Narrativas de crianças do/no recreio escolar: quais as expectativas infantis sobre esse território educativo?

 

Narratives of children in / at school break in the courtyard: what are the children's expectations about this educational territory?

 

 

Aline Sommerhalder

Universidade Federal de São Carlos, São Paulo, Brasil

sommeraline1@gmail.com - http://orcid.org/0000-0002-6024-0853

 

Heliny de Carvalho Massimo

Universidade Federal de São Carlos, São Paulo, Brasil

hlymax08@gmail.com - http://orcid.org/0000-0003-1883-5068

 

Fernando Donizete Alves

Universidade Federal de São Carlos, São Paulo, Brasil

alves.sommer@gmail.com - http://orcid.org/0000-0002-9354-7851

 

Recebido em 19 de outubro de 2020

Aprovado em 28 de dezembro de 2020

Publicado em 13 de outubro de 2022

 

 

RESUMO  

Resulta de pesquisa ampla com financiamento do CNPq e contempla as infâncias em recreio escolar, nos anos iniciais de ensino fundamental. Identifica e examina, a partir de narrativas infantis, expectativas de crianças sobre o recreio no que tange lugares, possibilidades para brincar, brinquedos e alimentação. Confirma, por levantamento bibliográfico, que o recreio ocupa um lugar de ‘silenciamento’ na produção científica atual, problematizando-o como contexto educativo e com pouca valorização no campo escolar, sem diálogo com as aprendizagens de sala de aula. De natureza qualitativa realizou-se a entrevista semiestruturada, com quatorze crianças dos três primeiros anos do ensino fundamental, no momento do recreio escolar em uma escola estadual de ensino fundamental. As entrevistas, na proposta de narrativas orais, contaram com um roteiro e foram subsidiadas ainda por desenhos infantis. Realizou-se transcrição de gravações de voz e a análise ocorreu na perspectiva da Análise de Conteúdo. Coloca-se em destaque os lugares, o que comer, brinquedos e brincadeiras. Em lugares, a expectativa foi pelo uso quadra poliesportiva e do jardim. No entanto, em prevalência o parquinho foi o espaço de maior interesse. Sobre brinquedos e brincadeiras, os resultados revelaram o pula-pula, a piscina de água e de bolinhas, a boneca, a corda, o balanço e os jogos, com prevalência pelo pula-pula e pela corda. O estudo apontou uma expectativa sobre a alimentação no recreio, prevalecendo expectativas sobre sobremesas em forma de doces. Anuncia a necessidade de produção de outros estudos que contemplem essa temática evidenciando contributos do recreio escolar no viver a vida nas infâncias e na materialização do direito de brincar.

 

Palavras-chave: Recreio escolar; Crianças nos iniciais do ensino fundamental; Expectativas infantis em narrativas.

 

ABSTRACT

It results from extensive research, with funding from CNPq and includes children in school recess, in the early years of elementary school. It identifies and examines, based on children's narratives, children's expectations about school break in the courtyard in terms of places, possibilities for playing, toys and food. It confirms, through a bibliographical survey, that the recess occupies a place of 'silencing' in the current scientific production, problematizing it as an educational context and with little value in the school field, without dialogue with the classroom learning. Of a qualitative nature, a semi-structured interview was conducted with fourteen children from the first three years of elementary school, at the time of school recess in a state elementary school. The interviews, in the proposal of oral narratives, had a script and were also subsidized by children's drawings. The transcription of voice recordings was carried out and the analysis took place from the perspective of Content Analysis. The highlights are places, what to eat and toys and games. In places, the expectation was for the use of a sports court and, of the garden. However, in prevalence, but in prevalence, the playground was the area of ​​greatest interest. Regarding toys and games, the results revealed the pogo stick, the pool of water and balls, the doll, the rope, the swing and the games, with predominance for the pogo stick and the rope. The study pointed out an expectation about what to eat during recess, with expectations over desserts in the form of sweets. Indicates stands out for the need to produce other studies that address this theme, highlighting contributions from school recess in living life in childhood and materializing the right to play.

 

Keywords: School break in the courtyard; Children in early elementary school; Children's expectations in narratives.

 

 

 

 

Introdução

 

O artigo decorre de uma investigação matriz (ampla) concluída com financiamento do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Contempla a temática das infâncias no intervalo escolar de uma escola pública de ensino fundamental. Objetiva identificar e examinar, a partir de narrativas infantis, expectativas sobre o recreio escolar em crianças de anos iniciais do ensino fundamental colocando em tela os lugares, as possibilidades para brincar, os brinquedos esperados e os interesses de alimentação (merenda) escolar.

O levantamento bibliográfico do tema realizado como etapa anterior da pesquisa matriz anunciou uma fratura na produção científica recente (de 2011 a 2016). Somente cinco artigos (MARTINATI e ROCHA, 2015; RODRIGUES, 2015; WENETZ, STIGGER e MEYER, 2013; WENETZ, 2012; SOUZA, 2016) trataram diretamente da temática do estudo, no ensino fundamental, indicando centralmente que o recreio assume um lugar de distração na infância em oposição às atividades escolares ‘sérias’, que ocorrem em sala de aula. Destaca-se que os quatro primeiros artigos referenciados foram publicados em periódicos nacionais e disponibilizados no Scielo (Scientific Electronic Library Online - http://www.scielo.br) e o quinto material foi selecionado do GT13 (Ensino Fundamental) da 36ª Reunião Anual da Anped (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação http://www.anped.org.br/).

