PROJETOS DE PESQUISA NO ENSINO MÉDIO INTEGRADO: POSSIBILIDADES DE FORMAÇÃO INTEGRAL EM ENOLOGIA E VITICULTURA

 

RESEARCH PROJECTS IN INTEGRATED HIGH SCHOOL: POSSIBILITIES OF INTEGRAL TRAINING IN ENOLOGY AND VITICULTURE

 

Luis Carlos Diel Rupp

Instituto Federal do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil

luis.rupp@bento.ifrs.edu.br - https://orcid.org/0000-0001-8678-2047

 

 

Gisele Schwede

Instituto Federal do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil

gisele.schwede@farroupilha.ifrs.edu.br - https://orcid.org/0000-0001-6541-3728

 

 

Marcos Aurelio Schwede

Instituto Federal do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil

marcos.schwede@ifsc.edu.br - https://orcid.org/0000-0003-1921-3842

 

Recebido em 21 de agosto de 2020

Aprovado em 30 de março de 2021

Publicado em 01 de agosto de 2022

                                                         

 RESUMO

Considerando o propósito de formação integral proposto no Projeto Pedagógico Institucional do Instituto Federal do Rio Grande do Sul e visando a construção de uma práxis docente coerente com esse documento e com o Projeto Pedagógico do Curso Técnico Integrado ao Ensino Médio em Viticultura e Enologia, no componente curricular Melhoramento, Variedades e Porta-Enxertos, realizou-se uma experiência pedagógica, ora apresentada, com o objetivo de desenvolver reflexões teóricas sobre ações que possam apresentar a potencialidade de propiciar uma formação integral aos estudantes. Assim, como parte do processo de ensino desse componente curricular, desenvolveu-se uma experiência em etapas: apresentação, aos alunos, da proposta de experiência pedagógica; estudo teórico desenvolvido pelos alunos; experimento de pesquisa agrícola em campo; redação de um artigo científico, também pelos alunos e; reflexões em grupo focal. Como resultado, verificou-se que a experiência permitiu aos alunos refletirem sobre as possibilidades e os resultados de práticas educativas integradoras, e em especial, contribuiu com a construção de uma leitura de mundo diversa. Conclui-se que experiências integradoras têm o potencial de oportunizar o diálogo entre Ciência, Tecnologia e Sociedade, de modo a se constituírem como ferramenta para a formação integral dos estudantes, e consecutivamente, ser uma prática de transformação da sociedade.

Palavras-chave: Formação integral; Ensino Médio Técnico; Experimento agrícola.

 

ABSTRACT

Considering the purpose of integral training proposed in the Institutional Pedagogical Project of the Federal Institute of Rio Grande do Sul and aiming at the construction of a teaching praxis consistent with this document and with the Pedagogical Project of the Integrated Technical Course in High School in Viticulture and Oenology, in the curricular component Improvement Varieties and Rootstocks, a pedagogical experience was presented with the objective of developing theoretical reflections on actions that may present the potential to provide comprehensive training to students. Thus, as part of the teaching process of this curricular component, an experience was developed in phases: student introduction to the pedagogical experiment; theoretical research developed by the students; agricultural research experiment in the field; writing of a scientific article, also by the students; and reflections in a focus group. As a result, it was found that the experience allowed students to reflect on the possibilities and results of integrative educational practices, in particular, contibuted to build a diverse reading of the world. It is concluded that integrative experiences have the potential to provide the opportunity for dialogue between Science, Technology and Society, in order to constitute themselves as a tool for the integral training of students, and together, be used to promote transformation in the society.

Keywords: Integral training. Technical High School. Agricultural experiment.

 

Introdução

Este artigo busca apresentar os resultados de uma experiência pedagógica desenvolvida com estudantes do terceiro ano do Curso Técnico Integrado ao Ensino Médio em Viticultura e Enologia, de um dos campi do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul, no componente curricular intitulado Melhoramento, Variedades e Porta-Enxertos. Essa experiência buscou permitir o desenvolvimento de reflexões teóricas sobre a atuação docente voltada para a formação integral dos estudantes do Ensino Médio Técnico, tendo como pano de fundo as propostas pedagógicas presentes no Projeto Pedagógico Institucional do Instituto Federal do Rio Grande do Sul. Assim, buscou-se a construção de uma práxis docente coerente com esse documento e, ainda, com o Projeto Pedagógico do Curso. Sabe-se que muitas vezes, o que, orientam os documentos institucionais não é observado, portanto, quando estes são coerentes com a busca da transformação da realidade social e com a construção de um projeto de sociedade almejado, a concretização de suas proposições deve ser buscada e explicitada. Trata-se de uma forma de intervenção na realidade.

Em consonância com autores como Freire (1996), Bazzo (2017) e Veiga (2011), compreende-se que, ao se desenvolver a prática pedagógica, não é possível transmitir aos alunos o conteúdo programático dos componentes curriculares como se este fosse neutro. É preciso mais que técnicas ou ferramentas de transmissão, pois há antes uma compreensão de mundo, de homem e sociedade, assim como uma concepção pedagógica. Na experiência ora relatada, a ação pedagógica fundamenta-se em uma compreensão de inacabamento do ser humano e na busca do vir a ser constante, o que culturalmente desafia o professor a todo momento a refletir, avaliar, dialogar, agir e aprender.

A partir da atuação profissional docente em uma instituição em que há um Projeto Pedagógico Institucional e um Projeto Pedagógico do Curso com intencionalidades e historicidade derivados do que Ramos (2014) afirma ser uma luta pautada no debate em defesa de uma educação politécnica e na perspectiva da formação omnilateral do ser humano, verifica-se que tal luta se dá por vezes em um ambiente político favorável e que, em outros momentos, sofre significativos reveses. Assim, pretende-se refletir acerca de potencialidades de práticas pedagógicas que sejam coerentes com as diretrizes pedagógicas institucionais estabelecidas no Projeto Pedagógico Institucional e no Projeto Pedagógico do Curso, como é o caso em tela. Para responder esta questão, propõe-se o estabelecimento de reflexões sobre a formação integral, executando uma experiência integradora, aqui apresentada.

