A branquitude acadêmica, a invisibilização da produção científica negra, a autoproteção branca, o pesquisador branco e o objetivo-fim

 

(Academic whiteness, the invisibility of black scientific production, white self-protection, the white researcher and the end goal)

 

 

Lourenço Cardoso

Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, Ceará, Brasil

lourencocardosopoeta@gmail.com - https://orcid.org/0000-0001-7383-1006

 

Recebido em 09 de novembro de 2020

Aprovado em 27 de julho de 2021

Publicado em 31 de agosto de 2022

 

 

RESUMO

Neste artigo tratarei da invisibilização da produção científica negra promovida pelos brancos acadêmicos. Darei ênfase ao pioneirismo do Guerreiro Ramos para se pensar a identidade racial branca no mundo, abordarei a importância de Maria Aparecida da Silva Bento a respeito do tema branquitude no Brasil. Além disso, descreverei o papel do movimento negro como escola informal e a prática do branco se proteger quando entra em disputa com o negro. Por fim, questionarei o papel do branco pesquisador que procura buscar sua paz quando a realidade social o incomoda. Isto é, o fato do branco, investigador da branquitude, se encontrar no lugar de opressor e de explorador racial pode levá-lo a apresentar rapidamente uma solução para problema. Ou talvez seja uma saída ligeira para o seu próprio desconforto. A minha análise também levará em conta uma autorreflexão, a minha educação “informal”, ou seja, o conhecimento que adquiri com os meus encontros com alguns personagens do movimento negro. 

 

Palavras-chave: branquitude, objetivo fim, autoproteção branca, movimento negro.

 

ABSTRACT

In this article I will contemplate the invisibility of black scientific production promoted by white scholars. I will emphasize the pioneerism of Guerreiro Ramos to think about white racial identity in the world, I will deal the importance of Maria Aparecida da Silva Bento regarding the whiteness theme in Brazil. In addition, I will describe the role of the black movement as an informal school and the practice of white to protect themselves when they come into dispute with the black. Finally, I question the role of the white researcher who aims to seek his peace when social reality bothers him. In other words, the fact that the white investigator of whiteness finds himself in the place of oppressor and racial exploiter, can lead him to quickly present a solution to a problem. Or perhaps a slight outlet for your own discomfort. My analysis will also take into account self-reflection, my “informal” education, that is, the knowledge I acquired from my encounters with some characters from the black movement.

 

 

Keywords: whiteness, end goal, white self-protection. black movement.

 

 

Prólogo: Vantagem/Privilégio racial 

 

Os estudos sobre a branquitude, isto é, a identidade branca, possui como palco fundamental o Brasil. As minhas fontes indicam que o sociólogo Guerreiro Ramos trouxe essa questão de forma capital para o mundo em meados dos anos 1950 (RAMOS, 1995/[1957](a),(b),(c). A academia brasileira vai demorar um pouco para verificar e depois reconhecer isto devido a seu complexo de “vira-lata”. A maioria dos nossos pesquisadores possuem os olhos voltados para Europa ou “Nova Europa”, neste caso, refiro-me aos Estados Unidos da América. A proposta dos estudos descoloniais, da atualidade, tende a romper com a mentalidade colonizada dos nossos acadêmicos (SANTOS, 2002).

Em sua época, Guerreiro Ramos já criticava o eurocentrismo e foi, de fato, pioneiro em problematizar o branco de forma mais proeminente. Ele é um intelectual, produto do diálogo realizado com Abdias do Nascimento, o qual atribui a Fernando Góes a primazia de propor a análise do branco enquanto “objeto” (sujeito/objeto). Contudo, o documento mais importante de que temos notícia é ainda o artigo Patologia social do branco brasileiro1. Maria Aparecida da Silva Bento publica o livro Psicologia Social do Racismo: Estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil2 nos anos 2000. Um novo marco para emergência dos estudos a respeito da identidade branca no país (CARDOSO, 2018), enquanto nos Estados Unidos e Inglaterra esses estudos se desenvolvem a partir dos anos 1990.

A produção científica a respeito do branco é realizada por pesquisadores brancos e negros. Todavia, quem trouxe a questão foi o pesquisador negro. O negro foi o responsável por tornar tema aquilo que não era considerado uma questão acadêmica, um problema científico. O pesquisador negro, ele que sempre foi nomeado negro, por isso, problematizado por “não ser branco”. O negro passou a nomear o branco, como branco. O negro sempre coisificado. O negro catalogado como o objeto tradicional científico se deslocou para o lugar de cientista e posicionou o branco no lugar de “objeto”/tema de pesquisa.

Os intelectuais Guerreiro Ramos e Maria Aparecida Bento3 são cientistas fundamentais na história dessa inversão metodológica e epistêmica. Isto não significa que deixei de considerar: Du Bois, Frantz Fanon, Steve Biko, Fernando Góes, Abdias do Nascimento, além de toda produção estrangeira e sua influência. Todavia, considero fundamental o resgate do papel da produção científica negra na história do branco enquanto tema, pois assim podemos dificultar a prática de invisibilização da intelectualidade negra. Uma  prática comum da branquitude acadêmica.

O pesquisador branco possui o privilégio/vantagem racial em divulgar suas pesquisas em detrimento do pesquisador negro. O branco possui a vantagem racial para ser tudo, falar de tudo o que quiser: branco, negro, indígena, quilombola. Isto também pode ocorrer em detrimento, em desvantagem/racial/étnica em relação ao negro, indígena, quilombola e outros. Trata-se de um conflito que é pano de fundo das discussões políticas sobre representação nos espaços de militância e acadêmicos.