Apesar de poucos estudos científicos identificados houve profundidade de conteúdo nos dados, dos quais sinteticamente aponta-se:  questões de gênero e sexualidade nas brincadeiras do recreio; a organização espacial do recreio por territórios e os saberes sobre os programas televisivos de mídia, manifestos entre os pares infantis no intervalo escolar. Os poucos achados do levantamento evidenciaram que o recreio escolar ainda é silenciado como fenômeno de interesse científico, especificamente no campo das pesquisas educacionais e nos estudos da infância.

Assume como hipótese a consideração de que o recreio escolar é lugar de aprendizagens e de intercâmbios de experiências entre as crianças possibilitando a ampliação do repertório de culturas lúdicas infantis. Contudo, não valorizado em nossa sociedade, constitui-se como espaço e momento apartado da organização ou planejamento escolar. Na mesma direção, o recreio não é valorizado do ponto de vista científico e, por consequência, não há reconhecimento das narrativas e conhecimento de saberes das crianças produzidas no tempo e espaço do recreio e que, circulam no território escolar. Fica na margem o conhecimento dos sentidos de tudo o que é produzido e que circula nesse território. Este fato favorece a não consideração de uma relação de diálogo entre o que se ensina e o que se aprende no recreio e nas salas de aula dos anos iniciais do ensino fundamental.

Refletir sobre o contexto atual do ensino fundamental no Brasil é mais do que somente analisar um cenário político ou um viés ideológico no campo educacional. É também pensar a criança que ingressa aos seis anos de idade no ensino fundamental ou com essa idade incompleta. Com isso, entra no espaço e tempo institucional de uma escola, com as peculiaridades da cultura da infância em tensionamento com uma cultura escolar. A expectativa é por um diálogo harmônico com uma nova cultura escolar que assume a infância em seu cotidiano de práticas pedagógicas (BARBOSA; 2012; RAPOPORT et al., 2009).

Os discursos sobre a universalização do acesso de crianças ao ensino fundamental são pertinentes, mas não suficientes para a implementação de um sistema qualitativo de ensino e de aprendizagem. É fato que esse ingresso de crianças em um ensino fundamental com duração de 9 anos não representou uma transformação das práticas pedagógicas, do currículo e dos processos avaliativos (seja este de sistema ou de aprendizagem).

A linguagem privilegiada da criança, ou seja, o brincar, não assumiu a centralidade da organização do ensinar e do aprender e, diante desse fato, o recreio enquanto lugar brincante continuou se constituindo em tempo de expansão ou de contenção de energia, posto como breve momento de distração, descanso da mente para posterior continuidade do trabalho com os conteúdos em sala de aula. Por vezes, o corpo em ação lúdica centra-se exclusivamente no trabalho manual marcando os processos de alfabetização. Não se cogitou, quando do ingresso da criança aos seis anos no ensino fundamental, o concreto diálogo com as realidades das infâncias brasileiras, com os seus direitos, com as suas necessidades e os interesses infantis.

O estudo assume a compreensão de recreio escolar como território educativo privilegiado, em que a criança tem oportunidade de escolher do que brincar, com quem e com quais objetos ou brinquedos. Nessa ideia, esse território fomenta a autonomia e a independência, o convívio e a troca entre pares, a circulação da cultura lúdica e a aquisição desta, pelas crianças. É um momento e ambiente educativo para manifestação de interesses, de necessidades, de aprender a viver com amigos e com a diversidade. É ainda oportunidade para aprender a conviver e atuar na construção e revisão de regras, aprender a gerenciar o tempo com os interesses e necessidades e oportunidade para realização de novas amizades. É ainda um território para viver a vida na infância.

O brincar livre se apresenta como experiência central nesse intervalo de aulas sendo o tempo-espaço escolar mais almejado pelas crianças. No entanto, é o momento em que o brincar reconhecido como direito é controlado pelos adultos (MEDEIROS, 2015; BARBOSA, 2015). Logo, “[...] algumas crianças ainda pensam que a recreação é um favor, uma troca e não um direito!” De forma que “[...] o horário e o espaço do brincar na escola passam ainda pelo desejo do professor” (ALGEBAILE, 1996, p. 145).

Considerado como ‘efetivo trabalho escolar’ foi adotado com a Lei 5.692/71 e reforçado por meio do Parecer 792/73: “o recreio faz parte da atividade educativa e, como tal, se inclui no tempo de trabalho escolar efetivo [...]; e sobre seu tempo de duração, “[..] parece razoável que se adote como referência o limite de um sexto das atividades (10 minutos para 60, ou 20 para 120, ou 30 para 180 minutos, por exemplo)”.

 O Conselho Nacional de Educação, por meio do Parecer CEB nº 05/97, também conceituou o recreio como horas de efetivo trabalho escolar (atividade escolar) devendo estar incluindo na proposta pedagógica:

 

As atividades escolares se realizam na tradicional sala de aula, do mesmo modo que em outros locais adequados a trabalhos teóricos e práticos, a leituras, pesquisas ou atividades em grupo, treinamento e demonstrações, contato com o meio ambiente e com as demais atividades humanas de natureza cultural e artística, visando à plenitude da formação de cada aluno. Assim, não são apenas os limites da sala de aula propriamente dita que caracterizam com exclusividade a atividade escolar de que fala a lei. Esta se caracterizará por toda e qualquer programação incluída na proposta pedagógica da instituição, com frequência exigível e efetiva orientação por professores habilitados. Os 200 dias letivos e as 800 horas anuais englobarão todo esse conjunto.

