A Antieducação de Nietzsche: Assim Falou Zaratustra como um ensinamento de Auto-trans-formação

 

Anti-education of Nietzsche: Thus Spoke Zarathustra as a teaching of Self-trans-formation

Anderson Luiz Tedesco

Unochapecó, Chapecó, Santa Catarina, Brasil 

anderson.tedesco@unochapeco.edu.br - http://orcid.org/0000-0002-7425-1748    

 

Jelson Oliveira

Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, Paraná, Brasil

jelsono@yahoo.com.br - http://orcid.org/0000-0002-2362-0494   

                                   

Recebido em 05 de outubro de 2020

Aprovado em 06 de setembro de 2021

Publicado em 29 de junho de 2022                                                                       

 

RESUMO

O objetivo do presente artigo é analisar como a obra Assim Falou Zaratustra, de Friedrich Nietzsche, pode ser entendida como um processo de auto-trans-formação, segundo a perspectiva nietzschiana e, consequentemente, como tal perspectiva apresenta-se, a partir dos seus aspectos centrais, como uma antieducação, na medida em que se contrapõe ao modelo educativo tradicional. Para tanto, começaremos por analisar os quatro principais aspectos do que seria essa antieducação de Nietzsche: o ensino da solidão, o ensino da elevação, o ensino da grande razão e o ensino da afirmação. Conclui-se que tais aspectos servem como pano de fundo para refletir sobre as quatro lições centrais da obra nietzschiana (morte de deus, além-do-homem, vontade de poder e eterno retorno), formando um quadro interpretativo que articula as lições filosófico-existenciais com as perspectivas educativas nelas contidas, as quais resultam na inversão da perspectiva tradicional da educação, supostamente orientada para a gregariedade e para aquilo que o filósofo alemão chama de negação da vida.

Palavras-chave: Zaratustra; Educação; Antieducação; Auto-trans-formação.

 

ABSTRACT

The aim of this article is to analyze how a work Thus Spoke Zarathustra, by Friedrich Nietzsche, can be understood as a process of self-transformation, according to the Nietzschean perspective and, consequently, how such perspective presents itself, from its perspectives. aspects, such as an anti-education, insofar as it is opposed to the traditional educational model. Therefore, we will start by analyzing the four main aspects of what this anti-education by Nietzsche would be: the teaching of solitude, the teaching of elevation, the teaching of great reason and the teaching of affirmation. It is concluded that such aspects serve as a background to reflect on the four central lessons of Nietzsche's work (death of god, beyond-man, will to power and eternal return), forming an interpretive framework that articulates the philosophical lessons- existential with the educational perspectives contained in them, which result in the inversion of the traditional perspective of education, supposedly oriented towards gregariousness and towards what the German philosopher calls the negation of life.

Keywords: Zarathustra; Education; Anti-education; Self-transformation.

 

Introdução

Parte-se de uma convicção: seria possível compreender Assim Falou Zaratustra, de Friedrich Nietzsche, como um projeto educativo cujo aspecto central se encontra em uma busca pela auto-trans-formação, cujos elementos se opõem à tradição educativa, em quatro perspectivas que se contrapõem ao modelo tradicional de pensar a educação: [1] ao contrário do que ocorre no modelo tradicional, pensada a partir do autoconhecimento, Nietzsche expõe o horizonte vivencial do “tornar-se o que se é”, demonstrando como a estratégia para o alcance dessa visão é o ensino da solidão, como uma tentativa de desligamento da missão gregária praticada pela educação tradicional; [2] se o modelo educativo esteve pautado, no Ocidente, no recurso da racionalidade e sua consequência moral, que é a crença no livre-arbítrio e na responsabilidade, Nietzsche pensa a educação a partir do pathos, em que o conhecimento é apenas um aspecto da vida e a vida um tema central do conhecimento, o que nos leva ao tema da paixão pelo conhecimento e ao ensino da elevação; [3] se o modelo tradicional pensou o cultivo da alma, segundo o modelo dualista herdado da tradição socrático-platônica, Nietzsche rompe com essa perspectiva ao falar do corpo como “grande razão” e, com isso, propõe um modelo educativo baseado naquilo que poderíamos chamar de ensino da grande razão; e [4] por último, se a educação tradicional foi orientada pela massificação e pela decadência da cultura, resultando na padronização dos indivíduos, Nietzsche, por sua vez, fala da autoafirmação a partir da atividade criativa, na qual cada indivíduo aplica-se sobre si mesmo como uma obra de arte, o que conduz ao júbilo existencial de um ensino da afirmação[1].

Em nossa hipótese interpretativa considerou-se que essas quatro perspectivas resultam na constituição de um projeto antieducativo proposto por Nietzsche no Assim Falou Zaratustra, como resultado (ou mesmo como efeito) das lições centrais dessa que é uma obra na qual o filósofo, por meio do profeta, apresenta alguns dos temas centrais de sua filosofia. Assim, trata-se de examinar as consequências dos ensinamentos das principais teorias desenvolvidas na obra em questão, aquela que poderia ser considerada uma obra de tipo “doutrinal” e que, segundo propôs Lampert (1986; a quem seguimos de perto em vários pontos de nossa interpretação), organiza-se em torno da necessidade de um novo professor, o que, no limite, passa por uma nova mensagem, ou seja, por um novo conteúdo de fala (algo que está, aliás, contido já no título da obra, quando Nietzsche destaca o que Zaratustra falou ou, em outras palavras, o que ele ensinou).

