Articulação Teórico-Metodológica: a entrevista em pesquisas educacionais na abordagem histórico-cultural
Theoretical-Methodological Articulation: the interview in educational research in the historical-cultural approach
Thiago Antunes-Souza
Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, Brasil
tasouza@unifesp.br- https://orcid.org/0000-0002-5881-8855
Renata H. P. Pucci
Universidade Metodista de Piracicaba, São Paulo, Brasil
renata_pucci@hotmail.com - http://orcid.org/0000-0002-8880-4243
Recebido em 18 de setembro de 2020
Aprovado em 03 de fevereiro de 2022
Publicado em 31 de maio de 2022
RESUMO
Este artigo de natureza teórica insere-se no campo de estudos da Educação e tem como objetivo analisar, face aos desafios de articulação teórico-metodológica em pesquisas educacionais realizadas na abordagem histórico-cultural, como a entrevista pode figurar como instrumento metodológico para a construção de dados. Nesse sentido, são fundamentados conceitos concernentes às diretrizes do método segundo essa abordagem, focalizando uma proposição de entrevista dialógica (FREITAS, 2002; 2007). Os referenciais teóricos que norteiam tal discussão são Lev S. Vigotski e Mikhail M. Bakhtin. Propõe-se a articulação da abordagem histórico-cultural e da perspectiva enunciativa como fundamento para a construção, realização e análise das entrevistas. As considerações tecidas acenam para as contribuições da abordagem histórico-cultural no que se refere às possibilidades de apreensão do fenômeno em movimento. Conclui-se que a entrevista dialógica, como instrumento metodológico amparado nos princípios da dialogia, se apresenta como campo profícuo de elaboração e reelaboração de sentidos sobre o objeto em discussão.
Palavras-chave: Pesquisa em Educação; Abordagem Histórico-cultural; Entrevista Dialógica.
ABSTRACT
This paper of a theoretical nature is part of the field of Education and aims to analyze, given the challenges of theoretical-methodological articulation in educational research conducted in the historical-cultural approach, how the interview can figure as a methodological tool for data construction. In this sense, concepts concerning the guidelines of the method are based on this approach, focusing on a proposition of dialogical interview (FREITAS, 2002; 2007). The theoretical references that guide such discussion are Lev S. Vigotski and Mikhail M. Bakhtin. The paper proposal is the articulation of the historical-cultural approach and the enunciative perspective as a foundation for the construction, realization, and analysis of interviews. The final considerations point to the contributions of the historical-cultural approach regarding the possibilities of apprehension of the phenomenon in movement. It is concluded that the dialogical interview, as a methodological instrument based on the principles of dialogue, presents itself as a fruitful field for the elaboration and re-elaboration of meanings about the object under discussion.
Keywords: Educational Research; Historical-cultural approach; Dialogical Interview.
A escolha de um método de pesquisa está dentre os elementos centrais do desenvolvimento de uma investigação científica. Essa escolha, no entanto, não deve anteceder a construção do problema, a delimitação dos objetivos e a assunção do referencial teórico que embasa o estudo. Há, de fato, “a busca de uma coerência entre o método e o referencial teórico que nos orienta” (FREITAS; RAMOS, 2010, p. 8). Na abordagem histórico-cultural[1], considerando, em especial, as contribuições de Vigotski, o método é parte do construto teórico, pois implica, além de um conjunto de princípios e conceitos que embasam o olhar do pesquisador, um modo de olhar para o objeto de estudo.
Uma concepção histórica, cultural, e dialética, de formação e desenvolvimento humano, implica a compreensão do homem circunstanciado, não assujeitado, mas que se faz nas interações concretas em seu meio social. Vigotski (2007, p. 68 – grifo do autor) ainda orienta que “estudar alguma coisa historicamente significa estudá-la em seu processo de mudança, pois somente em movimento um corpo mostra o que é”, apontando para o que o pesquisador deve buscar em sua investigação, i.e., não apenas o produto, mas o processo que envolve o fenômeno[2] estudado. Com esse referencial teórico-metodológico assumido importa-nos atentar aos instrumentos metodológicos que auxiliem no levantamento dos dados, dentre eles, consideramos a entrevista como importante espaço de construção do processo (in)formativo da pesquisa.
A entrevista, como técnica para realizar o trabalho de campo, pode ser classificada, de acordo com a sua forma de organização, em: sondagem de opinião semiestruturada, aberta (ou em profundidade), focalizada ou projetiva[3], e ser tratada “no sentido amplo de comunicação verbal, e no sentido restrito de coleta de informações sobre determinado tema científico [...]” (MINAYO, 2016, p. 59). Na pesquisa em Educação na abordagem histórico-cultural, pode-se, eventualmente, considerar a entrevista como insuficiente para a construção de dados robustos para análise, sendo necessários outros instrumentos de aproximação com o campo empírico. No entanto, no presente texto, consideramos que a entrevista, realizada pelo pesquisador com o referencial teórico consolidado e orientador do percurso metodológico, abre caminhos para o diálogo, para a construção compartilhada de sentidos e para a construção do conhecimento.