 

No Estado de São Paulo, a indicação do Conselho Estadual de Educação destacou por meio do CEE nº. 09/97:

 

São ainda atividades escolares aquelas realizadas em outros recintos, para trabalhos teóricos e práticos, leituras, pesquisas e trabalhos em grupo, concursos e competições, conhecimento da natureza e das múltiplas atividades humanas, desenvolvimento cultural, artístico, recreio (g.n) e tudo o mais que é necessário à plenitude da ação formadora, desde que obrigatórias e incluídas na proposta pedagógica, com freqüência do aluno controlada e efetiva orientação da escola, por meio de pessoal habilitado e competente. Essas atividades, no seu conjunto, integram os 200 dias de efetivo trabalho escolar e as 800horas, mínimos fixados pela Lei.

 

No Parecer CEB 02/2003 apresenta-se como indicação final que a escola, ao fazer constar na Carga Horária o tempo reservado para o recreio, deve fazer dentro de um planejamento global e sempre coerente com a sua Proposta Pedagógica. O mesmo Parecer traz ainda:

 

Não poderá ser considerado o tempo do recreio no cômputo da Carga Horária do Ensino Fundamental e Médio sem o controle da frequência. E, a frequência deve ser de responsabilidade do corpo docente. Portanto, sem a participação do corpo docente não haverá o cômputo do tempo reservado para o recreio na Carga Horária do ano letivo dessas etapas da Educação Básica.

 

O recreio se constitui em uma microssociedade em que reinam relações sociais. Há a constituição de grupos de amizade, o estabelecimento de regras, de valores, de lideranças, de troca de culturas (incluindo a lúdica) e de experiências que fundamentam as bases para novas aprendizagens (DELALANDE, 2009) precisando que essas aquisições façam intercâmbio com aquelas realizadas em sala de aula.

 

Percurso metodológico

De abordagem qualitativa, descritivo e exploratória (TRIVIÑOS 1987; BOGDAN; BIKLEN, 1994; MAZZOTI; GEWANDZNAJDER, 1999; VIANNA, 2007) a aprovação da pesquisa em Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade recebeu o parecer n. 1.062.038. A pesquisa de campo ocorreu em horário de recreio escolar, em um pátio de uma escola estadual de ensino fundamental que atende somente turmas de anos iniciais. A escola estava localizada em um município do estado de São Paulo e se organizava, no ano da coleta de dados, em 18 salas de crianças de anos iniciais do ensino fundamental (1º ao 5º anos) distribuídas em ofertas manhã e tarde.

Sobre o contexto da pesquisa, o pátio escolar foi o espaço central de realização do recreio, dividido entre parte superior e inferior.  As paredes eram coloridas com ilustrações de personagens da Turma da Mônica. O ambiente contava ainda com mesas pintadas, localizadas no pátio inferior.  Havia ainda uma quadra poliesportiva e bancos de cimento no pátio inferior. Na dimensão de 49m² de espaço, o refeitório da escola tinha uma pintura na parede ao fundo representando o cenário de um piquenique, com personagens da Turma da Mônica. Figuras de animais e aves coloriam as paredes.

O pátio possuía uma área coberta de 187m². O acesso aos pátios inferior e superior poderia ser feito por rampa de acessibilidade ou escadas. Havia uma extensa arquibancada nos lados direito e esquerdo, com degraus para formas de acesso.

Havia grades de proteção em todo o entorno da quadra poliesportiva coberta. Com uma área de 600m² essa quadra tinha suportes para jogos de basquete e traves para futebol e handebol, postas em uma estrutura de ambiente externo da escola.

No pátio superior descoberto havia jogos de amarelinha pintados no chão e cesta de jogo de basquete como equipamento de estrutura. No pátio inferior, ao lado oposto da quadra poliesportiva, existia uma área ampla com gramas, árvores de troncos finos, altos e arbustos baixos. Ao fundo do pátio inferior havia um parquinho infantil cercado com uma grade de proteção e, próximo ao equipamento lúdico, tinha um espaço utilizado para estacionamento de veículos, com pedrinhas e gramas no chão.

Figura 1: Planta baixa 1 do pátio de recreio escolar

Fonte: Arquivo pessoal

 

Quatorze (14) crianças (todas meninas) matriculadas nos 1º, 2º e 3º anos do ensino fundamental participaram do estudo. O agrupamento de estudo composto por 14 crianças teve como critérios: a) autorização dos pais ou responsáveis pela participação da criança no estudo; b) compreensão, aceite da criança e participar das sessões de coleta de campo durante o horário do recreio escolar; c) serem estudantes matriculados nos primeiros três anos do ensino fundamental da unidade escolar participante; d) ter idade entre cinco anos e meio (realidade presente em escolas de anos iniciais, com matrículas no 1º ano) e oito anos. O estabelecimento destes critérios também se deu pela impossibilidade de realização de uma pesquisa de campo no desenho qualitativo que incluísse aproximadamente 200 crianças, quantitativo que frequentavam o recreio escolar no mesmo horário.

A escolha pelos três primeiros anos do ensino fundamental foi realizada pelas idades que marcam o início do ensino fundamental de duração de 9 anos e de ingresso das crianças com seis anos completos ou a completar. É uma etapa que marca a transição entre a educação infantil e o ensino fundamental. Na unidade escolar participante, o 1º ano do ensino fundamental incluía crianças matriculadas com cinco anos e meio.

O fato de todas as participantes serem do sexo feminino não foi estabelecido como um critério de pesquisa. Justifica-se a presença de meninas na pesquisa devido ao interesse exclusivo delas pelo estudo. O interesse incluiu o aceite do TALE e participação nas coletas. O grupo de 14 meninas foi composto por 04 crianças do 1º ano; 09 do 2º ano e 01 criança do 3º ano, provenientes de famílias que residiam nos bairros próximos à escola, de baixa escolarização, atuando em esferas de serviços como comércio ou indústria. A pesquisa utilizou nomes fictícios, escolhidos pelas crianças no momento do consentimento, coletados em uma roda de conversa.