Na ótica de Zaratustra, faz-se necessário um novo ensino, uma vez que o antigo teria falido. Esse fato decorre de sua primeira lição, ou seja, da “morte de Deus”, afirmação que revela a decadência das bases morais e religiosas do modelo educativo (ou seja, civilizacional) do Ocidente. Por conseguinte, um professor do futuro, designado pelo dístico do “além-do-homem”, será o precursor de um novo ensino, composto a partir de um novo conteúdo, agora desvencilhado daquelas bases cuja crise se tornou evidente. É relevante enfatizar que Zaratustra é o arauto desse além-do-homem – e esse é o conteúdo de sua segunda lição. Isso significa que o homem precisa superar a si mesmo, o que implicaria superar as exigências e as crenças do humanismo moderno e de todos os processos civilizatórios que teriam levado ao adestramento (e consequente adoecimento) do ser humano. A educação, assim, é o caminho para a superação dessas subordinações.

Segundo Lampert (1986, p. 6), o antigo ensino educativo estava baseado e estimulava a vingança contra a vida. Em face dessa constatação, descobre-se a essência do conteúdo do novo ensino: “a redenção do espírito vingativo requer que a mais espiritual vontade de poder seja o eterno retorno dos seres como eles são” e, assim, “a vontade humana de poder cria, desse modo, o novo ideal do ser humano mais altivo, vivo e que afirma o mundo” (LAMPERT, 1986, p. 6)[2]. Dessa forma, depreende-se que o novo princípio formativo de Zaratustra se voltava à prática de amor à vida e à fidelidade à terra, tratando-se da terceira e da quarta lição de Zaratustra.

Acompanhando Lampert (1986, p. 7) podemos reconhecer que, com o exemplo pessoal de ensino de Zaratustra, torna-se evidente que o fator decisivo (e básico) para o sucesso de um professor é ser, antes de mestre, aprendiz. Dessa maneira, a prática educativa é uma atividade laboriosa de experimentos em que o próprio indivíduo que (primeiro) vive tais experimentos é o educador. Isso explica porque Zaratustra infere que aqueles que creem acrítica e piamente em verdades antigas, que justificam ações com base em preceitos religiosos e que, sobretudo, têm a lei a favor da manutenção de convicções pessoais, se opõem à nova ordem de professores que surge, da qual se exige a capacidade de criação de novos valores, algo que só pode ser alcançado por meio da coragem de romper com as amarras da domesticação que acabaram por levar ao enfraquecimento das forças vitais. Todo professor precisa, nesse caso, ser um insurgente.

Ao analisar os primeiros discursos de Zaratustra é perceptível que a intenção do profeta é ampliar o grupo de seguidores. A estratégia é uma apresentação atrativa de seu modelo original de ensino. Em sua análise, Lampert (1986, p. 32) conclui que o novo ensino de Zaratustra se constitui como chamada para uma luta contra os pregadores do mal que são, paradoxalmente, os pregadores da moral vigente, cuja maldade reside no fato mesmo de seu papel adestrador das consciências. Nesse sentido, destaca-se a crítica de Nietzsche ao velho modelo de ensino, assentado na submissão e na pobreza espiritual. Em contrapartida, sabe-se que o ensino de Zaratustra aponta para um real significado da vida, ou seja, sua filosofia da educação apresenta como fundamentos principais (1) o amor à vida e (2) a fidelidade à terra.

Em suma, constata-se, por intermédio de vivências e ensinamentos (as duas coisas conjuntamente, já que o profeta vive o que ensina, aos moldes do que se lê já nos primeiros escritos de Nietzsche sobre o tema da educação[3]) de Zaratustra, que a decadência iniciada pelos anti-gregos por excelência, entre os quais se encontra Sócrates e Platão[4], e humanidade contemporânea. Portanto, há fortes traços de niilismo em diversas instituições, das quais, notadamente, não se escapam a escolar e a política. Há, sendo assim, no pensamento nietzschiano, uma crítica mordaz a máscaras de civilizações (pós-)modernas.

 

Zaratustra e o ensino da solidão

“Sobre a educação. – Paulatinamente, esclareceu-se, para mim, a mais comum deficiência do nosso tipo de formação e educação: ninguém aprende, ninguém aspira, ninguém ensina – a suportar a solidão” (A, 443)[5]. Essa afirmação contundente de Nietzsche tem como pano de fundo a crítica à dependência dos fundamentos e das orientações representadas pela presença de Deus na cultura Ocidental e suas derivações na tradição do igualitarismo e da democracia que se alongaram ao longo dos últimos dois mil anos, ligando as teses do mundo socrático-platônico ao mundo judaico-cristão e as dos projetos políticos modernos. Segundo essa tradição, a solidão se torna perigosa porque desvia o indivíduo do “rebanho” no qual ele é previsível e cumpridor de tarefas. É a ideia da morte de Deus (GC, 125) que abre caminho para o pensamento da solidão como algo a ser ensinado: se não conta mais com a companhia do divino, resta ao ser humano aprender, aspirar e suportar a solidão de si mesmo. Do ponto de vista moral, isso significa legislar para si mesmo, recusando os antigos processos de adestramento, para cuja difusão e sucesso a educação foi fundamental.

