaços-tempos do brincar: estratégias de participação e construção da ordem social em um grupo de crianças de 4-6 anos”, buscou compreender como as crianças, nas relações que estabelecem entre si e nas formas de ação social que constroem nos espaços-tempos do brincar, constituem suas culturas da infância e são também por elas constituídas. Esse trabalho, apresentado na 29ª Reunião Anual da ANPEd, derivou de sua tese de doutorado “Culturas da infância nos espaços-tempos do brincar” defendida em 2005. A tese da autora não foi disponibilizada na base de dados digitais da BDTD e, por isso, não pode ser incluída e analisada neste artigo.

A autora verificou que as crianças revelam nas interações com outras crianças seus laços de amizade, hierarquias, relações de poder, valores, conhecimentos e regras que regem as relações sociais e o funcionamento dos grupos. Ao analisar as estratégias que as crianças utilizavam ao tentar acessar as brincadeiras para delas participarem, revelou-se para a pesquisadora um processo complexo regido por normas e valores partilhados pelas crianças. A pesquisa destacou ainda que é no contexto da construção conjunta entre pares, de valores comuns, que a ordem social própria do grupo é instituída pelas crianças.

Alcântara (2006) investigou as formas de resistência que a criança esboça ao elaborar mecanismos de escape, através dos quais reage ao processo de normatização/disciplinarização. O seu trabalho “Subjetividade e subjetivação: a ‘criança resistência’ nas dobras do processo de socialização”, apresentado na 29ª Reunião Anual da ANPEd, utilizou procedimentos metodológicos da etnografia, como a observação participante.

A construção e análise dos dados revelou que em seu processo de socialização - com adultos ou entre pares - as crianças, de modo criativo, expressam formas de resistência à disciplinarização e homogeneização. A autora destacou ainda que a expressão do ato criativo das crianças emerge naturalmente, mesmo com todo o aparato disciplinador, e isso nem sempre representa descumprimento das normas necessárias à sua inserção no grupo social. Nesse processo de subjetivação abriram-se possibilidades para o que a autora chamou de “escape do indivíduo”, que pode ser compreendido como as formas criativas pelas quais as crianças subvertem a ordem instituinte.

Buss-Simão (2012b) em seu trabalho “Meninos entre meninos num contexto de educação infantil: um olhar sobre as relações sociais de gênero na perspectiva de crianças pequenas”, investigou, entre as crianças pequenas, as formas, as significações e as vias de transmissão de elementos culturais e sociais que envolvem a dimensão corporal. Pesquisou também a emergência de novos elementos que reforçam, modificam, multiplicam, transformam, transgridem e transcendem, ou simplesmente ocultam, aqueles já estabelecidos anteriormente. Este trabalho, apresentado na 35ª Reunião Anual da ANPEd, trata-se de um recorte de sua tese de doutorado (BUSS-SIMÃO, 2012a) citada anteriormente neste artigo.

A metodologia adotada foi a etnografia, utilizando-se como instrumentos de construção de dados registros escritos, fotográficos e fílmicos. A construção dos dados evidenciou que o pertencimento e as noções de gênero envolvem uma variedade de conhecimentos e elementos sociais e culturais, os quais requerem um estudo minucioso para se compreender como, e o que, as crianças sabem e aprendem sobre elas mesmas, ao estabelecerem suas relações no cotidiano de uma instituição de Educação Infantil. A autora destacou ainda ser importante compreender os usos que as crianças dão ou fazem desses conhecimentos nas suas relações sociais.

Maynart e Haddad (2012), observando as situações de brincadeira livre entre crianças de mesma idade, objetivaram discutir a compreensão que as crianças possuem acerca das relações de parentesco. O seu trabalho intitulado “A compreensão das relações de parentesco pelas crianças na brincadeira de faz de conta em contexto de Educação Infantil” revelou que as crianças apresentam em suas brincadeiras os papéis sociais familiares, as relações de parentesco, os papéis hierárquicos que envolvem as relações de poder e de gênero na busca pela compreensão de si e do outro. Os dados da pesquisa indicaram que a criança traz para a brincadeira as relações familiares como forma de compreender os papéis que fazem parte da sua cultura e do seu meio social.