 

A identidade branca no Brasil

 

O termo branquitude, com o significado de identidade branca, será sugerido por Gilberto Freyre em meados de 1960 no Brasil. Ele fará uso da palavra numa analogia à negritude. Na ocasião criticará a utilização da ideia de negritude e branquitude, “porque se trataria de uma mitificação dualista e sectária contrária à ‘brasileiríssima’ prática da democracia racial através da mestiçagem” (GUIMARÃES, 2005, p. 124). Porém, não muda a história do pioneirismo do Guerreiro Ramos (1995/[1957], (a), (b),(c)).

O sociólogo lembrou que o branco possui o privilégio de observar/problematizar o negro sem por este último ser visto/problematizado. No seu artigo fez uso do termo “brancura” que possui o mesmo significado do conceito “branquitude” para literatura científica atual. A brancura seria a pele clara e outros traços como formato e cor de lábios e nariz, textura dos cabelos, aspectos, sobretudo, físicos que levam uma pessoa a ser classificada socialmente como branca (CARDOSO, 2008).

A branquitude, obviamente, também diz respeito aos aspectos físicos que identificam uma pessoa ou um grupo. No entanto, encontra-se além dessa característica. A brancura seria também um dos traços da própria branquitude, uma pessoa pode perfeitamente identificar-se como branca, mesmo que não possua brancura. Os termos branquitude, branquidade, brancura têm sido problematizados com maior interesse nas produções recentes que investigam o branco. Nos primeiros trabalhos, isto não era uma questão relevante.

 

A identidade branca e o discurso da mestiçagem

 

Uma questão que sempre aparece é a seguinte: Como definir quem é branco em um país miscigenado que é o caso do Brasil? A maneira como a pergunta se coloca remete à ideia de branco no sentido biológico. Nisto, o ser que vive aqui seria mais miscigenado biologicamente? Isto nos coloca a seguinte questão: qual a relevância de um grupo social ser mais miscigenado ou menos miscigenado em termos biológicos? Aproveito e coloco outra questão: existem grupos sociais no mundo que não passaram por processo de mestiçagem? 

Por enquanto, ainda estou abordando o tema pelo viés biológico, justamente da maneira como o discurso se apresenta. O que sugere outras perguntas. O extremo oposto do ser miscigenado seria o ser puro? Existe um ser puro? Existe ser puro biologicamente? É disso que estou tratando. Todavia, estendo agora a questão além do biológico. Existem seres puros culturalmente?

Após a Segunda Guerra Mundial, a literatura científica defende que não (ARENDT, 2006). Muito antes, o Conde de Arthur Gobineau, o mesmo que visitou o Brasil, chegou a dialogar com D. Pedro II a respeito do tema (CARDOSO, 2008). Ele estava convicto de que toda população humana teria passado pelo processo de mestiçagem. Defino mestiçagem como mistura cultural e biológica, portanto, a miscigenação seria uma característica da mestiçagem, assim pontua Munanga (2004).

Gobineau, considerado um dos principais teóricos do racismo – que depois ficou conhecido como racismo científico (COSTA, 2006; SILVA, 2015) – acreditava que a humanidade estava em decadência por causa da mestiçagem, o ser superior se misturava com o ser inferior. Logo, a mestiçagem resultava e era a própria degenerescência do ser superior, enegrecimento. Mesmo que igualmente resultasse em ascensão para o ser inferior, branqueamento.

No entanto, nos estudos sobre a branquitude, quando nos referimos a branco e a negro nos referimos em termos de construto social. As pessoas são classificadas socialmente como brancas e negras, na lógica de pensamento hierárquico racial (CARDOSO, 2014). A hierarquia que ocorre entre branco e negro, também ocorre entre branco e branco (WARE, 2004). O branco inglês se considera superior ao branco português. Neste caso, o branco inglês seria branco-branco e branco português menos branco, isto numa comparação entre eles4. Não se trata de biologia, e sim construção social-cultural-econômica, etc.

O branco português seria inferior ao branco inglês também devido a sua mestiçagem antiga com os mouros da África do Norte; depois, se relacionaram  novamente com os africanos da África subsaariana (ARBEK, I; DEVISSE, J. 2010, SANTOS, 2006), especialmente, no período do Tráfico Transatlântico; além do processo de mestiçagem com os povos nativos, os ameríndios. Dessa forma acentuaram a característica de “não branquitude de sua branquitude” (a característica branco não branca) (CARDOSO, 2017). Portanto, o branco brasileiro é desde sempre branco não branco comparado com outro branco, como o branco estadunidense, no caso branco-branco. Refiro-me a classificações sociais que não dizem respeito à ideia biológica de miscigenação. 

 

A branquitude implícita 

 

O conceito branquitude pode ser utilizado como dispositivo analítico para examinar obras sobre a imigração alemã e italiana no Brasil (SILVA, P., 2015). Por exemplo, verificar a hipótese se identidade racial aparece em fenômenos sociais que não foram percebidos. O Quadro 2 ilustra trabalhos que podem ser utilizados com tal propósito.

 

Quadro 2 -  O tema branquitude implícita nas produções acadêmicas brasileiras

Universidade

Ano

Grau 

Subárea

Títulos

Autoria

1) UERJ (Sudeste)

 

2002

M

História

Os “Auslanddeutsche” no Brasil. As Colônias Alemãs no Contexto das Relações Brasil-Alemanha. Um olhar sobre o Vale do Itajaí-Açu (1937-1945)

Mônica Velloso Azevedo

2) UFRJ (Sudeste)

2004

M

História

Conflitos, crimes e resistência: uma análise dos alemães e teuto-descendentes através de processos criminais (Juiz de Fora - 1858/1921)

Deivy Ferreira Carneiro

3) UFRGS

(Sul)

2001

M

Comuni-cação

O desenho de humor no resgate da identidade cultural: análise de personagens étnicos em um semanário gaúcho

Augusto Franke

Bier

 

 

4) UFRGS

(Sul)

2005

D

História

A trajetória de uma liderança étnica:  J. Aloys Friedrichs (1869-1950)

Haike Roselane Kleber da Silva

5) UFSC

(Sul)

2002

M

Educação física

A cultura popular e as atividades rítmicas: um estudo de caso em uma comunidade de raiz étnica germânica

Célia Guima-rães Perini

6) UFSC

(Sul)

2004

M

Ciências Humanas

Representações sociais e etnia: um retrato interdisciplinar de Escola Agrícola

 Márcia Santos de Souza

 

7) UFSC

(Sul)

2001

M

História

Alemães em Lages: uma trajetória de conflitos e alianças guardadas pela memória

Juçara de Souza Castello Branco

Fonte: CARDOSO, 2008. (D = Doutorado; M = Mestrado).