Foi aplicado o Termo de Assentimento Livre e Esclarecido (TALE) por meio de uma roda de conversa. O procedimento contemplou uma leitura pausada em parceria ou realizada sozinha pela criança e a elaboração de um desenho ao final da folha com a escrita do nome. Também houve uso do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) aos responsáveis, materiais que foram aplicados após aprovação do projeto de pesquisa no Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade, aprovação do estudo pelas responsáveis pela escola e professoras das turmas envolvidas.

Foi realizada entrevista semiestruturada na perspectiva de narrativas orais infantis (TRIVIÑOS, 1987; LUDKE; ANDRÉ, 1986). Por narrativas orais, assumiu-se como inspiração os estudos (auto)biográficos; o respeito ao sujeito que fala na pesquisa (FRIEDMANN, 2013); os estudos com crianças (CRUZ, 2008) e a proposta de escuta sensível no campo educacional (BARBIER, 1988; RINALDI, 2012).

 

Um dos desafios da pesquisa (auto)biográfica com crianças é encontrar maneiras de escutar o que elas têm a dizer sobre elas mesmas e suas próprias experiências, respeitando-as como seres capazes de reflexão. Requisitos que legitimam o seu reconhecimento como participantes da pesquisa. (PASSEGGI, NASCIMENTO e DA SILVA, 2016, p. 104).

 

 

Privilegiada é a criança que tem espaço para ser criança. Privilegiada é a criança que é ouvida e acolhida por adultos sensíveis. Privilegiado é o adulto que tem espaço [...] para ouvir e aprender com as crianças (FRIEDMANN, 2013, p. 175).

 

A escuta atenta das falas das crianças exigiu uma permanente postura científica de cultivo da sensibilidade na interação com o outro, de abertura às diferentes ideias, no exercício satisfatório de aproximar das lógicas infantis (FORMAN; GANDINI; EDWARDS, 2016). Assumiu-se uma visão de criança como ser holístico, que aprende na inter-relação das dimensões física, afetiva, cognitiva, social, cultural e espiritual. Nesse sentido, a escola se apresenta como lugar privilegiado para aprender, se relacionar, desenvolver e ampliar o conjunto de competências humanas, transformando a criança em cidadão e cidadã do presente e de futuro (BRASIL, 2004).

Foram utilizados desenhos[i] realizados pelas crianças e tomados para fomentar o diálogo na entrevista semiestruturada. As entrevistas semiestruturadas foram realizadas em seis grupos previamente constituídos pelas próprias crianças (de duas a três) considerando os vínculos de amizade entre elas e respeitando as indicações de Araújo e Formosinho (2008).

Foram considerados os seguintes aspectos nas entrevistas: o contexto da entrevista, pois quanto mais familiar é o lugar para a criança, mais rico serão os dados obtidos e menor a sensação de ansiedade; a flexibilidade para com as respostas da criança, no uso da entrevista semiestruturada informal (adequada ao nível de compreensão das crianças), evitando questionamentos diretivos e fechados; o uso de desenhos feitos pelas crianças, para iniciar e incentivar o diálogo; a divisão em pequenos grupos ou pares infantis, de modo que as narrativas fossem construídas nesse coletivo e não ocorresse um risco potencial de timidez, inibição da criança ou hierarquização na relação pesquisador e participante, na coleta. Partiu-se ainda da consideração de que a narrativa de uma criança ia se complementando a outra, na medida em que a conversa acontecia.  Araújo e Formosinho (2008, p.21) destacam: “[...] se a criança pode escolher os pares que a vão acompanhar, poderá esbater esta inibição [...]”.

As entrevistas foram realizadas no horário do recreio escolar e no espaço do pátio ou na biblioteca da escola, sendo que esse último espaço foi utilizado em situação de chuva. Cada sessão de entrevista teve duração entre 20 e 30 minutos, considerando o tempo máximo de duração do recreio. Uma sessão de entrevista foi realizada com cada grupo de crianças.

A entrevista ocorreu a partir de um roteiro de questões tomando como inspiração temática os desenhos realizados. O roteiro foi composto por cinco perguntas: 1- O que é recreio para você? 2. Do que você gosta de brincar? 3. E como gostaria que fosse o recreio? 4. O que você acha sobre o tempo e espaço do recreio? 5. E você aprende no recreio, conte?

Houve uso de gravador de voz para registro de narrativas orais de crianças. Também foi realizada a transcrição na íntegra das gravações de voz de cada entrevista realizada, compondo seis documentos escritos, em modelagem de diários[ii] de campo (COSTA, 2002; LOPES et al.; 2002 e BOGDAN; BIKLEN, 1994).

A organização e análise dos dados ocorreu na proposta da Análise de Conteúdo (BARDIN, 2011), com eleição de categorias à posterior, ou seja, a partir dos achados científicos da coleta.

 

   Resultados e Discussão

Como parte dos resultados da pesquisa elege-se a apresentação da categoria Expectativas para o recreio, com as respectivas unidades de registro: 1. O que espero de lugares para brincar; 2. O que espero de brinquedos e de brincadeiras. 3. O que espero para comer.

