A quem serve a educação “para todos”?

 

To whom serves the education “for all”?

 

 

Deborah Bem

Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Mato Grosso do Sul, Brasil

dbemborges@hotmail.com - https://orcid.org/0000-0002-5454-9547

 

Josiane Peres Gonçalves

Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Mato Grosso do Sul, Brasil

josiane.peres@ufms.br - http://orcid.org/0000-0002-7005-849X

 

Recebido em 30 de setembro de 2020

Aprovado em 01 de dezembro de 2020

Publicado em 31 de agosto de 2022

 

 

RESUMO

Esse texto pretendeu refletir sobre as contradições que permeiam a educação escolar, com ênfase no caso do Brasil. Nesse sentido, o intuito é refletir sobre a situação atual da educação brasileira inserida em uma sociedade regida pelo capital, bem como a sua estruturação histórica - que se estabeleceu através de marcadores de exclusão social como racismo, desigualdade de gênero, marginalização e outros – e sua intrínseca relação com a conjuntura política do país. Para tanto, realizou-se uma breve retomada histórica da educação escolar no país e uma, igualmente breve, análise da conjuntura política brasileira a partir do golpe de 2016 e quais os reflexos disso na escola – enfatizando o movimento “escola sem partido”. O referencial teórico que norteou esse texto foi o materialismo histórico-dialético sob orientação da pedagogia histórico-crítica.  Para finalizar, apresentou-se algumas possibilidades de luta e resistência, à luz da pedagogia histórico-crítica, que visam a superação desse quadro catastrófico que se instaurou no país.  

Palavras-chave: Escola; Educação no Brasil; Pedagogia Histórico-crítica.

 

 

ABSTRACT

This text aimed to reflect on the contradictions that permeate school education, with emphasis on the case of Brazil. In this sense, the aim is to reflect on the current situation of Brazilian education inserted in a society governed by capital, as well as its historical structure - which was established through markers of social exclusion such as racism, gender inequality, marginalization and others - and its intrinsic relationship with the political conjuncture of the country. To this end, there was a brief historical resumption of school education in the country and an equally brief analysis of the Brazilian political conjuncture from the 2016 coup and what are the reflections of this in school – emphasizing the "school without party" movement. The theoretical framework that guided this text was historical-dialectical materialism under the guidance of historical-critical pedagogy.  Finally, some possibilities of struggle and resistance were presented, in the light of the historical-critical pedagogy, which aim to overcome this catastrophic situation that was established in the country.

Keywords: School; Brazilian Education; Historical-critical Pedagogy.

 

 

Introdução

            A sociedade brasileira tem enfrentado recentemente um ataque direto à educação pública, sobretudo à figura do professor. Essa situação revela um quadro historicamente construído: a natureza contraditória da educação “para todos”. A fim de aprofundar essa discussão, é necessário, antes de qualquer coisa, ter claro que a escola e a educação formal, em uma perspectiva histórica, foram utilizadas como forma de perpetuação do sistema vigente e estiveram, desde suas gêneses, promovendo a alienação e reproduzindo ideais dominantes.

Em um país cuja formação se deu através de colônias de exploração, esse fato se torna mais perceptível. Assim, por questões estruturais provenientes de um país colonizado e da própria formulação da educação formal no contexto ocidental, o Brasil encontra dificuldades para legitimar a necessidade e a importância da educação escolar gratuita e de qualidade que seja, de fato, para todos.

Tendo isso claro, é necessário compreender que o caráter contraditório da educação escolar reside no fato de que, apesar de ter sido historicamente utilizada como forma de manutenção do sistema vigente e de resguardar privilégios para as classes dominantes, a escola também promove a socialização de conhecimentos historicamente acumulados e, com isso, fornece subsídios para a emancipação da classe dominada. 

Dessa maneira, o intuito desse texto é refletir sobre a situação atual da educação brasileira levando em conta sua existência em uma sociedade regida pelo capital, bem como a sua estruturação histórica - estabelecida através de marcadores de exclusão social como racismo, desigualdade de gênero, marginalização e outros – e sua intrínseca relação com a conjuntura política do país. Para tanto, o percurso teórico-metodológico utilizado será o materialismo histórico-dialético na perspectiva da pedagogia histórico-critica. 