 

O Quadro 2 foi elaborado com base em minha pesquisa de mestrado (CARDOSO, 2008). Ele serve para ilustrar a seguinte hipótese: a branquitude, de certa forma, tem sido investigada no Brasil de maneira implícita. Por outras palavras, há pesquisas sobre determinados grupos brasileiros, considerados brancos (construto social), no entanto, nelas deixa de ser apontado o elemento racial (étnico-racial), por isso, a identidade racial se torna implícita. A branquitude aparece implícita nesses trabalhos em grupos descendentes de alemães e italianos, por exemplo. O Quadro evidencia isto: mostra seis dissertações e uma tese de doutorado que versam a respeito da pertença étnica e racial dos grupos brancos de origem alemã e italiana.

Insisto em considerar que as pesquisas citadas, nestes casos, referem-se à branquitude implícita porque problematizam grupos brancos sem localizá-los no quadro geral da teoria e/ou práxis das relações raciais, digo isto em termos hipotéticos. Mesmo que talvez não utilizem a ideia de raça, em algumas pesquisas, operam com o conceito etnia. Por fim, a utilização da branquitude como dispositivo analítico pode servir para maior aprofundamento dessas produções acadêmicas.

 

Auto-sócio-análise: O movimento negro, uma escola informal, a pauta branquitude e a autoproteção branca.

 

Nesta auto-sócio-análise a minha primeira menção vai para o Dagoberto José Fonseca (UNESP-Araraquara), meu orientador do curso de doutorado na UNESP campus de Araraquara. Ao citá-lo estendo o meu reconhecimento e homenagem para todos os ativistas e intelectuais negros e negras que me formaram. Foram muitos. Entre eles: Antônio Carlos (Educafro), Roberto Camargo (Educafro), Edmar Silva (CONE-SP), Hélio Santos (IBD), Acácio Almeida (UFABC), Cuti [Luís Silva] (Quilombhoje-Literatura), Esmeralda Ribeiro (Quilombhoje-Literatura), Márcio Barbosa (Quilombhoje-Literatura), Maria Paula Meneses (CES-Coimbra), Nilma Lino Gomes (UFMG), Elisío Macamo (Universidade de Basilelia, Suíça), Boaventura de Sousa Santos* (CES-Coimbra)5 De fato, tive muitos encontros, sou formado de maneira informal pela escola movimento negro. Sou produto dos encontros com muitas pessoas, algumas citei, outras no entrelace entre a memória e o esquecimento, posso ter esquecido, mas, permanecem na minha História intelectual e afetiva.

Quanto a questão: Por que fui estudar o branco? Na verdade, quem me levou a pesquisa sobre a branquitude foi a intelectual Maria Aparecida da Silva Bento. Nas minhas memórias, a primeira vez que escuto falar a respeito da identidade branca foi em meados de 1999. Estávamos na casa do Cuti6, participávamos de um “diálogo informal” sobre o livro Frente Negra Brasileira que foi escrito pelo poeta Marcio Barbosa (1998). Estavam presentes também a escritora Esmeralda Ribeiro, o escritor Oubi Kibuko, o escritor Jamu Minka, a pesquisadora Ligia Fonseca, o ator Jorge Brunis, a leitora Marinete Silva e a escritora Sônia Fátima e outros. Artistas, intelectuais e incentivadores culturais negras e negros. Entre as diversas conversas que surgiam, Maria Aparecida da Silva Bento já chamava a atenção sobre a necessidade de estudar o branco. Nós ouvíamos, não discordávamos, porém, a única pessoa que era mais atento e sensível ao que Maria Aparecida Bento falava era o Cuti. Todavia, ela era quase uma voz solitária.

Estávamos voltados para o negro objeto, isto é, negro pesquisador e negro-tema. Produzíamos uma epistemologia sobre o negro. Mantínhamos a lógica de posicionar o negro como objeto científico preferencial. Uma prática teórico-metodológica tanto do pesquisador branco quanto do pesquisador negro. Cuti realmente estava atento a importância de problematizar o branco. No livro ...E disse o velho militante José Correia Leite (CUTI, 1992), ele resgata as ideias de Guerreiro Ramos. Será a primeira obra que encontraremos a proposição de se pensar o branco enquanto objeto depois do artigo Patologia social do “branco” brasileiro (RAMOS, 1995/[1957](b)).

O livro de memória do Cuti conta a história do movimento negro paulistano nos anos 1930, principalmente. O foco será dado à imprensa negra na figura do velho militante José Correia Leite. Ele que chegou a participar da organização Frente Negra Brasileira e fundou o jornal Clarim da Alvorada, uma das publicações de maior prestígio da época, no que diz respeito a militância negra através das palavras escritas. ...E disse o velho militante foi publicado pelo Conselho do negro, órgão do município de São Paulo na época da administração de Luísa Erundina. Ivair Augusto Alves dos Santos, intelectual e ativista negro de destaque, e que na época trabalhava neste Conselho, foi quem escreveu a apresentação.