Em O que espero de lugares para brincar, os espaços de interesse das crianças ou o que gostariam que fosse permitido acesso ou maior tempo de permanência para exploração foram: a quadra poliesportiva, o jardim (área composta por grama, árvores e arbustos) localizado dentro da escola e um outro espaço próximo de uma quadra poliesportiva, a calçada na rua na frente da escola, o parquinho infantil de bairro (localizado fora da escola), o estacionamento de carros da escola e o parquinho infantil localizado dentro da escola, próximo ao pátio, sendo este último o ambiente prevalente (DC16; DC21; DC24, 2018). Esses espaços foram evidenciados nas narrativas infantis com prevalência de expectativa de uso ou de permissão para maior tempo de permanência.

Apesar do parquinho da escola ser uma área destinada às brincadeiras das crianças, o espaço era todo cercado com grade e não ficava disponível nos momentos de recreio, ou seja, as crianças não tinham autorização para uso. Além disso, era explorado somente pelas turmas de 1º e 2º anos do ensino fundamental exclusivamente no horário das aulas e sob supervisão das professoras das turmas.

As crianças também narraram a expectativa de uso de espaços para a realização de determinadas brincadeiras, como ‘esconde-esconde’. Apesar da amplitude do pátio da escola, não eram todos os espaços desse entorno que as crianças tinham autorização para uso. Também foi esperado um lugar para brincar de ‘pega-pega’, apesar das formas encontradas pelas crianças de concretização do interesse, mesmo diante das limitações (‘não pode correr’): “A gente brinca andando” (DC24). A expectativa era por acesso a lugares em que elas pudessem correr, exercício de habilidade motora que não era permitida no pátio durante o recreio escolar, argumentando-se pela segurança. Algumas crianças, durante as brincadeiras, associaram a existência da quadra poliesportiva como espaço em que a ação de correr estava permitida. Porém, essa relação foi feita por motivo da disciplina de educação física, em que correr era incentivado durante o horário dessa aula.

 

[...] A Liza começou a responder “ir no parquinho, é...que tivesse mais joguinhos, xadrez, dama. Pra brinca de esconde, tiver mais lugar pra esconder”. “Você queria que tivesse mais lugar para se esconder? E ela concordando, disse “é”. A Ysabely começou a falar também e acrescentou, “lugar pra gente brincar de pega-pega, porque não pode”. “Não pode?”, ao que a Ysabely respondeu “não, porque acho que quando você corre e se machuca, leva um pisão”. “E como vocês brincam de pega-pega? Se não pode correr”. A Ysabely falou “A gente brinca andando” (DC24, 2018, p.10).

 

A quadra poliesportiva foi disponibilizada às crianças somente após o término do momento do lanche, alimentação que ocorria no refeitório. Não estava permitido o uso da quadra para o consumo de alimentos e sem a presença de um adulto inspetor[iii]. Em alguns dias, a quadra permaneceu sem autorização de uso pelas crianças. Sobre os brinquedos, somente as bolas de basquete foram disponibilizadas para uso na quadra. As crianças que tivessem interesse no jogo de futebol tinham que adaptar outros objetos, como tampinhas de garrafas plásticas ou mesmo garrafinhas pequenas, objetos provenientes dos lanches (DC10, 2018).

O jardim ou canteiro com árvores, conhecido pelas crianças como gramado, estava localizado no pátio inferior sem cobertura. Esse espaço também foi outro lugar evidenciado nas narrativas orais como expectativa de uso durante o recreio. No entanto, cabe dizer que o pátio inferior era de uso restrito para realização de eventos ou aulas, com acompanhamento de professoras. Nas narrativas infantis, a não permissão para uso do espaço estava motivado pelo fato dele possuir ‘formigas que picam’, ‘pulgas’ ou as crianças não sabiam o motivo da não autorização (DC11, 2018).

 

A Lila falou “imagina vocês tudo, só brincadeira o dia inteiro”. A Isabela completou “só parquinho, só música, só corda”. A Mia falou “posso falar uma coisa? Sabe aquele gramado lá que ninguém pode entrar? Eu queria que pudesse entrar, aí quem gostava de fazer algumas mágicas, alguma brincadeira ia ir lá brincar”. “Você gostaria de brincar no gramado, me relate?”. A Mia se expressou com um “ahãn”, e a Isabela disse “sim”. A Isabela disse “a gente só pode ir lá quando a professora leva os brinquedos pra gente brincar”. A Mia falou “ou quando é festa junina” E as meninas concordaram com a fala da Mia. “E porque não pode ir lá, vocês sabem, me contem?” A Lila, respondeu “não, porque tinha pulga antes e ainda a diretora tá com medo que tenha”. Depois, ela examinou, mais não tinha. (DC24, 2018, p.14).

 

As crianças trouxeram uma expectativa de abertura do parquinho e sugestões sobre uma logística de uso, de modo que cada dia da semana pudesse ser utilizado por uma turma diferente.

O que vocês gostariam de poder fazer ou que lugares para usar no recreio?”. A C. Nini falou “eu queria ir no parquinho e lá naquela... você sabe aquele outro lado que tem grama? Lá e na rua. Não, na calçada”. Enquanto isso, a Elini pegou um livro da biblioteca e começou a folhear. A Isa2 olhou para ela e falou “não pode” [...] a Isa2 disse “eu queria que aqui o parquinho, na hora do recreio, tivesse aberto à vontade pra todas as crianças brincarem!” Eu perguntei, “pra todas as turmas?”. Ela respondeu “é... mais é uma vez cada um... primeiro, o primeiro ano, ai depois o segundo ano...” A Elini, completando a fala da colega, falou “[...] o quinto, o quarto e o sexto ano em cada dia (DC24, 2018, p.6).