Ora, em boa medida, para Nietzsche, a solidão foi encoberta e asfixiada pela padronização de um modelo imposto por uma verdade única, derivada daqueles fundamentos representados, metaforicamente, pela imagem de Deus. Essa crença na verdade maiúscula acaba por proibir o jogo perspectivo das várias expressões de verdade produzidas pelos indivíduos particulares. Nesse sentido, o papel da filosofia de Nietzsche em Assim falou Zaratustra é de denunciar todo tipo de vontade de verdade (na religião, na ciência, no conhecimento, na arte, na educação, etc.), que se originou a partir desse ideal de rebanho, já nascida em estágio de putrefação: “a vontade de verdade, que ainda nos fará correr não poucos riscos, a célebre veracidade que até agora todos os filósofos reverenciaram: que questões essa vontade de verdade já não nos colocou!” (ABM, 1). Observa Nietzsche que aqueles que se propuseram encontrar a verdade em um plano metafísico passaram a acreditar que as “coisas de mais alto valor [têm] uma origem miraculosa, diretamente do âmago e da essência da ‘coisa em si’” (HH, 1), colocando-se, portanto, em sentido contrário aos valores terrenos e criando suas próprias verdades absolutas e inquestionáveis como um projeto moral em decadência: 

 

Este modo de julgar constitui o típico preconceito pelo qual podem ser reconhecidos os metafísicos de todos os tempos; tal espécie de valoração está por trás de todos os seus procedimentos lógicos; é a partir desta sua ‘crença’ que eles procuram alcançar seu ‘saber’, alcançar algo que no fim é batizado solenemente de ‘verdade’. (ABM, 2)

 

Em diversas passagens de Assim Falou Zaratustra, encontram-se sinais dos valores antigos que precisam ser superados. No Prólogo a figura do santo da floresta é um primeiro indício de uma moral putrefata: ““E o que faz o santo na floresta?”, perguntou Zaratustra. Respondeu o santo: “Eu faço canções e as canto, e, quando faço canções, rio, choro e sussurro: assim louvo a Deus”” (ZA, Prólogo, 2). Ele é o símbolo da hipertrofia da verdade única, crescida no horizonte do passado e traduzida como um empobrecimento de futuro. Esse foi, precisamente, o primeiro obstáculo do Zaratustra: “não vás para junto dos homens, fica na floresta! Seria até melhor que fosses para junto dos animais! Por que não queres ser, como eu – um urso entre os ursos, um pássaro ente os pássaros?” (ZA, Prólogo, 2). Mas, Zaratustra está transformado, seu olhar é para o futuro, marcado pelo grande amor para com os homens, o que significa que a solidão que lhe trouxe uma nova verdade (e que se expressa, precisamente, na primeira de suas notícias, a de que Deus morreu) é a mesma que obriga a descer até a praça do mercado para comunicar a notícia. Ele leva a verdade das verdades em seu coração: “Como será possível? Este Velho santo, na sua floresta, ainda não sabe que Deus está morto!” (ZA, Prólogo, 2). Morto Deus, o homem encontra-se sozinho, e sozinho deve legislar a seu próprio favor – levar essa notícia, ou melhor, esse ensinamento, passa a ser o ato amoroso de Zaratustra.

Assim, o primeiro anúncio do profeta passa por uma constatação: não existe mais uma verdade das verdades ou um fundamento de todas as valorações. Ele diz: “amo aqueles que não buscam primeiramente atrás das estrelas uma razão para declinar e serem sacrificados: mas que se sacrificam à terra, para que um dia a terra venha a ser o super-homem[6]”. (ZA, Prólogo, 4). Ainda de outra perspectiva, Nietzsche afirma que a “‘vontade de verdade’ – poderia ser uma oculta vontade de morte” (GC, 344), que seria resultado do “não-mais-querer e não mais-estimar e não-mais-criar” e que expressaria o “grande cansaço” (ZA II, Nas ilhas bem-aventuradas) do homem consigo mesmo – um fastio produzido pelo processo civilizatório baseado nessa verdade única e autoritária.

Ora, isso só se revelou a Zaratustra na solidão: ele ficou sozinho em sua caverna nas montanhas por dez anos (ZA, Prólogo, 1), ou seja, ele se situou, em estado de experimentação, acima da vulgaridade deplorável da praça do mercado; na montanha, ele vivenciou o ar puro capaz de tornar a vida uma experiência de criatividade e força. Mas o desafio de Zaratustra era de ser ouvido pela multidão, porque ele quer expressar aquele amor aos homens na forma de uma doutrina que leva à fidelidade à terra e aos processos de autolimpeza e higiene que estão associados à solidão: na praça do mercado, os homens vivem em situação de “sujeira” e suas águas são poluídas pelas ideias e posições sempre copiadas e reproduzidas sem criatividade. Em Das moscas do mercado lemos: “onde cessa a solidão, ali começa o mercado; e onde começa o mercado, ali também começa o barulho dos grandes atores e o zumbido das moscas venenosas” (ZA I, Das moscas do mercado). Essas passagens revelam o próprio processo de aprendizagem de Zaratustra, realizado em solidão, mas não em isolamento: note-se que a solidão do profeta não é um isolamento do mundo (aos moldes dos sacerdotes ascéticos e eremitas), mas uma espécie de ato preparatório, de propedêutica para o ensinamento. Zaratustra vive sua solidão para poder voltar, límpido, para a praça do mercado e não se deixar contaminar pelos velhos ideais aí vigentes. É como se seu coração estivesse, afinal, purificado dos grandes ideais que sujam e adoecem o ser humano.

Zaratustra, contudo, não é ouvido e, embora se esforce, continua sozinho: “não me compreendem, não sou a boca para esses ouvidos” (ZA, Prólogo, 5). Em outra passagem o profeta-professor considera que “o povo pouco compreende a grandeza, isto é: a criação” (ZA I, Das moscas do mercado). A multidão não sabe e não quer ouvir. Ela vive o mais pesado fardo, o da própria autoenganação e autoalienação. Nietzsche critica a supremacia da gregariedade, porque aí, engando-se a si mesmo, o ser humano vive em multidão, adapta-se e rende-se aos efeitos do que é comum e vulgar. É o que Nietzsche expressa em uma passagem d’A Gaia Ciência: “existe um lago que um dia se negou a escoar, e formou um dique até onde se escoava: desde este instante ele sobe cada vez mais” (GC, 285), ou seja, estando cheio de si, Zaratustra também transborda. É como se sentia Zaratustra: “uma colmeia cheia de mel” ou uma “taça transbordante” (ZA, Prólogo 1), o descobridor de uma notícia que precisa ser comunicada; Zaratustra quer ensinar o que ele mesmo aprendeu. “Talvez o homem suba cada vez mais, já não tendo um deus no qual desaguar” (GC, 285): foi o que Zaratustra conquistou – a si mesmo. É essa experiência que ele quer compartilhar. 