Nessa perspectiva, discorreremos sobre uma proposição de entrevista dialógica[4], assim denominada por Freitas (2002; 2007), na qual, em interação verbal, pesquisador e entrevistado buscam a mútua compreensão. É importante ressaltar que, assim como a autora, nosso olhar é orientado conceitualmente por contribuições de Vigotski, no campo da psicologia, na abordagem histórico-cultural, e de Bakhtin, na área dos estudos da linguagem, em uma abordagem enunciativo-discursiva.
Na discussão da pesquisa em educação que pode envolver o cotidiano das escolas, a formação de professores, os processos de ensino-aprendizagem, as políticas educacionais, dentre muitos outros temas, há um traço comum: o outro. Na abordagem histórico-cultural esse outro não é um elemento qualquer, afinal, traz como pressuposto a tese de que a constituição do indivíduo ocorre na e pela vivência da cultura, produzida pela atividade social e histórica dos grupos humanos. Destarte, “passamos a ser nós mesmos através dos outros; [...] a personalidade vem a ser para si o que é em si, através do que significa para os demais” (VIGOTSKI, 1931/1995, p. 149– nossa tradução). A entrevista, nesse contexto, apresenta-se como possibilidade de apreensão do que esse outro pensa, significa, ressignifica, quais são as reelaborações que ele faz no momento histórico e social em que está inserido.
Diante do exposto, neste estudo de natureza teórica, temos por objetivo analisar, face aos desafios de articulação teórico-metodológica em pesquisas educacionais realizadas na abordagem histórico-cultural, como a entrevista pode figurar como instrumento metodológico para a construção de dados. Nesse sentido, são fundamentados conceitos concernentes ao entendimento do desenvolvimento humano e às diretrizes do método segundo essa abordagem, focalizando a entrevista dialógica como um instrumento contributivo às pesquisas educacionais, propondo a articulação da abordagem histórico-cultural e da perspectiva enunciativa como fundamento para a construção, realização e análise das entrevistas.
Entendimento acerca do desenvolvimento e o método de pesquisa
Assumir uma postura investigativa apoiada na perspectiva histórico-cultural de desenvolvimento humano significa compreender o homem como sujeito histórico e social. Tal postulado concebe esse ser sociocultural que se constitui na relação com os outros e por ela; na linguagem e por ela. Assim, a escolha por esse referencial está relacionada aos pressupostos metodológicos que consideram a pesquisa como qualquer outra atividade humana que é socialmente mediada.
Ao conceber o homem como ser que se constitui nas relações sociais, Vigotski (1929/2000; 1931/1995), principal proponente da perspectiva histórico-cultural, assume que a formação humana se dá na experiência cultural historicamente estabelecida e que o desenvolvimento do indivíduo depende das atividades mediadas pelo grupo social. Nesse sentido, Vigotski (1929/2000, p. 35) considera que a personalidade é “um agregado de relações sociais”. Assim sendo, o processo de desenvolvimento é por ele compreendido no plano histórico e sociocultural: “eu me relaciono comigo tal como as pessoas se relacionam comigo” (VIGOTSKI, 1931/2012, p. 147 – nossa tradução).
Dessa perspectiva, a atividade consciente do homem não é determinada exclusivamente por experiências pessoais e imediatas do meio; está relacionada a conhecimentos que se constituem a partir da apropriação da experiência acumulada nas relações com outros na cultura ao longo do processo histórico-social da humanidade.
Vigotski (1931/1995) também postula que o desenvolvimento do homem se realiza na vivência da cultura, produzida pela atividade social e histórica dos grupos humanos. Ao definir o homem, ele sintetiza assim sua visão: “Para Hegel é o sujeito lógico. Para Pavlov, é o soma, organismo. Para nós é a personalidade social = o conjunto de relações sociais encarnado no indivíduo (funções psicológicas, construídas pela estrutura social)” (VIGOTSKI, 1929/2000, p. 33 – nossa tradução). Nessa perspectiva, o autor estabelece a compreensão de que todo cultural é social e conceitua cultura “como produto da vida social e da atividade social do ser humano” (VIGOTSKI, 1929/2000, p. 151– nossa tradução).
Apoiado nesse entendimento, Pino (2005) diz que, na perspectiva histórico-cultural, a produção da cultura e a sua apropriação correspondem, respectivamente, à humanização da espécie e à humanização do indivíduo. Em linha semelhante, Martins e Rabatini (2011) ressaltam que, para Vigotski, a cultura é concebida como produto histórico do trabalho humano. Por essa razão, esse conceito não se restringe ao entorno social imediato, local ou regional, mas diz respeito a um princípio de formação dos processos humanos no contexto coletivo, com caráter de universalidade.
Fundamentada na matriz marxista assumida por Vigotski, tal compreensão sobre a produção da cultura pressupõe que o plano das relações entre indivíduos concretos e o plano das estruturas sociais são igualmente regidos pelas leis históricas. Na visão marxista, são as condições de existência criadas pelo homem (os homens produzem e reproduzem seus meios de existência por meio do trabalho social) que podem dar origem às funções da pessoa; assim, as funções individuais se constituem no desenvolvimento histórico do homem e o constituem também.
A história social dos homens nada mais é do que a história do seu desenvolvimento individual, tenham ou não consciência disso. Suas relações materiais são as bases de todas as suas relações. Essas relações materiais não são mais do que as formas necessárias em que se realiza a sua atividade material e individual (MARX, 1983, p. 433).