 

As narrativas sobre o que esperavam de lugares para brincar evidenciaram que espaços para realização de brincadeira de esconde-esconde compreendeu uma necessidade infantil de exploração de locais desafiadores. Ou seja, com as condições espaciais interessantes tanto para estrutura quanto para o desenvolvimento da brincadeira. Suas narrativas mencionaram locais com mais possibilidades para ‘esconderijos’ e assim, fomentadores da brincadeira. Os desafios nas atividades lúdicas, na configuração dos espaços e das experiências mobilizam ainda mais o interesse, a motivação e a curiosidade infantil (FORMAN; GANDINI; EDWARDS, 2016).

O parquinho e o jardim ou espaço com árvores também se apresentaram como lugares de maior expectativa infantil sendo que o parquinho foi o mais prevalente. Cabe dizer que o parquinho era acessado apenas pelas turmas de 1º e 2º anos, com as respectivas professoras e em horários de aula. O uso do parquinho entre as turmas de 1º e 2º anos, segundo os resultados, aconteceu em dias específicos da semana e principalmente após o cumprimento da agenda de atividades em sala de aula, como decorrente do ‘bom comportamento’ da turma. Anunciado nas narrativas como uma ‘medalha’ após uma avaliação em sala de aula, esse lugar aproximou-se de um sentido de ‘descarga de energia’ para relaxamento da situação vivenciada em contexto de sala. No ensino fundamental, ainda há uma concepção de que o brincar é uma estratégia para “[...] tornar o 1º ano menos cansativo”, do que um reconhecimento dessa linguagem no desenvolvimento e na aprendizagem humana (DIAS; CAMPOS, 2015, p.64).

As crianças dos anos iniciais precisam ser consideradas em suas infâncias, independente de terem completado 6 ou 11 anos de idade, considerando que essa categoria social em lei caracteriza os sujeitos até os doze anos de idade incompletos (BRASIL, 1990). Diante disso, cabe o questionamento: A infância acabou na passagem do segundo para o terceiro ano do ensino fundamental? O parquinho é um símbolo para disfarce da continuidade da educação infantil na escola de ensino fundamental servindo para ‘acalmar’ ou ‘premiar’ a criança na transição escolar?

Na segunda unidade de registro: O que espero de brinquedos e de brincadeiras, os resultados evidenciaram expectativas da existência de alguns brinquedos: pula-pula,  piscina de água para prática da natação, piscina de bolinhas, boneca Baby Alive, a possibilidade de realização de algumas brincadeiras ou equipamentos para brincar: ‘Ladybug’, corda em todo lugar do pátio, balanços nas árvores, joguinhos no pátio (de matemática, de xadrez, de dama), brincadeira de vôlei na quadra poliesportiva, brincadeira de dançar funk[iv]. O pula-pula, a piscina para fazer natação e a corda foram os prevalentes em expectativa de disponibilidade para o recreio.

Vocês têm alguma ideia ou expectativa do que poderia ter no recreio? A Isa3 disse “eu! eu!... pula-pula!”. A Mia disse “podia ter vôlei! O professor já ensinou a gente a jogar Vôlei”. A C. Nini também se interessou e comentou “piscina de bolinhas!” [...] a Isa2 disse “todo dia sobremesa!”. A Manu falou “podia ter um bolo bem grande, mais bem grande na sobremesa”. A Mia voltou a falar “eu sei... que todo mundo podia brincar nesse parquinho! (DC16, 2018, p. 3).

 

Mediante a pergunta: Se você pudesse escolher alguma coisa para ter no recreio, o que você gostaria que tivesse? O que esperaria que tivesse a partir de sua escolha? A Bia pensou um pouco e disse “pula-pula”. A Isa3 se aproximou e, ouvindo a conversa, disse “queria ter uma aula de natação em piscina”. (DC28, 2018, p.4).

 

Na proposta de recreio dirigido, a escola ofereceu duas cordas para uso no pátio superior descoberto, bolas de basquete no espaço interior da quadra, música e, no último mês da coleta, as crianças tiveram acesso aos jogos de memória e de xadrez para uso na quadra (DC20, 2018). A corda não foi disponibilizada de imediato no início do horário do recreio, ou seja, as crianças tinham que esperar um tempo para acesso ao brinquedo ou quando o recreio tinha a disponibilidade de músicas, o material não foi autorizado para uso.

 

A C. Nini ficou olhando as meninas conversarem. A Mia comentou que queria pular corda e falou que teria que pedir para a inspetora K. Ela e a Isabela foram juntas pedir a corda. Depois elas voltaram sem a corda naquele momento. A Isabela respondeu: “eu perguntei se a gente podia pular, pegar a corda e ela falou que não” (a inspetora). Mas, alegou não saber o motivo da negação. Neste momento, a C. Nini disse: “ei vamos brincar” (DC14, 2018, p.4).

 

Na solicitação de balanços em árvores, as crianças narraram um novo sentido para o espaço do jardim que já continha algumas árvores de troncos finos inacessíveis para elas. Até mesmo a ideia de colocar um pula-pula no pátio foi apresentado como expectativa e solução para a organização da gestão de uso do objeto “[...] pula-pula pra todo mundo pular, três de cada vez, cada um ia entrar” (DC24, 2018, p.10).

 

[...] “sabe essas árvores? Eu queria que pendurassem balanços e aí todo mundo ia balançar”. A Isabela também falou “eu queria que colocasse corda nessas árvores, aí a gente segurava nas cordas e ficava balançando assim”. A Lila disse “que nem o Tarzan?”. “E vocês gostam de subir na árvore?”. A Mia disse, com a frase terminada pela Isabela, “eu amo”. Isabela: “eu virei agente secreto, de tanto que eu subo em árvore” (DC24, 2018, p.14).