A POSSIBILIDADE DE UMA FORMAÇÃO INTEGRAL NA REDE FEDERAL DE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL, CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

Os Institutos Federais foram criados pela Lei nº 11.892 (BRASIL, 2008) e é neste marco que se organiza, no âmbito do sistema federal de ensino, a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, vinculada ao Ministério da Educação (MEC), composta por instituições que oferecem Educação Básica profissional e Educação Superior, e que ainda, são pluricurriculares e multicampi (composto por reitoria, campi, campi avançados, polos de inovação e polos de educação a distância), ofertando educação nas diferentes modalidades de ensino, conjugando conhecimentos técnicos e tecnológicos com as suas práticas pedagógicas.

Assim, por esta lei foi criado, entre outros institutos, o Instituto Federal do Rio Grande do Sul, unindo três autarquias federais previamente existentes: o Centro Federal de Educação Tecnológica de Bento Gonçalves, a Escola Agrotécnica Federal de Sertão e a Escola Técnica Federal de Canoas, tendo sido incorporados, logo após, a Escola Técnica Federal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e o Colégio Técnico Industrial Professor Mário Alquati, de Rio Grande (IFRS, 2011), alguns desses com décadas de funcionamento. Essa origem diversificada própria do Instituto Federal do Rio Grande do Sul e dos demais Institutos Federais implica que as instituições que compõem a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica carregam para dentro dos Institutos a história, trajetória, princípios e práticas pedagógicas das instituições originárias. Ademais, considerando que a própria realidade social está posta e tende a ser reproduzida, os trabalhadores que atuam nesta instituição também agem em grande medida reproduzindo práticas educacionais consolidadas e as relações sociais vigentes, com todas as implicações que isso gera.

No caso do Instituto Federal do Rio Grande do Sul, os documentos pedagógicos institucionais mais relevantes são a Organização Didática, o Projeto Pedagógico Institucional e os Projetos Pedagógicos dos Cursos. O primeiro configura-se como um conjunto de regramentos. Já os demais orientam a concepção pedagógica, os objetivos e as finalidades e é neles que se encontram os princípios e as diretrizes da prática pedagógica proposta na instituição em análise. O Projeto Pedagógico Institucional afirma que:

O IFRS também possui o compromisso de trabalhar no sentido da democratização dos conhecimentos, tendo como base um modelo de educação progressista, que deve estar articulado a um projeto de sociedade baseada na igualdade de direitos e oportunidades nos mais diversos aspectos: cultural, social, econômico, político, ecológico entre outros (IFRS, 2011, p. 11).

 

Pode-se depreender, a partir desta citação, que um dos caminhos possíveis para atender de forma coerente o que está sendo proposto é o acesso dos estudantes a uma formação integral, de modo que seu ser e estar no mundo venha a possibilitar-lhes, através do seu trabalho, prover sua existência, assim como também possibilitar-lhes participar da vida social, com autonomia e liberdade, construindo uma sociedade mais justa para todos. Estas são concepções que refletem o que é a educação integral, uma proposta que objetiva possibilitar o acesso dos estudantes aos conhecimentos historicamente produzidos pela humanidade, porém, compreendendo as múltiplas relações e determinações que fazem parte da realidade, a sua complexidade e contradições. Ademais, pensar a realidade nesta perspectiva, requer compreender que o conhecimento e a tecnologia produzidos são históricos e sociais, portanto, são conhecimentos interessados e com limitações, em especial ao se pensar uma sociedade a ser profundamente transformada.

No segundo capítulo do Projeto Pedagógico Institucional, em que é detalhado o Projeto Político Pedagógico, lê-se, por exemplo, que:

 

O ser humano é um ser histórico, cultural, inacabado, é um ser de relações e na convivência com outros seres se constitui. Encontra-se em permanente movimento no tempo e espaço, sempre em busca de sanar suas necessidades para produzir sua existência. Esta iniciativa, que os seres humanos possuem em sua essência, se materializa através do trabalho (IFRS, 2011, p. 13).

 

A partir desta perspectiva teórica, pode-se identificar que esses documentos explicitam a intencionalidade de se romper com o dualismo histórico presente no sistema educacional brasileiro, no qual às classes pobres tradicionalmente foi oferecido um ensino para o fazer e, às elites, um ensino para prepará-los para pensar e dirigir o país (RAMOS, 2008; MOURA, LIMA FILHO e SILVA, 2015). Assim, compreende-se que a missão do Instituto Federal do Rio Grande do Sul, expressa em seu Projeto Pedagógico Institucional, busca em seu princípio pedagógico a educação integral, a formação humana, a construção da cidadania democrática e progressista.

Considerando que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDBEN (BRASIL, 1996, s.p.) expressa no seu artigo segundo que a educação se configura como dever tanto da família quanto do Estado, “inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”, compreende-se que o trabalho deve se configurar como princípio educativo, tomando-o como o modo de o ser humano, na relação com o outro e na relação com a natureza, produzir as condições materiais e imateriais para a sua existência, conforme assinalam Ramos (2014) e Moura (2015).

Embora haja importantes questionamentos acerca da oferta precoce de uma formação profissionalizante, pois, geralmente, as classes privilegiadas irão se preocupar com formação profissional na universidade, a realidade econômica da classe trabalhadora brasileira exige que precocemente os adolescentes se ocupem com a sobrevivência material, com produção econômica, segundo o que pondera Ramos (2014). Assim, os Institutos Federais são imbuídos de relevância no cenário da educação brasileira, pois possuem o potencial de contribuir, por meio de uma educação transformadora, para o desenvolvimento socioeconômico das regiões em que estão localizados, ao oferecer educação profissional e tecnológica.

Da mesma forma, é preciso lembrar, em consonância com Rajobac (2012), que no processo da expansão da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica há também uma orientação de conteúdo, componentes curriculares, métodos de ensino, relação professor-aluno, que privilegiam aspectos tão somente profissionais e técnicos necessários aos interesses da lógica do capital, em detrimento da formação integral.

Em conformidade com o que denuncia Nussbaum (2015), compreende-se que uma formação tecnicista piora o próprio desempenho profissional e técnico dos egressos dos cursos. Para exemplificar, cita-se a área de conhecimento aqui analisada, isto é, a Agricultura. Sobre esta área, pode-se afirmar que ainda contemporaneamente são formados profissionais técnicos de nível médio que não necessariamente têm uma visão crítica do modelo de desenvolvimento rural adotado no Brasil, altamente dependente de insumos externos e com exagerada aplicação de agrotóxicos, o que acarreta graves consequências econômicas e sociais à toda a sociedade (VEIGA, 2007; VEIGA, 2008; SCHNEIDER, 2010).