Os Conselhos foram uma forma do negro atuar dentro do Estado para efetivarem as suas pautas, tornando-as políticas públicas ou leis antirracistas, por exemplo. Hélio Santos, personalidade negra, foi o primeiro coordenador executivo desse tipo de Conselho. A atuação negra nos quadros governamentais foi inaugurada na administração Franco Montoro no Estado de São Paulo nos anos 1980. Cuti, em seu livro ...E disse o velho militante, escreve literalmente as seguintes palavras:

 

O movimento negro vem sendo submetido a várias leituras teóricas, feitas em geral por brancos, que vão fixando balizas para o pensamento. Os tais “estudos” arrastam, em sua maioria, o vício de reforçar a noção de “outro”, “corpo estranho”, “alienígena”, com que somos estigmatizados. Nós negros somos tomados como “objetos de estudo”. Alguém já viu algum estudo sobre o “branco no Brasil”? Fora Guerreiro Ramos, não tenho notícia (CUTI, 1992, p. 11-12).  

 

Portanto, reitero, o Cuti resgatará o intelectual Guerreiro Ramos com o propósito de deslocar o branco para condição de objeto científico nos anos 1990, segundo as minhas fontes de informação. Naquele momento os livros do Guerreiro Ramos eram muitos difíceis de encontrar, poucas pessoas possuíam, entre elas, o Cuti. Ele tirou uma cópia da publicação e me enviou via correio. Uma atitude muito generosa que foi fundamental para que desenvolvesse minha dissertação de mestrado sobre a identidade branca a partir de 2006. Com o arcabouço teórico fundamental, com o livro, Introdução Crítica a Sociologia Brasileira (RAMOS, 1995/[1957](a)), em mãos, fui estudar em Portugal no Centro de Estudos Sociais no Laboratório Associado a Universidade de Coimbra.

Antes era difícil encontrar alguns textos do Guerreiro Ramos. Hoje é possível encontrá-los com facilidade na Internet. Contudo, ainda temos dificuldade para acessar o número elevado de textos publicados pelo ilustre pensador. Mesmo porque Guerreiro Ramos foi boicotado pela analítica paulista, sobretudo, a escola de sociologia uspiana (SILVA, SILVÉRIO, 2003). Uma atitude nada acadêmica que foi um obstáculo para que novas gerações conhecessem as publicações desse importante intelectual negro brasileiro. A analítica paulista infligiu a Guerreiro Ramos uma espécie de ostracismo intelectual. Essa escola paulista ignorava sua pessoa e suas produções, consideravam-nas de valor inferior. 

 

Contudo, não se sentiram seguros para refutarem suas teses no espaço público7. O melhor método foi permanecer em silêncio a respeito dele. Uma prática da branquitude acadêmica que ainda se repete nos dias atuais. Ou seja, a intelectualidade branca constrói empecilhos para inteligência negra.

Uma prática de racismo institucional-acadêmico, temos que considerar esta hipótese, entre outras. No entanto, Guerreiro Ramos encontrou espaço acadêmico fora do Brasil durante muitos anos. Ele foi professor na Universidade do Sul da Califórnia nos Estados Unidos. Nesse período se dedicou ao tema Administração Pública, destacando-se nessa área, assim como ocorreu com os outros campos que se debruçou. Era de praxe, o ilustre cientista social sempre brilhou. José Jorge de Carvalho abordou o assunto: 

É preciso lembrar sempre o caso emblemático Guerreiro Ramos, um dos grandes cientistas sociais brasileiros do século 20. Guerreiro Ramos foi aluno e formado na primeira turma de Filosofia da Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Contudo, ele não absorvido como professor da UFRJ. Assumiu o lugar que poderia ter sido seu um professor8 totalmente inexpressivo. Somente lembrado na História  por sua associação negativa com a biografia de Guerreiro Ramos (...)

(...)

Guerreiro Ramos desenvolveu sua carreira universitária nos Estados Unidos (...),no final da vida, em entrevista concedida a Lucia Lippi de Oliveira, indicou sem rodeios que foi vítima também de perseguição racial na Universidade do Brasil (....) (CARVALHO, 2003, p. 165-166). 

 

Posto isso, vale recapitular que escutei sobre o tema branquitude, pela primeira vez, provavelmente, através das considerações de Maria Aparecida da Silva Bento na casa do Cuti. Isso ocorreu em 1999. Depois, em 2002, fui presenteado com o livro Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento, organizado por Iray Carone e a Maria Aparecida Bento. A partir daí passei a pesquisar sobre o branco e também escrevi artigos de opinião a respeito. Enfim, observo o branco com o olhar de pesquisador há décadas.

Nesses anos pude perceber que este trabalho me levou a possuir uma visão mais profunda a respeito de minha negritude. O EU ao olhar o OUTRO leva-o a enxergar-se melhor. Observar o Outro lado de espelho nos leva a enxergar a nossa própria humanidade. Mesmo que o branco, numa concepção colonial, possua uma percepção distorcida a respeito de SI e do OUTRO (CARDOSO, 2014). A maneira para melhor nos enxergar algumas vezes vem a partir dos olhos do Outro. O branco ao ser criticado pelo negro pode levá-lo a ter uma perspectiva mais realista a respeito de si.

Portanto, no ano 2003, escrevi o projeto de pesquisa sobre branquitude e política. Com essa proposta, em 2004, passei por um processo seletivo para adquirir bolsa de estudos da Fundação Ford. Conquistei a bolsa científica em 2005. Durante a etapa seletiva fui entrevistado pelo sociólogo Valter Silvério (UFSCAR). Depois passei na seleção de mestrado no Centro de Estudos Sociais, Laboratório Associado à Universidade de Coimbra, viajei para Portugal no final do mesmo ano. Em janeiro de 2006, iniciei o curso de mestrado Pós-Colonialismo e Cidadania Global, passei a ser orientado pelo intelectual branco português Boaventura de Sousa Santos.