Será enfatizado o contexto político e social que culminou no golpe de 2016 e as distorções e retrocessos que o acompanharam, com foco no movimento “escola sem partido”, que ganhou grande visibilidade e apoio popular com propostas reacionárias e discriminatórias, além de promover um clima hostil para o exercício docente e disseminar uma conotação negativa a imagem do professor.

Por fim, se apontará algumas possibilidades de luta e resistência através da pedagogia histórico-critica. Apesar disso, é imprescindível pontuar que a transformação completa da situação da educação vivenciada atualmente no Brasil só será possível por meio da superação desse modo de organização educacional que se pauta em um modelo societário regido pelo capital. 

Breve contextualização histórica

Embora esse texto não tenha como intuito ser extremamente longo e enfadonho, é necessário retomar a história para compreender os embates que permeiam o campo educacional e político no Brasil. Isso porque o cenário atual não apareceu espontaneamente, mas é reflexo de uma caminhada histórica, teórica, social, cultural e política marcada pelas contradições que fundamentam a sociedade de classes.

Ao pensar na trajetória histórica da instrução formal, é possível constatar que houve, desde os primórdios, uma distinção entre o que ensinar para cada camada social, o que está ligado diretamente ao resguardo de privilégios da classe dominante e à manutenção do sistema vigente. Tal diferenciação pode ser percebida de modo evidente no contexto da educação escolar. 

 

 

De acordo com Marsiglia e Martins (2018), a proposta de escolarização para todos surge durante a estruturação da sociedade burguesa e tem como intuito a conversão de servos em cidadãos – para que esses participassem do processo político em favor de um novo modelo social. Sob o fundamento da igualdade formal, os burgueses precisavam da escola para consolidar a ordem democrática que pregavam.

Todavia, ao alcançar o posto de classe dominante, a burguesia viu seu status ameaçado e passou, então, a defender uma pedagogia distinta para o proletariado. Nesse sentido, com o pretexto de respeitar as diferenças, se reproduz a desigualdade e os privilégios de acesso aos elementos mais elaborados da cultura ficaram restritos apenas ao seu próprio domínio e, com isso, reproduziram a desigualdade. Dessa maneira, revelou-se que a igualdade que propunham os burgueses permaneceria no campo do discurso (MARSIGLIA; MARTINS, 2018).

Assim, Marsiglia e Martins (2018) demonstram que a história da educação escolar revela a contradição entre humanização e alienação ao passo que restringe os conteúdos que devem ser ensinados para atingir as máximas possibilidades do gênero humano a apenas uma parcela da sociedade (classe dominante) e impõem aos demais uma educação arrolada de técnicas próprias ao trabalho, alienadas e reprodutoras de ideias dominantes, criando no sujeito uma sociabilidade conveniente ao capital.

No caso específico de países que se fundamentaram em processos de colonização, exploração e escravidão, como o Brasil, há peculiaridades que precisam ser levados em conta. Com o intuito de compreender melhor os mecanismos de exclusão que atravessam a educação escolar brasileira, será utilizado como referencial o estudo de Saviani (2007).

O autor demonstra que o início da educação formal no país se deu em 1549 com a chegada dos primeiros jesuítas e se caracterizou pela catequização e aculturação com o intuito de apaziguar os nativos por intermédio do catolicismo. A pedagogia tradicional com vertente religiosa era a ideia predominante nesse período (SAVIANI, 2007).

O segundo período evidenciado pelo autor é reflexo de uma tendência mundial que chega até Portugal e, por conseguinte, ao Brasil, através das reformas pombalinas. O ponto de destaque foi a tentativa de romper com uma educação com fins eclesiásticos para substituir por uma educação conveniente aos interesses econômicos. Contudo, após a coroação de Dona Maria I, há o retorno dos religiosos ao magistério. Assim, esse momento foi marcado pela disputa entre a pedagogia tradicional laica e a religiosa (SAVIANI, 2007).

