Gestão coletiva, temporalidades e transversalidades nos processos formativos de professores

Collective management, temporalities and transversalities in the formative processes of teachers

 

 

Cristiane Bremenkamp Cruz

Universidade Federal do Espírito Santo, Espírito Santo, Brasil

crisbremenk@gmail.com - http://orcid.org/0000-0003-0854-7687

 

Ueberson Ribeiro Almeida

Universidade Federal do Espírito Santo, Espírito Santo, Brasil

uebersonribeiro@hotmail.com - http://orcid.org/0000-0001-9255-4542

 

Ivan Marcelo Gomes

Universidade Federal do Espírito Santo, Espírito Santo, Brasil

ivanmgomes@hotmail.com - http://orcid.org/0000-0002-0311-9651

 

André da Silva Mello

Universidade Federal do Espírito Santo, Espírito Santo, Brasil

andremellovix@gmail.com - http://orcid.org/0000-0003-3093-4149

 

Rosianny Campos Berto

Universidade Federal do Espírito Santo, Espírito Santo, Brasil

rosiannyb@gmail.com - http://orcid.org/0000-0003-3143-3258

 

Recebido em 30 de setembro de 2020

Aprovado em 20 de outubro de 2021

Publicado em 31 de agosto de 2022

 

RESUMO

O texto narra e problematiza potências e desafios envolvidos na proposição de uma experiência de trabalho coletivo na formação de licenciandos dos cursos de Educação Física e Matemática da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), durante o segundo semestre de 2019. Parte da prática como componente curricular e do conteúdo jogos e brincadeiras como eixo articulador de um trabalho de mediação pedagógica realizado em escolas públicas e privadas da Grande Vitória/ES, em diferentes níveis de ensino da educação básica. Ao reunir cinco professores que ministravam seis diferentes disciplinas para uma mesma turma, produziu-se a abertura de outras temporalidades (KOHAN, 2018) pela via do manejo do tempo no processo formativo e de transversalidades (GUATTARI, 2004), como busca pela superação da fragmentação dos saberes na formação de professores. Considera que a proposta de ação integrada exigiu de cada um dos participantes disponibilidade, humildade e abertura ao outro. Os participantes construíram, coletivamente, um sentido para a atividade docente como atitude transversal de pesquisa em relação às práticas e teceram redes cooperativas entre distintos campos do conhecimento e disciplinas escolares, entre sujeitos diversos, entre estudantes de Educação Física e de Matemática e entre a universidade e a escola, possibilitando o exercício de ouvir e dialogar, reafirmando e potencializando as diferenças.

Palavras-chave: Formação inicial; Temporalidades; Mediação pedagógica.

 

ABSTRACT

The text narrates and discusses the powers and challenges involved in proposing a collective work experience in the training of undergraduate students in the Physical Education and Mathematics courses at the Federal University of Espírito Santo (Ufes), in the second semester of 2019. Part of the practice as a curricular component and the content of games and play as an articulating axis of pedagogical mediation work carried out in public and private schools in the metropolitan area of Vitória/ES, at different levels of Basic Education. By bringing together five teachers who taught six different subjects for the same class, other temporalities were opened (KOHAN, 2018) through time management in the formative process and transversalities (GUATTARI, 2004), as a search for overcoming the fragmentation of knowledge in teacher education. It is considered that the proposal for integrated action required each participant's availability, humility, and openness to the other. The participants collectively built a sense for the teaching activity as a transversal research attitude concerning practices and weaved cooperative networks among different fields of knowledge and school subjects, among various subjects, between Physical Education and Mathematics students, and between the university and the school, enabling the exercise of listening and dialoguing, reaffirming and enhancing differences.

Keywords: Initial training; Temporalities; Pedagogical mediation.

 

Introdução

Este artigo narra e problematiza potências e desafios envolvidos na proposição de um trabalho coletivo articulado entre a universidade e a escola e entre diferentes saberes na formação de licenciandos dos cursos de Educação Física e Matemática da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), durante o segundo semestre de 2019.

 

A realização do trabalho envolveu a participação de cinco docentes da Ufes que lecionavam as disciplinas: Conhecimento e Metodologia do Ensino do Jogo; Atividade Interativa de Formação (Atif) da Docência em Jogos e Brincadeiras; Oficina de Docência em Jogos, Brinquedos e Brincadeiras Infantis; Oficina de Docência em Recreação; Seminário Articulador de Conhecimentos II; e Psicologia da Educação. As seis disciplinas são ofertadas para o segundo período do curso de Licenciatura em Educação Física e, em particular, Psicologia da Educação é também oferecida para o sexto período do curso de Matemática – Licenciatura.

Na ocasião em que a atividade foi proposta, no segundo semestre de 2019, a disciplina Psicologia da Educação comportava em uma mesma turma 29 estudantes de Educação Física e 11 de Matemática. O trabalho foi proposto aos estudantes de ambos os cursos e tomou, como principais eixos de articulação, os seguintes movimentos: a) produzir conexões entre disciplinas de um mesmo semestre letivo ofertadas para os Cursos de Educação Física e Matemática, com o objetivo de fazer frente à abordagem fragmentada da produção de conhecimento; b) fortalecer vínculos entre dois cursos de licenciatura com currículos bastante diferenciados, em busca de romper estruturas curriculares enrijecidas na formação de professores; e c) fomentar articulação entre a universidade e a educação básica, por meio da mediação prática na escola como eixo central da formação docente.

Vale ainda ressaltar que este trabalho envolveu a participação de quatro professores efetivos do curso de Licenciatura em Educação Física da Ufes e uma professora substituta do Departamento de Psicologia, em contrato de regime temporário na universidade, o que caracteriza mais um elemento inusitado e desafiador do trabalho coletivo, tendo em vista que, em geral, os professores substitutos com regimes de contrato temporário nas universidades realizam trabalhos estritos de ensino em sala de aula, isolados e/ou pouco conectados à dinâmica institucional dos cursos e aos processos de formação na relação com outros docentes.