A concepção educacional que sustenta esse tipo de formação está presente, arrisca-se a afirmar, de forma hegemônica no interior das instituições que constituem a Rede Federal. Isso ocorre em decorrência da existência de distintos projetos de sociedade em disputa, que perpassam essas instituições. Ademais, os próprios indivíduos que nelas atuam estão inseridos na sociedade e nela se constituem, portanto, também atuam na produção e reprodução da sociedade, como defensores de determinado projeto de sociedade (SCHWEDE, 2015).

Verifica-se, portanto, a existência de lógicas produtivistas pautadas pelo poder econômico e pelos interesses do capital internacional em geral. Tais questões, que são reproduzidas nas instituições que constituem a Rede Federal, são decorrentes das políticas públicas em curso contemporaneamente; das diretrizes educacionais e de funcionamento das instituições (que muitas vezes são impostas, isto é, colocadas como condicionantes ao funcionamento destas); das concepções educacionais que adquirem caráter hegemônico e que chegam até as instituições, a exemplo das propostas educacionais da chamada Educação por Competência e proposições conceituais e ideológicas do assim chamado aprender a aprender, dentre outras. Entretanto, talvez o mais relevante e significativo, é que na maioria das vezes os próprios indivíduos que trabalham nessas instituições advogam na reprodução de determinados projetos de sociedade, em função, inclusive, das possibilidades formativas que tiveram antes de chegar nos institutos federais.

Há que se ressaltar que obviamente não seriam os profissionais técnicos formados nestas instituições, sozinhos, que poderiam mudar o sistema de produção vigente no atual momento, ainda que contribuições para a transformação desse cenário poderiam ser propostas por eles. Todavia, a falta de uma formação integral pode impossibilitá-los de analisar a realidade e agir como sujeitos críticos, com forte base cultural e social. Nessa condição de falta, eles também passam a atuar na reprodução da realidade social, pois a constituição dos indivíduos é fundamental para a produção/reprodução da realidade social. Nussbaum (2015) afirma que se esse processo de formação tecnicista continuar, a própria democracia poderá estar ameaçada no futuro. Considerando-se a contemporânea realidade social do país, verifica-se que a asserção do autor deixa de ser uma perspectiva futura, para se configurar como a atual realidade.

No documento Um novo modelo em educação Profissional e Tecnológica. Concepção e Diretrizes. Concepção e Diretrizes (SETEC, 2010), a Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica - MEC revela a expectativa relacionada à inovação e à ampliação dos requerimentos desse novo formato institucional, utilizando expressões tais como “novo paradigma” e “inversão da lógica” para designar uma nova realidade que deveria ou que poderia se constituir. Expressa ainda que: “Os novos IFs atuarão em todos os níveis e modalidades da educação profissional, comprometidos com o desenvolvimento integral do cidadão trabalhador” (SETEC, 2010, p. 3). Os Institutos Federais representariam um novo projeto que conferiria maior destaque à Educação Profissional e Tecnológica (EPT) no seio da sociedade, mediante ação integrada e referenciada na ocupação e desenvolvimento do território, como lugar de vida (BRASIL, 2008).

Nestes mesmos documentos, também se verifica a compreensão de que os Institutos Federais têm uma história, trajetória e papel alinhados a uma concepção ideológica capitalista, como percebe-se no seguinte trecho do referido documento:

 

A dimensão ideológica do atual governo, na verdade, faz aflorar um descompasso entre a trajetória das instituições federais de educação profissional e tecnológica e da própria educação profissional como um todo e o novo projeto de nação: se o fator econômico até então era o espectro primordial que movia seu fazer pedagógico, o foco a partir de agora desloca-se para a qualidade social (SETEC, 2010, p. 14).

 

Se são identificados projetos de sociedade em disputa quando se constituíam os institutos federais, conforme verifica-se na citação anterior, tais projetos de sociedade em disputa continuam ainda mais candentes no atual momento. Verifica-se no período coetâneo que os interesses de grupos hegemônicos ganham protagonismo, aspecto que se constata tanto na degradação das condições de vida em sociedade, quanto, especificamente, na realidade das instituições de educação pública existentes no país, a exemplo do que ocorre nas que compõem a Rede Federal de Educação. Exemplo disso está na ampla redução do orçamento de custeio e investimento que se verifica junto a essas instituições; na não nomeação dos reitores eleitos, o que vem ocorrendo em instituições de diferentes estados da federação; congelamento dos salários e progressões dos servidores, entre outros. Identifica-se também uma precarização das propostas educacionais que devem ser implantadas no Ensino Médio, o que se verifica, por exemplo, através da implantação da Medida Provisória nº 746/2016, posteriormente transformada na Lei nº 13.415/2017, que determina a adoção de itinerários formativos bastante restritivos, condicionando os indivíduos de determinadas classes sociais a terem acesso a ofertas educacionais mais precarizadas, em detrimento da educação acessada por outras classes sociais, decorrente de se privilegiar um pretenso preparo mais imediato para o trabalho, com prejuízo no acesso a conhecimentos de caráter científico e sócio-históricos.

Da mesma forma, Schwede e Lima Filho (2017) demonstram que nos últimos anos o acesso ao conhecimento científico e tecnológico pelos trabalhadores vem ocorrendo de forma amplamente desigual dentro dos próprios Institutos Federais. Portanto, a própria desigualdade de acesso aos conhecimentos existente na sociedade de maneira geral se expressa no interior destas instituições, ou seja, são desenvolvidas propostas e ofertas educacionais desiguais destinadas a atender as diferentes classes sociais (exemplo disso seriam os cursos ofertados por meio do Pronatec ou ainda, os cursos em modalidade de Formação Inicial e Continuada - FIC). Outro ponto que os autores destacam é a ampla expansão do uso e da produção de ciência e de tecnologia nos Institutos Federais com a finalidade de atender às demandas e interesses do mercado capitalista, utilizando-se da concepção ideológica inerente à alcunha inovação.

Todavia, se por um lado essas instituições são incentivadas a produzirem ciência e tecnologia para a geração de inovação, verifica-se nos últimos anos, de forma aparentemente contraditória, que ocorre um tensionamento dessas instituições para que ocorra a ampliação da carga horária docente destinada ao ensino - o que implica justamente na impossibilidade de destinação de carga horária pelo corpo docente para a realização de pesquisas e de extensão.