Ao abordar o conceito de cultura, Pino (2005) ressalta que as funções do indivíduo se concretizam em práticas sociais, num sistema complexo de posições e papeis, isto é, num sistema em que os indivíduos se posicionam uns em relação aos outros. Práticas sociais, nesse contexto, são entendidas como “as várias formas – socialmente instituídas ou consagradas pela tradição cultural dos povos – de pensar, falar e de agir das pessoas que integram determinada formação social” (PINO, 2005, p. 107).
Destarte, tal como destaca Conti (2010, p. 56), a capacidade do homem de agir sobre a natureza e de transformá-la atribui ao signo e ao instrumento técnico características de meios de produção de cultura: “Por meio desses instrumentos e símbolos produz-se a cultura. Ambos, portanto, são mediadores da ação humana e simultaneamente são produtos dessa mesma ação”. A cultura, concebida nesta perspectiva, torna-se constitutiva da natureza humana por meio da significação, e a explicação para esse processo somente é possível com base na mediação semiótica.
A significação que o homem atribui às coisas, isto é, a dimensão simbólica das atividades biológicas, torna-as atividades humanas. Dessa forma, o acesso à cultura passa necessariamente pela mediação do outro, a partir de seu papel interativo na internalização ou conversão de significação das relações sociais. Nesse processo, podemos indicar, apoiados em Conti (2010, p. 53), que Vigotski:
Instaura a ideia de um outro, conferindo-lhe um estatuto cuja ênfase eleva-se à função constitutiva e não apenas a uma função auxiliadora ou facilitadora da construção do psiquismo. Ousamos dizer que, em relação a esse tema, é como se Vigotski, partindo da ideia marxista, procurasse por um método que concebesse a vida social e, nela, o outro como a condição material histórica e dialética em referência à qual o psiquismo (o eu e suas funções) pode emergir.
O emprego do signo, que implica necessariamente a participação de outras pessoas, permite a enunciação e a compreensão sobre a realidade, ou seja, seu conhecimento. Pela significação, as coisas percebidas são relacionadas entre si e, assim, adquirem outra forma de existência. Ademais, a presença e o emprego do signo, especialmente da palavra, permitem ao homem o controle da ação prática e a autodeterminação. Mas é preciso lembrar que o controle pela palavra foi antes controle social, “pois a palavra é palavra do Outro antes de ser palavra própria” (PINO, 2005, p. 137). Assim, concordamos com Conti (2010, p. 66), quando explicita a relação entre formação individual e cultural: “O psiquismo constituído nas relações sociais se forma por internalizar aquilo que antes fora o signo ou função do outro, inaugurando assim suas próprias funções e seu universo simbólico como um patrimônio cultural”.
Em suma, na abordagem histórico-cultural o desenvolvimento é um processo central na explicação da formação do ser humano, um processo que emerge e se desdobra nas relações sociais vividas pelo sujeito e que está necessariamente articulado a uma visão específica da formação das funções superiores. Esse modo de entender o homem reverbera nas práticas investigativas.
Vigotski (1929/2000, 1931/2012, 1934/2014) propõe um método científico diferente do até então colocado em sua época. O autor argumenta que mesmo considerando a multiplicidade de investigações experimentais, todos os métodos psicológicos baseavam-se no princípio de estímulo-resposta que colocava o sujeito frente a uma situação-estímulo para estudar suas reações ou processos. Sobre esse esquema de estrutura metodológica, ele analisa: “o próprio sentido do experimento consiste em provocar artificialmente o fenômeno que se estuda, variar as condições no meio em que transcorrem, modificá-lo de acordo com os fins que se persegue” (VIGOTSKI, 1931/2012, p. 48 – nossa tradução). Para o autor, este tipo de atividade determinaria apenas variáveis quantitativas e registro das formas inferiores de pensamento. Partindo dessa premissa, propôs uma nova orientação metodológica que tomava o desenvolvimento psicológico dos homens não como uma estrutura puramente psicológica, mas como parte do desenvolvimento histórico e social de nossa espécie. Estabeleceu, então, novas diretrizes metodológicas baseada numa matriz teórica original sobre a gênese social das funções psíquicas superiores.
Nesse sentido, a partir daqueles pressupostos marxistas já explicitados, os quais consideram que o homem ao produzir cultura modifica suas formas de existência e modifica a si próprio - “o domínio da natureza e o domínio da conduta estão reciprocamente relacionados, como a transformação da natureza pelo homem implica também a transformação de sua própria natureza” (VIGOTSKI, 1931/2012, p. 94 – nossa tradução) - é que são indicados novos princípios para análise das funções psicológicas superiores. Tal construção metodológica requereria do pesquisador, estudar os fenômenos como processos em movimento e em mudança, retomando, dessa maneira, a questão da historicidade na seguinte perspectiva:
Quando em uma investigação abarca-se o processo de desenvolvimento de um fenômeno em todas as suas fases e mudanças, desde que surge até que desapareça, isso implica explicitar a sua natureza, conhecer sua essência, já que somente em movimento demonstra o corpo que existe. Assim, a investigação histórica da conduta não é algo que complementa ou ajuda o estudo teórico, senão que constitui seu fundamento (VIGOTSKI, 1931/2012, p. 67 – 68 – nossa tradução).