                                                   

As crianças buscaram participar anunciando suas expectativas sobre a configuração dos espaços disponíveis para o recreio.  A expectativa de abertura do parquinho veio com sugestão de uso disponibilizado para todas, sendo cada dia da semana usufruído para uma turma específica. Essa participação também ocorreu sobre a inclusão de brinquedos no pátio escolar, como: pula-pula indicando ainda a organização para uso.

Dentre as expectativas com sugestões, elas manifestaram o interesse de incluir balanços nas árvores disponíveis pelo jardim ou conseguir livre acesso para escalá-las e liberar a corda para pular em toda extensão do pátio, considerando que as cordas ficavam disponíveis exclusivamente no pátio superior descoberto. Ter mais cordas no pátio e poder pulá-las sobre a grama no jardim apresentou-se como uma expectativa. A pesquisa confirma que “as crianças são nômades da imaginação e ótimas manipuladoras do espaço” (CEPPI; ZINI, 2013, p. 139).

As árvores de tronco fino, enquanto enfeites do pátio inferior, foram ressignificadas ao olhar das crianças, tal como outras ideias de atividades para esses momentos do recreio: acrescentar piscina para natação e piscina de bolinhas, ter joguinhos de matemática e outros esportes na quadra, como vôlei (não apenas basquete). Vemos a criatividade infantil em movimento, nas ações e nos pensamentos voltados para abarcar novas experiências e, consequentemente, mais aprendizagens nessas vivências diárias (WINNICOTT, 1975; BROUGÈRE,1998).

Na terceira unidade, O que espero para comer, as narrativas anunciaram uma expectativa pela oferta de sobremesa no refeitório, todos os dias: pavê, sorvete, chocolate, bolo e o prato de comida strogonoff, além da expectativa de repetir a refeição. Cabe dizer que essas crianças são provenientes de famílias economicamente menos privilegiadas e, por vezes, beneficiadas pelo Programa Bolsa Família. Em alguns casos, a refeição da escola ainda é a alimentação mais completa do dia.

As crianças formaram fila no refeitório para pegarem o prato de alimento com a sobremesa. Essa sobremesa nem sempre foi servida juntamente com o prato de alimento. Dependendo do dia, a sobremesa foi pavê ou vitamina de frutas, mas o fato de não ser entregue juntamente com o prato da merenda levou as crianças para uma segunda fila, quando já estavam brincando no pátio. A escola não ofereceu sucos. Com essa exceção, as crianças que levaram bebidas fizeram esse consumo no refeitório.

No entanto, mesmo que as crianças não quisessem comer, precisavam ficar sentadas com a turma naquele espaço do refeitório durante o tempo de dez minutos. Outro aspecto de destaque foi com relação ao lanche de casa, que não podia ser consumido no mesmo local e horário da merenda. Desse modo, ainda quando saíam para o pátio escolar precisavam se alimentar do lanche trazido de casa.

As crianças que desejavam repetir o prato poderiam fazê-lo sem dificuldades. Depois do consumo, elas deveriam jogar o restante da sobra da comida no lixo, os talheres e pratos em bacias específicas para depósito. Quando chegavam da sala de aula com atraso para o refeitório, muitas crianças deixavam de comer para utilizarem o tempo nas brincadeiras. Com isso, consumiam o tempo da merenda, sem a realização da alimentação.

Essa escola implementou, em alguns dias, o recreio dirigido e para essa dinâmica ofereceu:  duas cordas para desenvolvimento de brincadeiras de pular, música para dançar, abertura da quadra para jogar basquete e, em alguns recreios, as crianças do grêmio também disponibilizaram na quadra alguns jogos (como: xadrez, dama, memória). Contudo, não houve orientação de novas brincadeiras, nessa relação entre adultos e crianças, apenas inclusão de objetos lúdicos no espaço. Resgatando Kishimoto (2011), é preciso aprender a brincar, portanto, nesse contexto, a escola é lócus privilegiado de aprendizagem sobre viver a vida lúdica, para muitas crianças. É nesse lugar que o repertório de cultura lúdica se amplia, se mantem e é ressignificado pelas crianças.

É cada vez mais difícil, no apressado mundo adulto, parar para escutar as crianças com tudo que elas têm a expressar de suas diferentes imagens e saberes (FRIEDMANN, 2013; ECKSCHIMIDT, 2015). As crianças estão abertas à comunicação tentando expressar “[...] por inúmeros meios, seus sentimentos, percepções, emoções, momentos, pensamentos, mesmo sem consciência de fazê-lo” (FRIEDMANN, 2013, p. 31).

Ao pesquisar sobre as expectativas infantis no recreio escolar foi necessário primeiramente dar espaço e respeitar essas narrativas infantis. Dar espaço às linguagens e à expressão das imagens sobre a realidade vivida e de certo modo, para os sonhos que constitui a completude do próprio ser criança (ALVES; SOMMERHALDER, 2010). As imagens comunicadas em forma de expectativas, repletas de interesses e necessidades remetem ao conteúdo concreto e restrito sobre um aspecto preciso do objeto (ALVES-MAZZOTTI; GEWANDSZNAJDER 2008). São tomadas como uma reprodução leal de dentro do espírito infantil sobre o que se localiza do lado de fora (na realidade).

Para Freire (1997) a imaginação da criança deve ser estimulada e valorizada na participação da cultura escolar.