O movimento conhecido como Escola Nova ganha destaque no terceiro período exposto por Saviani (2007); trata-se de uma tendência pedagógica que chega ao Brasil através de um grupo de educadores que teve como proposta uma educação que resolvesse o analfabetismo, fosse gratuita, universal e obrigatória. As reformas propostas pelos escolanovistas divergiam da pedagogia tradicional em diversos níveis, porém convergiam ao não questionar a estrutura social e, por este motivo, reproduziam o sistema vigente.

Mais tarde, ocupando o quarto e último período da divisão proposta por Saviani (2007), emerge a pedagogia tecnicista que é uma tendência extremamente pertinente na análise proposta pelo autor. Ela se consolida durante a Ditadura Militar e compreende a baixa produtividade do sistema educacional como negativa para o governo que se declarava desenvolvimentista. Nesse momento, os laços com os Estados Unidos da América são estreitados e é importado de lá um modelo educativo pautado na formação técnica, não crítica e no behaviorismo.

Em 1968, Paulo Freire, educador brasileiro, escreve o ensaio Pedagogia do Oprimido, que traz excelentes contribuições para a compreensão da situação da educação brasileira. Nessa época, Freire estava exilado no Chile e só conseguiu publicar o livro em português anos mais tarde. A temática abordada na obra é o ponto central de toda a teoria freireana e se baseia na denúncia da “educação bancária”, entendida pelo autor como aquela em que só é “depositado” o conteúdo no aluno, não há diálogo entre educador e educando e isso contribui para a manutenção das desigualdades e da relação hierárquica opressor versus oprimido (SAVIANI, 2007).

A esse respeito, Duarte (2013) afirma que a grande problemática dessa interpretação foi supor uma rígida distinção entre ensinar e educar, o primeiro estando mais ligado aos conteúdos e, de acordo com essa lógica, mais próximo da alienação, e o segundo a uma visão mais ampla que ultrapassaria o mero ensinar. Para o autor, essa distanciação é um equívoco porque considera o aluno com uma passividade que não existe, além de deslegitimar a importância dos conteúdos. O conteúdo é carregado de atividade humana sistematizada, condensada e objetivada. Dessa forma, quando o sujeito se apropria desse conteúdo, essa atividade retoma seu potencial no cérebro, na mente e nas ações do indivíduo.

É nesse mesmo período que surge o Partido dos Trabalhadores (PT), que ocupará lugar de destaque na análise proposta no próximo tópico. O partido foi inicialmente idealizado por artistas, intelectuais de esquerda e setores progressistas da Igreja Católica, unindo-se com as lutas pelo fim da Ditadura Militar. Suas reinvindicações incluíam melhorias nas condições de vida dos trabalhadores do campo e da cidade, a redemocratização e o rompimento com o monopólio dos “homens bons” − brancos, católicos e proprietários de terra que governavam até então (MOTA, 2015).

Após o final da Ditadura Militar (1985), expande-se uma ideia no campo educacional de que “em lugar do princípio que figura nas constituições, segundo o qual a educação é direito de todos e dever do Estado, adota-se a diretriz contrária: a educação passa a ser dever de todos e direito do Estado” (SAVIANI, 2020, p. 02). Essa distorção abre precedentes para a omissão do Estado e para a inserção da filantropia na educação, contribuindo, assim, para a precarização do trabalho dos profissionais da área – precarização expressa em baixa remuneração, em péssimas condições materiais e físicas de trabalho e em formação deficitária.

A escola encontra-se, nessa ótica, no centro das contradições sociais e, em um contexto generalizado, se faz em favor da manutenção da ordem social imposta. As ideias pedagógicas hegemônicas na contemporaneidade defendem uma escola que forme força de trabalho para o mercado – o que é insuficiente no quesito de formação plena e da humanização. Ainda assim, é uma instituição passível de transformação e pode representar uma importante arma na luta contra o sistema estabelecido (SAVIANI, 2012).

Todavia, tal qual está hoje, a educação escolar não é utilizada como forma de emancipação da classe trabalhadora, mas ao contrário, é uma ferramenta para desumanização e o empobrecimento das possibilidades dos indivíduos. “Em outras palavras, o empobrecimento dos indivíduos, com contributo da educação escolar, leva à perda da dimensão civilizatória da sociedade, isto é, à barbárie” (MARSIGLIA; MARTINS, 2018, p. 1706). Além disso, coloca no sujeito a responsabilidade de seu fracasso.