Essa postura revela uma concepção histórica que exigiria a ênfase na análise do processo e não do produto. Isto é, a tarefa do pesquisador estaria em construir uma compreensão histórica dos fenômenos em sua formação, não focalizando estritamente o produto do desenvolvimento, mas o processo de estabelecimento das relações que o constitui.
Nesse contexto, a compreensão que expressamos sobre a pesquisa vai ao encontro do entendimento de Molon (2008) de que as investigações acontecem nas práticas sociais, nas quais o método não só influencia o modo como circunscrevemos o problema de pesquisa, mas, também, orienta o modo como olhamos para o objeto nas relações indissociáveis entre sujeito e realidade. Assim, a pesquisa é concebida:
[...] como uma atividade humana mediada socialmente, ou seja, como uma prática social, política, ética e estética que visa à criação de um novo conhecimento, produzido e apropriado com inventividade e rigor científico, que implica necessariamente a transformação de algo, quer seja nos sujeitos envolvidos direta e indiretamente, quer seja nos objetos de estudo pesquisados (MOLON, 2008, p. 57).
Deste modo, colocamos a pesquisa como instância de produção de práticas que visam a criação de um novo conhecimento elaborado com rigor científico e que implica a transformação quer seja nos sujeitos envolvidos, quer seja no objeto de análise.
A entrevista dialógica como instrumento metodológico
A partir da concepção de pesquisa assumida, o referencial teórico-metodológico orienta o percurso da investigação, desse modo, compreendemos que os estudos que abarcam a abordagem histórico-cultural “não podem ser percebidos como um encontro de psiques individuais, mas como uma relação de textos com contextos” (FREITAS, 2002, p. 30). Há de se considerar, além do contexto dos sujeitos, também o lugar social, o horizonte de valores que contextualiza e orienta a compreensão do pesquisador, pois “a leitura que [o pesquisador] faz do outro, e dos acontecimentos que o cercam, está impregnada do lugar de onde fala e orientada pela perspectiva teórica que conduz a pesquisa” (FREITAS, 2002, p. 30).
Dentre as aproximações dos desenvolvimentos teóricos de Vigotski e Bakhtin, considerando suas singularidades, encontramos o papel do pesquisador como parte do próprio evento da pesquisa, uma vez que pesquisador e pesquisado(s) estão em interação. Vigotski (2007) diz que o aprendizado humano se trata de um processo através do qual o indivíduo penetra na vida intelectual dos que o cercam, ou seja, a construção de conhecimento ocorre em situações de inter-relação, como é o caso das pesquisas realizadas em ciências humanas. Nessa perspectiva, o conhecimento, fruto da pesquisa, é construído de forma colaborativa e compartilhada.
Para Bakhtin (2006), o pesquisador compreende o enunciado do sujeito da pesquisa como uma unidade da comunicação discursiva, o que requer uma compreensão responsiva, que inclui o juízo de valor e é sempre de índole dialógica.
A compreensão dos enunciados integrais e das relações dialógicas entre eles é de índole inevitavelmente dialógica (inclusive a compreensão do pesquisador de ciências humanas); o entendedor (inclusive o pesquisador) se torna participante do diálogo ainda que seja em um nível especial (em função da tendência da interpretação e da pesquisa). [...] Um observador não tem posição fora do mundo observado, sua observação integra como componente o objeto observado (BAKHTIN, 2006, p. 332).
Com essas referências, Freitas (2002) concebe a entrevista – enquanto instrumento metodológico, na abordagem histórico-cultural – como produção de linguagem, sendo assim, dialógica, geradora de sentidos e com marcas dos lugares sociais ocupados pelo entrevistador e pelo(s) entrevistado(s) e do contexto social e histórico concretos no qual se realiza.
Ela [a entrevista] não se reduz a uma troca de perguntas e respostas previamente preparadas, mas é concebida como uma produção de linguagem, portanto, dialógica. Os sentidos são criados na interlocução e dependem da situação experienciada, dos horizontes espaciais ocupados pelo pesquisador e pelo entrevistado. As enunciações acontecidas dependem da situação concreta em que se realizam, da relação que se estabelece entre os interlocutores, depende de com quem se fala. Na entrevista é o sujeito que se expressa, mas sua voz carrega o tom de outras vozes, refletindo a realidade de seu grupo, gênero, etnia, classe, momento histórico e social (FREITAS, 2002, p. 29).
A entrevista, nesse sentido, é denominada por Freitas (2002 e 2007) de entrevista dialógica, com aporte principal na dialogia de Bakhtin, na qual, em interação verbal, pesquisador e entrevistado buscam a mútua compreensão. A compreensão é explicada por Bakhtin, no texto “Metodologia das Ciências Humanas”, como uma construção em dado contexto e, embora a compreensão efetiva constitua-se em um processo único, é fruto de atos particulares e complexos:
1) A percepção psicofisiológica do signo físico (palavra, cor, forma espacial). 2) Seu reconhecimento (como conhecido ou desconhecido). A compreensão de seu significado reprodutível (geral) na língua. 3) A compreensão de seu significado em dado contexto (mais próximo e mais distante). 4) A compreensão ativo dialógica (discussão-concordância). A inserção no contexto dialógico. O elemento valorativo na compreensão e seu grau de profundidade e de universalidade (BAKHTIN, 2006, p. 398 – grifo do autor).