Podemos afirmar, então, que a complexidade de conexões propostas nesta ação conjunta exigiu de cada um dos participantes – tanto dos docentes quanto dos estudantes envolvidos no projeto – disponibilidade e abertura à experimentação, reposicionamento de agendas, manejo coletivo do tempo, além da construção de um sentido para a atividade docente como atitude transversal de pesquisa em relação às nossas práticas.

Para encaminhar este trabalho, os estudantes de Educação Física e de Matemática foram reunidos/articulados em grupos de quatro participantes, com o propósito de planejar e realizar mediação pedagógica em diferentes etapas da educação básica, em escolas públicas e privadas da Grande Vitória/ES, sob a supervisão dos docentes envolvidos. As práticas pedagógicas, tendo como conteúdo didático o tema “Jogos e Brincadeiras”, constituíram-se como principal ponto de articulação entre os conhecimentos das diferentes unidades curriculares, considerando que o trabalho envolveu as seguintes etapas que serão mais bem apresentadas no decorrer do texto: a) Produção de diagnóstico nas escolas; b) Planejamento para a mediação pedagógica; c) Mediação pedagógica nas escolas; d) Elaboração de seminário de compartilhamento das práticas; e) Seminário de apresentação das experimentações realizadas nas escolas; e f) Avaliação coletiva dos efeitos da ação conjunta realizada.

Em uma conversa/aula realizada entre os cinco docentes e os estudantes, debatemos a proposta de “Ação-Integrada”. Nós, os docentes, explanamos sobre a importância de um trabalho coletivo/cogerido e corresponsável na formação dos licenciandos, que fosse capaz de superar a fragmentação disciplinar. Também discutimos formas e opções de acompanhamento/supervisão e de avaliação colegiada. Os estudantes puderam falar sobre suas dúvidas e afinidades por desenvolver a experimentação pedagógica em instituições escolares distintas – e em diferentes níveis de ensino – com as quais já possuíam algum vínculo. Esse foi um momento importante de escuta e partilha entre docentes e estudantes, que nos possibilitou organizar onze Grupos de Trabalho (que receberam as denominações de G1 a G11), dos quais dez foram compostos por quatro participantes: três estudantes do curso de Educação Física e um do curso de Matemática, sob a supervisão de um docente.[1]

O grupo G11, em particular, foi composto por três estudantes do curso de Matemática em função de impossibilidades de agenda que restringiam a participação dessas alunas em atividades cogeridas com os estudantes de Educação Física, visto que as aulas oferecidas para os dois cursos eram ofertadas em horários muito diferenciados. No entanto, embora essa especificidade tenha atravessado a realização do trabalho em grupo e impossibilitado a ação interdisciplinar, nesse caso, avaliamos que, ainda assim, foi possível construir práticas compartilhadas com os demais colegas da turma, pois as três estudantes do grupo G11 realizaram um trabalho de intervenção na escola cuja proposta foi praticar “Matemágicas” com alunos do Ensino Fundamental II. Assim, o tema “Jogos e Brincadeiras” orientou a ação do grupo na atividade de mediação pedagógica na educação básica, em articulação com as experimentações que foram feitas também pelos outros grupos de trabalho daquela turma.

Diante disso, neste artigo, objetivamos compartilhar experiências e produzir algumas reflexões sobre o trabalho coletivo realizado, considerando como ponto de encontro a criação e a abertura de outras temporalidades (KOHAN, 2018) pela via do manejo do tempo e da produção de transversalidades (GUATTARI, 2004), como busca constante pela superação da fragmentação dos saberes, o que exigiu de cada um de nós envolvidos abertura e disponibilidade para a experimentação coletiva.

 

Temporalidades e transversalidades na construção do trabalho docente universitário

Compositor de destinos

Tambor de todos os ritmos

Tempo tempo tempo tempo

Entro num acordo contigo

Tempo tempo tempo tempo

 

Interferir nos cursos do tempo que compõe nossos destinos e produzir temporalidades outras que escapem à lógica meramente prescritiva, cronológica e burocrática nos exige, como diz a letra da música Oração ao Tempo, fazer um acordo com um tempo que também é, parafraseando o cantor, “[...] um dos deuses mais lindos, [...] tão inventivo, Que sejas ainda mais vivo” (VELOSO, 1989).

Sabemos, todavia, que a “falta de tempo” para planejar ações, dispor de encontros e produzir avaliações conjuntas é um fator reiteradamente apontado por trabalhadores da Educação como um grande desafio a ser enfrentado, especialmente quando buscamos estabelecer relações entre a universidade e as escolas, que possuem organizações temporais tão distintas e complexas. Machado (2008) nos convida a reposicionar essa questão e desnaturalizá-la, porque, longe de ser um dado simplesmente objetivo, irremediável e inquestionável, a “falta de tempo” não deve ser entendida como causa inequívoca de nossos problemas, pois remete aos efeitos de uma maneira coletivamente reversível de estruturar os tempos e os espaços na formação docente.

Em outras palavras, para além de ser uma causa simplesmente evidente e indiscutível, a “falta de tempo” remete a processos de organização do trabalho em Educação vinculados a uma lógica neoliberal que prima pela produtividade, eficiência e racionalidade técnica e, no entanto, pode sofrer rachaduras e abalos abrindo vias de resistência. Seguindo a pista que a autora abre, podemos, então, nos reposicionar e lutar para estruturar outros modos de relação com as temporalidades nas ações de conhecer/aprender/ensinar/pesquisar da formação universitária. Afinal, como podemos pensar e produzir com os estudantes das licenciaturas processos formativos mais adensados, para além de práticas fragmentadas? Como operar por outra lógica que não seja a da submissão a um tempo que nos falta? Como gerir um “acordo com o tempo” e torná-lo “mais inventivo”, “prazer legítimo”? (VELOSO, 1989).

Pensar no manejo coletivo do tempo nos conduz a operar com os desafios de produzir transversalidade, quer dizer, nos convida a exercer uma permanente ultrapassagem do fracionamento compartimentalizado dos saberes. Vale ressaltar que o conceito de transversalidade foi proposto por Guattari (2004) em meio ao movimento da Psicoterapia Institucional nas décadas de 60/70 do século XX, tendo como diretriz orientar princípios de abertura à experimentação e entrecruzamento de saberes na direção que a atividade conjunta praticada por nós buscou acionar.