Isso é reforçado ainda mais em período recente com o que estipula a Portaria MEC 983/2020, que estabelece diretrizes para a regulamentação das atividades docentes. Ressalta-se ser uma aparente contradição pelo fato de que a oferta educacional realizada nessas instituições deve se efetivar de forma desigual. Nesta perspectiva, não são todos os docentes que poderão ter acesso à produção de conhecimento científico e de tecnologia, e da mesma forma, não é qualquer conhecimento e tecnologia que devem ser produzidos nestas instituições. Os grupos hegemônicos, ao disputarem projetos de sociedade no âmbito dos Institutos Federais, reivindicam que a ciência e a tecnologia produzida devem atender aos interesses do capital. O mesmo ocorre, pode-se afirmar, em relação às ofertas educacionais e às concepções pedagógicas e de sociedade que buscam dar suporte a estas (SCHWEDE, 2015).

Nesse contexto, os Institutos Federais se apresentam como espaços em constante disputa, podendo ou não atuar como “um projeto progressista que entende a educação como compromisso de transformação e de enriquecimento de conhecimentos objetivos capazes de modificar a vida social e de atribuir-lhe maior sentido e alcance no conjunto da experiência humana” (SETEC, 2010, p. 18), tendo em vista ser uma proposta incompatível com uma visão conservadora de sociedade.

Todavia, considerando o movimento dialético da história, é preciso considerar que os rumos da educação brasileira podem passar, além de avanços progressistas, também por movimentos em sentido contrário, revelados seja nos exemplos já citados anteriormente, ou ainda, em outras práticas e também em discursos oficiais claramente contrários ao que está posto nos documentos e políticas do MEC produzidos no período entre 2003 a 2015, que requereram, em certa medida, disposição à defesa da Educação pública de qualidade como direito da população.

Assim, os Institutos Federais têm a potência de se configurarem como um novo tipo de instituição, identificada e comprometida com um certo projeto de sociedade. E, sendo a EPT um tipo de formação cuja existência se destina a formar cidadãos com conhecimentos profissionais, os Institutos Federais deveriam se direcionar à formação integral e integrada, até pela possibilidade inerente à junção entre a educação para o trabalho e a formação mais ampla, acontecendo de forma conjunta, entremeadas, possibilitando ao ser humano se constituir em sua plena potencialidade. Nesse cenário, cabe ao professor o desenvolvimento de uma prática pedagógica fundada em uma determinada ética, no respeito à dignidade da condição humana. Como base curricular da formação humana, tais premissas apontam quatro dimensões para as quais deve-se considerar a formação humana: trabalho, ciência, tecnologia e cultura (PACHECO, 2012). A proposta da EPT tem, consequentemente, o trabalho por princípio educativo e a pesquisa como princípio pedagógico.

 

PROCEDIMENTO DESENVOLVIDO

Para o desenvolvimento do estudo ora apresentado, realizou-se com uma turma, composta por 25 alunos do terceiro ano de um curso técnico em Viticultura e Enologia do Instituto Federal do Rio Grande do Sul, no componente curricular Melhoramento, Variedades e Porta-Enxertos, no primeiro semestre de 2019, uma experiência pedagógica organizada em cinco etapas, sendo estas: 1) apresentação, para os alunos, da proposta do trabalho e seus objetivos; 2) desenvolvimento, pelos alunos, de pesquisa bibliográfica visando conhecer as doenças da videira; 3) desenvolvimento coletivo de um experimento para avaliar os resultados do uso de produtos ecológicos para o controle de doenças; 4) elaboração, por parte dos alunos, de artigo científico discutindo os resultados do experimento, adequadamente fundamentado na teoria e; 5) desenvolvimento de grupo focal para o debate acerca de como a realização dessa prática pedagógica contribuiu para sua formação; conforme segue:

1) Inicialmente, apresentou-se para os alunos a proposta da atividade, assim como seus objetivos. Ao se explicar como seria feito seu desenvolvimento, também se sanou dúvidas sobre os procedimentos e esclareceu-se aspectos práticos e de cronograma.

2) Em um segundo momento, os alunos fizeram, em cinco grupos, buscas em fontes bibliográficas de informações sobre as doenças da videira, os tratamentos ecológicos e naturais disponíveis, as possibilidades de implantação desses tratamentos em área experimental, as pulverizações e a avaliação da eficiência dos produtos aplicados.

3) O experimento, realizado entre os meses de fevereiro e abril, foi implantado em campo, na Estação Experimental Granja Tuiuty. Trata-se da fazenda-escola do IFRS (localizada na zona rural do município de Bento Gonçalves), com 76,74 hectares e onde são realizadas as atividades didáticas relacionadas à área agropecuária. A fitopatia escolhida, em função da ocorrência na época do ano em que se deu a experiência pedagógica, foi a mancha das folhas (Mycosphaerella personata H.), que provoca desfolhamento precoce das videiras americanas (Vitis labrusca L.), especialmente danosa nas cultivares, como a cultivar Bordô – utilizada neste experimento. Adotou-se delineamento experimental de blocos casualizados, com cinco plantas por tratamento e três repetições. Foram avaliadas a utilização de quatro tratamentos diferentes: i) extrato de cinza de madeiras à 4%; ii) controle biológico com a bactéria Bacillus sp; dois extratos de plantas, sendo iii) extrato de Melaleuca alternifolia, iv) extrato de Reynoutria sachalinensis e v) testemunha, sem tratamento. A marcação das plantas nos blocos, o preparo das dosagens dos tratamentos e pulverizadores e a própria pulverização foram realizados pelos alunos, a cada 15 dias, para posteriormente se avaliar a severidade da doença após os tratamentos. Os alunos então submeteram os dados encontrados nas cultivares à tratamento estatístico, tendo encontrado diferença significativa entre os produtos utilizados, sendo o extrato de cinza a 4% o que obteve o melhor desempenho.

4) Na etapa seguinte, em grupos, os alunos elaboraram cinco artigos científicos, que se deram como parte da experiência didática (sem o fim de publicação ou apresentação em eventos, pois teve o propósito pedagógico de propiciar aos alunos a aprendizagem do método científico e da escrita de um artigo), nos quais descreveram e analisaram o experimento realizado. Esses artigos se destacaram pela considerável qualidade, especialmente considerando-se que são de autoria de alunos de Ensino Médio, ainda pouco experientes na realização de pesquisas e redação científica. Para colaborar no desenvolvimento desta etapa, realizou-se uma parceria entre o componente curricular em que se deu a experiência pedagógica e a professora de redação técnica. A partir dessa parceria, ensinou-se aos alunos a estrutura e a metodologia de elaboração de artigos científicos.