A entrevista dialógica, tal como concebida por Freitas, não possui perguntas prontas, ainda que conte com a preparação prévia do pesquisador (CASTRO, 2010). Entretanto, dentre as dificuldades de realização de entrevistas (da aproximação com os sujeitos à criação de um ambiente de empatia e colaboração), acreditamos que a ausência de um conjunto de perguntas se constitua em um desafio para o pesquisador, ainda mais quando este se vê em uma única oportunidade de dialogar com aquele sujeito, da qual se originará os dados de sua pesquisa.
Nesse sentido, compreendemos que a potência da entrevista dialógica pode ser otimizada com a preparação do pesquisador nos aspectos elencados: a) conhecimento prévio do contexto de trabalho e atuação do entrevistado, das condições materiais às especificidades do trabalho; b) objetivos de pesquisa definidos; c) amplo conhecimento do tema da pesquisa (promovido pela revisão da literatura e contextualização ampla do tema de pesquisa); d) apropriação do referencial teórico-metodológico da pesquisa; e) elaboração de um conjunto de perguntas abertas (não um roteiro de entrevista), flexível e adaptável, com amplo espaço para a expressão dos sujeitos e para as interrogativas e questionamentos que possam surgir no decorrer da entrevista.
Em todos os momentos de construção da pesquisa, também na preparação e realização das entrevistas, o pesquisador deve ser amparado pelo referencial teórico-metodológico, pelas contribuições da revisão da literatura e por sua intenção de pesquisa, seus objetivos, para a orientação do diálogo e na busca da compreensão dos sentidos construídos pelos sujeitos, tendo em perspectiva que “não há trabalho de campo que não vise a um encontro com um outro, que não busque um interlocutor” (AMORIM, 2004, p.16). Quanto maior o repertório teórico (consideramos aqui conceitos da abordagem histórico-cultural e da perspectiva enunciativo-discursiva) e cultural do pesquisador acerca de seu tema e do universo discursivo dos sujeitos, maior a possibilidade de ele estabelecer relações e ampliar o diálogo com esses sujeitos.
No diálogo instituído, o pesquisador busca se aproximar do movimento, do processo no qual os sentidos vão sendo produzidos e transformados, significados e ressignificados, em uma interação social. São os movimentos dos participantes nas relações que estes estabelecem e as condições de produção dessas relações que podem promover novas possibilidades de desenvolvimento para os sujeitos (ZANELLA et al., 2007).
Desse modo, considerando as possibilidades do movimento de compreensão e ainda que em todo ato de compreensão “desenvolve-se uma luta cujo resultado é a mudança mútua e o enriquecimento” (BAKHTIN, 2006, p. 378), é possível que ao nos voltarmos para as análises dos discursos produzidos na entrevista dialógica, outras leituras se façam necessárias e até mesmo os objetivos sejam revisitados, reelaborados, uma vez que o objeto não é apreendido abstratamente. Segundo Bakhtin (2010, p. 86),
O objeto está amarrado e penetrado por ideias gerais, por pontos de vista, por apreciações de outros e por entonações. Orientado para o seu objeto, o discurso penetra nesse meio dialogicamente perturbado e tenso de discursos de outrem, de julgamentos e de entonações.
Desta tarefa, sobrepuja-se como desafio, no que tange às entrevistas, o cuidado com suas transcrições e as escolhas de excertos a serem analisados. A clareza das posições metodológicas é urgente nesta etapa na pesquisa, pois será por meio de rigorosa articulação entre teoria e empiria em torno de um problema de pesquisa que se legitima e reafirma a confiabilidade à investigação desta natureza. Para tal, esta tarefa exige que se encare as referências teórico-metodológicas como lentes mais aguçadas e capazes de dirigir nosso olhar, atribuindo sentido às palavras, descrevendo práticas, captando sinais, enfim, escolhendo momentos de interações dos sujeitos que expressem esse processo de construção de saberes que ocorre em seu próprio movimento de elaboração.
As diretrizes do método para a construção e análise de dados
Vigotski não dissocia método e teoria, de tal forma que os estudos metodológicos não estão presentes apenas em textos que revelam no próprio título a discussão sobre o tema, mas também, em textos de explanação teórica. Desse modo, tal como seus seguidores apontam (como, por exemplo, PINO, 2005; ZANELLA et al., 2007; MOLON, 2008; MARTINS, 2013), nas obras do autor, teoria e método possuem relação inextricável e a construção do método amplia-se na reflexão teórica.
O método, desta forma, é abordado por Vigotski (1931/2012, p. 47 – nossa tradução) como constitutivo e indispensável de todo o processo de produção de conhecimento: “em qualquer nova área a investigação começa forçosamente pela busca e elaboração do método”. Pesquisar novos fenômenos conduziria inevitavelmente, na visão do autor, a novas metodologias, demonstrando uma relação bastante estreita entre método e objeto de estudo. Por isto, mesmo que se articulem de forma paralela, elaboração de problema e método se desenvolvem simultaneamente, convertendo o método como princípio e produto, ferramenta e resultado de investigação, enfim, como parte integrante da pesquisa, conforme o próprio autor explicita:
Existem dois procedimentos metodológicos distintos para as investigações psicológicas concretas. Em um deles a metodologia de investigação se expõe separadamente da própria investigação. Em outro, está presente em toda a investigação. Poderíamos citar vários exemplos de um e de outro. Alguns animais – os de corpo mole – levam seu esqueleto externamente assim como o caracol leva a concha; outros têm seu esqueleto dentro, internamente. Esse segundo tipo de estrutura nos parece superior não somente para os animais como também para as monografias psicológicas e por isso a escolhemos (VIGOTSKI, 1931/2012, p. 28 – nossa tradução).