O tema do projeto de mestrado Branquitude e Política permaneceu durante mais um ano. No entanto, concluí que não daria conta de dois assuntos distintos. Por isso, optei por me concentrar em pesquisar o branco-tema. O Boaventura de Sousa Santos concordou e me orientou a realizar uma investigação acadêmica que iniciaria no mestrado e terminaria no doutorado. Segui esse planejamento, todavia, no doutorado tive a orientação do Dagoberto José Fonseca. Durante o mestrado, além da orientação, troca de conhecimento com o renomado intelectual português, aprendi muito com outros dois intelectuais moçambicanos, Maria Paula Meneses e Elísio Macamo. Em suma, optei por estudar o branco na condição de objeto/sujeito. Diante disso colocou-se a questão: o que estudar sobre a branquitude especificamente? Guerreiro Ramos respondeu:

 

(...) pode-se dizer que, no Brasil, o branco tem desfrutado do privilégio de ver o negro, sem por este último ser visto. Nossa sociologia do negro até agora tem sido uma ilustração desse privilégio” (RAMOS, 1995[1957], p. 202(b)).

 

Decidi estudar o branco pesquisador que possui o negro como objeto científico tradicional. A minha opção foi natural. Os brancos sempre estudaram o negro. A negra e o negro entraram na universidade e passaram a pesquisar o branco, nomeá-lo, classificá-lo no espaço acadêmico. O negro sempre nomeou o branco como branco. Isto é, classificavam-no como pertença étnico-racial. A mudança foi a seguinte: passaram a fazer isso nos espaços de produção de conhecimento científico e tecnológico. O pesquisador branco em sua pesquisa de campo nas comunidades pobres, formada por grande porcentagem de pessoas negras, eram interpelados. Os moradores desses espaços questionavam: branco, você veio aqui me pesquisar de novo? Por outras palavras, o pesquisador branco foi num território pobre e periférico investigar o negro novamente? O cientista branco tratou todos os não-brancos como objeto outra vez?

Vale ressaltar que o negro e a negra entram na academia, se encontram sozinhos, praticamente. Passam a frequentarem um espaço de maioria branca em diversas esferas, por exemplo, nos setores administrativo, técnico, docência, pesquisa. Somente no serviço terceirizado encontraremos maior quantidade de negros e de negras. Guerreiro Ramos foi um negro, provavelmente, solitário quando frequentou a universidade na condição de estudante e de professor. Nos anos 1980 entraram mais negros, nas décadas seguintes, ingressaram ainda mais, especialmente após as políticas de ação afirmativa dos anos 2000. Há de se considerar que os negros são poucos nas academias brasileiras, entretanto, somos mais. A nossa presença, somente esse elemento, eleva as tensões, visibiliza o conflito racial. Ainda não chegamos nesse patamar no espaço da política e da justiça. Um território ocupado e ditado pelo homem branco de forma geral. 

Porém, no espaço de produção do conhecimento, principalmente, por causa das conquistas do movimento negro, podemos considerar que já conseguimos tensionar o racismo institucional praticado nas universidades públicas e em menor proporção nas privadas. Diante disso, já é possível observar uma postura defensiva por parte do acadêmico branco. Isso se torna mais saliente em momentos de disputas entre o negro e o branco pesquisador pelo mercado simbólico abstrato ou o econômico palpável.

No primeiro momento, a negra e o negro eram formados pelos orientadores brancos e brancas. No segundo período já existem orientadores brancos, negros e outros. Desde 1990, a produção acadêmica negra sobre a epistemologia negra, mais recentemente a respeito do branco, tem se consolidado. Existem muitos trabalhos, produções de conhecimentos excelentes.

Nessa pauta, o negro e a negra se tornaram os maiores especialistas em regra. Inclusive os orientadores brancos aprenderam sobre a questão negra e a respeito do continente africano quando exerceram a função profissional de orientar jovens e velhos pesquisadores negros e negras. Um crédito que a intelectualidade negra possui que nunca é verbalizada, reconhecida. Qual orientador branco que não foi, muitas vezes, orientado pelo orientando negro?  Qual orientador branco que não aprendeu muito a respeito sobre aquilo que seria o seu tema de pesquisa principal com os orientandos negros e negras?

A inteligência negra chega na academia, passa a disputar os mercados totalmente pertencentes aos brancos. Os negros possuem, neste caso, maior profundidade e qualidade de maneira geral. Diante disso, ante um provável prejuízo econômico e de prestígio, o branco se protege, esse é o seu movimento, movimento de defesa. Numa disputa justa com o negro ele perderia. Logo, o branco faz uso do pacto narcísico, pacto entre brancos para manutenção da vantagem racial, conceito da intelectual negra Maria Aparecida da Silva Bento (2002b). O pacto narcísico opera, o branco chama o branco para espaços de difusão jornalística, cultural, científica, etc., e mantém a vantagem racial do grupo.

O branco persiste no lugar daquele que vai falar a respeito de tudo, inclusive sobre o negro. O negro e a negra estão em movimento de choque para quebrar isso, por isso ocorre o aumento da tensão que acompanhamos nas redes sociais e outros meios.  “A cidade negra” (o negro e a negra) pode e deve falar academicamente, ou não, a respeito de tudo, não apenas sobre o negro e agora o branco. Isto acontece, já está acontecendo com maior força, os adolescentes e jovens “youtubers” têm executado uma pluralidade temática a respeito do Brasil. Em resumo, a intelectualidade branca realiza um pacto narcísico para defesa dos seus mercados, para não dividirem seus ganhos materiais e simbólicos. Neste caso, estou me restringindo ao aspecto econômico. Para eles, neste caso, o negro persiste somente como objeto de pesquisa e no máximo de consumo para os seus livros sobre questão racial negra ou branca.