 

A transversalidade, ou os ‘coeficientes de transversalidade’, funcionam como graus de abertura e análise, e conjuram tanto as hierarquias, produtos de uma verticalidade, quanto as totalizações e igualdades que pressupõem horizontalidade e homogeneidade. A transversalidade tende a se realizar quando uma comunicação máxima se efetua entre os diferentes níveis e, sobretudo, nos diferentes sentidos, produzindo um plano comum e heterogêneo, onde se faz possível sair de um si mesmo do indivíduo e/ou do grupo para abrir-se a um processo de diferenciação e abertura (GUATTARI, 2004, p. 79).

 

A direção de transversalidade proposta por Guattari (2004) perpassou nosso trabalho de ampliação do olhar para rachar visões estreitas de mundo que se atualizam na ideia de que haveria uma disciplina mais importante que outra, um campo do conhecimento privilegiado ou um curso de licenciatura, em particular, como centro do saber. Também abriu caminho para pensarmos intercâmbios diversos, em termos curriculares, entre os campos acadêmicos envolvidos, entre disciplinas dos cursos de licenciatura, entre escola e universidade e entre Educação Física e Matemática como disciplinas escolares, orientando-nos pela produção de um exercício que permitisse “[...] mobilidade, flexibilidade, abertura entre os saberes e trânsito por conhecimentos que se desvinculam da tentativa de homogeneização, de modelo, de uno, para o reconhecimento do múltiplo e da diferença” (MATIAS, 2008, p. 63).

Foram esses os princípios que nos moveram para “[...] um plano comum e heterogêneo”, como propõe Guattari (2004, p. 79). Por isso, consideramos importante situar o lugar de partida da ação integrada, indicando o modo como as disciplinas envolvidas se organizaram e se teceram em torno de um eixo. As unidades curriculares do curso de Licenciatura em Educação Física denominadas Atifs e Oficinas de Docência integram a chamada Prática como Componente Curricular (PCC) do curso. Segundo os documentos que preveem a PCC,[2] esse elemento a compor os currículos de todos os cursos de formação de professores deve possuir características flexíveis e estar previsto nos Projetos Pedagógicos dos Cursos, de modo que se efetive ao longo da formação.

Assim, Atifs e Oficinas de Docência[3] situam-se a partir do segundo período do curso de Licenciatura em Educação Física da Ufes e contemplam temáticas específicas vinculadas a outras unidades curriculares e disciplinas ofertadas no mesmo período. De modo particular, aliam-se tematicamente às disciplinas que envolvem conhecimento e metodologia do ensino das diferentes práticas corporais, entre as quais estão o jogo, a dança, a ginástica geral, os esportes coletivos, os esportes individuais e as lutas. Formam, então, unidades relativas às vivências das práticas corporais, com base na experimentação da docência (oficinas), da experimentação do conhecimento envolvido no processo de aprender a “ser professor” (Atifs) e do conhecimento das práticas corporais mediadas como objeto de ensino (conhecimento e metodologia) (UFES, 2014).

No caso particular do segundo período do curso de Educação Física, os jogos e as brincadeiras tematizam e articulam as primeiras experiências formalizadas de aproximação com a prática pedagógica nas escolas e em outros espaços. Foi pensando nas relações previstas entre essas unidades que esta proposta começou a se configurar, ganhando corpo, substância e sentido na relação com outras disciplinas ofertadas para a mesma turma.

A partir da abertura e da disponibilidade de cada docente envolvido e, também, dos estudantes, produzimos, coletivamente, o diálogo entre as unidades que tematizam especificamente o jogo, a unidade Seminário Articulador de Conhecimentos II[4] e a disciplina Psicologia da Educação. Esta última, tanto no currículo da licenciatura em Matemática quanto no da Educação Física, integra a dimensão dos conhecimentos pedagógicos, focalizando as práticas, os conceitos e os processos educacionais, bem como as questões atinentes ao cotidiano escolar.

Essa relação ampliada e não prevista configurou-se como elemento fundante para o processo formativo de todos os envolvidos, com a possibilidade de estabelecer diálogos e tensionamentos com campos distintos do conhecimento: a Educação Física, a Psicologia da Educação e a Matemática. Colocaram-se, assim, para nós, desafios e questões relevantes para pensarmos a constituição de nossas práticas, tendo em conta as possibilidades de manejo do tempo e de uma postura interdisciplinar e transversal, como frutos de uma “vontade construída” e de uma “atitude de ousadia” (FAZENDA, 2010, p. 4), que requereram outras atitudes:

 

[...] de humildade diante dos limites do saber próprio e do próprio saber, sem deixar que ela se torne um limite; a atitude de espera diante do já estabelecido para que a dúvida apareça e o novo germine; a atitude de deslumbramento ante a possibilidade de superar outros desafios; a atitude de respeito ao olhar o velho como novo, ao olhar o outro e reconhecê-lo, reconhecendo-se; a atitude de cooperação que conduz às parcerias, às trocas, aos encontros, mais das pessoas que das disciplinas, que propiciam as transformações, razão de ser da interdisciplinaridade (TRINDADE, 2008, p. 73).

 

 

A esse respeito, uma cena que teve lugar em uma das aulas de Psicologia da Educação, na qual, inicialmente, estudantes de Educação Física e de Matemática se encontravam com maior frequência, chamou a nossa atenção e abriu caminho para trocas profícuas. Alguns receios foram materializados em uma pergunta feita por uma estudante do curso de Matemática após a professora ter apresentado a ideia de que os discentes dos dois cursos fizessem um trabalho de mediação pedagógica articulado em uma escola a ser escolhida posteriormente. A estudante manifestou sincera preocupação por não conseguir imaginar um trabalho conjunto de ensino que estabelecesse relações entre as duas áreas.