Uma das metáforas de Zaratustra diz respeito a esse lago que, em seu período de solidão, se transformou em um grande dique e não tem onde desaguar seus ensinamentos. Ele se encontra cheio de si porque ele mesmo realizou (vivenciou na solidão) a tarefa que quer anunciar: ele auto-trans-formou-se por meio do conhecimento e da experiência que ele proporciona. Auto-trans-formar-se, assim, significa formar-se/educar-se por si mesmo, transvalorando/ultrapassando as determinações civilizatórias que levam ao gregarismo – e essa é a experiência do próprio Zaratustra, o mestre da transvaloração. Mas suas palavras não atingiram ouvidos atentos e desejosos de mudanças; o barulho do povo na praça é um obstáculo para o pensamento das alturas, porque o povo não sabe o significado da solidão. No mercado, as pessoas são rebanhos conduzidos pelas crenças em verdades absolutas de uma moral decadente.

Nietzsche chama atenção para esse tipo de cultura da multidão, que marca a modernidade e se constitui como o princípio gregário por excelência, que coloca como regra máxima a diluição do indivíduo no todo da massa, segundo o modelo da abnegação de si. Trata-se de uma cultura que impede a criação de valores em nome da perpetuação da verdade absoluta que impõe um sentido único à vida. É o próprio ópio da humanidade, portanto, que torna sujo e vulgar:

 

Por isso vou para a solidão – a fim de não beber das cisternas de todos. Estando entre muitos, vivo como muitos e não penso como eu; após algum tempo, é como se me quisessem banir de mim mesmo e roubar-me a alma. Aborreço-me com todos e receio a todos. Então o deserto me é necessário, para ficar novamente bom (A, 491)

 

O autor de Zaratustra escolheu a solidão como antídoto para combater as doenças da modernidade, marcada pela moral da compaixão que prega contra o egoísmo e ensina a mera compaixão como abnegação de si: “nada é tão pouco sadio, em meio à nossa pouco sadia modernidade, como a compaixão cristã” (AC, 7). Suas críticas são endereçadas, como já vimos, ao pensamento socrático-platônico-cristão, mas também ao projeto moral de Schopenhauer, seu antigo mestre, porque também a moral da compaixão é uma moral de rebanho. Por isso é preciso afastar-se desse espírito gregário da multidão: é necessário buscar novas cisternas de água, pois as que existem estão todas contaminadas.

O pensamento de Zaratustra caracteriza-se como uma nova cisterna ou um novo medicamento que se propõe erradicar a contaminação e as doenças da moral de rebanho. Mas a mensagem de Zaratustra é enigmática para os ouvidos do povo doente: “na verdade, uma bela pescaria teve hoje Zaratustra! Nenhum homem pescou, e sim um cadáver” (ZA, Prólogo, 7). Ou seja, os ensinamentos de Zaratustra encontraram refúgio em um cadáver que caiu em sua frente, enquanto a multidão, por sua vez, movida pelo espírito de rebanho, é também ela formada por mortos vivos. Assim, uma nova verdade surge ao profeta do eterno retorno: “de companheiros necessito, de vivos – não de mortos e cadáveres” (ZA, Prólogo, 9).  Essa nova verdade Zaratustra retira de um estágio inicial de ingenuidade, no qual ele ainda não tinha se dado conta de que não é uma voz para muitos, mas para poucos: “eu sou um corrimão na beira da corrente: quem puder se agarrar a mim, que se agarre! Mas não sou vossa muleta” (ZA I, Do criminoso pálido). No decorrer do livro, Zaratustra passa por diversos momentos de transformação em seu processo pedagógico de ensinar. Sua primeira “aula” foi um fracasso pedagógico, ele não tinha uma didática para ensinar a multidão. Agora sua busca é por aqueles que desejam ouvi-lo, pelos seus discípulos – enquanto aprimora o seu próprio modo de ensinar.

De onde vem essa força pedagógica de Zaratustra? Ora, ela advém justamente da capacidade da solidão. A solidão é a fonte da qual nascem as grandes lições de Zaratustra. Ele ensina, por isso, a própria solidão como pedagogia. Ele é o pedagogo da solidão porque esta é um nutriente para a auto-trans-formação. Por isso, para Nietzsche, a solidão é o caminho para a conquista desse processo de transformação constante que leva sempre a si mesmo: “Queres ir para a solidão, meu irmão? Queres buscar o caminho para ti mesmo?” (ZA I, Do caminho do criador). Esta é uma decisão própria: o homem da solidão é o homem forte que sobe a montanha e escapa do mundo da massa, aceitando os riscos de “resfriar-se” ao respirar o ar puro de novas altitudes. Mas, infelizmente nem todos estão preparados para esse desafio pedagógico; “a voz de rebanho ainda ressoará dentro de ti” (ZA I, Do caminho do criador) – apenas dentro de ti!