Arenhart (2013) em seu trabalho “Culturas infantis em contextos desiguais: marcas de geração e classe social” investigou como as crianças, em diferentes contextos socioculturais, produzem suas culturas e o que estas indicam, simultaneamente, sobre seu pertencimento geracional e sobre seu pertencimento social. A pesquisadora investigou um grupo de crianças residentes na favela e um grupo de crianças de classe média/alta intelectualizada. A pesquisa indicou que o corpo e a brincadeira foram duas expressões que se destacaram nas culturas infantis dos grupos estudados. Embora o corpo e a brincadeira estivessem presentes nos dois grupos de crianças, o corpo ficou mais evidente no grupo de crianças residentes na favela, enquanto a brincadeira mostrou-se mais presente no outro grupo.

A autora destacou que o fato de o corpo se sobressair no grupo de crianças residentes na favela e a brincadeira no grupo de crianças de classe média/alta intelectualizada tem a ver, sobretudo, com a origem social diferenciada das crianças e as normatividades do grupo, ligados a concepções e práticas com a infância, distintos em cada grupo. Arenhart (2013) ressaltou ainda que em confluência ou divergência com as normatividades derivadas de cada classe, a escola também exerce fortemente seus efeitos, sobre os quais as crianças agem e reagem instituindo suas ordens sociais e suas culturas.

A última plataforma digital a ser pesquisada foi o Portal de Periódicos desenvolvido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), que disponibiliza artigos das mais variadas revistas científicas brasileiras e internacionais. Mais uma vez utilizamos as palavras-chave “relações de poder” e “crianças” com o intuito de identificar artigos que dirigissem o seu olhar para a temática em questão. A partir da busca, foram encontrados 273 artigos dos quais elegemos os que traziam no título, nas palavras-chave, no resumo ou nas considerações finais o tema das relações de poder entre as crianças. Sendo assim, selecionamos três artigos: Souza, 2006; Dahia, 2013 e Toledo e Carvalho, 2018.

Souza (2006) apresentou no seu trabalho os resultados iniciais de sua dissertação de mestrado acerca das questões de gênero na infância e na escola. Sua pesquisa intitulada “Marcadores sociais da diferença e infância: relações de poder no contexto escolar” foi realizada em uma escola pública da cidade de Campinas/SP. O artigo, inicialmente, apontou algumas contribuições de autores de áreas diversas no que se refere às relações de gênero em sala de aula, entre crianças e adolescentes. Posteriormente a autora apresentou os resultados parciais da pesquisa de campo analisando temas como a relação das crianças com as diferenças de classe, raça, gênero e outros marcadores sociais, as hierarquias de poder na sala de aula e as concepções infantis sobre heteronormatividade.

A autora defendeu que, ao iniciar a vida escolar, a criança já traz consigo inúmeras informações quanto aos comportamentos esperados de um menino e de uma menina. Destacou que é através da linguagem (escrita, fala, imagens linguísticas e não linguísticas) que a criança incorpora e apreende os valores do que é ser masculino ou feminina, mas é também através dela que a igualdade entre gêneros pode ser promovida. Ressaltou que a escola não se configura como o único espaço responsável pelas distinções de gênero. Antes, porém, é no ambiente escolar que as distinções de gênero são mantidas, seja como forma de controle, organização, motivação das crianças ou como conteúdo das lições. No artigo, a autora também problematizou a concepção das crianças e adolescentes sobre a matriz heterossexual e a heteronormatividade. Por fim, revelou que as relações de poder são expressas nas interações entre as crianças e são atravessadas por questões raciais, de classe e de gênero.

