Refletindo sobre a formação inicial de professores de Educação Física: percepções docentes1

Reflecting on initial teacher education in Brazil: Perceptions of experienced teachers

 

Wilson Alviano Alviano Jr

Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG

wilson.alviano@ufjf.br - https://orcid.org/0000-0002-5599-9865

 

Recebido em 24 de agosto de 2020

Aprovado em 10 de janeiro de 2023

Publicado em 12 de abril de 2023                                                           

 

RESUMO

A presente pesquisa teve como proposta analisar aspectos da formação inicial de professores de Educação Física, utilizando como ponto de partida as representações de docentes do componente que atuam na Rede Municipal de Educação Básica das cidades de Santo André, São Bernardo do Campo e Ribeirão Pires, municípios da região pertencente à Grande São Paulo conhecida como Grande ABC, ou ABC paulista, e egressos das Instituições de Ensino Superior ali situadas. A escolha da região se deu em função da diversidade das instituições ali presentes que oferecem o curso. O estudo objetivou compreender a elaboração das significações docentes construídas nos cursos de formação inicial de professores de Educação Física acerca da escola pública e da docência. Foram gravadas em áudio entrevistas semi-estruturadas com docentes egressos dos cursos das diferentes IES pertencentes à região, e que atuem como docentes de escolas das redes públicas municipais. Pudemos, ao longo da pesquisa, verificar de que forma os currículos de diferentes instituições de uma mesma região compreendem a escola pública e a docência do componente Educação Física na formação inicial. Embora o território de formação e de atuação seja o mesmo, os docentes identificam um grande distanciamento entre os conhecimentos priorizados no curso de origem e aqueles requisitados pelo cotidiano escolar. Chamam a atenção para as ausências de temáticas relevantes para atuação na escola contemporânea e denunciam o privilégio concedido a saberes por eles entendidos como secundários ou até mesmo vistos como desnecessários na prática pedagógica. As análises realizadas a partir do material coletado procuraram compreender quais discursos são legitimados e quais estão interditados nos currículos aos quais os sujeitos da pesquisa foram submetidos. As considerações objetivaram trazer um deslocamento para discutir alternativas de mudanças e de reinterpretação do currículo de formação de professores de Educação Física, estabelecendo assim sentidos que caminhem ao encontro de perspectivas sintonizadas com o cotidiano escolar, suas necessidades e sua realidade.

Palavras-chave: Formação de Professores; Educação Física; Escola Pública

 

ABSTRACT

This research had as its proposition to analyze aspects of the initial Physical Education teacher education, having as its starting point the representations of working PE teachers in the Municipal Public System of primary and secondary education at Santo André, São Bernardo do Campo and Ribeirão Pires, cities that are located in the São Paulo belonging region known as "Great ABC" or "ABC paulista", and also teachers who have majored at High Education Institutions located there. This region was selected due to the diversity of institutions located there which offer the program. The purpose of this study was to understand the elaboration of the teacher’s significations built in the initial teaching degree programs in Physical Education of both public school and teaching. Semi-structured interviews were recorded with teachers who had majored in different HEI's in the region, and who work as a teacher in the Municipal Public School System. Throughout the research, it was verifiable how the curricula of different institutions in the same region understand public school and the teaching of the component Physical Education in the initial teaching degree programs. Although the territory of education and acting is the same, teachers identify a great distance between the knowledge prioritized in the origin program and those required by the school daily life. They draw attention to the lack of themes relevant to working in contemporary school and report the privilege granted to knowledge that is understood by them as secondary or even seen as unnecessary in pedagogical practice. The analysis held from the collected material sought to understand which discourses are legitimized and which are interdicted in the curricula to which the research subjects were submitted. The final considerations aimed to bring a shift in discussing alternatives to changing and reinterpreting the curriculum for the Physical Education teacher education, thus establishing meanings that respond the perspectives in line with the school daily life, its needs and its reality.

Keywords: Teaching degree; Physical Education; Public School

 

 

INTRODUÇÃO(

            Estudos recentes (ALVIANO, 2011; NUNES, 2011; HUNGER et Al.) demonstram que a elaboração de currículos para formação de professores em Educação Física nos cursos superiores de Educação Física privados no Brasil tem apresentado significativos limites em relação a atuação docente dos sujeitos  envolvidos. Observamos, em especial, que a participação coletiva ou a possibilidade dela ocorrer na elaboração do currículo, não foram suficientes para garantir uma elaboração curricular diferenciada. Ao contrário, constata-se nesses estudos uma grande aproximação, tanto da grade curricular quanto do ementário das disciplinas, com outros cursos de formação de professores de Educação Física cuja construção do currículo deu-se de maneira centralizada.

As pesquisas citadas revelam que o currículo a ser elaborado tem como dadas determinadas subáreas de conhecimento (Biológicas, Desportivas e Pedagógicas). Tendo esse ponto como dado, não existe uma preocupação em realizar um diagnóstico sobre a realidade e as demandas das Escolas de Educação Básica em relação à Educação Física. A elaboração curricular torna-se, assim, uma simples adequação das disciplinas para a carga horária e as orientações legais. Podemos entender como uma construção curricular meramente burocrática, para atender a legislação, não levando em conta a Escola real

Se entendemos que, além do significado do que seja ensinar Educação Física na escola, o currículo da formação de professores também veicula representações de classe, gênero, cultura etc., que terminam por influenciar decisivamente a constituição da subjetividade dos licenciados, entenderemos que é necessário buscar outros elementos além dos presentes nos cursos de formação de professores em Educação Física para elaborar o currículo. Desta forma, concordamos com Silva, quando aponta que “O currículo nos ensina posições, gestos, formas de se dirigir às outras pessoas (às autoridades, ao outro sexo, as outras raças), movimentos, que nos fixam como indivíduos pertencentes a grupos sociais específicos” (SILVA, 2008, p. 203).