Curiosamente, enquanto os estudantes de Matemática, a princípio, mostraram-se reticentes com relação à proposta, os estudantes de Educação Física pareciam estar mais à vontade, dispostos e interessados. Em parte, essa realidade pode ser analisada pelo fato de diversos professores do curso de Educação Física estarem envolvidos na proposta, o que levou os estudantes desse curso a se sentirem mais confortáveis com a atividade, mas também porque iniciativas desse tipo parecem estar mais presentes na formação docente em Educação Física do que costuma acontecer em Matemática, conforme narraram os próprios estudantes daquele curso.

Para além disso, vale ressaltar relações históricas entre os dois cursos e entre as disciplinas escolares, marcadas por políticas e práticas hierarquizadas nas quais a Matemática emerge como disciplina valorizada e independente das demais. Esse tema foi discutido na aula de Psicologia da Educação, quando diversos exemplos foram trazidos à tona, provocando análises coletivas, como a situação ocorrida em uma escola na qual a professora de Matemática deixava alunos do Ensino Fundamental II “de castigo” durante a aula de Educação Física, caso não terminassem as tarefas/lições de Matemática da aula anterior. Foi instigante notar repercussões como essa, trazidas para o debate pelos licenciandos, referindo-se a situações vivenciadas ao longo de sua trajetória escolar.

A questão analisadora disparada pela estudante de Matemática provocou comoção entre os estudantes de Educação Física que, por iniciativa própria, organizaram uma aula na qual prepararam diversas atividades, brincadeiras e jogos envolvendo o ensino das práticas corporais na relação com o ensino de Matemática. Os alunos de Educação Física organizaram brincadeiras adaptadas para crianças pequenas, como “Coelhinho sai toca”, na qual as tocas tinham diversas formas geométricas que poderiam ser apresentadas às crianças, além de jogos propostos para estudantes secundaristas, como campeonatos de corrida envolvendo a resolução de problemas matemáticos, dentre outras atividades.

Os estudantes de Educação Física reservaram para essa aula experimental a quadra de basquete do Centro de Educação Física e Desportos (Cefd), o que possibilitou estarmos à vontade em um espaço amplo para movimentação e expressão corporal. Nessa experimentação, por parte dos estudantes de Matemática, pudemos observar estranhamento e surpresa com as atividades propostas, mas eles se deixaram contagiar.

Além disso, na avaliação coletiva realizada após essa aula, os estudantes de ambos os cursos se mostraram mais engajados com a proposta e com a realização da mediação pedagógica cogerida entre as áreas. Esse processo dialógico inicial nos indicou que os encontros e a abertura para ensinar-aprender com os outros, por meio de parceria e de conversas coletivas, “[...] permitem um aumento da potência de agir. [...] vão construindo um percurso, elaborando pensamentos e apostando que a criação coletiva imprime dúvidas diante das certezas dos saberes hierarquizados em currículos previamente formatados e avaliados” (CARVALHO; SILVA; DELBONI, 2018, p. 814).

É importante ressaltar, também, que a experimentação de transversalização ora apresentada não se fez de modo consensual e sem conflitos. Houve choque entre projetos de formação, embate de ideias, confrontação de apostas e de medidas avaliativas. Não propomos, portanto, um modelo a ser replicado e nem mesmo narramos um resultado “bem-sucedido” de trabalho transversal e cogerido; o que almejamos é compartilhar e problematizar uma experiência que se fez exigente, ao mesmo tempo desafiadora e formativa também para nós.

A partir daí, encaminhamo-nos para as primeiras visitas às escolas para conversas com os docentes de Educação Física e Matemática das instituições. Os grupos de trabalho iniciaram a definição de temas articulados aos conteúdos que estavam sendo ministrados nas aulas naquele momento. Mais do que isso, essa etapa, chamada por nós de “diagnóstico escolar”, não pretendeu fazer um retrato congelado e instantâneo das ações praticadas na escola, tampouco se materializou em uma simples observação desincorporada. Diferentemente, a ideia envolvida nesse processo foi a de conhecer e habitar o território institucional das escolas, compreender a organização dos seus tempos e espaços, que são diferentes em cada instituição, observar as sensibilidades e movimentos, bem como fomentar conversas com os docentes das unidades escolares a fim de produzir articulação com os temas que os professores já estavam lecionando para que não houvesse interrupções bruscas e desarticuladas dos processos de aprendizagem em curso (Quadro 1).

 

Quadro 1 – Temas elaborados a partir do diagnóstico/contato nas escolas.

Grupos

Temas

Turmas

G6

Capoeira

Grupo V – Educação Infantil

G2

Brincando com os quatro elementos: fogo, terra, água e ar

Grupo V – Educação Infantil

G3

Brincando de super-heróis

Grupo III - Educação Infantil

G8

Jogos e brincadeiras

3º Ano Ensino Fundamental I

G9

Educação em movimento

5º Ano Fundamental I

G4

Estafetas matemáticas

Fundamental II (turma de reforço envolvendo diferentes séries)

G1

Elementos do congo: mascarado e fractais

8º Ano – Fundamental II

G7

Jogos pré-desportivos do voleibol

7º Ano – Fundamental II

G11

Matemágica

8° Ano – Fundamental II

G5

Jogo de bocha

1º Ano – Ensino Médio

G10

Jogos esportivos – basquete

2º Ano – Ensino Médio

 

Fonte: Elaborado pelos autores.

 

A construção do diagnóstico foi fundamental para a realização da etapa seguinte, que nomeamos “Planejamento da Mediação Pedagógica” e consistiu, basicamente, na organização de, em média, três encontros de cada grupo de trabalho com seu supervisor docente na universidade para discutir, articular e organizar a etapa de “Mediação Pedagógica”, que culminou na ação direta de cada grupo em uma intervenção realizada em instituição de ensino.

Foi nesse processo, em especial, que os desafios de trabalhar junto e de construir pontes entre campos do conhecimento diferentes apareceram com mais força para os estudantes e para nós, docentes. De início, algumas conversas pareciam caminhar para a possibilidade de uso dos jogos e das brincadeiras para o ensino de algum conhecimento matemático – o que também é legítimo, se pensarmos no jogo como elemento mediador de um determinado saber. O esforço recaía, entretanto, sobre a possibilidade de promover intercâmbios possíveis entre as duas áreas, construindo atitudes de ousadia e de busca que evidenciassem o caráter humano da experiência (FAZENDA, 2008).