A título de conclusão desse panorama histórico, pode-se identificar dois grupos de teorias pedagógicas: as não críticas e as crítico-reprodutivistas. De acordo com Saviani (2012), o grupo das teorias não críticas - que abrange a pedagogia tradicional, a escola nova e o tecnicismo - compreende a sociedade como essencialmente harmoniosa e aquele indivíduo que não se adapta a essa harmonia é visto como uma exceção acidental, que deve ser corrigida por intermédio da educação. Para esse grupo, a educação possui uma ampla margem de autonomia em relação à sociedade e sua função primordial é integralizar os sujeitos em seus espaços sociais destinados.

As teorias crítico-reprodutivistas, por sua vez, percebem a escola como totalmente dependente das relações estabelecidas na sociedade. Nesse viés, em uma sociedade composta por classes ou grupos antagônicos, a função da escola é a marginalização e a reprodução social da divisão de classes. Dessa forma, para as teorias crítico-reprodutivistas, não há uma proposta pedagógica capaz de superar esse antagonismo. Seus adeptos assumem, dessa maneira, que a escola não poderia ser diferente do que é (SAVIANI, 2012).

Para o mesmo autor, a fim de superar esses dois grupos de tendências pedagógicas, seria necessária a proposição de uma teoria crítica que não se detenha no reprodutivismo. Essa teoria seria responsável não só pela superação do poder ilusório da escola (pressuposto das teorias não criticas), mas também da sua impotência (anunciada pelas teorias crítico-reprodutivistas) (SAVIANI, 2012). Essa teoria elaborada e sistematizada culminou na pedagogia histórico-crítica.    

O golpe de 2016: retrocessos e distorções

Com base na trajetória histórica exposta anteriormente, é possível notar que há uma íntima relação entre educação e política. Entretanto, é preciso ter claro que são práticas distintas e possuem especificidades que impossibilitam a dissolução de uma pela outra. Segundo Saviani (2012), o ponto fulcral que distingue educação de política é que a prática educativa é uma relação que se estabelece entre não antagônicos, enquanto na política são colocados em xeque interesses e perspectivas excludentes.

Em outras palavras, o processo educativo pressupõe que o educador utilize de suas experiências prévias e formação específica para auxiliar no processo de desenvolvimento do educando. Assim, nesse caso, não há antagonismo entre os envolvidos. Já na prática política, a relação é de oposição e o intuito é vencer o adversário. Nesse sentido, o autor explicita que:   

As diferenças anteriormente assinaladas permitem-nos entender por que, em política, seria ingenuidade acreditar que o adversário está na posição posta porque está equivocado; porque não compreendeu o seu erro e a validade da proposta contrária, compreensão essa que, uma vez atingida, o levará a aderir a proposta que atualmente combate.  Por isso, em geral, o fato de um partido perder uma batalha (eleições, propostas etc.) não o demove de sua posição; ao contrário, ele passa para a oposição e continua fustigando o partido contrário buscando alterar a correlação de forças para, na oportunidade seguinte, reverter a situação (SAVIANI, 2012,  p. 83).

Essa situação paradoxal que distingue e, ao mesmo tempo, relaciona política e educação, poderá ser percebida de modo mais evidente ao ser retomada a conjuntura política do Brasil nos últimos mandatos presidenciais e seus impactos na educação brasileira atual. A esse fim se destinam os próximos parágrafos.

No ano de 2002, Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), é eleito pela primeira vez como presidente do Brasil. Suas bases ideológicas eram sindicalistas e suas propostas versavam no âmbito da redução das desigualdades sociais. Entretanto, o que se observou na prática foi algo completamente diferente: havia um interesse financeiro em aumentar os salários-mínimos e, consequentemente, o poder aquisitivo da classe trabalhadora, dando a ilusão de que ela poderia ascender socialmente.