Nos estudos que verificamos, observou-se que o privilégio concedido às disciplinas biológicas forneceu os parâmetros para a atuação docente por meio da normalização dos sujeitos, negando a existência da multiplicidade cultural. Desta forma, os egressos acessam uma representação monolítica sobre o ensino do componente na escola, perante o qual a diversidade da cultura corporal é veementemente desconsiderada em favor da tradição presente na maioria dos currículos, que mantêm em suas grades a hegemonia de disciplinas que fixam os códigos implícitos das manifestações esportivas Euro-americanas, brancas e heterossexuais, nas brincadeiras com finalidades pedagógicas ou na instrumentalização das práticas com vistas ao desenvolvimento motor.

Entendemos que os mecanismos que envolvem o trabalho e submetem os docentes nas IES privadas acabam por destituí-los “não só de consciência social, mas também de sensibilidade social” (GIROUX; MCLAREN, 2005, p. 127). Em segundo lugar, apontamos que, o que deveria ser um trabalho de construção curricular coletivo tornou-se uma arena de disputas na qual os docentes procuraram manter seu espaço de atuação no currículo em gestação. Diante disso, pontuamos que, se o reconhecimento da dignidade humana for substituído pela manutenção de posicionamentos pessoais no Projeto Pedagógico, dificilmente uma construção curricular poderá operar mudanças profundas, quanto mais adjetivar-se democrática.

Ao defendermos a necessidade de desnaturalizar e estranhar o currículo de formação de professores de Educação Física, compreendemos que a ação democrática passa justamente pelo redimensionamento das representações cristalizadas. Afinal, havendo um posicionamento inicial monolítico para elaboração curricular, parece clara sua culminância em uma formação igualmente monolítica.

O espaço de formação de professores, conforme Giroux (1997), constitui uma “nova esfera pública”, justamente pela relação existente entre a docência e a sociedade. Isso significa ultrapassar os limites dos interesses de qualquer IES privada, tornando a formação para a docência um projeto de política cultural, de formação de professores como intelectuais que atuarão em “espaços públicos onde os alunos possam debater, assimilar e adquirir o conhecimento e as habilidades necessárias à luta rumo à concretização de um mundo mais humano e justo” (GIROUX; McLAREN, 2005, p. 140).

Giroux (1997) nos ensina a olhar para os cursos de formação docente com a preocupação de compreender a prática pedagógica como “política de experiência” ou um “campo cultural onde conhecimento, discurso e poder interagem de modo a produzir [...] práticas de regulação específicas” (p. 141-142). Tal premissa aponta a necessidade de conceber a formação de professores como política cultural, algo que deveria estar no horizonte de qualquer construção curricular.

As análises de Giroux reforçam o sentido de currículo como “política cultural”, espaço ativo de construção e circulação de significados sociais. Na ótica do autor, tanto na sociedade como na escola há focos de oposição à construção dos significados associados às relações de poder que produzem a desigualdade e a diferença, que podem ser compreendidos como movimentos de resistência. Os movimentos de resistência representam uma solução encontrada, por exemplo, pelos estudantes para não sucumbirem diante da opressão quando se deparam com didáticas que insistem em negar suas identidades e apresentar, como únicos e verdadeiros, significados que lhes são estranhos. Além disso, ao serem avaliados em função da sua provável ocupação no mercado de trabalho, os estudantes se veem premidos pela produtividade, o que negligencia qualquer expressão de desejo e cultura própria.

Giroux propõe o uso dessa resistência na elaboração de um currículo crítico às crenças e valores dominantes e que funcione como mola propulsora contra a desigualdade social. A existência de mediações e ações nas práticas curriculares favorecem o exercício da crítica às formas de controle e regulação promovidas no interior da escola. O autor sugere, por exemplo, que a crítica seja feita por intermédio da análise histórica, ética e política do conhecimento que está sendo abordado. Giroux, ao afirmar a necessidade de se repensar o papel da escola no âmbito da comunidade, vai buscar apoio no filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas e cria o conceito de “esfera pública democrática” para pensar a escola como um local onde os sujeitos possam debater e questionar os aspectos do cotidiano das relações sociais, inclusive as de produção. Com isso, a escola, num sentido mais abrangente, e a própria prática pedagógica, deverão funcionar como esferas públicas democráticas, transformando-se em locais onde os estudantes e professores tenham a oportunidade de exercer as habilidades democráticas da discussão, participação e questionamento dos pressupostos disseminados na vida social.

Isso significa ultrapassar os limites dos interesses de qualquer indivíduo ou instituição, tornando a docência um projeto de política cultural, considerando professores como intelectuais que atuarão em espaços públicos onde os alunos possam debater, assimilar e adquirir o conhecimento e as habilidades necessárias à luta rumo a concretização de um mundo mais humano e justo (GIROUX; McLAREN, 2012). Giroux (1997) também nos ensina a olhar para as escolas com a preocupação de compreender a prática pedagógica como “política de experiência” ou um “campo cultural onde conhecimento, discurso e poder interagem de modo a produzir [...] práticas de regulação específicas” (p. 141-142).

Sendo assim, um processo de construção curricular democrática deveria ter como premissa o reconhecimento do “outro”, que neste caso parece ter sido esquecido, já que um, dentre tantos outros a se fazer ouvir seria o próprio professor do componente que atua na Educação Básica. Trata-se de um informante privilegiado, alguém que ocupa o lugar para o qual se planeja o percurso formativo. Parece óbvio que essa escuta pode se dar de várias formas, entre elas, a pesquisa com egressos, o convite para grupos focais etc. É interessante observar que, apesar de possuir conhecimentos relevantes ao processo, esse ator tem sido simplesmente afastado do debate como indivíduo real para ser transformado em ideal. Tal modus operandi favorece o surgimento de uma representação de docente da área, descolada da história e descontextualizada dos fatores sociais que envolvem o cotidiano pedagógico do componente. Canada-Phillips (2014) ensina que as reflexões críticas são parte de um processo que demanda tempo, e não ocorrem sem uma base sólida. Desta maneira, seria não apenas desejável, como fundamental que os cursos de formação de professores estabeleçam diálogos com os professores que trabalham na Educação Básica para estruturarem seus currículos.