Tal entendimento nos indica, assim como Molon (2008) pontua, que o método pode ter seus critérios estabelecidos durante o próprio processo de investigação. O método articula, de modo explícito ou implícito, os percursos de construção da pesquisa que vão desde a escolha de objeto até as possibilidades de análise e as reflexões possíveis.
Para tal interpretação, é imposto o desafio de se buscar as relações entre os fragmentos que compõem o todo, privilegiando movimentos e transições que caracterizem uma compreensão integral do fenômeno:
[...] o próprio sentido da análise deve ser modificado em sua raiz. Sua tarefa principal não é decompor o todo psicológico em partes e inclusive em fragmentos, mas sim destacar do conjunto psicológico integral determinados traços e momentos que conservem a primazia do todo (VIGOTSKI, 1931/2012, p. 99-100 – nossa tradução).
Assim, o foco nas relações é de fundamental importância, pois a partir da concepção de história assumida na abordagem histórico-cultural, o processo de análise dos fenômenos focaliza “[...] conhecer os movimentos do sujeito nas relações que este estabelece e, ao mesmo tempo, as condições dessas mesmas relações que possibilitam a emergência de algumas possibilidades para os sujeitos em relação. Afirma-se assim a mútua constituição de sujeito e realidade” (ZANELLA et al., 2007, p. 28).
O método é entendido, portanto, em termos genético, reflexivo, dialético e histórico, buscando compreender sua gênese, investigando-o em seus processos de mudança. Sobre essa interface, Molon (2008, p. 60) define:
[...] o método é simultâneo ao conhecimento e as suas regras não são arbitrárias, mas sim integradas aos fenômenos psicológicos; por conseguinte, ocorre a desfetichização do método, já que o conhecimento não está contido nem no fenômeno investigado nem no instrumento metodológico; tampouco é algo transcendental ou mera descrição, é algo concreto que se descobre no processo de investigação, na mediação entre teoria e método, sujeito e objeto, sujeitos e realidade.
E esta rigorosa articulação entre teoria e empiria em torno de um problema de pesquisa é o que legitima e reafirma a confiabilidade à investigação desta natureza. Pino (2005) destaca que, para Vigotski, a pesquisa precisa extrapolar a descrição, sem perder sua riqueza, e caminhar em direção à explicação que conserve a concretude dos fenômenos estudados, devendo existir coerência entre o método adotado e a posição teórica do pesquisador. Na mesma direção, Freitas (2007) destaca que, para Vigotski, a pesquisa precisa extrapolar a descrição, sem perder sua riqueza e caminhar em direção à explicação que conserve a concretude dos fenômenos estudados. Assim:
fazer pesquisa não consiste simplesmente em descrever a realidade mas em explicá-la, isto é, na busca de aprender os sentidos construídos pelos sujeitos, importa a compreensão das forças fundamentais que os constituíram, de seus determinantes. Portanto, a pesquisa constitui-se como um processo construtivo/interpretativo, no qual o conhecimento é uma construção do pesquisador (FREITAS, 2007, p. 5-6).
Ainda sobre as diretrizes do método em termos de construção de análises, destacamos e assumimos dois princípios elencados por Vigotski (1931/2012).
O primeiro se refere à defesa de uma análise do processo em oposição à análise do objeto. Para o autor, a ideia de processo é equivalente à ideia de gênese histórica do fato pesquisado e a principal tarefa do pesquisador estaria em apresentar a interpretação do fenômeno que parta do processo aos seus momentos isolados e não do objeto às suas partes, entendendo-o como um processo em movimento e convertendo o objeto em processo: “[...] se no lugar de analisar o objeto, analisássemos o processo, nossa principal missão seria, como é natural, a de restabelecer geneticamente todos os momentos de desenvolvimento do dito processo” (VIGOTSKI, 1931/2012, p. 101 – nossa tradução).
Esse direcionamento metodológico, na visão de Pino (2005) e Zanella et al. (2007), inaugura na psicologia uma visão dinâmica e histórica do psiquismo e do sujeito que busca na gênese do fato sua natureza e significação. O fenômeno, nessa perspectiva, é estudado na emergência de seu próprio desenvolvimento histórico, sendo compreendido não como algo é, mas como algo que foi e está sendo: como um processo.
O segundo princípio diz respeito à análise explicativa e não meramente descritiva. Para o autor, a verdadeira missão da análise científica é evidenciar as relações e nexos dinâmico-causais que constituem o fenômeno e, para tal, são necessárias explicações científicas que alcancem sua dinâmica histórica ou essência e não somente descrições do ponto de vista concreto ou aparente. Sobre essa assertiva, Vigotski (1931, 2012, p. 103 – nossa tradução) argumenta que: “A análise fenomenológica ou descritiva toma o fenômeno tal como é externamente e supõe com toda ingenuidade que o aspecto exterior ou a aparência do objeto coincide com o nexo real, dinâmico-causal que constitui sua base”.