5) Após a execução do experimento, aplicou-se a metodologia de Grupos Focais, buscando desenvolver com os alunos reflexões sobre a experiência da pesquisa no Ensino Médio profissional. Segundo Weller e Pfaff (2013), grupos focais configuram-se como uma técnica de entrevista, em que as pessoas são convidadas a debater sobre um assunto determinado; nesse caso, foi a contribuição da pesquisa para a formação no Curso Técnico de Viticultura e Enologia.

Assim, em sala, durante dois períodos de aulas, dispostos em círculos (com a finalidade de propiciar ambiente adequado para diálogo, permitindo visualização direta uns dos outros), os alunos foram convidados a refletir e analisar a contribuição da experiência para a sua formação. Tomou-se o cuidado de mediar a atividade de modo a incentivar a participação de todos no diálogo. As falas foram sistematizadas em quadro branco, conforme pode ser visto na Figura 1.

Figura 1 – Sistematização das falas dos alunos

Fonte: Arquivos dos autores, 2019.

 

 

ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS                                                         

Em consonância com Regattiere e Castro (2010), assim como com Ramos (2014), compreende-se que a execução de projetos pode oportunizar aos estudantes uma experiência formativa integradora, que possibilita elaborar, estudar, implantar e executar um experimento e estudar novamente seus resultados, analisar dados, elaborar um artigo, num movimento constante de teoria e prática e, portanto, de aprendizagem, pois, conforme Ramos:

 

A formação omnilateral tem como projeto e como pressuposto a possibilidade de que o ser humano nos seus momentos de formação que as suas experiências formativas possam ajudar tanto a desvelar e revelar potencialidades que cada um possui, quanto potencialidades que possam ser futuramente desenvolvidas (RAMOS, 2014, p. 19).

 

Ao se analisar as etapas 2, 3 e 4, que antecederam o desenvolvimento do grupo focal, verifica-se que a participação dos alunos demonstrou sua disponibilidade e engajamento com a aprendizagem. O grau de responsabilidade foi considerável, pois executaram com adequação as tarefas assumidas. Por outro lado, percebeu-se que as maiores dificuldades foram apresentadas na etapa final, isto é, na redação do artigo, quando precisaram realizar a análise e discussão de resultados do experimento agrícola, provavelmente pela inexperiência, já citada. É oportuno destacar, todavia, que previamente tendo-se ciência das diferenças pessoais que existem entre os alunos e das limitações que pode ter havido na formação disponibilizada a alguns ainda no Ensino Fundamental (denotadas, por exemplo, nos diferentes níveis de processos de leitura e escrita, percebidos em sala de aula), oportunizou-se o desenvolvimento de tarefas distintas que pudessem envolvê-los, de modo a permitir que todos os alunos pudessem ser valorizados e estimulados a participar e aprender, mesmo que de modo distinto do tradicional.

Desse modo, após a elaboração do projeto de experimento e sua execução em campo, a turma reuniu-se para realização do grupo focal, visando debater e avaliar a execução do experimento de pesquisa, suas contribuições e limites no Ensino Médio profissionalizante.

            Assim, no grupo focal, a partir de suas reflexões conjuntas, os alunos destacaram os seguintes pontos, advindos da prática pedagógica desenvolvida (Quadro 1):

 

Quadro 1 – Contribuições do projeto de pesquisa levantadas no grupo focal.

Conhecimento

Tecnologia

Sociedade

Realização pessoal ao serem autores

Métodos não agressivos ao meio ambiente

Perspectiva do pequeno agricultor

Ter posto em prática a parte teórica

Maior conhecimento sobre os fungicidas

Uso de métodos baratos e alternativos

Importância para o currículo escolar

Tecnologia de aplicação, maior conhecimento sobre os pulverizadores

Trabalho em grupo

Iniciação à pesquisa científica

 

Agricultores sem mecanização

Rigor de método

 

 

Fonte: Arquivo dos autores, 2019.

 

É possível verificar que os alunos elencaram uma série de categorias exploráveis como possibilidade de resultados da experiência formativa integradora executada nesse projeto. No entanto, elegeu-se, para um aprofundamento de análise, as categorias Conhecimento, Tecnologia e Sociedade, pois estas permitiriam alcançar os objetivos propostos para este trabalho.

Essas três categorias aparecem no documento base da Setec como dimensões inseparáveis dentre as finalidades do Ensino Médio Técnico, visando superar a histórica formação voltada somente para o mercado de trabalho:

 

                                                                                                         

(...) Assim, a política de ensino médio foi orientada pela construção de um projeto que supere a dualidade entre formação específica e formação geral e que desloque o foco dos seus objetivos do mercado de trabalho para a pessoa humana, tendo como dimensões indissociáveis o trabalho, a ciência, a cultura e a tecnologia” (SETEC, 2007, p. 6).

 

Desse modo, analisa-se inicialmente a categoria Conhecimento, mobilizando aqui a expressão ter posto a teoria em prática, surgida quando da realização do grupo focal. A questão da integração entre teoria e prática é cara na ação docente, pois segundo Pimenta e Lima (2012), prática e ação devem ser simultâneas, isto é, teoria e prática devem ocorrer juntas e não em contraposição. No caso em tela, entende-se que os alunos verbalizaram a percepção de que a prática pedagógica desenvolvida no componente curricular integrou a teoria e a prática.

Também há que se considerar a questão da teoria e da prática em relação ao conteúdo técnico-agronômico. Os alunos que cursam o componente curricular Melhoramento, Variedades e Porta-Enxertos estão no terceiro ano do Ensino Médio Técnico, portanto, são concluintes do curso e não haviam ainda tido a oportunidade de desenvolver projetos agrícola-produtivos mais complexos (identificando um problema, estudando sobre esse problema e buscando uma solução, para, finalmente, refletir sobre o tema em questão), a partir do conceito de práxis (PIMENTA; LIMA, 2012). Assim, espera-se que essa experiência integradora possa inspirá-los para que, na futura condição de técnicos, não cindam teoria e prática ao desenvolverem suas práticas profissionais.