Ao compreender os professores de Educação Física que atuam na Educação Básica como sujeitos concretos, a agenda de qualquer elaboração curricular deveria apontar para o reconhecimento da posição política e social que dá sentido e anima a docência. Os conhecimentos que possuem acerca do trabalho profissional, os desafios que enfrentam cotidianamente, bem como seus percursos formativos poderiam ser pontos de partida da elaboração dos currículos da licenciatura.

O reconhecimento do outro se baseia em compreender a multiplicidade presente nas vidas dos sujeitos concretos, suas histórias, suas representações e concepções sobre as coisas do mundo, pois somente a partir do diálogo com esse sujeito concreto será possível uma elaboração curricular democrática. É possível elaborar um currículo calcado em uma pedagogia que incorpore concepções distintas, com abertura de espaços para questionamentos, indagações e exposição de suas contradições. É o que pode acontecer de melhor quando se defende o diálogo entre as subjetividades envolvidas.

Nos estudos dos autores citados verificamos que também ficou evidente a carência de uma discussão a respeito da escola, de compreendê-la como o lócus privilegiado de formação e construção de conhecimentos acerca da docência e do objeto de ensino. Se não houver a preocupação em compreender ou posicionar-se com relação à escola, de verificar como os docentes se percebem em sua prática, torna-se difícil delinear o perfil de um professor de Educação Física, já que tal tarefa exige o reconhecimento da instituição para a qual o os docentes em formação estão sendo preparados.

Em pesquisa realizada em uma IES privada, Nunes (2011) reforça a posição de que a elaboração dos currículos de formação de professores em Educação Física simplesmente desconsidera os conhecimentos sobre a atuação na Educação Básica, além de não levarem em conta a instituição Escolar

A análise do material coletado evidencia a constante relação de troca de interesses entre as partes – currículo versus cliente. (...), o currículo pautado predominantemente por disciplinas relacionadas ao campo da Saúde e pelo ensino de técnicas corporais hegemônicas alinha-se aos pressupostos do consumo das práticas corporais. A aprendizagem que ocorre em seu interior, em geral, trata o corpo de forma neutra e asséptica, reforçando um padrão hegemônico. (...) Ao atuar profissionalmente, o egresso tem tudo para fortalecer a concepção aprendida no currículo e isso é feito sob o lema da promoção da saúde e valorização de técnicas corporais hegemônicas, que se ajustam mediante os discursos dos benefícios da prática da atividade física e da qualidade de vida. Isso fica evidente quando se analisam os objetivos da formação propostos. (p. 259)

 

 

Neira e Nunes (2009) advertem que os currículos se esvaziam de sentido enquanto política cultural quando elaborados a partir de competências e técnicas, levando seus egressos à condição de meros reprodutores de conhecimentos acabados.

[...] a distorção ocorre quando, por exemplo, o docente da disciplina que aborda a temática “Recreação” elege como um dos tópicos de ensino a “Recreação Escolar” ou, na disciplina Medidas e Avaliação, o professor sugere alternativas para emprego dos testes físico-motores na escola. (...) Imagine-se o que acontece quando a disciplina que tematiza o esporte (se desenvolvida por alguém afastado da escola) propõe a elaboração de planos de aula ou o professor da área de Lutas faz o mesmo, sem qualquer relação com o que é discutido nas disciplinas pedagógicas. (NEIRA, 2009, p. 130, parênteses do autor)

 

O discurso que o currículo da formação do docente em Educação Física coloca em circulação parece objetivar uma coesão artificial entre áreas e saberes desconexos, e que se mantém apenas pela tradição arraigada, muitas vezes justificada superficialmente. Bracht, Gomes e Almeida (2013) defendem a necessidade de uma virada culturalista na Educação Física, o que significaria abandonar um modelo que requer reivindicações universais de modernidade sólida.(p. 995) Isso implica em compreender que as Escolas não são iguais, e requerem docentes preparados para compreender essas diferenças em seu trabalho. Esta é uma proposta que parte da Escola concreta, real e não de uma idealização do que seja o espaço escolar

Tal situação é apontada também pela investigação de Nunes (2011). Suspeitamos que isso seja comum em cursos de formação inicial em Educação Física na maioria das IES privadas, já que o movimento instaurado a partir da publicação das Diretrizes Curriculares Nacionais da área (BRASIL, 2004) impulsionou a elaboração de currículos híbridos, que tenham uma formação básica comum para Licenciatura e Bacharelado2 como forma de atender aos preceitos legais e, simultaneamente, captar mais estudantes. Apesar de serem recentes e poucos, os estudos sobre os currículos de formação em instituições privadas no Brasil após as novas Diretrizes Curriculares Nacionais, os autores que se debruçaram sobre esta temática apontam para considerações muito aproximadas.

 

 

A PESQUISA3

 

Buscando aprofundar a temática, propomos ampliar o debate pela compreensão da forma como os professores de Educação Física que atuam na rede municipal de Santo André, Ribeirão Pires e de São Bernardo do Campo concebem a escola pública, a docência do componente curricular Educação Física e do papel cursos de formação inicial na área. Pretendeu-se, também, discutir como pensam a própria identidade. Os dados da pesquisa foram obtidos através de entrevistas com 03 grupos focais, constituídos de quatro docentes cada. Os sujeitos da pesquisa são professores da rede de ensino destes municípios e acumulam a condição de egressos de IES situadas na região conhecida como Grande ABCD4. A escolha do lócus da pesquisa se deu em função da grande oferta de cursos de licenciatura em Educação Física por Instituições de Ensino Superior privadas, porém com características distintas, localizadas relativamente próximas entre si.