 Todavia, na prática, tais medidas apenas maquiaram a realidade. A população continuou pobre e, depois desse estímulo ao consumo, endividada. Ainda assim, o partido se tornou popular entre as massas, o que permitiu que ele conseguisse se reeleger por quatro mandatos consecutivos.

No campo educacional, como demonstra Saviani e Duarte (2012), o que se pôde perceber foi a manutenção de uma tendência produtivista e da pedagogia do “aprender a aprender”. Nesses moldes, não houve nenhuma medida efetiva para uma educação revolucionária e menos ainda para o rompimento com a lógica capitalista que produz e reproduz a desigualdade.

Além disso, o Partido dos Trabalhadores se envolveu em diversos escândalos de corrupção. Dentre eles, o mensalão em 2005 e 2006 em que foi descoberto que vários partidos, incluindo o referido, estavam envolvidos em compras de votos no Congresso Nacional. Mas de acordo com Tavares, Vieira e Quintans (2015), foi durante as jornadas de junho de 2013 que o PT pôde colocar em prática toda sua força repressora diante das reinvindicações básicas do povo brasileiro, como melhorias nas condições da saúde, educação, segurança, entre outros. Mais de um milhão de pessoas ocuparam as ruas protestando contra o abuso policial, esquemas de corrupção e os megaeventos que seriam sediados no Rio de Janeiro no ano seguinte. Foi o maior movimento de insurreição popular desde o impeachment do presidente Fernando Collor em outubro de 1992.

Emerge nesse momento a figura de Jair Bolsonaro. Até então deputado, Bolsonaro não tinha grande representatividade e era conhecido somente por defender o retorno da Ditadura Militar e fazer apologia à legalização do porte de armas para civis. Em meados de 2011 essa personalidade ganha força na militância contra as políticas LGBTs, especificamente com o “kit gay”, criando uma comoção popular em torno do assunto (TOITIO, 2019).

O referido “kit gay” era, na realidade, um material didático criado em uma parceria entre Ministério da Educação, movimento LGBT e organizações civis. O intuito do projeto, denominado Escola sem Homofobia (ESH), era reduzir os preconceitos e a discriminação na escola. Segundo Toitio (2019), em 2011 a Bancada Evangélica se une a Jair Bolsonaro em prol da retirada desse material das escolas.

Essa situação marca o início de uma “caça às bruxas” e os brasileiros começam se dividir entre apoiadores e opositores de Bolsonaro. “Essa militância e os reiterados discursos homofóbicos do deputado foram fundamentais para lhe dar visibilidade e para aumentar sua base de apoio popular em torno de um projeto autoritário-conservador” (TOITIO, 2019, p. 33).

Expande-se, nesse mesmo período, um discurso que culpabiliza uma suposta “ideologização” na educação pelo fracasso nos desempenhos escolares. E, assim, com a falsa argumentação de “livrar as crianças da doutrinação da esquerda”, o movimento “escola sem partido” encontra um campo fértil nos setores reacionários da sociedade. A organização se caracteriza como uma ONG (Organização Não Governamental) e, embora tenha surgido na esfera civil, com frequência ressurge expressa na forma de projetos de lei que tramitam em diversos órgãos do poder legislativo de todo o país, ainda que já tenha sido provada a inconstitucionalidade da proposta.

Sobre a motivação dessa ofensiva investida em educação, Saviani (2020a) afirma:

[...] tem a ver com a fase atual do capitalismo que, tendo tomado conta de todo o globo, já não tem mais como se expandir; e, esgotando todas as suas possibilidades, entrou em profunda crise de caráter estrutural. Nessas circunstâncias a classe dominante já não consegue mais ser dirigente, ou seja, vai perdendo sua capacidade hegemônica, não conseguindo obter o consenso das demais classes em torno da legitimidade de seu domínio. Ocorre, então, o acirramento da luta de classes. Não podendo se impor racionalmente, a classe dominante precisa recorrer a mecanismos de coerção no plano da sociedade política combinados com iniciativas no plano da sociedade civil que envolvem, por um lado, o uso maciço dos meios de comunicação promovendo uma verdadeira lavagem cerebral junto à população, e, por outro lado, a investida no campo da educação escolar tratada como mercadoria e transformada em instrumento de doutrinação (SAVIANI, 2020a, p. 12-13).