O espírito de rebanho ainda assombra a humanidade. Existe um eco muito forte que paralisa a vontade de vida, ele vem das várias formas de racionalismos e das moralidades: “todas essas coisas mais que pesadas o espírito resistente toma sobre si: semelhante ao camelo que ruma carregado para o deserto, assim ruma ele para seu deserto” (ZA I, Das três metamorfoses). Isso acontece enquanto toda a tarefa de domesticação e amansamento do homem se estabelece como uma tentativa de executar uma correção do ser humano, compreendia como melhoramento, mas que, entretanto, sempre o deixara mais fraco e mais doente. Precisamente, o afastamento dessa moral é necessário: o camelo deve se tornar um leão para enfim alcançar a inocência criativa da criança, que se torna o símbolo da grande libertação em relação à culpa trazida pela moralidade. Por isso, segundo Nietzsche, só ela é realmente criadora. Na seção Das três metamorfoses, o camelo carrega o fardo pesado e na solidão do deserto sofre a transformação: “Mas no mais solitário deserto acontece a segunda metamorfose: o espírito se torna leão, quer capturar a liberdade e ser senhor em seu próprio deserto” (ZA I, Das três metamorfoses). Mas é também na solidão que o leão se transforma em criança, como um produto do esforço individual pela sua auto-trans-formação – algo que só pode acontecer com quem aprendeu o valor da solidão.

 

Zaratustra e o ensino da elevação

 

A ideia de elevação é um dos motes recorrentes na obra nietzschiana. Em Assim Falou Zaratustra ela está articulada à ideia do além-do-homem, como aquele que deve ser buscado e, para isso, o ser humano precisa passar pela elevação de si mesmo a outro patamar cultural, representado pelas várias metáforas que são utilizadas por Nietzsche para expressar essa tarefa educativa.

Ora, Zaratustra depois que saiu de sua pátria e foi para as montanhas, buscava uma alternativa na solidão para enfrentar a cultura degenerada de sua época. Encontrou como um dos seus princípios educativos, o espírito da elevação, que se revela como um “pathos de distância, que é uma paixão pela elevação, uma busca constante de superação das forças retrógradas que tornam tudo “próximo”, “nivelado”, “igual”. Como impulso que eleva e que torna saudável, esse pathos é apontado por Nietzsche como um “afeto de distância” ou “sentimento de distância”, conceitos que aparecem em fragmentos póstumos do período de Além de bem e mal e que podem se resumir a um “sentimento de diferença hierárquica (FP de 1885/1886 1[10]) e como uma “força organizadora” (CI, Incursões de um extemporâneo, 37) capaz de estabelecer uma ordem lá onde a decadência do rebanho gera a desordem, precisamente porque mistura e confunde todos indivíduos em um mesmo povo.

Nietzsche, assim, percebeu que na maioria das instituições culturais (inclusive as instituições de ensino), as práticas educativas se constituíram a partir desse espírito de desordenamento e confusão, cujo resultado é a negação da vida. Não passam de cátedras da morte, as nossas escolas e as nossas universidades, pois elegeram seus fundamentos educativos em valores gregários tidos como valores absolutos, cujo resultado é um nivelamento “por baixo”. Por isso, é preciso identificar aquelas práticas educativas constituídas pelos valores filosóficos, morais e religiosos, cujos resultados são o enfraquecimento e a negação das forças vitais próprias de cada indivíduo. Em resumo, ao invés de elevação, as instituições de ensino acabaram provocando o rebaixamento do ser humano e o afloramento dos sentimentos de pobreza, ressentimento, ódio e vingança: “em toda parte ecoa a voz dos que pregam a morte: e a terra está cheia daqueles a quem a morte tem de ser pregada” (ZA I, Dos pregadores da morte). Nesse sentido, Zaratustra, que se propõe a realizar uma expurgação moral desses valores negativos, não tinha outro caminho a não ser iniciar a construção de seu ensinamento pela lição da morte de Deus e o resultado desse processo é a afirmação da vida, no famoso dístico da “fidelidade à terra”. Ser fiel à terra é, nesse sentido, elevar-se à condição própria do ser humano, como um ser que depende apenas de si mesmo para se constituir em sua força.

            Para isso, é preciso distanciar-se dos valores que causam morte: “Fugi do mau cheiro! Fugi da idolatria dos supérfluos! Fugi do mau cheiro! Fugi da fumaça desses sacrifícios humanos!” (ZA I, Do novo ídolo). Fugir de práticas educativas que resultam em adestramentos do humano. É chegada a hora de novos conteúdos: as instituições de ensino precisam se reconstruir a partir de um novo ideal de ser humano, representado pela ideia de exceção, de hierarquia e de pathos de distância, cujo símbolo é o refúgio na solidão: “foge, meu amigo, para a tua solidão: vejo-te picado por moscas venenosas. Foge para onde o ar é rude e forte!” (ZA I, Das moscas do mercado).

Eis a tarefa do novo “professor”: 

 

A educação de Zaratustra sobre o que precisa ser aprendido inclui lições sobre o que pode ser ensinado. Como todo grande professor apresentando um novo ensinamento, ele é oprimido por um mundo ainda não consciente de que poderia desejar esse ensinamento ou que poderia estar precisando dele. Além disso, ele redescobre a velha verdade de que o povo que tem leis do seu lado, bem como tradições sagradas e valores que conferem valor a suas ações, necessariamente encaram um novo professor como um inimigo mortal.” (LAMPERT, 1986, p. 7).

 

As cátedras da morte sempre perseguirão os novos educadores porque eles ameaçam as velhas estruturas do poder. Nietzsche, que se coloca na condição de um “médico da cultura” (Artz der Cultur) (FP, do inverno de 1872-1873, 23[15]) e considera que a segunda lição sobre o além-do-homem se constitui, precisamente, no novo professor de uma nova cultura, que se transformou em relação àquela da décadence da modernidade, uma cultura agora saudável, portanto, capaz de suportar as diferenças hierárquicas que, no limite, são parte da própria vida em seu jogo de forças – e que Nietzsche resume no conceito de vontade de poder.