Importante destacar que houve 03 encontros com cada grupo focal. O primeiro encontro permitia a aproximação com o tema; o segundo encontro teve como base as entrevistas realizadas no encontro anterior. Assim, as questões foram levantadas para melhor compreensão dos posicionamentos e das respostas que foram compreendidas como vagas ou de difícil interpretação pelos pesquisadores. O terceiro encontro serviu para que fossem ampliadas as respostas e, em casos de contradições entre os participantes ou contradições entre as respostas dadas nos dois encontros iniciais, houvesse um esclarecimento. As respostas que não se mostraram suficientemente claras ou que, mesmo após 03 encontros se mostraram frágeis ou vagas foram descartadas. Os casos de contradições foram analisados quando necessário.

Os municípios foram escolhidos por terem sido os únicos da região do ABC paulista que realizaram concursos para admissão de docentes em Educação Física na última década. Os municípios de São Bernardo do Campo e Santo André realizaram concursos em 2011 e o Município de Ribeirão Pires em 2015. Os sujeitos foram escolhidos a partir de sua formação, que deveria ser posterior à 2005. Esse filtro se deve a uma mudança na legislação brasileira que alterou a formação em Educação Física, dividindo a área em Licenciatura e Bacharelado, reduzindo a carga horária e o tempo de formação para professores em Educação Física para 03 anos e uma carga de 2800 horas de curso, no mínimo. Desta forma, o objetivo foi pesquisarmos professores formados nessa legislação. Outro fator que determinou nossas escolhas foi buscar nos grupos focais egressos de cursos superiores distintos. Na soma dos três grupos conseguimos ter egressos de 04 instituições de Ensino Superior com características diferentes: Uma instituição confessional, mantida por uma Igreja, outra Instituição mantida por capital aberto, a terceira como autarquia e a última uma Faculdade isolada, ou seja, uma instituição que reúne alguns cursos superiores e não se caracteriza como Universidade ou Centro Universitário. De acordo com Gatti (2005) a utilização de grupos focais remonta às pesquisas de marketing nos anos 1920; aos estudos das reações dos indivíduos em relação às propagandas de guerra nos anos 1950 e de pesquisas na área da comunicação nos anos 1970 e 1980. Trata-se de uma técnica que possibilita entender, a partir das discussões realizadas no grupo, conceitos, atitudes e reações de um modo específico que não seria possível captar através de outras técnicas como entrevista, questionário ou observação. O trabalho com o grupo focal permite a compreensão de contraposições, contradições, diferenças e divergências.

A entrevista foi elaborada com grupos objetivando gerar discussões e debates a partir dos questionamentos realizados. As questões que orientaram a entrevista realizada foram sobre a concepção de Escola Pública, a concepção de Educação Física na Escola Pública e a eficiência na formação inicial para a atuação com o componente curricular na Escola Pública. Por tratar-se de questões norteadoras, foi possível avançar em outros pontos que complementaram tais questões.

Os encontros foram moderados pelo pesquisador, que também fez o registro das entrevistas em áudio e vídeo, para evitar dúvidas sobre a autoria da fala no momento da transcrição. Fomentou-se, desta forma, a discussão em torno dos temas: escola pública; ensino de Educação Física na Educação Básica e formação de professores de Educação Física. O material produzido foi transcrito e confrontado com as contribuições teóricas dos Estudos Culturais em sua relação com o campo educacional, mais especificamente com o entendimento do currículo como um artefato cultural, que é construído, mas que também é um campo de disputas, um espaço de lutas por significados e construção de identidades. Também foi considerado o conceito já destacado do entendimento da Escola como uma esfera pública para as análises realizadas.

Nelson, Treichler e Grossberg (2008) definem os Estudos Culturais como um termo de conveniência para uma gama bastante dispersa de posições teóricas e políticas. Sendo profundamente antidisciplinares5, pode-se dizer que partilham o compromisso de examinar práticas culturais do ponto de vista de seu envolvimento com, e no interior de relações de poder que possivelmente, envolvem as conexões entre os cursos de formação de professores e a docência na Educação Básica.

Este entendimento torna o referencial dos Estudos Culturais amplo, possibilitando interpretar as relações de poder que influenciam a produção do conhecimento, inclusive no âmbito do ambiente acadêmico, permitindo a discussão sobre a forma como estruturam e moldam o fazer docente. Compreender quais discursos são legitimados e quais estão interditados pode gerar o deslocamento necessário para discutirmos alternativas de resistência, de mudanças e de reinterpretação do currículo de formação de professores de Educação Física, objetivando, assim, sentidos que caminhem ao encontro de perspectivas sintonizadas com justiça e igualdade social.

 

A PERSPECTIVA DOCENTE: DISCURSOS E ANÁLISES

A análise das falas docentes nos permitiu enxergar diversas formas de lutas sociais. Deparamo-nos com a “urgência em discutir e produzir práticas curriculares contra hegemônicas às dimensões utilitárias, instrumentais e econômicas da educação neoliberal” (CORAZZA, 2002, p. 107), o que nos leva a procurar desvelar, a partir das interpretações, quais conflitos estiveram presentes nas diversas vozes ouvidas e analisadas, sempre “historicizando, politizando e culturalizando” (p. 107).

Importante destacar o papel do pesquisador na interpretação das entrevistas. Temos acordo com as considerações de Freire, Marques e Miranda (2018), ao afirmarem que

The interpretation created is not neutral and is marked by preconceptions of the researcher, influenced by his or her history and tradition. Recognizing the influence of tradition in the interpretation process does not preclude critical analysis and does not preclude researchers’ questioning of their own beliefs. Rather, recognizing these factors allows reflection on them and the establishment of a dialectical relationship between belonging and distance, creating new ways of understanding, rather than the reproduction of preconceptions. (p.04) 

(A interpretação criada não é neutra e é marcada por preconceitos do pesquisador, influenciados por sua história e tradição. Reconhecer a influência da tradição no processo de interpretação não impede uma análise crítica e não impede que os pesquisadores questionem suas próprias crenças. Pelo contrário, reconhecer esses fatores permite refletir sobre eles e estabelecer uma relação dialética entre pertencimento e distância, criando novas formas de compreensão, ao invés da reprodução de preconceitos.- Trad. pelo autor)