Outrossim, destaca-se a percepção quanto ao aspecto de autoria, quando afirmam que a atividade propiciou realização pessoal, sendo autores. Compreendemos que isso está conectado com o que Ramos (2008) entende ser o sentido filosófico para a formação integrada, a formação como omnilateralidade, integrando ciência, trabalho e cultura, num sentido que trabalho é criação, é produção humana, e contribui para a edificação da autonomia intelectual dos alunos (RAMOS, 2008; BAZZO, PEREIRA e BAZZO, 2016).

Outro aspecto foi a importância para o currículo escolar: para os alunos, a experiência foi uma oportunidade de integração de diversos aspectos da formação, posto que exigiu conhecimentos em Língua Portuguesa, Matemática, Viticultura, entre outros. Os conhecimentos destas áreas foram mobilizados para o estudo, a escrita, o desenvolvimento das metodologias de pesquisa, assim como, para a execução do experimento (este, com o rigor de uma pesquisa científica, também destacado pelos alunos no grupo focal). E, finalmente, possibilitou a reflexão, através da discussão de resultados e a redação do artigo e, ainda, do próprio grupo focal, em que debateram e refletiram sobre o trabalho realizado. É uma experiência integradora também no sentido de relacionar o Ensino Médio à Educação Profissional, tal qual Ramos (2008) destaca como sendo um dos três sentidos da integração.

Na categoria Tecnologia destaca-se: métodos não agressivos ao meio ambiente, maior conhecimento sobre os fungicidas (naturais, no caso), maior conhecimento sobre os pulverizadores, citados pelos alunos. A temática ambiental é relevante na contemporaneidade, pois a existência humana, como bio isto é, ser de vida, não prescinde da natureza para viver, pois somos dependentes de alimentos saudáveis, do meio ambiente saudável, para também termos uma vida saudável (GLIESMMAN, 2000; CARNEIRO et al, 2015; DÍAZ, SETTELE e BRONDÍZIO, 2019).

Ademais, também é importante refletir sobre as tecnologias como construção social da humanidade. A maioria das tecnologias convencionais de produção de uvas estão baseadas tão somente em interesses econômicos, aqui entendidos como alcance de lucro acima dos interesses da ampla maioria da população. No que tange à excessiva utilização de agrotóxicos para produção de uvas no Rio Grande do Sul, pode-se afirmar, em consonância com Wünsch e colegas (2020), que se trata de uma prática culturalmente consolidada pelos agricultores locais e que interessa, principalmente, a poucas empresas internacionais de agrotóxicos (LONDRES, 2011; CARNEIRO et al., 2015).

Atualmente, a produção de uvas na Serra Gaúcha envolve 11.488 mil famílias de agricultores, com aproximadamente 32.305,98 hectares (MELLO; MACHADO, 2017), realizada, de forma majoritária, no sistema convencional, com uso intensivo de adubos químicos solúveis e agrotóxicos para controle de ervas espontâneas, insetos e doenças das plantas. Segundo avaliações já realizadas, o custo do controle de doenças fúngicas pode representar cerca de 30% dos custos de produção de um vinhedo já implantado (GRIGOLETTI JÚNIOR; SÔNEGO, 1993; ALMANÇA et al. 2015), assim como, há muita discrepância entre os manejos utilizados na região. Lazzarotto e colegas (2016) observaram que os custos variáveis podem representar desde 26% do preço de venda da uva até custar mais do que o preço de venda, ou seja, acarreta prejuízo ao produtor.

Em levantamento feito em vinhedos no Rio Grande do Sul e Santa Catarina, Lazzarotto e colegas (2016) apontam problemas relacionados com as práticas adotadas em vinhedos:

 

a viticultura gaúcha e catarinense ainda é deficitária no emprego de instrumentos gerenciais importantes, como o planejamento estratégico, a análise de projetos de investimento e o controle de custos de produção”. [...] referente a questões tecnológicas [...] existem limitações relevantes quanto a conhecimentos e adoções de determinadas práticas recomendadas para a atividade vitícola (LAZZAROTTO et al., 2016, p. 47).

Porém, também há na região a produção orgânica de uvas, embora em número minoritário, mas ainda assim considerável de agricultores (280), em cerca de 800 hectares, sendo especialmente direcionado para produção de suco de uva integral. Fazer o sistema orgânico crescer depende do desenvolvimento de soluções para o controle de doenças das plantas, tecnologias que oxalá poderiam também ser utilizadas pelos agricultores convencionais.

Para o desenvolvimento da experiência ora relatada, buscou-se inspiração nos conceitos e princípios da agroecologia, tal como definido por Gliesmman (2000) e, por isso, ocorreu a escolha de extrato de cinza, extratos de plantas, e microrganismos de controle biológico para manejar as doenças da videira.

        Deste modo, ainda no âmbito da categoria Tecnologia, os alunos destacaram que foram empregados Métodos não agressivos ao meio ambiente, tal como o extrato de cinzas de madeira, produto facilmente disponível para os agricultores, que se mostrou o mais eficiente e é um recurso de baixo custo, praticamente um resíduo sem valor. Esse tipo de produto se constitui em solução tecnológica aderente à agroecologia.

É fundamental se observar que a tecnologia e a ciência produzidas e utilizadas também são históricas e sociais. Portanto, é fundamental ter claro que toda a tecnologia e a ciência no atual tempo histórico estão entremeadas à uma concepção de mundo e à uma estrutura econômica de produção. Obviamente que o que foi produzido pela humanidade ao longo da história é o substrato fundamental para a suprassunção da realidade social posta - conduzida em especial pela classe trabalhadora, a maior interessada na transformação a sociedade - porém, frente a esse substrato e utilizando-se dele, é preciso que se compreenda de forma crítica a ciência e a tecnologia atual; é preciso que se compreenda as suas relações, os interessados no seu uso, seus potenciais e limitações. Ademais, para que se caminhe para a construção de outra sociedade, é preciso começar a se conceber outra ciência e outra tecnologia, pertinentes à uma sociedade profundamente transformada. Por exemplo, ao se observar as propostas produtivas pautadas na agroecologia, muitos conhecimentos já estão disponíveis. Por outro lado, existe uma vasta possibilidade e, também, necessidade de produção de ciência e de tecnologia pautada nesta perspectiva de produção e de interação do ser humano com a natureza.