            É esse processo que se constitui como um novo modelo de ensino que, nas palavras de Lampert promove a elevação do ser humano:

 

Esse novo ensinamento revela que seres humanos mais elevados são filósofos que exercem a vontade de poder mais espiritual sobre todos os seres. Consequentemente, este capítulo [12] é endereçado apenas a filósofos, ‘vocês que são mais sábios’, pois o novo ensino ameaça terminar com a dominação que a vontade de poder mais espiritual lhes permitiu exercer sobre a humanidade. (LAMPERT, 1986, p. 6).

 

Zaratustra coloca-se em uma condição de elevado que quer também elevar: “Olhais para cima quando buscais a elevação. Eu olho para baixo, porque estou elevado” (ZA I, Do ler e escrever). Ele considera que os novos ensinamentos poderão revelar a elevação no ser humano e quem conseguirá fazê-lo são os mestres capazes de, antes, elevarem a si mesmos para, então, elevarem os seus discípulos.

 

 Zaratustra e o ensino da grande razão

 

            Conforme vimos até aqui, as práticas educativas tiveram suas raízes no pensamento socrático-platônico-judaico-cristão e se constituíram na relação entre o bem e o mal, estabelecidos a partir de uma verdade única. Em decorrência disso, originou-se no Ocidente um processo de degeneração cultural, cujo principal resultado foi uma má compreensão e uma negação do corpo nas próprias práticas educativas. Ora, compreendendo o mundo como vontade de poder, Nietzsche concebe o corpo como lugar de ação das forças antagônicas e como, portanto, o grande terreno sobre o qual atua a vontade de poder, cujo efeito será a mudança no conceito mesmo de subjetividade, antes associada unicamente à racionalidade e agora à própria ideia de corporalidade assumida em sua dinâmica de vontades de poder. Segundo Giacoia Junior (2001, p. 59), “o corpo pode servir de paradigma para a constituição de uma hipótese sobre a subjetividade, muito mais rica e plausível do que aquela formulada pela metafísica e pelo platonismo”. Na medida em que deixou de lado este “tesouro”, a educação deixou de se preocupar com um elemento central na constituição dos indivíduos e, com isso, acabou por gerar uma cultura doentia, porque acentuou apenas o lado racional, em contraposição ao corporal.

            Para Nietzsche, toda a filosofia, até então, poderia ser compreendida como “uma má́ compreensão do corpo” (GC, Prólogo, 2) e, por isso, ao relatar, em Ecce Homo, a própria elaboração de Assim Falou Zaratustra, ele dá tanta importância à questão do corpo e às “coisas mais próximas”: o pensamento é um resultado do corpo, é uma atividade que não está desligada de fatores como “alimentação, lugar, clima, distrações”, coisas que ele considera “inconcebivelmente mais importantes do que tudo o que até agora tomou-se como importante” (EH, Por que sou tão inteligente, 10).

Ao contrário, Zaratustra ensina a pensar o corpo como a “grande razão”: “o corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um só sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor” (ZA I, Dos desprezadores do corpo). Ou seja, não se trata mais de ensinar o dualismo, mas de superá-lo com a afirmação de que a razão mesma não é outra coisa que uma parte da atividade corporal, um afeto entre os outros, um elemento constitutivo, mas não privilegiado com a exclusividade que a tradição lhe doou.

            Zaratustra, assim, ensina não a pensar que o corpo é um fim último em substituição à racionalidade, mas a percebê-lo como um elemento em si mesmo, na medida em que deve ser reconhecido como um elemento central da vida. Em sua forma de pensar se constitui uma oposição a todo tipo de educação linear marcada pela moralidade cristã que não deu lugar ao corpo, assumido como algo pecaminoso e errado. O ensino da auto-trans-formação, ao contrário, deve levar o corpo em conta porque nele ocorre, a todo instante, a atividade da vida.

Considerado como o “mais surpreendente”, o corpo, assim, deve fazer parte dos ensinamentos educativos dos novos mestres. Tal perspectiva ressalta que o ser humano deve ser entendido em sua completude e não mais sob os dualismos de corpo e alma:

 

Não somos batráquios pensantes, não somos aparelhos de objetivar e registrar, de entranhas congeladas – temos de continuamente parir nossos pensamentos em meio a nossa dor, dando-lhes maternalmente todo o sangue, coração, fogo, prazer, paixão, tormento, consciência, destino e fatalidade que há em nós. (GC, Prólogo, 3).

 

Em Ecce Homo, por sua vez, Nietzsche explica seus interesses e destaca como a alimentação, o clima e as distrações (atividades corporais) são necessárias no processo de formação do pensamento e, por isso, também devem fazer parte dos novos processos educativos:

 

De maneira bem outra, interessa-me uma questão da qual depende mais a ‘salvação da humanidade’ do que de qualquer curiosidade de teólogos: a questão da alimentação. Para uso imediato, podemos colocá-la assim: ‘como você deve alimentar-se para alcançar seu máximo de força, de virtú no estilo da Renascença, de virtude livre de moralina?’” (EH, Por que sou tão inteligente, 1).

 

         Além desse cuidado com a alimentação, que Nietzsche parece ter levado muito a sério como parte de sua própria filosofia e também de sua vida, ele destaca a questão do clima:

 

a influência climática sobre o metabolismo, seu retardamento, sua aceleração, é tal que um equívoco quanto ao lugar e clima pode não apenas alhear um homem de sua tarefa, como inclusive ocultá-la de todo: ele não consegue tê-la em vista. O vigor animal jamais se tornou nele grande o suficiente para atingir aquela liberdade que transborda para o domínio do mais espiritual” (EH, Por que sou tão inteligente, 1).