Assim, seu interesse está, pelo contrário, num modo de analisar que ultrapasse os aspectos imediatamente disponíveis e permita entender o objeto de estudo em sua historicidade de relações que o constituiu (PINO, 2005; ZANELLA et al., 2007).
De forma bastante sumária, como Pino (2005) conclui sobre as posturas metodológicas evidenciadas, podemos dizer que a abordagem histórico-cultural implica o estudo de processos orientado por uma análise histórico-genética, dialética e interpretativa.
Desta maneira, assumir os pressupostos dessa abordagem pode oferecer suporte a uma metodologia que permita não só evidenciar as características desse processo, mas também, trabalhar e intervir nele. A partir daquelas diretrizes, o pesquisador pode justificar a escolha, por exemplo, de episódios de análise que comporão em seu percurso metodológico as explicações relacionadas à construção e análise dos dados.
Tendo em vista as compreensões acima tecidas, podemos por meio da entrevista dialógica voltar nossa atenção às possibilidades de interpretação, dentre outros aspectos, do que diz o sujeito, do contexto social e ideológico de sua fala, a quem se endereça, de onde (posição e papeis sociais) esse sujeito fala etc. Defendemos tal assertiva, com base nas contribuições do campo dos estudos da linguagem, em diálogo com Bakhtin (2006, 2010) e Bakhtin (Volochínov) (2014).
Entendendo a linguagem como viva e carregada dos aspectos sociais de onde se insere, Bakhtin (Volochínov) (2014) atribui à palavra a função de signo ideológico que assume o lugar de sua significação nas interações verbais. A nosso ver, este entendimento redimensiona as possibilidades de interpretação das vozes dos outros presentes na fala do sujeito e a ideologia presente em seu discurso.
Segundo Stella (2005), no pensamento bakhtiniano, a palavra é considerada um elemento concreto de feitura ideológica, ou seja, ao acumular as entoações do diálogo vivo com os valores sociais, torna-se um signo ideológico. Está relacionada à vida, à realidade, a sua historicidade como parte de processo de interação entre um falante e um interlocutor, também, concentra em si as entoações do falante, as quais são socialmente compartilhadas pelo interlocutor:
[...] o falante, ao dar vida à palavra com sua entoação, dialoga diretamente com os valores da sociedade, expressando seu ponto de vista em relação a esses valores. São esses valores que devem ser entendidos, apreendidos e confirmados ou não pelo interlocutor. A palavra dita, expressa, enunciada constitui-se como produto ideológico, resultado de um processo de interação na realidade viva (STELLA, 2005, p. 178).
Bakhtin (Volochínov) (2014) concebe a atividade mental organizada pela expressão-enunciação que é produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados e determinada pela situação social mais imediata e, também, pelo contexto histórico-cultural mais amplo: “é preciso situar os sujeitos – emissor e receptor do som – bem como o próprio som, no meio social” (BAKHTIN (VOLOCHÍNOV), 2014, p. 72).
Ao considerar o signo como materialização da comunicação social, é no próprio processo de interlocução verbal que está o lugar da significação. Em outros termos a significação só pertence à palavra no espaço da interlocução, realizando-se, portanto, no processo de interação ativa e responsiva.
A significação não está na palavra nem na alma do falante, assim como também, não está na alma do interlocutor. Ela é o efeito da interação do locutor e do receptor produzido através do material de um determinado complexo sonoro [...] Só a corrente da comunicação verbal fornece à palavra a luz da sua significação (BAKHTIN (VOLOCHÍNOV), 2014, p. 137).
Assim, na esfera dialógica, a palavra atua como uma espécie de ponte entre o locutor e o interlocutor, tornando-se o lugar comum entre os dois e como fonte da materialização dos signos ideológicos.
Na análise enunciativo-discursiva, compreende-se que “todo enunciado é um elo na cadeia da comunicação discursiva” (BAKHTIN, 2006, p. 289) e constituído a partir de outros enunciados, é uma tomada de posição em relação a outros discursos, uma resposta. Fiorin (2011) elucida que, nessa perspectiva, todo o discurso é “constitutivamente heterogêneo”, ou seja, aquele que enuncia considera o discurso do outro, que está presente no seu próprio discurso, é a propriedade do dialogismo constitutivo de todo o discurso:
a palavra do outro é condição necessária para a existência de qualquer discurso, sob um discurso há outro discurso. Essas duas vozes não precisam estar marcadas no fio do discurso, elas são apreendidas pelo nosso conhecimento dos diferentes discursos que circulam numa dada época numa determinada formação social. (FIORIN, 2011, p. 40 – grifo nosso).
Neste contexto, ao realizarmos uma análise com fundamentos no constructo teórico do Círculo de Bakhtin, segundo Fiorin (2011), é preciso compreender que a historicidade é inerente ao texto, o que significa que a história não é um dado de fora do discurso, provindo de referências a acontecimentos de determinada época ou às situações em que os discursos foram produzidos, mas sim que a história é constitutiva de todo e qualquer discurso. “A historicidade dos enunciados é captada no próprio movimento linguístico de sua constituição. É na percepção das relações com o discurso do outro que se compreende a História que perpassa o discurso” (FIORIN, 2011, p. 40).