Por sua vez, a etapa “Elaboração do seminário de compartilhamento das práticas” consistiu na realização de um ensaio da apresentação que fora feito anteriormente ao seminário propriamente dito, tendo como objetivo principal possibilitar que os grupos experimentassem, sob a orientação do professor da disciplina “Conhecimento e Metodologia do Ensino do Jogo”, os principais caminhos para a realização da apresentação, bem como testar previamente a utilização de recursos audiovisuais e também ensaiar o uso adequado do tempo de 15min, combinado na etapa de planejamento como tempo-referência para as apresentações. Além disso, teve o objetivo de avaliar previamente a articulação entre cada grupo, para que possíveis modificações pudessem ser feitas até a apresentação do seminário propriamente dito.

O “Seminário de apresentação das intervenções realizadas nas escolas” foi a etapa seguinte, tendo sido dividido em três datas (com intervalo semanal) com realização ocorrida no miniauditório do Cefd, contando com a presença dos cinco professores envolvidos na proposta de atividade conjunta. A escolha desse espaço físico mais amplo se deu em função de termos feito divulgação e convite ampliado para a participação da comunidade acadêmica nos seminários, de modo que outros estudantes da universidade, de ambos os cursos, também foram convidados a ouvir as apresentações dos colegas.

Na etapa “Avaliação coletiva dos efeitos da ação conjunta realizada”, por sua vez, ao fim do bloco de três apresentações, realizávamos as análises/avaliações coletivas, quando cada professor tecia comentários e considerações sobre os trabalhos apresentados no seminário e, principalmente, sobre as processualidades construídas nas etapas anteriores. Um segundo momento da etapa de avaliação coletiva teve lugar em uma reunião posterior entre os docentes para conversar sobre os percursos, ajustar e finalizar elementos da avaliação. Podemos afirmar que, ao final de todo o processo, sentimos alegria diante da possibilidade de termos reunido condições favoráveis para uma experimentação pouco usual na universidade, haja vista que romper estruturas curriculares fragmentadas e disciplinares desafia nossas ações cotidianas.

 

Embaralhando a lógica linear do tempo: a prática pedagógica e o manejo entre distintas temporalidades na formação docente

No subtópico anterior, fizemos uma breve apresentação das etapas envolvidas na realização da Ação Integrada. Ao longo de todo o processo, mostrou-se crucial para nós pensar a respeito do manuseio e da negociação de temporalidades díspares. Afinal, como manejar a complexidade das temporalidades e romper estruturas curriculares disciplinares? De que maneira podíamos cavar brechas e propor ações transversais na formação de professores? Seguramente, fazer um manejo coletivo do tempo foi um dos principais desafios enfrentados na proposição dessa atividade articulada entre as diferentes disciplinas, unidades curriculares, a universidade e a Educação Básica, a Educação Física e a Matemática, o cronograma de cada professor envolvido na proposta de trabalho e as possibilidades de encontro com os estudantes participantes dos grupos de trabalho.

Baptista e Gatto (2016) nos auxiliam na tarefa de discutir três dimensões distintas e coexistentes do tempo que convivem no cotidiano da formação e frequentaram o chão de nossa experimentação coletiva. As discussões realizadas pelos autores tangenciam os desafios que enfrentamos na realização do trabalho de Ação Integrada na Formação Inicial de professores, pois abordam distintas temporalidades abarcadas na formação e situam a existência, na Antiguidade Clássica, de três conceitos que os gregos dispunham para caracterizar o tempo: khronos, kairós e aión. É a articulação entre essas dimensões coexistentes, e não uma precipitada exclusão de qualquer uma de suas camadas, que nos esforçamos por desenvolver na experiência de mediação pedagógica proposta nas escolas.

O primeiro aspecto do tempo abordado por Baptista e Gatto (2016) refere-se à temporalidade linear na qual os acontecimentos podem ser encadeados dentro de uma lógica causal. Trata-se de nosso conhecido khronos: o tempo dos calendários, dos programas e cronogramas, das pautas, das frequências e avaliações delimitadas. Podemos afirmar que essa é a racionalidade temporal mais alimentada na organização curricular contemporaneamente. Baptista e Gatto (2016) apresentam a alegoria do titã khronos que devora seus filhos, os deuses do Panteão e, assim, os autores põem em jogo a avidez desse tempo que devora tudo e todos. “É sobre a ameaça do aniquilamento e do apagamento dos rastros que se opera o tempo cronológico” (BAPTISTA; GATTO, 2016, p. 2).

No interior das escolas e no trabalho na universidade, tal dimensão certamente comparece cotidianamente, nos planejamentos, nas datas prescritas para a entrega de trabalhos, nas chamadas relacionadas com a frequência etc. A racionalidade cronológica investe khronos de incríveis poderes, muitas vezes desconsiderando as outras dimensões do tempo que são também fundantes para a formação (kairós e aión). A questão, portanto, não passa por aniquilar khronos, mas sim por evitar que esse devorador tome a dianteira e engula outras superfícies temporais igualmente fundamentais na processualidade formativa.

Como exemplo dessa não submissão restrita a khronos, narramos e ilustramos uma das experiências desenvolvidas de supervisão e cogestão do trabalho com o Grupo G1, composto por três estudantes de Educação Física e um estudante de Matemática. No primeiro encontro, em uma sala no Cefd, um problema a ser enfrentado foi incluir o estudante de Matemática nessas reuniões, pois, em razão de o curso de Educação Física ocorrer no turno matutino, as reuniões somente poderiam se realizar no contraturno (às tardes). O estudante de Matemática, por sua vez, tinha as tardes ocupadas com aulas e/ou grupos de orientação/pesquisa. A impiedade “Cronos-lógica” nos impunha reposicionamentos e busca de saídas, caso contrário restaria nos curvarmos ao tempo que nos determina, nos dirige, nos cansa e dissipa nossas energias.