Dahia (2013) no artigo que tem por título “O racismo como verbalismo? Delineamentos para compreensão da aquisição do racismo entre cegos congênitos”, discutiu a questão da aquisição do racismo e do preconceito racial em crianças cegas congênitas. A autora considerou algumas possibilidades alternativas para a construção de conceitos raciais e para a vivência do fenômeno do racismo que ora apontam para um padrão próprio aos cegos, ora apontam para um padrão semelhante ao dos videntes ou, ainda, para o mero artificialismo na vivência do racismo. Destacou que se torna pertinente a introdução de uma discussão sobre relações de poder entre cegos e videntes numa sociedade visual, na qual se observa que as condições sociais influenciam significativamente. Por fim, concluiu que o verbalismo[6] se constitui num processo que parece acentuar a condição de subordinação dos cegos.

No artigo “Masculinidades e desempenho escolar: a construção de hierarquias entre pares”, Toledo e Carvalho (2018) buscaram compreender as concepções coletivas de masculinidade entre os meninos e as possíveis implicações dessas concepções em seus desempenhos escolares. Para tal, foi realizada uma pesquisa etnográfica com crianças, de aproximadamente dez anos de idade, das camadas trabalhadoras, alunos(as) de uma escola pública da cidade de São Paulo, utilizando observações e entrevistas.

A pesquisa revelou que para ser considerado um bom aluno tanto por professores quanto pelos colegas, os garotos precisavam conseguir jogar nas relações de poder entre pares, valendo-se de práticas de masculinidades valorizadas, (re)construindo hierarquias escolares e sociais em suas interações.

Mediante o exposto até aqui, teceremos a seguir algumas considerações finais com o intuito de colaborar com os estudos daqueles que se aventurarem a pesquisar as relações de poder entre as crianças.

Considerações finais

A temática das relações de poder entre as crianças foi abordada em 15 trabalhos publicados, dentre eles 4 dissertações de mestrado, 3 teses de doutorado, 5 trabalhos apresentados nas reuniões da ANPEd e 3 artigos. Dentre esses trabalhos, somente dois apresentaram as relações de poder entre as crianças como cerne da pesquisa. Contudo, muito embora o objeto de estudo dos demais não tenha sido este, tal temática surgiu como achado da pesquisa ao longo do trabalho de investigação.

 

Em síntese, o levantamento do Estado da Arte indicou o estudo de questões relacionadas ao gênero como temática de maior abordagem, revelando que as relações de gênero na infância são também atravessadas por relações de poder (AZEVEDO, 2003; WOLFF, 2006; SOUZA 2006; SOUZA, 2007; BUSS-SIMÃO, 2012b; TOLEDO e CARVALHO, 2018). A brincadeira e as interações sociais entre as crianças configuraram-se como espaços-tempos nos quais as relações de poder são expressas (MEIRELES, 2008; MICHEL, 2011; BORBA, 2006; SOUZA, 2010). O corpo e a linguagem foram percebidos como modos de manutenção de poder, mas também como meios de resistência (WOLFF, 2006; ALCÂNTARA, 2006; DAHIA, 2013; MEIRELES, 2008; BUSS-SIMÃO, 2012a). A família e a escola foram apontadas tanto como espaço de reprodução de estereótipos e preconceitos como também de lugar de resistência e transformação (WOLFF, 2006; MAYNARD e HADDAD, 2012; ARENHART, 2013).

Na realização da pesquisa bibliográfica nessas principais bases de dados  que agrupam trabalhos de investigação produzidos no âmbito da educação, fomos surpreendidos pela constatação de que a temática sobre as relações de poder entre as crianças ainda é pouco explorada no país. Ademais, raras vezes a expressão relações de poder foi associada às pesquisas com crianças. Do mesmo modo, o recorte temporal adotado por este estudo apontou que não há uma significativa diferença no número de pesquisas entre os dois períodos demarcados pelo ano da homologação da Resolução CNE/CEB nº 5/2009 (BRASIL, 2009), o que nos sugeriu inferir que a implementação do documento não foi um fator decisivo de influência na escolha do objeto de estudo das pesquisas selecionadas.