 

Além da alimentação e do clima, Nietzsche evoca a questão da distração, para ele associada à leitura: “toda leitura faz parte de minhas distrações” porque “a leitura me distrai justamente de minha seriedade” (EH, Por que sou tão inteligente, 3). A importância de uma tal distração precisa, segundo ele, ser equilibrada: em tempos de “profundo trabalho” Nietzsche lê para evitar que “um pensamento alheio escale furtivamente o muro”. Tudo isso tem a ver com o cuidado (e com a educação) do corpo.

Tal cuidado com o corpo aparece em Assim Falou Zaratustra, principalmente na já citada seção Dos desprezadores do corpo, na qual ele critica aqueles que aprenderam a “dizer adeus a seu próprio corpo” (ZA I, Dos desprezados do corpo). Nesse texto, a versão não dualista do corpo é apresentada pela voz de uma criança: “corpo sou eu e alma”. Como já afirmamos anteriormente, Nietzsche quer mostrar que a fala das crianças está além do dualismo, que engendrou a culpa e a mortificação do corpo. A criança é o símbolo da inocência que permite a atividade criativa. Ela é o símbolo, portanto, da novidade em relação ao futuro no que tange à criação das identidades: “corpo sou eu inteiramente, e nada mais; e alma é apenas uma palavra para um algo no corpo”. Com a questão do corpo Nietzsche se distancia, assim, da noção moderna de sujeito, como ela aparece, por exemplo, em Descartes. Por isso, ele chega a uma das formulações mais conhecidas de Assim Falou Zaratustra:

 

o corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um só sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor. Instrumento de teu corpo é também tua pequena razão que chamas ‘espírito’, meu irmão, um pequeno instrumento e brinquedo de tua grande razão. ‘Eu’, dizer tu, e tens orgulho dessa palavra. A coisa maior, porém, em que não queres quer – é teu corpo e sua grande razão: essa não diz Eu, mas faz Eu. (ZA I, Dos desprezadores do corpo).

 

O corpo, assim, adquire lugar central na filosofia de Nietzsche e deve ser levado em conta quando se analisa o seu pensamento educacional, mais especificamente aquilo que estamos chamando, nesta tese, de antieducação em Nietzsche, na medida em que pelo corpo se alcança, criticamente, um dos motes centrais do modelo educacional tradicional: o cultivo do intelecto.

 

Zaratustra e o ensino da afirmação

Toda a filosofia de Nietzsche exposta em Assim Falou Zaratustra poderia ser resumida na ideia de afirmação da vida. Não à toa, ele mesmo chegou a declarar que o pensamento mais importante da obra era o eterno retorno, compreendido como ato supremo de afirmação da existência. Tal perspectiva remete à crítica à cultura platônico-socrático-judaico-cristã que promoveu a negação das instâncias mundanas como mote primeiro dos processos religiosos, morais e, portanto, também educativos.

Lampert destaca a importância desse conceito (ao lado da doutrina da vontade de poder), afirmando que a essência do ensinamento de Nietzsche está pautada no eterno retorno. Perante esse conceito, fica claro que fenômenos antônimos se complementam e, em processos cíclicos, conduzem à afirmação global dos processos existenciais. A esse respeito, o autor salienta que:

 

O eterno retorno é o âmago do ensino de Nietzsche, uma vez que concede a mais alta honra a seres evanescentes dos quais o todo consiste. Não guiado por deuses ancestrais tampouco por ídolos filosóficos e cosmopolitas, nem por alguma estrela-guia do paraíso do futuro, mas guiado por sua própria visão do conjunto de seres e pela responsabilidade concedida por essa visão para manter esses seres, o ensinamento de Nietzsche mostra o caminho para a mais alta afirmação de seres naturais, a nova justiça que dispara insaciavelmente ‘Mais uma Vez!’ para todo o espetáculo maravilhoso do qual o celebrante grato é uma testemunha momentânea. (LAMPERT, 1986, p. 285).

 

O grande ensinamento de Zaratustra é, pois, dizer Sim à vida. Tal perspectiva aparece em várias passagens da obra, especialmente na parte 3, na qual o tema do eterno retorno aparece como central. Se lembrarmos que, para Nietzsche, “o conceito ‘Deus’ foi até agora a máxima objeção contra a existência” (CI, Os quatro grandes erros, 8), então a partir da morte de Deus, a afirmação passa a ser a única alternativa viável. Por isso, Zaratustra é apresentado como o “afirmativo” entre os espíritos (“contradiz com cada palavra, esse afirmativo dos espíritos; nele todos os opostos se fundem numa nova unidade” (EH, Assim Falava Zaratustra, 6).

Porque foi capaz do mais abissal dos pensamentos, o Sim de Zaratustra nasce de um Não a tudo o que era pesado e sério. “Zaratustra é um dançarino: como aquele que tem a mais dura e terrível percepção da realidade, que pensou o ‘mais abismal pensamento’, não encontra nisso, entretanto, objeção alguma ao existir, sequer ao seu eterno retorno – antes uma razão a mais para ser ele mesmo o eterno Sim a todas as coisas, ‘o imenso ilimitado Sim e Amém’... ‘A todos os abismos levo a bênção do meu Sim’” (EH, Assim Falava Zaratustra, 6). Zaratustra, recuperando a perspectiva dionisíaca e assumindo a ideia do eterno retorno de todas as coisas, alegra-se com a existência e celebra afirmativamente a vida, em seu grande meio-dia. Assim, Zaratustra quer ensinar também a dizer Sim, sua doutrina quer ser uma lição afirmativa em relação à vida.