A alternativa encontrada foi realizar as reuniões mais curtas de supervisão no horário entre os turnos da manhã e da tarde, por volta das 11h30 às 12h10. Assim, foi possível garantir a participação do estudante de Matemática, contemplar os alunos de Educação Física e manter um horário de almoço com alguma qualidade para os membros do grupo que tinham atividades à tarde. Essa questão nos indicou que a problemática em torno da interdisciplinaridade e dos processos cogeridos não se restringe apenas à vontade dos indivíduos, mas nos levou a refletir acerca da importância de políticas de educação universitárias e curriculares que favoreçam e possibilitem encontros entre os estudantes e docentes para além das salas de aulas e dos organogramas preestabelecidos. Levou-nos, também, a pensar sobre como a organização curricular de cada curso de graduação, com cargas horárias abarrotadas, interfere na mobilidade dos estudantes pelos espaços da universidade, na relação com outros cursos e com outros elementos da vida universitária.

Após o primeiro encontro do Grupo G1, os estudantes apresentaram dados e informações da escola de ensino fundamental que haviam visitado na etapa de diagnóstico. A professora de Educação Física da escola estava trabalhando com a temática étnico-racial e preparando as turmas do 8º ano para uma apresentação coreografada de dança a ser realizada na semana da “Consciência Negra”. Após muito pensar e discutir, o grupo deliberou sobre o tema Brincadeiras de Congo, prática corporal ligada à cultura negra com forte vínculo com o território local da escola.

Essa parecia uma ótima ideia, não fosse a aflição sentida, no primeiro momento, pelo estudante de Matemática que dizia não conseguir articular nada de sua disciplina com a aprendizagem do congo ou das questões étnico-raciais. O grupo de trabalho, então, começou a pensar e a discutir sobre as possibilidades de articular Educação Física e Matemática em uma aula sobre Brincadeiras de Congo. Nesse primeiro encontro, não foi possível visualizar uma relação que possibilitasse o planejamento de uma aula orgânica e transdisciplinar com o conteúdo escolhido. O professor supervisor do grupo orientou que todos fossem para casa e pesquisassem sobre Matemática e Congo, Matemática e relações étnico-raciais, para que, no próximo encontro, voltassem a discutir um plano de intervenção articulado.

No segundo encontro de supervisão, o estudante de Matemática disse haver se lembrado de uma pesquisa desenvolvida por uma professora de seu curso sobre os fractais presentes nas vestimentas de congo. Fractais são figuras geométricas que podem ser encontradas na natureza e, quando reunidas, estabelecem padrões e traços que permitem compreender um todo. Com esse dado trazido pelo estudante de Matemática, o grupo elaborou um plano de mediação com o tema “Elementos do Congo: Mascarado e Fractais”. O objetivo traçado foi levar os estudantes do 8º ano a experimentar brincadeiras de congo e problematizar elementos sobre cultura local, em articulação com a linguagem matemática dos fractais presentes nas vestimentas.

A lembrança inusitada acerca dos fractais que o estudante de Matemática relatou nos remete ao segundo aspecto do tempo, a experiência do tempo oportuno que salta sobre nós, o tempo das oportunidades, o “tempo-quando” das ocasiões. Baptista e Gatto (2016) apontam que esse segundo aspecto é apresentado na mitologia grega como o deus kairós, descrito como um ser ágil e veloz, que anda nu com apenas um cacho de cabelos na testa, o que torna possível que ele seja agarrado e segurado por alguns átimos de segundo, para, por fim, escapar ligeiro e escorregadio das mãos de quem o pôde alcançar por breves instantes.

Walter Kohan (2018) ressalta que kairós qualifica khronos, pois khronos é homogêneo e indiferenciado: todo movimento no tempo cronológico é equivalente, de modo que um segundo é igual a qualquer outro e uma hora terá sempre os mesmos sessenta minutos. Assim, khronos é sucessivo, consecutivo e irreversível, enquanto kairós, por outro lado, introduz uma qualidade intensiva, instaura uma diferença na experiência.

 

Têm coisas que só podem ser feitas em determinados momentos e há momentos oportunos para fazê-las, e que se não as fizermos nesse momento, não dá certo [...]. Às vezes uma professora nos toca em um momento delicado e tem um efeito que, em outro momento, o mesmo toque passaria sem mais (KOHAN, 2018, p. 301).

 

A cena relatada na proposição do trabalho “Elementos do Congo: Mascarado e Fractais” aponta para uma experimentação com o tempo oportuno, a partir de uma lembrança inusitada que se fez propícia e fecunda. A realização do trabalho de mediação pedagógica nas escolas teve por objetivo tornar expressiva essa dimensão do tempo, oportunizando proliferar os átimos de instante nos quais podemos agarrar o topete de kairós. A ênfase do trabalho de mediação pedagógica nas escolas esteve assentada na produção de ocasiões para acolher a ludicidade, o prazer, a expressão intensiva da aprendizagem, os tensionamentos, as hesitações, os titubeios e a indeterminação propícia ao exercício do pensamento na produção de uma coletividade aprendente.

Assim, no exemplo citado do trabalho “Elementos do Congo: Mascarado e Fractais”, a aula proposta na ação conjunta já não era mais de Educação Física ou de Matemática, pois constituiu-se em uma prática transversal que ultrapassou as barreiras disciplinares. O grupo de trabalho levou tambores, cuícas, vestimentas e casacas de congo capixaba para a intervenção na escola. Na aula, os estudantes do 8º ano experimentaram os instrumentos e se apropriaram de aspectos históricos do Congo do Espírito Santo, dos ritmos. Brincaram de mascarado e elaboraram fractais em folhas de papel A4, como esboço de suas possíveis vestimentas para uma congada (Fotos 1 e 2).

 

  Foto 1 – Estudantes elaborando os fractais                  Foto 2 – Releitura da máscara com fractais

                   

Fonte: Arquivo do professor supervisor.                         Fonte: Arquivo do professor supervisor

                       

Em relação à terceira dimensão temporal, Baptista e Gatto (2016) apontam ainda aión, o tempo da experiência. Vale ressaltar que essa camada temporal é muito difícil de ser apreendida em palavras, uma vez que é superfície avessa à espacialidade discursiva. Resta-nos, portanto, tentar uma aproximação por exercício poiético (de criação poética) para lhe tocar as entranhas. Walter Kohan (2018, p. 302) afirma que “[...] aión é o tempo que não passa, que não sucede, é o tempo que dura”. O tempo aiônico é aliado à vibração intensiva, é tempo da qualidade e não da quantidade, tempo da “criança que crianceia” (p. 303).