A respeito da educação e do ensino de Educação Física na escola pública, um dos professores pronunciou-se da seguinte maneira:

Então... eu vim de uma formação...a formação na faculdade, né? Com um preconceito de que a rede pública é pior do que a rede particular porém com algum tempo... Com cinco anos de atuação principalmente na rede pública eu acredito que muitas coisas que são feitas na rede pública, a gente..., o professor não consegue fazer na particular por conta dos objetivos que muitas escolas particulares têm em relação à educação física, por outro lado na rede pública, até por questões burocráticas, eu acredito que o acesso a espaços e a alguns materiais são um pouco mais deficitários do que na rede particular. Porém, hoje onde eu trabalho acredito que está no mesmo nível de uma escola particular por conta das atividades que os alunos desenvolvem na escola e também pelas atividades que eu tento proporcionar para os alunos na educação física. (P1)

O professor revela que a formação obtida traçou um perfil de escola pública que, segundo sua experiência, não corresponde à realidade. É importante destacar que o Brasil tem passado por um processo de desvalorização do setor público em geral, a partir de uma base de política econômica neoliberal e também a partir de um processo de ampliação das vagas nas escolas públicas, realizado com uma redução de verbas para o setor. Esse movimento acabou realmente precarizando o ensino público, e permitiu a expansão do setor privado. Essa dualidade é uma marca na Educação Brasileira. Entretanto, era de se esperar a discussão sobre condições de Ensino e análises sobre a democratização não apenas de vagas, mas de condições de ensino. O que se relatou foi uma comparação de forma generalizada entre a Escola Pública e a privada. Na visão de Apple (2007), a proliferação de representações negativas e sem fundamento sobre a escola pública durante o período de formação inicial apenas limita e reduz o entendimento sobre esta instituição. Essa prática colabora para socializar a visão de que a educação deveria estar sob responsabilidade de instituições privadas, por serem eficazes, modernas e possuírem profissionais bem preparados e motivados. Ainda segundo o autor, o que está por trás disso é a tentativa de desqualificação da escola pública.

Neira (2009) identificou as sequelas disso entre professores de Educação Física em início de carreira. De acordo com sua pesquisa, buscando fugir da identificação com os “incompetentes” e preguiçosos, os recém-formados sonham em atuar na rede privada, mesmo que isso implique na diminuição dos vencimentos e piora nas condições de trabalho, considerando que as condições de trabalho nas Instituições de Ensino privadas são, em sua maioria menos vantajosas, de acordo com pesquisa realizada pelo autor.

Outro participante apresentou uma experiência pedagógica que serve de contra-exemplo e desconstrói a representação acima:

É que, por mais que a gente trabalhe na escola pública, a gente se esforça para oferecer tudo aquilo que os nossos alunos teriam na particular, mesmo faltando material, faltando alguma coisa. Eu venho de um trabalho com meus alunos de atividades rítmicas e expressivas que pra mim foi sensacional. Eu achei que eles iam odiar depois e no final quando teve a apresentação de show dos talentos, este ano minhas alunas apresentaram carimbó no show de talentos que foi uma atividade que eu dei a elas. Então, eu acho que às vezes o que falta na escola pública é alguns professores apresentarem coisas diferentes pros alunos. É o que eu precisei, eu precisei de um rádio só e às vezes fazia uma parte. O começo foi sem o rádio porque foi só a caminhada do carimbó então não precisa de material nenhum. Uma atividade gostosa prazerosa e eu incluí na minha aula cultura brasileira que é uma coisa que tem gente que nunca vai ver. (P2)

 

O trecho acima atesta a diversidade de condições nas Escolas Públicas de diferentes redes. Também ganha destaque o fato que, contrariando a probabilidade de efeitos negativos esperados com relação aos cursos de formação de professores de Educação Física, os docentes entrevistados percebem seu trabalho com comprometimento, e ainda reforçam o necessário cuidado necessário a algumas observações sobre a docência:

Rolar a bola é uma coisa muito antiga que tem nas escolas estaduais, né, que há muitos anos isso é comentado em várias redes. Que o professor do Estado rola a bola mas tem que ver qual é o significado deste professor, porque que ele tá rolando a bola, porque alguém tem que chegar nele e falar pra ele por que você está rolando a bola sempre? Você rola a bola pro aluno né de repente tem significado pra ele, né, no olhar de uma pessoa que está chegando agora ou no olhar de outro professor, ele tá simplesmente enrolando a aula. Tem que procurar saber o que realmente está acontecendo. (P3)

 

Os apontamentos recaem também sobre a própria formação e a relação com o trabalho que desenvolvem no município. Destacam aspectos positivos e limites na formação.  

Eu considero a minha formação... eu acho que nenhuma Universidade vai conseguir nos preparar pra o que a gente tá fazendo aqui. Hoje eu percebo que muita coisa do que a gente tá desenvolvendo com os nossos alunos não foi na Universidade que a gente aprendeu, porém eu acho que o que mais eu aproveitei da Universidade foi... a maioria dos professores... eles incentivavam nós pesquisarmos, nós desenvolvermos além do que já estava pronto na bibliografia e tudo mais, então, eu acho que assim eu aprendi o de mais valioso. Não foi o aprender como chutar lá no futebol ou no basquete, foi a gente aprender a buscar informações a respeito disso. É comparar ações que já eram feitas e criar em cima disso, eu acho que foi o grande diferencial da formação porque nem nós que trabalhamos ali três quatro anos com o mesmo aluno a gente consegue dar conta de passar isso tudo para o aluno Por outro lado, eu achei que faltou, e  que falta durante a formação na Universidade... é ir pra além do estágio supervisionado porque nem sempre ele favorece as condições pra você realmente aprender, vai depender muito da instituição que você procurou pra fazer o estágio do professor que tá ali naquele momento de ter esse olhar de que você tá ali aprendendo, então eu acho que faltou uma integração maior entre a Universidade e é essa formação de prática mesmo de você ir pros locais de você ter uma supervisão de um professor da Universidade dentro do ambiente do estágio né e não passar essa responsabilidade pra outro profissional que não tá ...que não é da Universidade e às vezes ele não se preocupa com essa formação do estagiário (p2)