 

Considerando o escopo deste artigo e as inúmeras pesquisas desenvolvidas no âmbito da Educação Infantil, julgamos ínfimo o número de trabalhos que relacionam as relações de poder às interações sociais estabelecidas entre as crianças. Assim, perguntamo-nos se este seria um termo utilizado apenas nas pesquisas que tratam do universo adulto (como em trabalhos envolvendo relações de trabalho, legislação, dentre outros), sendo reconhecido na relação vertical entre adultos e crianças, mas negado a sua existência na relação que se dá entre as próprias crianças. Decerto, não encontramos dados que comprovem esta especulação, entretanto, esta revelação pode denunciar uma possível lacuna nos estudos sobre como as culturas infantis e as interações entre as crianças são atravessadas por relações de poder.

Tomando por base a definição apresentada por Corsaro (2011) sobre a produção de culturas por parte das crianças e a relevância de estudá-las com vistas a entender como elas se constituem, evidenciamos a necessidade de desenvolver pesquisas que deem conta de compreender os modos como as crianças vivenciam e dão significado aos processos de negociação pelos quais passam em seus contextos de sociabilidade. Bem como verificar que conhecimentos, saberes e elementos sociais e culturais são determinantes no mesmo. Do mesmo modo, destacamos a importância de que os estudos sociais da infância busquem também compreender os usos que as crianças dão a esses conhecimentos nas interações que estabelecem com outras crianças e com os adultos no cotidiano das instituições que atendem meninos e meninas de 0 a 5 anos de idade, visto que, de acordo com os trabalhos analisados, estes são aspectos que carecem de uma maior exploração.

Consideramos ainda ser imprescindível lançar um olhar para a infância e a criança como um outro que ainda não se sabe, que ainda não conhecemos. Isto porque um dos grandes mitos construídos sobre a infância diz respeito à concepção das crianças enquanto seres em déficit. Soma-se a isso, a compreensão impregnada em alguns professores e professoras que atuam com as crianças de que as relações sociais que se estabelecem entre elas configuram-se de forma homogênea e igualitária, seguindo o pensamento de que as interações entre pares são isentas de relações de poder.

Conceber a criança e a infância enquanto um outro seria reconhecê-las a partir daquilo que escapa qualquer tentativa de enquadramento, determinismos e formatações. Provoca inquietações, questiona as certezas de nossos saberes e nos impele à uma abertura em direção à criança que já é em sua existência um ser potente que constrói seus próprios mundos sociais e produz cultura. Da mesma maneira, demanda o entendimento de que a infância é uma construção social e que, portanto, é marcada pelo contexto social, histórico e cultural de cada sociedade, inclusive, pelas relações de poder.

As pesquisas que trouxeram à tona que as questões de gênero são atravessadas pelo poder e confirmaram que as interações e as brincadeiras que se desenvolvem entre as crianças são também constituídas por relações de poder, enquanto forças que produzem ações, comportamentos e pensamentos infantis, ratificaram a afirmativa de Foucault (1979) de que o poder está presente em todas as relações sociais, de maneira que não há ninguém que se coloque ou esteja fora dessas relações de força, nem mesmo as crianças.

Acontece que se partimos da compreensão de que as crianças são sujeitos históricos que produzem cultura, que as relações que estabelecem com outros meninos e meninas não são isentas de relações de poder e que, por sua vez, nas relações onde o poder é exercido também encontraremos ações de resistências, sejam elas corporificadas ou discutidas em espaços como a família e a escola, poderá ser possível lançarmos um novo olhar sobre as interações infantis com vistas a compor compreensões sobre a construção de uma Educação Infantil que tenha por base a infância como experiência.