 

A academia, o branco-cabeça e o negro-corpo

 

Na sociedade brasileira os brancos estão em todos os lugares. A cultura ocidental racializada construiu socialmente o “lugar do branco” e o “lugar do negro” (GONZALES; HALSENBAG, 1982). O espaço de prestígio social é branco; o de falta de importância, negro. O lugar do mestre? Lugar do branco. O lugar do aprendiz? Lugar do negro. No que se refere ao lugar do negro enquanto aprendiz? O negro seria o aprendiz impossibilitado de ser mestre, ou o aprendiz que somente tem a função/obrigação de ensinar o aprendiz a permanecer em sua condição subalterna.

Ao subordinado deve ser ensinado o seu lugar pelo próprio colega. A lógica colonialista que persiste (MEMMI, 1989). Portanto, o doutor negro é uma exceção ao seu lugar de negro. As exceções são previstas na sociedade racista, confirmam a regra. Questões. O que deve ser ensinado pelo mestre que é exceção? O que o mestre negro deve ensinar ao aprendiz de paridade racial (étnica)? A lição que deve ser aplicada é a pedagogia do cárcere, isto é, conformar-se com as grades.

Enquanto a pedagogia construída pelo ativismo negro nos ensina a liberdade. Propõe métodos para quebra da subordinação, trata-se de uma educação que nos leva ao rompimento do lugar do negro como prisão, ou todos piores espaços possíveis. Efetivamente, o negro constrói uma pedagogia que não é apenas corpo, é igualmente cabeça. O negro sempre foi desqualificado por não ser considerado cabeça.

 O branco seria cabeça e o negro corpo (CLEAVER, 1971; FANON, 1983). Portanto, o lugar do intelectual não seria o lugar do negro. O intelectual negro é cabeça, porém, negro9 (FONSECA, 2000; 2012). O seu pertencimento étnico-racial obstaculiza o debate, a crítica e o reconhecimento de sua produção científica. Diferente do que acontece com os professores doutores brancos. O reconhecimento, ou melhor, a consideração do intelectual negro somente é possível enquanto exceção.

O termo negro é empregado para desmerecer o acadêmico e sua produção de conhecimento. O apreço ao intelectual negro é mais rápido quando contribui com o papel de conformar a sua paridade racial. Aquele que não fizer isto será classificado como suspeito, um cientista com produção de qualidade inferior. A produção científica negra e a prática pedagógica que permitem o acesso a uma literatura antirracista gera desconforto.

Por isto a intelectualidade negra não convém ser conhecida. Isto é uma prática de invisibilização que impede a crítica e dificulta qualquer possibilidade de reconhecimento10. Os Cadernos Negros11 mostram isso. Trata-se de uma publicação com mais de quarenta anos de existência, ainda praticamente desconhecida fora dos grupos de militância. O silenciamento e invisibilização dessa produção literária impossibilitam a sociedade de conhecê-la.

A ação de ocultamento não é inocente, contribui para sustentar a ideia de que determinadas ocupações sociais são exercidas de forma mais eficiente pelo branco. A ciência e a literatura de maior prestígio se colocam como exemplos de não lugar do negro. A produção cultural e científica negra teria qualidade inferior, salvo nichos culturais, caso do esporte, cujo expoente maior é o Edson Arantes do Nascimento, conhecido por quase todos como Pelé. Quanto ao cientista negro? Nas ciências humanas encontramos uma personalidade equivalente, refiro-me ao pensador Milton Santos12.

A figura de Pelé serve para representação do negro como excelente no campo do esporte, enquanto Milton Santos pode servir ao objetivo de visibilizar o negro no papel de exímio cientista. Ambos de reconhecimento internacional. Pelé não representa perigo à narrativa de branco igual a cabeça e negro igual a corpo, por isso a hegemonia branca brasileira o endeusa com facilidade, enquanto há pouca difusão de conhecimento a respeito da figura Milton Santos, sua biografia, seus prêmios, toda sua produção científica.

Pelé possui uma dimensão tamanha que a simples menção ao seu nome facilita a localização do Brasil no mapa mundial em recantos longínquos do globo. O futebol possui proporções de apelo e propagação que nenhuma ciência ou cientista alcançam. Talvez Albert Einstein tenha conseguido grande popularidade enquanto cientista. Jean-Paul Sartre, em menor escala. Gilberto Freyre, no que se refere ao Brasil e a Portugal.

Não se trata de realizar uma comparação entre o esporte, a ciência e o poder de difusão de ambos, não pretendo isso. Objetivo enfatizar a invisibilização do negro enquanto cabeça e a sua superexposição enquanto corpo. O mundo não perderia nada se o Pelé fosse menos conhecido, enquanto ganharia muito com a propagação das ideias do Milton Santos. Lembrando que seus últimos trabalhos estavam voltados a criticar a globalização, sua face perversa a qual nomeou de globalitarismo (SANTOS, 2001).

Conhecer Milton Santos? O fato de o brasileiro conhecer mais Milton Santos colabora para mostrar o negro como cabeça, intelectual. Assim como Lélia Gonzales, Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro, Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, Dagoberto José Fonseca, Henrique Cunha Jr., Wilson Roberto de Mattos, Nilma Lino Gomes, Natália Neris. A Associação Brasileira dos Pesquisadores Negros significa isto. O negro-cabeça. O negro-cabeça não deve ser tratado como incomum. Pelé não deve ser regra e Milton Santos, exceção. Somos inúmeros “Pelés”, mas também “Miltons Santos” com o objetivo de sermos tudo, estarmos em toda parte. Como recitou o poeta Carlos de Assumpção, “quero estar em toda parte, quero o Sol que é de todos” (2000, p. 38).