A imaginação ajuda a curiosidade e a inventividade [...] nos leva a sonhos possíveis ou impossíveis, é necessária sempre. É preciso estimular a imaginação dos educandos, usa-la no “desenho” da escola com que eles sonham. Por que não por em prática, na própria sala, parte da escola com que sonham? (FREIRE, 1997, p.47). 

 

Cada criança carrega na memória um repertório de imagens acerca do vivido, do que deseja ou se interessa, do que necessita. Há ainda os elementos da criatividade, da fantasia e da imaginação postos nas narrativas infantis, mas estes elementos sempre são arquitetados a partir de uma dada realidade.

 

Considerações Finais

Dos lugares com ampla expectativa de uso pelas crianças durante o recreio, o parquinho, especialmente aquele localizado dentro da escola, foi o local com ampla espera e interesse para exploração. Na seara das brincadeiras e dos brinquedos, brincar de pega-pega, de esconde-esconde e ter o pula-pula, a corda e a piscina, tanto de bolinhas quanto à prática de natação, mostraram-se como aspectos de interesse infantil. Brincar e partilhar de experiências com outras crianças, com fortalecimento, conquista de novas amizades e circulação da cultura lúdica foram elementos presentes. Brincar se mostrou nos anos iniciais do ensino fundamental uma autêntica necessidade infantil e não uma escolha pedagógica. O estudo evidenciou ainda um interesse de ocupação e exploração da totalidade do espaço disponível no pátio, incluindo os locais restritos até mesmo para contemplação visual pelas crianças.

Sobre os alimentos, as narrativas enalteceram os doces em momentos de sobremesa, mas também houve uma espera para saborear um tipo de prato salgado na merenda. O recreio se constituiu em um momento para apreciar os sabores e satisfazer os gostos, interesse alimentares de consumo e preferências de paladares.

As crianças declararam o incômodo e o desafeto pela ausência de lugares para brincar. Esses lugares, limitados e/ou condicionados ao acesso das crianças, tal como o tempo cronometrado para brincar, a não disponibilidade do parquinho, a necessária autorização adulta para exploração do pátio escolar e ainda uma relação vertical estabelecida entre inspetores e crianças foram achados importantes do estudo.

As crianças não apenas fantasiaram ou criaram outras possibilidades ao narrarem sobre sugestões para o recreio, mas enriqueceram a compreensão desse espaço com uma concepção ou uma teoria de melhor aproveitamento e organização do dia a dia escolar. Além disso, foram autoras participantes do contexto, atuando como cidadãs diante da realidade vivida, entoaram seus interesses, suas necessidades, direitos e deveres. Colaboraram, na configuração do recreio e do pertencimento desse momento no cotidiano escolar, falando como participantes ativas nas escolhas sobre o modo de viver as infâncias na escola.

As crianças aprendem participando criativamente da configuração do recreio escolar, organizam e expressam seus pensamentos, indicando interesses no que se refere aos lugares, aos brinquedos, as brincadeiras e até mesmo alimentos que gostariam de apreciar. Com essas expectativas, elas abordaram a possibilidade de aprimoramento dessa ocupação do pátio escolar e dos espaços em seu entorno, ao mesmo tempo em que projetaram uma escola mais agradável para todos. Ou seja, na ordem dos sonhos apresentaram uma escola além da já existente.

O recreio é um território educativo, mas esse tempo cronometrado vêm sendo constantemente reduzido nos sistemas escolares ou excessivamente direcionado para apropriação de conteúdos ou habilidades, como nas escolas inglesas, que objetivaram ganhar mais tempo trabalhando os conteúdos das disciplinas escolares para obterem mais resultados em avaliações internas e externas (JARVIS; GEORGE, 2011). “[...] Nos Estados Unidos, a tendência é acabar com o recreio” (LOUV, 2016, p. 221).

A presente pesquisa evidenciou a necessidade de que o recreio seja repensando em alguns aspectos, como a questão da disponibilidade dos lugares para exploração pelas crianças; a organização interna de seu tempo (entre refeitório e pátio); as regras de uso dos espaços e a intersecção com o desenvolvimento das brincadeiras; a ampliação de oportunidades para vivência/preservação da cultura lúdica e as oportunidades de linguagens para acesso infantil, como na música.

Ter escuta atenta para o que as crianças narram, seja sobre o recreio ou sobre a escola, é dever pedagógico e tarefa de participação democrática. Especialmente, no recreio escolar, as crianças devem possuir um espaço livre para a participação, expressão e representação do pensamento e terem a brincadeira livre como centralidade de ação.

É necessária ainda a ampliação de pesquisas que assumam fazer investigação com crianças e não sobre elas. Nesse sentido, as entrevistas em grupos em proposta de narrativas são colaborativas nesse processo indo ao encontro de uma postura de escuta atenta e de respeito com as falas infantis.

Referências

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Notas



1Os desenhos não foram utilizados como dados de análise, ou seja, para evidências de resultados. Entretanto, serviram como apoio e aproximação das crianças no incentivo ao início da conversa (das falas) nas entrevistas.

2Os diários de campo são mencionados nesse artigo com as iniciais DC (por exemplo: DC16). Sob a numeração apresentada, na frente das iniciais, consiste na numeração aplicada correspondente a produção destes documentos do instrumento entrevista. Destaca-se que a entrevista foi um dos instrumentos de coleta da pesquisa matriz, que também incluiu observação participante e gerou diários de campo correspondentes.

3Durante o recreio escolar, dois inspetores supervisionavam as crianças nesse intervalo no pátio.

4Durante o recreio, em alguns dias, as crianças ouviram músicas como funk, por meio de caixas de som disponíveis no pátio da escola. Por vezes, a altura do som acima do comum foi objeto de reclamação infantil.