Saviani (2020b) aponta que, para expor a realidade opressora vivenciada pela classe trabalhadora, não é preciso doutrinação. A exploração é a realidade material vivida pelo proletariado, essa é a verdade. Já para ludibriar a população em favor de uma ordem social desigual, exploradora e usurpadora, aí sim faz-se necessário a doutrinação. É, portanto, um projeto de educação conveniente a classe dominante.  Sobre essa temática, Duarte (2018) afirma que a neutralidade defendida nessa proposta, na realidade, esconde a tentativa de silenciar a verdade e transformar a escola em um ambiente que não socialize o conhecimento e nem tenha compromisso com a vida social. Em resumo, o que se pretende é:

[...] agir como se a educação fosse isenta de influência política [...] uma forma eficiente de colocá-la a serviço dos interesses dominantes. E é esse o sentido do programa ‘escola sem partido’ que visa subtrair a escola do que seus adeptos entendem como ‘ideologias de esquerda’, colocando-a sob a influência da ideologia e dos partidos da direita, portanto, a serviço dos interesses dominantes (SAVIANI, 2020a, p.15).

A partir dessa sequência de acontecimentos, a imagem do Partido dos Trabalhadores ganhou uma conotação muito negativa e diversas consequências puderam ser observadas. Mas é o golpe de 2016 – que gera o impeachment da presidenta Dilma Rousseff –, sem dúvidas, o apogeu desse cenário caótico.

Para explicitar, a caracterização do termo “golpe” se dá devido ao não cumprimento da exigência constitucional de existência de crime de responsabilidade. Dessa maneira, com o afastamento de Dilma, rompe-se a constitucionalidade democrática, gerando um estado de golpe contínuo que acontece por uma série de atos imbricados de ilegalidade (SAVIANI, 2020b).

Cabe salientar que, de 2016 até hoje (2020), o Brasil tem enfrentado diversos outros retrocessos. Na área da educação, há inúmeras propostas, programas, projetos e “reformas” que poderiam ser citados, mas a escolha do “escola sem partido” se deu para propor uma reflexão sobre o papel do professor e da escola, além, é claro, de analisar a relação análoga entre política e educação e a impossibilidade da neutralidade no ato educacional.

 Para Saviani (2020a), essa proposta retira do professor a sua função social, que é formar as novas gerações – enquanto gênero humano – e fornecer subsídios para que se insiram ativamente na esfera social. Um professor censurado, vigiado e controlado jamais conseguirá desempenhar esse papel que é inerente ao seu exercício profissional. Nesses moldes, é a autonomia do professor em sala de aula que está ameaçada.

O autor faz um apelo a todos os educadores brasileiros para se unirem na luta pelos direitos sociais, com ênfase na educação pública, gratuita e de qualidade. Se posicionar em combate ao referido movimento “escola sem partido” é, portanto, um passo essencial nesse processo (SAVIANI, 2020a).

 

Apesar disso, é preciso deixar claro que há diversos professores que só desempenham esse papel para lhes garantir um salário, e em essência odeiam o exercício docente. De certo, para esses, a reflexão proposta não lhes servirá de nada, pois o diálogo que se pretende estabelecer é com educadores comprometidos com as suas responsabilidades sociais, ainda que não se tenha como intuito assumir que a docência pressupõe uma vocação natural ou um ato de amor, já que como salienta Rossi e Rossi (2020, p. 104), “isso não passa de tolice de quinta categoria”. 

Sobre a função social da instituição escolar trazida pelo movimento “escola sem partido”, Saviani (2020a) afirma:

Vai na contramão da sociedade moderna que, no século XVIII, forjou o conceito de escola pública estatal e buscou implantar, no século XIX, os sistemas nacionais de ensino como instrumentos de democratização com a função de converter os súditos em cidadãos. É essa a condição para a existência das sociedades democráticas mesmo sob a forma capitalista e burguesa que proclama a democracia como o regime baseado na soberania popular. E o povo, para se transformar de súditos em cidadãos, isto é, para ser capaz de governar ou de eleger e controlar quem governa, deve ser educado. Para esse fim é que foi instituída a escola pública universal, obrigatória, gratuita e laica (SAVIANI, 2020a, p. 16).