Na verdade, o negro-cabeça é o negro-corpo. Por isto, sua existência, o seu construir e desfazer o mundo perturbam. A reação à sua produção científica geralmente consiste na ausência do comparecimento ao debate. A presença do branco seria o reconhecimento da produção científica negra. Seria reconhecer o negro enquanto igual, cientista, cabeça, intelectual. O cientista negro é o cabeça e o corpo, um corpo completo sem corte (separação). O branco ainda não o reconhece como igual. São exceções os brancos que o consideram igual em cérebro. Neste caso, estou mencionando, especificamente, os brancos especialistas em teoria sobre o negro e agora também a respeito do branco. Evidente que há outros exemplos de branquitude crítica (CARDOSO, 2008).

 

EPÍLOGO: O BRANCO PESQUISADOR E O OBJETIVO-FIM

 

Assim como mencionei, Guerreiro Ramos foi um dos sociólogos mais importantes do seu tempo, por causa da ditadura militar teve que morar nos Estados Unidos. Ele fazia parte do pensamento social carioca que rivalizava com a sociologia paulista. No decorrer do tempo a influência da analítica paulista foi aumentando e se expandindo para o Brasil. Diante disso, a repercussão científica do Guerreiro Ramos foi sendo colocada de lado. O sociólogo que emergiu foi Florestan Fernandes, intelectual branco de valor indiscutível, todavia, seu valor não é maior, nem menor do que o de Guerreiro Ramos. A academia ocidental persiste em reconhecer o branco e ocultar o negro. Porém, a literatura científica contemporânea tem recuperado os trabalhos de Guerreiro Ramos e o situado com o justo valor que possui na História da sociologia, da administração pública, enfim, do pensamento social brasileiro e mundial. Florestan é grande. Guerreiro também. Guerreiro é grande. Florestan igualmente. O reconhecimento exclusivo de Florestan Fernandes nos estudos de sociologia nacional é uma evidente prática de racismo institucional.

O negro é aquele que sempre viu o branco, enquanto o branco pode se recusar a ser visto como pertença étnico-racial, ao se afirmar: humano, nacional, mestiço. O branco foi aquele que disse: não sou racialidade (raça-etnia), sou humano. Não sou ‘raça’, sou brasileiro. Não sou ‘raça’ nem ‘etnia’, sou ‘mestiço’. O negro sempre a observá-lo disse entre si: “Branco, o branco é branco”. Porém não possuía “autoridade” acadêmica para dizer ao branco que ele é também pertença étnico-racial. Enquanto o branco acadêmico disse ao negro: você é negro.

O branco pesquisador desenvolveu uma teoria racial falando a respeito do problema do negro, do problema que é o negro. Ao entrar na academia, Maria Aparecida Bento será a primeira a defender uma tese de doutorado sobre o branco na condição de objeto/sujeito no Brasil. A pesquisadora negra aprofunda um tema proposto por um pesquisador negro. Ela leva a questão para a universidade, Guerreiro Ramos a publicizou primeiramente no jornal (CARDOSO, 2008). A partir deste momento, a pesquisadora negra mestre pela PUC-SP, no seu caminhar acadêmico para se tornar doutora pela USP13, dirá ao branco: Você é branco. Existe o branco. Diz mais, o branco possui privilégio/vantagem por ser branco. Desde então, a branquitude se torna pesquisa acadêmica, obra de pesquisadores negros e brancos dentro das universidades.

No decorrer do tempo, por meio de análises das produções, podemos verificar as semelhanças e distinções entre as produções realizadas por pesquisadores brancos e negros. Assim como as questões de gênero, região, classe, nacionalidade, etc. O que é possível já observar é o seguinte: o pesquisador branco em sua pesquisa tem se preocupado com um objetivo-fim, enquanto o pesquisador negro, por questão óbvia, geralmente, não se preocupa com isto.

O que seria o objetivo-fim? É uma tendência que se resume ao seguinte: O pesquisador branco procura encontrar sua paz, em meio ao conflito racial. Após abordar os privilégios/vantagens raciais que se têm na sociedade por ser branco, ele tende a caminhar para um “grande final.” Estou falando a respeito das estratégias, o manual de como o branco deve proceder para se tornar branco não racista. A dor que o pesquisador branco sente ao abordar suas vantagens raciais será aliviada na parte final do seu trabalho, a partir do ensinamento de suas estratégias para o branco não ser racista.

Um método, uma pedagogia que o próprio branco pesquisador da branquitude utiliza para si. A maneira como ele se “salvou” o credencia a ensinar a desenhar o mapa para que os outros brancos também possam se “salvarem”. Essa é uma perspectiva branca que tem aparecido em trabalhos de pesquisadores brancos a respeito da branquitude. Edith Piza, em meados de 2000 (PIZA, 2002, 2005), inaugura essa tendência (MOREIRA, 2012, MULLER; CARDOSO, 2017). Ela se diferencia e se coloca melhor do que os outros brancos, em virtude de conhecer e reconhecer seus privilégios/vantagens raciais.

Obviamente, o pesquisador negro não está preocupado com este objetivo-fim, de maneira geral. A fragilidade deste objetivo-fim se encontra no fato de o branco antirracista possuir a mesma vantagem/privilégio racial do que qualquer outro branco. Essa tendência salvacionista de alguns14 pode ser um caminho ou um obstáculo para construção de uma outra sociedade (SANTOS, 2001). Porém, na minha hipótese, o objetivo-fim se apresenta mais como obstáculo, aparência e não essência, do que um recurso para construção de uma sociedade de afirmação humana autêntica15.