 

Destacamos que o docente aponta o estágio como um momento privilegiado para a formação docente, mas que acaba esvaziado pela distância entre a universidade e a escola. Apesar de ser uma fala que evidencia a existência de um aprendizado que será construído somente na prática docente, no dia a dia na Escola, o depoimento também explicita que o estágio deveria ter maior vínculo entre a Universidade e a Escola. Atualmente, os estágios no Brasil, especialmente em IES privadas, são realmente burocráticos, com a necessidade de preenchimento de documentos e assinaturas dos professores e gestores, e a documentação acaba sendo prioritária, deixando a experiência em segundo plano. Também é uma característica dos cursos de formação de professores no Brasil a pouca articulação entre os locais de estágio e os cursos de formação de professores. Destaque-se a crítica feita à transmissão da responsabilidade para outro profissional. Em estudo sobre a formação inicial de professores de Educação Física Alviano Jr ( 2011), já apontava para o fato dos docentes da IES privadas serem remunerados, via de regra, como horistas, o que os impossibilita de estabelecer um momento de troca e envolvimento com as escolas, tornando assim o estágio uma mera burocracia que cabe tão somente aos estudantes

Aprofundando as considerações sobre a formação, os entrevistados apresentam seu olhar sobre o currículo e às disciplinas que o compõem.

Coisa que você só vai ver na prática! Assim, você tem algumas aulas práticas que você até usa algumas coisas mas, por exemplo, num curso de licenciatura eu ter, por exemplo, não que não seja importante eu ter um ano de Anatomia, um ano de Cinesiologia, um ano de coisas que eu pouco vou utilizar depois na escola e não ter nada sobre gestão democrática, sobre PPP(Projeto Político Pedagógico), sobre ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). Eu não vi o ECA na escola, só vim a aprender depois, estudando pra concurso. Eu penso na minha cabeça que o que a gente tem na faculdade é completamente diferente do que a gente vê na escola por aí, independente das escola ser ruim ou não. Numa escola particular, mesmo você usa algumas coisas práticas que você tem nas aulas práticas, aí você utiliza agora o que envolve assim por fora da aula mesmo a gente não tem nada na faculdade, pelo menos eu. (P1)

Não tem mesmo... eu mesma tudo que é que eu tenho tive a sorte de ter feito magistério antes aí no magistério a gente tinha uma matéria que falava só sobre isso, era só sobre as leis, estrutura do ensino do ensino (P3)

Avaliação... a gente não teve nada sobre avaliação (P4)

Então aí não tem mesmo não, eu tive no magistério, então quando eu cheguei na faculdade eu fui aprender mesmo a parte de, é de, da prática das aulas... peguei mesmo essa parte do como fazer as aulas de Educação Física das outras coisas eu tive no magistério. (P2)

Didática na Educação Física. (P3)

Parte prática você aprende depois. (P2)

 

Os discursos dos/as diversos/as docentes convergem sobre a falta de disciplinas que tratem sobre o universo da escola, aprofundem a legislação e promovam o estudo do cotidiano da instituição. É surpreendente notar que em todos os grupos foram apontadas como vagas ou inexistentes as discussões acerca de políticas educacionais, gestão escolar, avaliação, metodologia de ensino e didática. Questionam o tempo reservado a disciplinas biológicas e seu papel na formação de professores. Enquanto isso, os conhecimentos que julgam necessários ao cotidiano do docente da Educação Básica são adquiridos mediante a experiência, tendo pouco ou nenhum aprofundamento durante a formação inicial. De acordo com Neira, Nunes

Os/as professores/as entrevistados/as também colocam em discussão a relação dos professores que formam professores/as com a Educação Básica. O tema que gerou um interessante diálogo entre os participantes.

É, algumas coisas você aprende mesmo na prática, né, porque assim na teoria quando você passou quatro anos na faculdade, igual eu por exemplo, quando você tem quarenta por cento dos professores que não atuam, que eles não dão aula, né, e passam algumas teorias pra gente que eles não têm a própria experiência, então, você sai de lá pensando que é um sonho… Na verdade... mas quando você pega uma turma de trinta alunos infantil você vê que tudo aquilo lá é fora da realidade, então, assim pra mim eu tive uma boa base teórica e eu acho essencial o que eu também tive. É o estágio, ele tanto o estágio remunerado que tem ou aquele estágio que você, para sua aprovação na faculdade, o estágio, ele é essencial não tem como você sair de um curso de educação física sem você ter uma base porque você vai se sentir despreparado e ai vai desanimar. (p2)

Quando eu falo que professor que forma professor... Tem que ter uma base, a base teórica legal e uma prática também... Experiência, é isso! Não adianta ficar trabalhando só na teoria, você tem que levar o aluno para a quadra, né, o aluno esse que eu falo o adulto que vai ser professor e trabalhar a mesma atividade... Ele vai trabalhar com as crianças na prática na quadra porque eu acredito que com essa base ele vai sair preparado ele não vai desistir no primeiro desafio que ele encontrar pela frente. Não tendo essa base, ele tá fora! (P3)

O professor tem que ter experiência justamente pra saber o que se passa na escola pública; e os professores da faculdade não têm a base eles não trabalham em escola! (P1)

Um fato interessante que aconteceu quando eu estudava no magistério, mesmo antes da faculdade, a minha professora de psicologia da educação passou num concurso e foi dar aula, ela só deu três dias de aula ela não aguentou! E era uma pessoa que tava me ensinado a dar aula! (P3)

Na faculdade eu brincava... Era até amigo, meu professor... Mas eu vou falar uma coisa... O professor que deu aula de educação física escolar pra gente... Eu falava com os meninos, o Professor nunca deu aula na vida dele eu tenho certeza! E aí eu fui ver, ele nunca deu aula mesmo! Se formou, fez pós-graduação tal, e por lá ficou! E ai estava dando aula de educação física escolar! Ele nunca entrou numa sala de aula, eu não sei até que ponto isso é viável! (P1)

 

Os pronunciamentos emitidos pelos participantes do estudo vão ao encontro dos achados de Vieira (2013), quando, ao investigar professores que atuam em cursos de Licenciatura em Educação Física, constatou o predomínio de identidades docentes acríticas. Diante de vetores de poder macro, posições de sujeito engendradas por condições de força maior e uma genealogia subjetiva repleta de experiências afastadas da docência na Educação Básica, eles colocam em circulação discursos confusos e superficiais sobre a Educação Física escolar, disseminando efeitos nocivos entre os futuros professores.