Refletir sobre a quem se deve servir, na condição de técnicos, profissionalmente, por certo é desafiador visto incorrer na necessidade de se compreender a sociedade na sua concretude. Todavia, essa reflexão é necessária na sala de aula, pois é indispensável refletir, em uma instituição pública de educação na qual prepara-se técnicos, sobre a postura profissional acerca do uso indiscriminado de agrotóxicos, especialmente considerando-se que a sociedade é que financia essa educação. São necessárias autonomia e consciência crítica. Nesse sentido, Bazzo, Pereira e Bazzo (2016, p. 17) são enfáticos ao afirmar: “A sociedade contemporânea clama por respostas às dúvidas de nosso convívio com o excesso de tecnologia na vida de cada um”. Ainda segundo esses autores, as tecnologias, sendo criações humanas, reúnem complexas implicações sociais, ecológicas e humanas. Assim, quando unimos no Ensino Médio a Educação Profissional, é imprescindível que haja a reflexão sobre essas tecnologias, pois o desafio se localiza em possibilitar aos técnicos uma formação integrada, desde uma perspectiva histórico-crítica.

Na categoria Sociedade, levantou-se, no grupo focal, questões importantes para ilustrar a reflexão permitida por essa experiência integradora, conforme afirmaram os alunos: perspectiva do pequeno agricultor; uso de métodos baratos e alternativos; agricultores sem mecanização. É fundamental, dentro de uma concepção de formação integrada vinculada ao exercício profissional, que um técnico compreenda criticamente a realidade social em que atuará, isto é, é preciso que tenha uma leitura crítica do mundo.

Assim, considerar a perspectiva do pequeno agricultor é um ato de significativo valor ético, pois entender e colocar-se na perspectiva de quem labuta arduamente para a construção de sua sobrevivência, na relação direta com o meio ambiente, produzindo alimentos, pressupõe visão crítica e autônoma sobre o modelo que sustenta o sistema de produção de alimentos no mundo capitalista (GLIESSMAN, 2000; ALTIERI, 2004; SCHNEIDER, 2010).

No mesmo sentido Freire (1996) afirma que o progresso científico e tecnológico que não respondem às necessidades humanas de existência perdem o significado, pois não é segundo a perspectiva apenas do mercado e do lucro que se pode sustentar o dito progresso científico e tecnológico. Exemplo disso é que, quando os alunos percebem que existem ferramentas eficientes, expressado pelo uso de métodos baratos e alternativos (usando um extrato de cinza de madeiras, como foi o caso do experimento relatado), verificam que não necessariamente precisam lançar mão de produtos comercializados por alguma multinacional de agrotóxicos, o que gera liberdade ao agricultor, ao técnico e, por fim, à sociedade, pois é eficiente como tecnologia, assim como é socialmente justa.

Isso vem ao encontro do que Ramos (2014) afirma acerca da escola, pois para a autora, esse é o espaço de se refletir sobre a vida produtiva do país, sobre como a sociedade divide o trabalho e ainda sobre como gera-se e distribui-se riqueza. Ainda segundo a autora, é preciso considerar que uma formação omnilateral pressupõe a construção de experiências que permitam aos sujeitos compreender os fundamentos da base produtiva e conhecer os fundamentos históricos, sociais, filosóficos e culturais desse sistema de produção.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O ser humano é um ser social, que se constitui historicamente. O seu caráter humano é constituído. Assevera-se tal aspecto para demonstrar ser fundamental a constituição também dos trabalhadores da educação. É necessário que esses se apropriem tanto de concepções de mundo, quanto de práticas de trabalho transformadoras, para que a educação que esses elaboram também seja uma prática transformadora dos indivíduos e da realidade. Nesta perspectiva, também é fundamental que os trabalhadores da educação visualizem no devir histórico a possibilidade de construção de uma sociedade profundamente transformada.

Se por um lado, demonstra-se neste estudo e na atuação docente aqui apresentada, o amplo potencial de uma educação integral e integradora, por outro lado, explicita-se também limitações na experiência docente realizada, e também, os desafios de se implantar uma prática educacional lastreada em uma concepção teórica considerada pertinente para uma formação ampla e transformadora.

Tratou-se de uma educação integral e integradora em grande medida apartada no curso. Se outros professores estivessem envolvidos de forma conjunta nesta prática docente, poder-se-ia ampliar em muito a omnilateralidade e a complexidade da educação ofertada, abordando-se, por exemplo, a história da domesticação dos vegetais, e especificamente, das videiras; as possibilidades e fragilidades desta interação e transformação da natureza, na forma como ocorreu historicamente, sendo que ao se adotar o cultivo na forma de monoculturas, se expressa em todo o seu potencial o desequilíbrio do ambiente, ou do microambiente, implicando na propagação desordenada dos fungos; poder-se-ia estudar a interação dos fungos com as plantas, e por sua vez, a função dos fungos na natureza; poderia ter havido a discussão de que, a partir do momento em que a produção ocorre para se tornar uma mercadoria, o interesse primordial passa a ser a mais-valia obtida do trabalho não pago, passando a estar subsumida nesta questão central a forma como ocorre a produção, os insumos utilizados, e as relações sociais. Por sua vez, os próprios insumos se tornam mercadoria, gerando complexas relações sociais.

É nesse sentido que se coaduna com Ramos (2014), ao ponderar que a concepção de formação integrada necessita, para atender o sentido filosófico da formação omnilateral, oportunizar nos currículos e na prática pedagógica as dimensões fundamentais da vida, possibilitando que se questione como fazer, nos currículos, o diálogo entre esses distintos campos do conhecimento, pois o ensino não deveria se dar de modo estanque em cada componente curricular. Antes, há que se pensar em condições concretas, estruturais, para que haja nos currículos espaço para projetos que potencializam as diversas experiências integradoras possíveis.

Além disso, pode-se afirmar também que não é incomum os estudantes participarem de projetos de pesquisa, ensino e extensão, conduzido por professores, na condição de bolsistas ou voluntários. Todavia, são projetos dos quais não participam desde sua concepção, pois são selecionados após a aprovação destes projetos em editais específicos. Além disso, nesses projetos participam poucos alunos e em geral o debate ou discussão acaba restrita às mostras científicas e tecnológicas e eventos similares, normalmente não havendo muito espaço no dia a dia da sala de aula para debater e aprender sobre os projetos executados, de modo que a maioria dos estudantes concluem sua formação profissionalizante sem ter a oportunidade de participar de uma pesquisa.