O contrário da busca do objetivo-fim seria não correr tão apressadamente para a paz. A mesma paz que sempre nos ofereceu o mito da democracia racial. Um dos significados da branquitude consiste num poder de classificar os outros como não brancos e dessa forma ser menos do que ele (CARDOSO, 2014). A característica do branco se considerar superior em detrimento ao negro é um dos aspectos que evidencia a superioridade racial que o branco antirracista desaprova e critica. Trata-se de uma realidade dura a qual o branco pesquisador procura inventar métodos para amenizá-la o mais rápido possível. Este é o caso dos manuais de desconstrução da ideia de superioridade racial. Ele, por enxergar sua vantagem racial na sociedade racializada, não consegue ficar em paz. A sua solução é sair do conflito em que vive rapidamente.

De minha parte, considero válido o branco antirracista, especialmente o estudioso da branquitude, viver o conflito da vantagem/privilégio racial que não concorda. Sem plano de solução a priori, sem mapas de fuga, sem o final feliz. Isto é, quando constato o horror que sou, de imediato apresento o plano para não ser.  O conflito pode ser importante, não necessariamente o branco necessita caminhar apressadamente em busca da volta de sua paz. A paz que existia quando optava por ignorar completamente o conflito racial. À medida que o branco pesquisador da branquitude, assim como o negro pesquisador apresentam a crítica e logo em seguida a solução, nossa tendência é considerar que a solução apresentada é única ou a melhor possível. E deixam de viver o processo doloroso que, na minha hipótese, porém, também pode ser pedagógico, processo que pode ser a dor da humanização (FANON, 1979).

Reitero viver o conflito de possuir vantagem/privilégio racial, apesar de discordar disso. Viver o conflito sem plano de fuga, sem bote de salva-vidas. Como nos ensina a tradição africana, (...) “seria errado e perigoso querer ocultar a existência e gravidade do conflito (...) a conclusão é sempre um consenso conflituoso” (LATOUCHE, 2013, p. 193). A fuga do conflito faz parte de história de herança ibérica a qual nos acostumou a invisibilizar os conflitos. Dois exemplos dessa prática na Europa, África, América e Ásia são o mito da democracia racial e o lusotropicalismo (FREYRE, 2001; 2010). Enquanto aquele que se encontra no papel de opressor/explorador procura encontrar, em passo acelerado, a sua paz de volta, o outro lado, o explorado/oprimido, continua no Estado de Guerra, produto neocolonial da sociedade contemporânea. Ao comparar o branco e o negro, diria que não há possibilidade de busca de paz para o negro, diante de sua desvantagem racial neste mundo de sociedades racializadas.

 

REFERÊNCIAS

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Notas

[1] Cf. RAMOS, 1995/[1957] (a), (b), (c).

2  Fruto de sua tese de doutorado defendida em 2002, o livro foi organizado em parceria com Iray Carone. Cf. BENTO, 2002. (a), (b).

3 Cf. RAMOS, 1995/[1957] (a),(b),(c), BENTO, 2002.,(a),(b).

4 CARDOSO, 2014.

5 Algumas siglas: UNESP, Universidade Estadual Paulista campus Araraquara, Educafro: Educação e Cidadania para Afrodescendentes e “Carentes” (brancos pobres); CONE-SP: Coordenadoria do Negro da Prefeitura de São Paulo em 2005; IBD: Instituto Brasileiro de Diversidade; UFABC: Universidade Federal do ABC [Santo André, São Bernardo e São Caetano], CES-Coimbra, Centro de Estudos Sociais, Laboratório Associado à Universidade de Coimbra; UFMG: Universidade Federal de Minas Gerais.

* Nessa minha escola da vida formal e informal, o intelectual Boaventura de Sousa Santos é o único intelectual branco citado, ele foi meu orientador durante o curso de mestrado na Universidade de Coimbra entre os anos 2006 e 2008.  

6 Luís Silva, mais conhecido como Cuti, escritor brasileiro muito importante, foi um dos fundadores dos Cadernos Negros, antologia de contos e de poesias criada em 1978 que já passa do volume 40, publicado sem interrupção desde sua origem.

7 Havia uma disputa entre a analítica paulista representada pela sociologia da USP e a analítica “carioca” representada pelo ISEB Instituto Superior de Estudos Brasileiros a respeito da melhor interpretação da realidade social brasileira. Guerreiro Ramos fez parte do ISEB, portanto, nesse período era situado na analítica carioca. Considerada interpretação “ensaísta" se comparada com a interpretação “científica” produzida pelos paulistas. Isso na perspectiva da analítica paulista, obviamente. Cf. BARIANI, 2006.

8  Suponho que seja professor branco, no entanto, foi omitido este detalhe pelo autor José Jorge de Carvalho também branco, no mesmo texto, ele nomeia Guerreiro Ramos como negro. É de praxe o pesquisador nomear negro e deixar de nomear branco. Uma prática acadêmica realizada por todos os grupos étnico-raciais.  

9 Dagoberto José Fonseca, em sua tese de doutorado, critica a dualidade razão-emoção, mente-corpo. Obviamente, pois todos são: emoção-razão; razão-corpo, cabeça-corpo; corpo-mente. Não se sustenta esta hierarquia fruto da mentalidade ocidental.   

10 O reconhecimento é produto da análise da obra, não elogio acrítico à produção científica.

11Antologia literária negra, um ano de poesia e outro de contos, publicada desde 1978. Existem mais 40 edições publicadas de forma ininterrupta.

12 Milton Santos, baiano, nasceu em 1926, morreu em 2001. Intelectual brasileiro de prestígio internacional, Milton Santos ganhou o prêmio Vautrin Lud, em 1994, o de maior prestígio na área da geografia. O prêmio é considerado o Nobel da Geografia.

13 PUC, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; USP, Universidade de São Paulo.

14 Que também pode se encontrar na produção científica de pesquisadores negros.

15 Cf. FANON 1983; CARDOSO, 2014.