A partir das falas dos/as entrevistados/as, pudemos encontrar a denúncia relacionada a exaltação de determinadas posturas afastadas do cotidiano pedagógico em contraposição a idolatria com relação a outros espaços e pessoas, traços que entendem como sendo comuns aos currículos de Licenciatura em Educação Física das diferentes Instituições de Ensino Superior que frequentaram. Em suas observações, a escola e os seus problemas praticamente não são abordados, fato que leva o futuro professor a construir representações confusas acerca do que seja a docência.

Por fim, destacou-se também a “política” para atribuição de disciplinas aos professores que estão atuando nas IES. Isso ocorreu em um exemplo isolado, mas importante por destacar uma situação já denunciada por Alviano Jr (2011), Nunes (2011) e Vieira (2013). De acordo com os autores citados, a atribuição de disciplinas que nada tem a ver com o campo de conhecimento dos docentes que atuam em IES privadas é algo corriqueiro, que, baseados nos estudos citados, nos faz suspeitar que visa atender principalmente a questões financeiras das instituições, que comumente preferem atribuir uma carga horária mais ampla e reduzir seu quadro docente, a contratarem mais professores. Os estudos apontam que a tendência dessa situação é perdurar enquanto o regime de contratação docente mantiver a correspondência entre número de aulas e remuneração percebida.

Eu acho que um dos problemas da formação do currículo hoje para formar o professor... eu acho que é a infinidade de possibilidades que a educação física tem né? O que eu comentei que eu mais tive de valioso foi isso essa postura dos professores de fazerem a gente ir atrás porque só o currículo não daria conta, aquelas disciplinas semestrais não dariam conta né? E eu tive a oportunidade de ano passado acompanhar como monitora um professor que dava aula em uma Universidade  daqui da região do ABC e a gente percebe que a própria organização da instituição hoje tá favorecendo incentivando o professor a dar aula de algo que ele não é especializado... Assim... Pra cumprir aquela carga horária que o professor necessita para ser contratado... Ele dá, por exemplo voleibol, que ele é especialista, ele dá atividades rítmicas, que ele é especialista, mas ele tem que também dar a didática, que talvez ele não é tão especialista e eu já vi até os próprios profissionais comentando desse desconforto né? Então eu acho que aí entram até questões mercadológicas! (P1)

 

Observa-se na fala do entrevistado que entre os docentes das IES existe a consciência de que a formação inicial não possibilita uma atuação minimamente satisfatória na Educação Básica, posicionamento reforçado pelo colega:

Acho que é isso na verdade... Desde que eu me formei, desde que eu comecei a trabalhar na educação que eu penso nisso! Como que minha formação foi precária nesse sentido da gente realmente saber o que a gente vai fazer quando você passar em um concurso eles pegam e te jogam falam - se vira! Ai você não tem formação! (P4)

 

É comum o professor em início de carreira experimentar o que Tardif (2005) denominou de “choque com a realidade”. Segundo Neira (2014), é provável que procurem contornar os problemas que enfrentam no cotidiano com o apoio dos mais próximos ou apelem para o senso comum. Dificilmente analisam criticamente o próprio percurso formativo ao ponto de questionar porque lhes ensinaram certos conhecimentos que, quando formados, parecem inúteis, ao invés do que precisam saber para atuar na escola real.

O sentimento de fraqueza experimentado perante as turmas da Educação Básica coloca em xeque tudo o que aprenderam, dado o descompasso verificado entre a satisfação pela posse do diploma e o sofrimento no cotidiano profissional.

Enquanto grande parcela dos professores universitários atua no sentido da manutenção das condições vigentes, preservando, a todo custo, a inviolabilidade do território disciplinar (ALVIANO JR, 2011), os estudantes, em busca da sobrevivência acadêmica, colocam em primeiro lugar a conclusão do curso, ou seja, procuram apossar-se dos conteúdos e dominar as práticas adotadas de forma a obter as notas necessárias para a conclusão.

 

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Destacamos a relevância em relação à formação docente que estabeleça proximidade com a Educação Básica através das Escolas e Redes Públicas de Ensino, especialmente no momento histórico pelo qual o Brasil passou recentemente. Em artigo, Knijnik & Luguetti (2020) destacaram de forma bem enfática esta questão:

As we write this paper, Brazilian education is suffering an unprecedented attack. In addition to an increase of funding withdrawal for public education that threatens the very existence of public schools and universities, right-wing political parties and movements have been making persistent attempts to demonize teachers and teaching. Their educational policies and practices are based on an eradication of Freirean ideas and any critical thinking from Brazilian schools. For example, teachers who teach anything related to gender, social justice or diversity are being filmed and harassed online by the ‘anti-Freirean’ patrols. Teachers and teacher educators feel that they do not have any power to deliver their classes without risking their professional positions(p. 11).

(No momento em que escrevemos este artigo, a educação brasileira está sofrendo um ataque sem precedentes. Além de um aumento na retirada de verbas para a educação pública que ameaça a própria existência de escolas e universidades públicas, partidos e movimentos políticos de direita têm feito tentativas persistentes de demonizar professores e o ensino. Suas políticas e práticas educacionais baseiam-se na erradicação das ideias freirianas e de todo pensamento crítico das escolas brasileiras. Por exemplo, professores que ensinam qualquer coisa relacionada a gênero, justiça social ou diversidade estão sendo filmados e assediados online pelas patrulhas "anti-freireanas". Professores e formadores de professores sentem que não têm poder para ministrar suas aulas sem arriscar suas posições profissionais.- Trad. do autor.)