 

Na escola o tempo aión, literalmente, é um tempo que está para ser perdido e não para ganhar nada. As coisas mais interessantes que nós fazemos na vida, bom eu estou exagerando um pouco, as coisas mais interessantes que eu fiz na minha vida, foram quando eu perdi tempo, quando eu tinha tempo para perder, quando eu podia me dedicar àquilo que não era necessário fazer em determinado tempo, mas era o que eu podia fazer a partir de ter tempo para poder pensar o que eu queria fazer com a minha vida. Porque se vocês se põem a pensar, aión não é apenas o tempo de brincar e da infância, mas é também o tempo do pensamento. Quando nós pensamos, precisamos de tempo para pensar, precisamos poder perder tempo (KOHAN, 2018, p. 304, grifo do autor).

 

No trabalho de mediação pedagógica realizado nas escolas, aión nos mostrou sua face em inúmeros gestos que demonstram a constituição de um plano vincular, no qual o exercício de estar juntos – em companhia displicente – fez durar uma colaboração intensiva. Aión, como dimensão fundante, atravessa e dá base a outras dimensões e camadas temporais, assim como ampara a processualidade da experiência compartilhada.

Suely Rolnik (1993) encosta-se intimamente na pele de aión e lhe dá o nome “marcas” ao caracterizar a textura invisível dos fluxos que injetam porções de estranhamento, exigindo acuidade e hábil manejo na produção das novas posturas existenciais em germinação. Aión, desde essa perspectiva, são “[...] ovos prenhes de linhas existências” (ROLNIK, 1993, p. 4). Em outras palavras, a dimensão larvar de aión ultrapassa a cronologia: é nascedouro cronogenético.

 

Nos encontramos em outro tempo, que funciona segundo uma outra lógica que não é mais a de uma sequência linear. Podemos designar esta lógica por vários nomes, dependendo do aspecto que queremos destacar. Por exemplo, podemos chamá-la de ‘genealogia’, se consideramos que se trata da lógica de uma gênese, no sentido não de causa, mas de processo de constituição; podemos chamá-la de ‘cronogênese’, se consideramos que se trata da lógica da gênese do próprio tempo, na medida em que são como que linhas de tempo que se abrem, estas múltiplas e imprevisíveis direções em que vai se produzindo a realidade (ROLNIK, 1993, p. 243).

 

Desse modo, ao “perdermos tempo” nos alicerçamos na confiança de que perder e ganhar não são mais que duas faces de uma mesma moeda: arriscamos algo novo, erramos para aprender e, quando isso acontece, experimentamos novamente e nos reposicionamos. Sabemos, no entanto, que espaços institucionalizados de educação, em geral, estão estruturados para que o estudante “acerte” e não para que “aprenda”. Verbos como “acertar”, “passar”, “diplomar” e “garantir” são associados a certa política cognitiva no campo educacional. Em outro sentido, “experimentar”, “vivenciar”, “aprender” e “arriscar” são verbos que se conjugam, mas se distinguem, e por isso é importante que possamos perceber e discutir as políticas formativas em jogo e seus efeitos nas subjetividades.

Para lançar uma análise sobre essas questões, podemos compartilhar uma situação ocorrida na etapa “Avaliação coletiva das mediações pedagógicas realizadas nas escolas”. Em outras palavras, podemos narrar o manejo de receios manifestados e expressos em falas dos licenciandos do Grupo G4 após realizarem a etapa de mediação pedagógica com os estudantes do Ensino Fundamental II. Houve um momento em que a atividade proposta por eles não foi bem acolhida pelos estudantes da instituição de ensino, pois eles não estavam interessados na brincadeira proposta. Imediatamente, um dos licenciandos virou-se para a professora supervisora, que acompanhava a atividade com olhar de preocupação. Em tom aflito perguntou se, por acaso, eles – os licenciandos – iriam “perder ponto” por isso.

Em momento posterior, analisamos esse acontecimento tendo em vista desmanchar a relação sobreposta entre “acerto”, “infalibilidade” e “boas notas”. Afinal, de que modo poderíamos ampliar nosso olhar e pautar a qualidade da relação experimentada para além de preocupações com as notas e com a infalibilidade? Em outros termos, discutíamos que acertar/errar era secundário em relação ao plano-base mais importante que priorizava a dimensão processual envolvida nos planejamentos, nas pesquisas feitas, nas discussões realizadas pelos grupos, na preparação dos materiais, em suma, na disponibilidade e presença na escola durante todo o processo e na etapa de mediação pedagógica.

Assim, a estratégia de “Ação Integrada” teve como uma de suas diretrizes acompanhar as disponibilidades dos licenciandos durante as atividades e o compromisso de cada um com uma formação socialmente referenciada. Desse modo, não circunscrevemos uma avaliação estrita aos acertos e erros, tampouco aos resultados obtidos, pois operamos no acompanhamento avaliativo voltado à processualidade experimentada no decurso das ações de cada grupo.

Cabe pensar, por fim, nos efeitos que essa experiência operou na formação dos licenciandos, nos nossos processos formativos, como docentes da universidade, e, quiçá, na formação dos professores das escolas que nos acolheram e conosco dialogaram. Esses efeitos, que são individuais e coletivos, apontam para a inscrição de algumas marcas de experimentação e para a ultrapassagem de fronteiras curriculares em diversos níveis, indicando que a

 

[...] ‘potência’ [da ação coletiva] depende fundamentalmente da capacidade de indivíduos e grupos se colocarem em relação para produzir e trocar conhecimentos. [Agencia] formas-forças comunitárias, a fim de melhorar os processos de aprendizagem e criação nas coletividades locais e no interior de redes cooperativas de todo tipo (CARVALHO; SILVA; DELBONI, 2018, p. 808-809).