Afirmar uma Educação Infantil que é alicerçada na experiência da infância, pressupõe devolver a infância à educação, como defende Kohan (2019). Infância esta que tem sido roubada em virtude da escolarização desta primeira etapa da educação. Consideramos que não pode ser possível então restituir a infância da educação se não for pela via da alteridade e do reconhecimento de que a Educação Infantil tem suas especificidades. Do entendimento de que a infância pode ser percebida enquanto postura perante a vida, que não se esgota quando crescem as crianças e da percepção de que reconhecidos como sujeitos históricos bebês, crianças bem pequenas e crianças pequenas têm direito a vez e à voz.

Kohan (2007), do mesmo modo, nos apresenta uma alternativa interessante para se pensar a infância e as crianças, que pode contribuir com os estudos analisados neste artigo: a infância enquanto ruptura da história. A infância como ruptura e interrupção do tempo histórico diz respeito ao seu reconhecimento como uma progressão sequencial do tempo, mas aliada ao seu entendimento enquanto acontecimento. Nessa perspectiva, a infância não seria concebida como uma fase a ser superada, mas um tempo. Um tempo-território onde habitam as crianças e no qual os adultos se reconhecem como estrangeiros. Isto porque não se expressam do mesmo modo que os meninos e meninas, não estão imersos nos processos sociais e organizativos que ocorrem no interior das culturas infantis e experimentam um outro tempo que não é o tempo aiônico de intensidade da infância, mas sim, o tempo cronológico que segue imprimindo velocidade e pressa aos dias que correm. Logo, essa percepção privilegia reflexões sobre as relações sociais entre crianças despidos dos olhares que as capturam e as normatizam, percebendo-as como potências e devires.   

Com efeito, compreender o modo como as relações de poder entre as crianças podem se configurar no cotidiano escolar de meninos e meninas mas, mais do que isso, perceber o que as suas interações e ações de resistência nos sinalizam, pode ser uma oportunidade para lançar-se no tempo kairótico e irromper a cronologia da infância para vivê-la de modo aiônico, com a intensidade com que as crianças a vivem. Sendo assim, a relevância dos estudos sobre as relações de poder entre as crianças sustenta-se nessa busca por contribuir com pesquisas que deem a conhecer a infância que se desvela a partir dos olhares, fazeres e saberes dos meninos e das meninas, com vistas à consolidação de uma Educação Infantil que favoreça e privilegie as culturas da infância.

Referências Bibliográficas

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Notas



[1] Este artigo foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES).

 

[2] Por criança, entende-se o que preconizam as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2010, p. 12) que a concebem enquanto “sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e práticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura”.

 

[3] Ferreira (2004a), quando utiliza a palavra pares, refere-se ao conceito desenvolvido por Willian Corsaro com base no qual “o sentido da palavra ‘pares’ não é o de duplas, e sim de parceiros, de iguais” (Müller e Carvalho, 2009, p. 31).

 

[4] A bricolagem como metodologia científica, preocupa-se em relacionar dialeticamente conhecimento e realidade, teoria e prática para que o pesquisador desempenhe uma função crítica frente aos conhecimentos científicos. Segundo Borba (1998, p. 17), “É o fazer ciência, o criar, o construir ciência que definirá a ‘composição’ (a bricolagem) metodológica. É na construção do campo de pesquisa que se define a elaboração (in loco) das metodologias (a composição inteligente das mesmas) e não o inverso. Não é a ciência que deve andar a reboque (servilmente) da metodologia e sim o contrário”.

 

[5] Souza (2010) entende “como ‘relação de poder’ as interações em que determinada criança exerce uma forma de autoridade sobre outra a fim de comandá-la e direcionar a brincadeira” (p. 105)

 

[6] Dahia (2013) explica que o verbalismo, enquanto transmissão de conhecimentos realizado pela explicação oral e pelas palavras, “é amplamente utilizado na educação dos cegos congênitos para descrever a realidade de certos objetos e fenômenos inacessíveis à sua percepção sensorial como cor, distribuição espacial, paisagens etc.” (p. 107)