Ao situarmos o currículo da licenciatura como constitutivo do espaço da Educação Básica Pública, devemos compreender que tal construção deve (ou deveria) levar em consideração a variedade de manifestações nas quais o poder produz a desigualdade e a diferença. Ao assumir discursos monolíticos e atribuir significados estáticos à educação pública, convergindo para uma representação de Escola, de Educação Básica e de Educação Física Escolar também monolíticas, o currículo de formação inicial apresenta as relações sociais como dadas, excluindo a possibilidade de interpretações distintas e oferecendo uma “verdade” acabada. Em pesquisa sobre o tema, Neira (2009) corrobora essa visão

O discurso pedagógico informado durante os cursos de formação contribui para desqualificar tanto as ações desenvolvidas pelos docentes em atuação, quanto a comunidade que frequente as instituições... Quando um professor universitário diz, por exemplo, que “o professor na escola deveria fazer isso, isso e aquilo, pois, dessa forma o resultado seria este”, está afirmando que todos os professores não fazem isso, isso e aquilo, por isso, não alcançam os resultados esperados, considerados, por ele, ideais. Mesmo que a generalização implique em equívocos e injustiças, a visão acrítica que lhe dá sustentação é socializada, o que impede reconhecer os limites dos axiomas proferidos pela cultura acadêmica. (p. 128)

Evidentemente, torna-se necessário estreitar o diálogo com a complexidade da Escola, tornando assim a formação para a docência um projeto de política cultural, de formação de professores como intelectuais que atuarão em “espaços públicos onde os alunos possam debater, assimilar e adquirir o conhecimento e as habilidades necessárias à luta rumo à concretização de um mundo mais humano e justo” (GIROUX; McLAREN, 2005, p. 140).

Verificamos que possivelmente existam questões econômicas que dificultam o projeto defendido por Giroux (1997), quando o autor argumenta sobre a reestruturação docente a partir da categoria de intelectual. Para este autor, encarar os professores como intelectuais significa dignificar a capacidade docente, possibilitando a superação da divisão do trabalho, o que implica em pensar a prática docente rumo à reflexão acerca das ideologias tecnocráticas e instrumentais que apartam os momentos e as responsabilidades pelo planejamento, organização da implementação e execução do fazer docente cotidiano.

Formar professores como intelectuais também significa reconhecer as escolas como locais sociais e culturais que representam uma forma de conhecer o mundo e estabelecer linguagens, exclusões e seleções particulares, presentes na sociedade como um todo. Pensando nisso, Giroux destaca a necessidade de tornar o pedagógico mais político e o político mais pedagógico. Afinal,

[...] as escolas representam tanto um esforço para definir-se o significado quanto uma luta em torno das relações de poder. Dentro desta perspectiva, a reflexão e a ação críticas tornam-se parte do projeto social fundamental de ajudar os estudantes a desenvolverem uma fé profunda e duradoura na luta para superar injustiças econômicas, políticas e sociais, e humanizarem-se ainda mais como parte desta luta. (p. 163)

Uma vez aceita a proposta de tornar o pedagógico mais político, mais social, será impossível pensar em uma formação docente desarticulada da escola, visto que se trata de um espaço dinâmico em termos de relações sociais e culturais. Assim, cabe aos professores e aos formadores de professores refletirem sobre as relações que permeiam a instituição educacional, pautados em uma ética comprometida com a superação das desigualdades, defesa da democracia e uma consciente opção pela vida, em seu sentido mais amplo.

Quanto ao tornar o político mais pedagógico, fica clara a importância da formação crítica dos futuros professores mediante a adoção do diálogo como ponto de partida para a compreensão e reflexão do ato educativo, além de possibilitar o estranhamento e a desnaturalização dos conteúdos de ensino. De certa maneira, ao questionarem as razões de algumas disciplinas possuírem espaços privilegiados em detrimento de outras temáticas consideradas relevantes por quem está com as mãos na massa, os docentes entrevistados emitem um recado aos cursos de Licenciatura em Educação Física: é urgente problematizar o que vem sendo ensinado.

Reconstruir os currículos a partir dessas premissas significa reconhecer que as produções discursivas estão ligadas aos locais sociais específicos de sua produção, ou seja, a comunidade acadêmica teoriza a partir de contextos distintos da comunidade escolar. Distintos, porém tão importantes quanto. Contudo, tal possibilidade só poderá ser avistada quando os cursos que formam docentes assumirem as escolas como espaço de formação cidadã e construção de conhecimento, o que os obriga a dialogar e estabelecer uma íntima relação com esta instituição. Relação que a projetará como protagonista real da formação docente, eis o lugar que deve ocupar se o que se pretende é efetivamente formar professores. Assim, esta pesquisa defende a necessidade de uma articulação entre cursos de Formação de Professores de Educação Física e as Escolas Públicas, fato que não existe atualmente como regra no Brasil e que trouxe consequências como as observadas nos diálogos com os docentes ouvidos nos grupos focais.

 

Referências (

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Notas



1O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil.

2     Em que pese o fato das Diretrizes Curriculares Nacionais de Educação Física mencionarem Licenciatura e Graduação, adotamos aqui a terminologia usual de “Bacharelado”.

3     Declaramos que as abordagens e os instrumentos metodológicos utilizados obedeceram aos procedimentos éticos estabelecidos para a pesquisa científica em Ciências Humanas. Os representantes das redes municipais e os sujeitos participantes foram esclarecidos sobre a pesquisa e concordaram em participar, conforme atestam em TCLEs específicos.

4     O ABCD é um território geopolítico composto por sete cidades – Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul, Diadema, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra – que, ao lado de outros municípios, constituem a região metropolitana da capital paulista.

5     Os autores citados entendem que os Estudos Culturais buscam uma compreensão de mundo que escape dos limites disciplinares.

 

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