O autor complementa dizendo que, na Constituição vigente no Brasil, o objetivo da educação é propiciar uma formação plena que permita aos indivíduos o exercício da cidadania, o que se contrapõe à ideia de uma escola isenta de política porque “ora, o preparo para o exercício da cidadania tem um significado precipuamente político” (SAVIANI, 2020a, p. 16).

Assim, o “escola sem partido”, além de ser um projeto com ideias retrógradas que retiram da escola temas extremamente importantes na vida social contemporânea – como relações de gênero, sexualidade, violência doméstica, exploração da classe trabalhadora, controvérsias históricas que marcam a civilização, entre outros –, é uma proposta inconstitucional que distorce o papel do professor e da escola na sociedade. Sua aprovação seria um retrocesso de décadas e lutar contra ele é uma necessidade imperativa aos educadores brasileiros comprometidos com seu papel.

Possibilidades educacionais à luz da pedagogia histórico-crítica

As ideias pedagógicas hegemônicas no Brasil foram construídas a partir de preceitos do “aprender a aprender”, “aprender fazendo” e “aprender no cotidiano”. A rotina diária das instituições escolares, desde a educação infantil até o ensino superior, está arrolada de práticas que reproduzem as dinâmicas alienadas das relações sociais no sistema capitalista. E é a não socialização dos conhecimentos mais elaborados, desenvolvidos e ricos produzidos pela humanidade, um fator basal na consolidação dessa situação.

Duarte (2006) evidencia que esse posicionamento não é em favor de um conformismo com as pedagogias burguesas, ao contrário, sua defesa é de que a apropriação do conhecimento é “a grande luta a ser travada no interior do sistema escolar e a grande contribuição que a escola pode dar ao processo coletivo de superação da sociedade regida pelo capital” (DUARTE, 2006, p. 98). 

Por este motivo, Saviani e Duarte (2012) compreendem a necessidade da luta pela escola pública como um pilar na luta pelo socialismo. Para eles, a escola é o lugar essencialmente privilegiado para a socialização do conhecimento sistematizado e isso está intrinsecamente ligado ao movimento revolucionário de superação da sociedade capitalista.

Nesse contexto, a educação para a classe trabalhadora precisa fornecer uma formação plena que garanta as máximas possibilidades humanas e isso não será possível sem o acesso a herança cultural acumulada pela humanidade. É difícil pensar em revolução se retendo ao que está posto, por isso, o conhecimento é imprescindível para compreender as contradições colocadas na realidade contemporânea e suas possibilidades de superação no futuro (MARTINS; DUARTE, 2016).

Nesse viés, o ponto central da reflexão é o que deve ser ensinado. De acordo com Martins e Duarte (2016), para resolver a maior parte dos problemas do dia a dia precisa-se de um conhecimento imediatista e que não necessariamente expresse o que é a realidade. A razão pela qual são necessários os conhecimentos mais elaborados é para conhecer a realidade e isso gera uma ampliação da visão de mundo do indivíduo, o que modifica a sua inserção na prática social.

Não há a possibilidade de trabalhar as ciências sem pensar na luta de classe, pois o conhecimento também reproduz alienação. As filosofias que tanto foram difundidas no século XX, por exemplo, não interessam à classe trabalhadora. Contudo, isso não significa que não se deva conhecê-las, mas a proposta deve ser conhecer de forma crítica para que isso gere embate. Nesse sentido, os conflitos políticos são inevitáveis, já que as forças conservadoras desejam manter a escola como ela é para assegurar a hegemonia das relações (MARTINS; DUARTE, 2016), como já foi discutido no tópico anterior.

Entretanto, Saviani e Duarte (2012) apontam que não teriam a ingenuidade de supor que só o acesso ao conhecimento clássico seria o suficiente para a revolução socialista, mas defendem com afinco que é algo necessário para a formação da classe trabalhadora e é exatamente nesse viés que reside a fundamentação da pedagogia histórico-crítica, que será brevemente contextualizada nos próximos parágrafos.   