 

Redes cooperativas que se teceram entre distintos campos do conhecimento e disciplinas escolares, entre sujeitos diversos (docentes da universidade, estudantes e professores das escolas), entre estudantes de Educação Física e Matemática e entre a universidade e a escola. Redes que nos permitiram exercitar a “atitude de ousadia” de ouvir e dialogar, reafirmando e potencializando as diferenças.

 

Considerações finais

Finalizamos a escrita deste artigo com algumas perguntas. Afinal, como esse trabalho de ação articulada pôde produzir marcas na formação dos licenciandos envolvidos no projeto, na escola e também em nós, docentes? Quais os efeitos dessa ação conjunta cujo objetivo foi fazer frente à fragmentação dos saberes? Em que medida essa ação colaborou para embaralhar fronteiras e romper enrijecimentos curriculares?

Podemos afirmar que, no trabalho de ação coletiva, residimos na fronteira entre as inúmeras qualidades incomensuráveis do tempo, suas faces indissociáveis e superfícies de conexão. Em alguns momentos nos aliançamos a khronos e caminhamos ao lado dele em linha reta: seguimos obedientes a sua direção. Assim, escolhemos datas para realizar as diversas atividades (o diagnóstico na escola, os planejamentos das aulas, a mediação pedagógica, os seminários e avaliações coletivas). Além disso, construímos um calendário e organizamos sequências que delimitaram um trabalho prescrito de atuação. Outras vezes, passeamos em companhia de kairós e notamos os solavancos em nossas costas, quando fomos puxados para ações distintas ao que antevíamos. Por exemplo, no período, em nosso calendário, que previa a etapa de ação mediada nas escolas, fomos surpreendidos com as chuvas torrenciais de novembro de 2019 na cidade de Vitória/ES.

O aumento das chuvas exigiu reinvenção, remanejamento de datas e manejo coletivo de acontecimentos imprevisíveis. Diversos grupos de trabalho relataram, durante as apresentações dos seminários, a exigência de reposicionamento diante do inesperado acontecimento “chuva torrencial”. Em alguns casos, as quadras esportivas descobertas impediram a realização de atividades previamente programadas. Além desse acontecimento, também houve ocasiões e situações em que planejamentos prévios dos discentes precisaram ser reformulados sob circunstâncias as mais diversas, por exemplo, quando uma brincadeira proposta precisou ser substituída por outra que estava “na manga”, pois os licenciandos sentiam, no calor dos encontros, a necessidade de alterar a proposição inicialmente planejada.

Por sua vez, a dimensão aión esteve presente e deu base a khronos e kairós como plano vincular que atravessa os processos formativos e lhes dá um sentido (im)preciso entre “perder tempo”, aprender/desaprender e se reposicionar a fim de “[...] gerar benefícios quando o tempo for propício” (VELOSO, 1989).

No manejo do tempo, em todas as suas dimensões, e dos saberes de modo transversal, esbarramos, ainda, nas dinâmicas escolares próprias e pudemos produzir aprendizagens múltiplas nas relações com a complexidade que envolve os tempos, os espaços, os sujeitos e os saberes escolares, seus pontos de fuga, bem como a relação desses elementos com as comunidades e as questões sociais que a envolvem.

Como conclusão, podemos dizer, por fim, que, na dimensão de experimentação que este trabalho de ação articulada pretendeu colocar em primeiro plano, pudemos, juntos, construir um sentido para a atividade docente como atitude transversal de pesquisa em relação às nossas práticas.

 

Referências

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BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Resolução nº 1, de 18 de fevereiro de 2002. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena. Diário Oficial da União, Brasília, 9 abr. 2002. Seção 1, p. 31.

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MACHADO, Adriana Marcondes. A produção de desigualdade nas práticas de orientação. Trabalho apresentado no CEU Butantã, no âmbito do Projeto Direitos Humanos nas escolas. Disponível em: http://www2.fe.usp.br/~cpedh/Desigualdade%20e%20Educ%20Adriana%20Marc.pdf. Acesso em: 1 abr. 2020.

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VELOSO, Caetano. Oração ao tempo. Cinema transcendental. CD 838 289-2. Philips, 1989.

 

Notas



[1] Os grupos foram distribuídos em distintas etapas da educação básica e em diferentes instituições escolares, públicas e privadas, da seguinte maneira: três grupos aproximaram-se de escolas de educação infantil (G3, G6 e G8), seis grupos foram para escolas de ensino fundamental, de modo que dois deles estabeleceram relações com turmas das séries iniciais (G2 e G9) e quatro grupos com as séries finais (G1, G4, G7 e G11). Outros dois grupos realizaram o trabalho em instituições de ensino médio (G5 e G10).

 

[2] Referimo-nos à Prática como Componente Curricular no modo como é definida e exigida nos cursos de formação de professores a partir do Parecer CNE/CP nº 28/2001 e das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) para a Formação de Professores da Educação Básica (BRASIL, 2002), reafirmada nos Pareceres e nas DCNs posteriores como “[...] conjunto de atividades formativas que proporcionam experiências de aplicação de conhecimentos ou de desenvolvimento de procedimentos próprios ao exercício da docência” (BRASIL, 2005). Essa dimensão da formação está prevista no curso de Licenciatura em Educação Física, sob a forma de Atividades Interativas de Formação e de Oficinas de Docência, que somam 420h na carga horária total do curso (UFES, 2014), e no Curso de Licenciatura em Matemática, perpassando as disciplinas relacionadas com a prática do ensino de Matemática na Educação Básica, perfazendo 400h (UFES, 2018).

 

[3] Atifs e Oficinas de Docência são unidades obrigatórias do curso de Licenciatura em Educação Física, com carga horária de 30h cada uma. No segundo período, são ofertadas duas Oficinas (Oficina de Docência em Jogos, Brinquedos e Brincadeiras Infantis e Oficina de Docência em Recreação) para escolha dos estudantes.

 

[4] O Seminário Articulador de Conhecimentos é uma unidade ofertada do primeiro ao quarto período do curso de Licenciatura em Educação Física, destinada a produzir reflexões que conectem os conhecimentos socializados em cada período, em perspectiva interdisciplinar, tendo em vista o processo de formação docente.

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