 

Considerações finais

 

Ao longo desse texto procurou-se refletir a partir de uma antieducação no pensamento de Nietzsche, na medida em que suas propostas se opõem ao modelo tradicional (e conservador) de educação. Nossa análise focou, sobretudo, em Assim Falou Zaratustra, livro no qual o filósofo alemão buscou uma alternativa para o problema moral iniciado pelo Zoroastrismo, quando foi proclamada por meio da boca do profeta histórico a concepção de bem e mal, pensamento que viria a impactar a tradição Ocidental. Nietzsche, ao identificar tal problema, criou um papel literário para Zaratustra em sua obra mais conhecida. Ele foi escolhido para proclamar as grandes lições da terceira fase da sua filosofia, entre as quais destacamos a “morte de Deus”, o “além-do-homem”, a “Vontade de Poder” e o “Eterno Retorno”. Tais lições (o conteúdo da fala de Zaratustra) nos possibilitaram pensar em quatro aspectos da antieducação de Nietzsche: o ensino da solidão, o ensino da elevação, o ensino da grande razão e o ensino da afirmação.

            Os aspectos da antieducação em Nietzsche, são perspectivas para (re)pensarmos as práticas educativas constituídas na tradição como décadence. O ensino da solidão constituiu-se como uma possibilidade de “tornar-se o que se é”, livre em si, ou seja, liberto das amarras da tradição, da condição de camelo, em vista do tornar-se criança. Esse aspecto do ensino da solidão só é possível com a grande lição da “morte de Deus”. Também, constatou-se que a crença na racionalidade levou à prisão do espírito humano nos processos educativos que se embasam no ensino meramente tecnicista e racionalista. Por isso, Nietzsche pensa a educação a partir do pathos, em que o conhecimento é apenas um aspecto da vida e a vida um tema central do conhecimento, o que nos leva ao tema da paixão pelo conhecimento e o ensino da elevação, que ocorre a partir do super-homem constituído através da figura dos novos educadores. Nesse sentido, o ensino da elevação pressupõe romper com os resquícios da moralidade decadente, baseada na gregariedade, para aproximar-se de um olhar aristocrático. Nietzsche rompe com o gregarismo vigente ao falar do corpo como grande razão e, com isso, propõe um modelo educativo baseado naquilo que poderíamos chamar de ensino da grande razão, na qual o corpo tem lugar especial. Por último, se a educação tradicional foi orientada pela massificação, pela decadência da cultura e pela padronização dos indivíduos, Nietzsche, por sua vez, fala da autoafirmação a partir da atividade criativa de cada indivíduo, capaz de conduzir ao júbilo existencial do ensino da afirmação, na perspectiva do eterno retorno, que culminará na auto-trans-formação, sendo que isso será circular nos processos educativos, que afirmam a vida.

Tais preocupações não estão distantes daquelas que nos afligem atualmente. Elas nos ajudam a problematizar a reflexão acerca do engessamento ou das especificidades voltadas às práticas educativas em todos os níveis formativos, a denunciar a mediocridade, por exemplo, do projeto das escolas sem partido e as novas práticas educativas caracterizadas como educação doméstica (Homeschooling), que celebram antigas moralidades, em detrimento de processos relacionais centrais na construção de indivíduos livres e auto-legisladores. É preciso encontrar outros caminhos que evitem a décadence educativa e o espírito de conformidade e de submissão na forma de pensar e de agir, sintomas de um país que caminha inversamente ao que seria o ideal educativo – para a barbárie.

 

Referências                                        

GIACOIA JÚNIOR, O. Nietzsche como Psicólogo. São Leopoldo – RS: Editora UNISINOS, 2001.

 

JULIÃO, José Nicolau. O ensinamento da superação em Assim Falou Zaratustra. Campinas: Editora Phi, 2016.

 

LAMPERT, Laurence. Nietzsche’s teaching: an interpetation of Thus Spoke Zarathustra. New Haven: Yale: Yale University Press, 1986.

 

NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

 

NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. – São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

 

NIETZSCHE, Friedrich. Anticristo: Maldição ao cristianismo: Ditirambos de Dionísio. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. – São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

 

NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. – São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

 

NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Trad. notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

 

NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. – São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

 

NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres volume I. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. – São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

 

NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. – São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

 

OLIVEIRA, Jelson. A solidão como virtude moral em Nietzsche. – Curitiba: Champagnat, 2010.

 

SOUZA, Paulo César de. Notas. In: Assim Falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. – São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

 

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[1] A esse propósito conferir os textos sobre Zaratustra do professor José Nicolao Julião.

[2] Todas as traduções são de nossa autoria.

[3] Entre os quais está, principalmente, o texto Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino e a Consideração Extemporânea Schopenhauer como educador.

[4] Cf. FREZATTI JÚNIOR, 2010.

[5]Nesse trabalho usamos as siglas convencionais pelas revistas especializadas, a exemplo de Cadernos Nietzsche, para citação das obras de Nietzsche: A (Aurora); ABM (Além de Bem e Mal); HH (Humano, Demasiado Humano v. I: Um livro para espíritos livres); BM (Para além de bem e mal); CI (Crepúsculo dos Ídolos); EH (Ecce Homo); GC (A Gaia Ciência);GM (Para a Genealogia da Moral); ZA (Assim Falou Zaratustra).


 

 

[6] Embora a tradução usada da obra traduza Übermensch por super-homem, damos preferência à tradução de além-do-homem, para explicitar melhor o processo de superação (ou autossuperação; auto-trans-formação) do homem, tal como ele foi moldado pelo humanismo tradicional – algo que, afinal, a tradução por super-homem deixa de fora, em favor de uma concepção heroica de uma personagem que, não raro, é associado a um salvador ou redentor – nada mais anti-nietzschiano, portanto.