Saviani (2011) define o ano de 1979 como o ponto crucial da formulação de sua teoria. A Pedagogia Histórico-Crítica surge, então, com o intuito de responder às insatisfações causadas pelas teorias pedagógicas existentes até aquele momento. Para o autor, mesmo as teorias críticas desempenhavam um papel de reprodução e não tinham como ponto de referência e nem como compromisso a transformação da sociedade.

Assim, um dos maiores desafios era a consolidação de uma prática pedagógica comprometida com a superação da sociedade capitalista e que levasse em conta o caráter histórico e dialético de seu desenvolvimento (SAVIANI, 2011). É nessa perspectiva que Saviani formula a sua teoria, sintetiza por ele:

Em suma, é possível afirmar que a tarefa a que se propõe a pedagogia histórico-crítica em relação à educação escolar implica: a) Identificação das formas mais desenvolvidas em que se expressa o saber objetivo produzido historicamente, reconhecendo as condições de sua produção e compreendendo as suas principais manifestações, bem como as tendências atuais de transformação. b) Conversão do saber objetivo em saber escolar, de modo que se torne assimilável pelos alunos no espaço e tempo escolares. c) Provimento dos meios necessários para que os alunos não apenas assimilem o saber objetivo enquanto resultado, mas apreendam o processo de sua produção, bem como as tendências de sua transformação (SAVIANI, 2011, p. 08- 09).

 

Deixando ainda mais claro, Duarte (2012) defende que, vislumbrando uma sociedade que de fato supere o capitalismo, a teoria pedagógica marxista – que é exatamente a pretensão da pedagogia histórico-crítica – é essencial. Essa pedagogia deve ter como intuito a apropriação pela classe trabalhadora das riquezas culturais e intelectuais acumuladas historicamente e que, na sociedade vigente, é um privilégio restrito à classe dominante. Com efeito, se a proposta do socialismo é a socialização de todos os meios de produção e das riquezas acumuladas, com o conhecimento não pode ser diferente e é essencialmente esse movimento que a pedagogia histórico-crítica pretende.

Um professor que pretenda pautar suas práticas na pedagogia histórico-crítica precisa estar ciente que assumirá um compromisso político com a humanização dos sujeitos e isso deverá ter como objetivo final a emancipação da classe trabalhadora e o rompimento com a ordem capitalista. Não se trata de uma tarefa fácil e não ocorrerá espontaneamente e, por este motivo, a práxis docente está ligada a um árduo trabalho em busca da revolução socialista e em sua trajetória encontrará diversos embates.

 

 

Considerações finais

O ponto principal a ser pensado e repensado é quem está inserido no “todos” dessa proposta de educação e a quem está servindo esse modelo de escola.  Mediante a tais reflexões, fica evidente que o cenário brasileiro está intimamente relacionado com a estruturação do modo de organização educacional presente em toda a história do Brasil. Ainda assim, é notável que os retrocessos à ordem democrática que marcam o campo político e educacional desde o golpe de 2016 têm agravado ainda mais essa situação.

Para superar esse quadro catastrófico, será necessário lutar por uma educação pública de qualidade ao lado da luta pelo fim da lógica neoliberal e a superação da sociedade capitalista. Medidas paliativas não serão o suficiente, é imprescindível romper radicalmente com essa estrutura e esse precisa ser o compromisso da educação.

Enfim, a educação escolar do lado oposto da alienação está preocupada com a formação da consciência humana. Trata-se de uma teoria pedagógica que leva em conta os conteúdos que precisam ser ensinados para que os sujeitos alcancem suas máximas possibilidades e que o conhecimento acumulado historicamente seja, de fato, socializado. Em outras palavras, sua finalidade tem que ser a humanização e a emancipação da classe trabalhadora.

 

Referências

DUARTE, Newton. A Pesquisa e a formação de intelectuais críticos na Pós-graduação em Educação. PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 24, n. 1, p. 89-110, jan./jun. 2006. Disponível em <https://periodicos.ufsc.br/index.php/perspectiva>. Acesso em: 27 jun. 2020.

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Notas

1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

 

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