Assim, a análise é uma construção do pesquisador, a partir de sua compreensão do discurso do outro, do universo discursivo em que o outro vive e atua, e de seu próprio repertório discursivo, é nesse embate que os sentidos são construídos, significados e ressignificados.
Ante o exposto, podemos considerar: i) a realidade fundamental da língua como constituída pelo fenômeno social da interação verbal; ii) a produção de sentidos vai se construindo num jogo de confrontação permanente, de tal forma que locutor e ouvinte não estão organizados em uma única voz harmoniosa; e iii) na medida em que o discurso é constituído por várias vozes que representam perspectivas ideológicas socialmente definidas, todo o diálogo se faz face ao confronto.
Em suma, a atenção a esses elementos, do procedimento teórico-metodológico da abordagem histórico-cultural e da análise enunciativo-discursiva, participa no processo de escolha dos excertos de diálogos – oriundos da entrevista dialógica, por exemplo - e de análise, possibilitando ao pesquisador da área da Educação a apreensão dos sentidos atribuídos pelos entrevistados às suas experiências pessoais e profissionais, e ao objeto em discussão.
Algumas Considerações
À guisa de algumas considerações, partimos das palavras de Amorin (2004, p. 11): “Toda pesquisa só tem um começo depois do fim”, com vistas a refletir sobre o ato de pesquisar. Nossa intencionalidade com essa frase é reafirmar a concepção de que pesquisar não é uma atividade com fim em si mesma.
Mesmo considerando que uma investigação tem seu começo quando tentamos construir possíveis explicações para uma determinada pergunta, acreditamos que o fim de uma pesquisa não termina no ponto final da última página de um trabalho. Nesse sentido, defendemos que enquanto prática social, é em diálogo com um campo de conhecimento que a pesquisa se constrói e se desdobrará como processo em constante movimento ao ser retomada, corroborada ou questionada por outros pesquisadores.
Na pesquisa em educação desenvolvida na abordagem histórico-cultural, temos como pressuposto que o outro é fundante na constituição dos sujeitos, uma vez que a constituição do indivíduo ocorre na e pela vivência da cultura, produzida pela atividade social e histórica dos grupos humanos. Neste esteio, a entrevista dialógica, como instrumento metodológico amparado nos princípios da dialogia, considerando que no meio tenso das relações sociais, em contextos históricos e culturais determinados, onde compartilham-se significações e sentidos são produzidos, o sujeito se elabora discursivamente, apresenta-se como campo profícuo de elaboração e reelaboração de sentidos sobre o objeto em discussão.
As contribuições da abordagem histórico-cultural, no que se refere àqueles princípios destacados nas diretrizes do método, bem como às possibilidades de construção de dados por meio da entrevista dialógica, apresentam-se como possibilidade de apreensão do fenômeno em movimento. Essa concepção de pesquisa, que preza a análise do processo em detrimento do produto, revela sua riqueza teórico-metodológica justamente ao ampliar as possibilidades de se formular novas questões sobre a realidade e distanciando a atividade de pesquisa com um fim em si mesma.
Em outras palavras, a análise processual assumida pela perspectiva aqui defendida nos mostra que nossas investigações são um diálogo com e para um determinado campo de conhecimento, para o qual pretendemos construir nossas investigações, entendendo que “toda pesquisa é, pois, uma tomada de posição na tensa arena que podemos nomear como circuito da ciência” (ZANELLA, 2014, p. 183).
Referências
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[1] É importante destacar que o termo Histórico-cultural aqui conceituado a partir das contribuições de Vigotski e colaboradores é distinto de terminologias similares e bastante empregadas em outras subáreas do campo educacional, como por exemplo, a terminologia História Cultural (CHARTIER, 1990) comumente empregada na História da Educação. Acreditamos que marcar essa diferenciação se justifique dada a polissemia teórica e metodológica da palavra cultural no campo de estudos.
[2] O termo fenômeno, utilizado na obra vigotskiana, refere-se ao objeto de estudo que está em análise. Nesse sentido, o posicionamento metodológico da abordagem histórico-cultural, na perspectiva de Vigotski, se difere da matriz fenomenológica. A fenomenologia é uma metodologia bastante presente no campo educacional e conceituada a partir das obras de Edmund Husserl e Maurice Merleau-Ponty. A fenomenologia quer conhecer o que identifica o objeto como ser, não quer conhecer o fenômeno, mas sua essência. Mais que isto, quer conhecer a identidade do fenômeno na sua multiplicidade de manifestações. Nesse sentido, aparece-nos um de seus principais temas, o ato de descrever: “Trata-se de descrever, não de explicar, nem de analisar” (MERLEAU-PONTY, 1971, p. 3).
[3] Cf. MINAYO, 2016.
[4] Ressaltamos que o termo dialógico circunstanciado na abordagem histórico-cultural e conceituado principalmente a partir das contribuições de Freitas (2002, 2007), com aporte em Bakhtin, pode ser encontrado sob outras perspectivas teóricas no campo educacional. Um exemplo bastante utilizado por estudiosos do campo é o conceito de dialogia desenvolvido por Paulo Freire (1980), ao tratar da educação como prática libertadora, em oposição à educação bancária: “A educação é comunicação, é diálogo, na medida em que não é a transferência de saber, mas um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados” (FREIRE, 1980, p. 69).