No estudo apresentado, uma turma inteira foi envolvida no mesmo projeto, o que permite perceber que a construção de experiências como essa contribuem para a efetivação da formação integral, rompendo com a dicotomia entre o ensino básico e o profissionalizante, assim como, com a fragmentação curricular. Pois, a partir de um tema agronômico, isto é, o controle de doenças na cultura da videira usando metodologia de experimentação agrícola, os alunos protagonizaram uma experiência pedagógica que gerou as reflexões no campo do conhecimento, da tecnologia e da sociedade.

Sabe-se que há a possibilidade de que muitos estudantes de cursos técnicos integrados ao Ensino Médio não se tornarão pesquisadores no sentido estrito, mas é possível que atividades como a relatada despertem essa potencialidade, que, afinal, conforme Ramos (2014), é uma das finalidades da formação integral. Também se entende que experiências integradoras oportunizam o diálogo entre Ciência, Tecnologia e Sociedade, de modo que podem ser uma ferramenta a mais para ampliar a formação integral dos estudantes. Além disso, é oportuno que se possibilite aos alunos a formação de um olhar de pesquisador, que possibilitará inquirir a realidade e o acompanhará em todos os meandros de sua vida profissional, mesmo que fora da pesquisa institucionalizada.

É preciso andar e que esse andar possa também ser momento de aprender e ensinar. As contradições, dificuldades e limites não podem ser empecilhos para que não se avance na busca da formação integral. Somente fazendo, dialogando e refletindo na comunidade escolar que se pode construir uma educação cada vez mais omnilateral, emancipadora e crítica, capaz de permitir o amplo desenvolvimento do ser humano.

Referências

ALMANÇA, M.A.K.; LERIN, S.; CAVALCANTI, F.R. Doenças da videira. Informe Agropecuário, v.36, n. 289, p. 7-12, 2015.

 

ALTIERI, M. Agroecologia: a dinâmica produtiva da agricultura sustentável. 4.ed. Porto Alegre: UFRGS, 2004, 110 p.

BAZZO, W. A.; PEREIRA, L. T. V., BAZZO, J. L. S. Conversando sobre educação tecnológica. 2. ed. Florianópolis: UFSC, 2016, 204 p.

BAZZO, W. A. Ciência, tecnologia e sociedade: e o contexto da educação tecnológica. 5. ed. Florianópolis: UFSC, 2017, 294 p.

BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da Educação Nacional. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em 22 jul. 2019.

BRASIL. Lei nº 11.892, de 29 de dezembro de 2008. Institui a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, cria os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11892.htm. Acesso em 22 jul. 2019.

CARNEIRO, F. F. et al. (Orgs.). Dossiê ABRASCO: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Rio de Janeiro: EPSJV. São Paulo: Expressão Popular, 2015, 624 p.

DÍAZ, S., SETTELE, J., BRONDÍZIO, E.  Summary for policymakers of the global assessment report on biodiversity and ecosystem services of the Intergovernmental Science-Policy Platform on Biodiversity and Ecosystem Services. 2019. Disponível em: https://www.ipbes.net/news/ipbes-global-assessment-summary-policymakers-pdf. Acesso em 19 de maio de 2019.

IFRS. Projeto Pedagógico Institucional. 2011. Disponível em: https://ww1.ifrs.edu.br/site/midias/arquivos/201226102555931ppi_versao_final.pdf. Acesso em 29 de maio de 2019.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo, Paz e Terra, 1996, 166 p.

GLIESSMAN, S. R. Agroecologia: processos ecológicos em agricultura sustentável. Porto Alegre: UFRGS, 2000, 653 p.

GRIGOLETTI JÚNIOR, A; SONEGO, O.R. Principais doenças fúngicas da videira no Brasil. Bento Gonçalves: Embrapa Uva e Vinho, 1993. (Circular Técnica, 17).

LAZZAROTTO, J.J.; TAFFAREL, J.C.; MONTEIRO, R. Caracterização e Análise de Aspectos Sociais, Tecnológicos e Econômico-Financeiros da Viticultura Gaúcha e Catarinense. Bento Gonçalves: Embrapa Uva e Vinho, 2016. 54 p.

LONDRES, F. Agrotóxicos no Brasil: um guia para a ação em defesa da vida. Rio de Janeiro: AS-PTA, 2011, 190 p.

MELLO, L. M. R. de; MACHADO, C. E. (Editores Técnicos). Cadastro Vitícola do Rio Grande do Sul: 2013 a 2015. Brasília, DF: Embrapa, 2017.

MOURA, D. H.; LIMA FILHO, D. L.; SILVA, M. R. Politecnia e formação integrada: confrontos conceituais, projetos políticos e contradições históricas da educação brasileira. Rev. Bras. Educ., Rio de Janeiro, v. 20, n. 63, p. 1057-1080, dez. 2015.

NUSSBAUM, M. C. Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades? São Paulo, SP: Martins Fontes, 2015, 153 p.

PACHECO, E. (Org). Perspectivas da educação Profissional técnica de nível médio: proposta de Diretrizes Curriculares Nacionais. São Paulo: Moderna, 2012, 144 p.

PIMENTA, S. G., LIMA, M. S. L. Estágio e docência. 7. Ed. São Paulo: Cortez, 2012, 296 p.

RAMOS, M. N. Concepção do Ensino Médio Integrado. Texto apresentado em seminário promovido pela Secretaria de Educação do Estado do Pará nos dias 8 e 9 de maio de 2008. Disponível em:  http://forumeja.org.br/go/sites/forumeja.org.br.go/files/concepcao_do_ensino_medio_integrado5.pdf. Acesso em 28 mai. 2019.

RAMOS, M. N. Ensino médio integrado: da conceituação à operacionalização. In.: Cadernos de Pesquisa em Educação. PPGE/UFES, Vitória, ES. a. 11, v. 19, n. 39, p. 15 - 29, jan./jun. 2014.

RAJOBAC, R. Formação profissional e tecnológica na era Lula: notas sobre a redução da bildung (formação cultural) na atualidade. Educação por Escrito. PUCRS, v.2, n.2, jan. 2012.

REGATTIERE, M.; CASTRO, J. M. (Orgs.). Ensino Médio e Educação Profissional: desafios da integração. 2 ed. Brasília: UNESCO, 2010, 270 p.

SCHNEIDER, S. Situando o desenvolvimento rural no Brasil: o contexto e as questões em debate. Economia Política, v. 30, n. 3 (119), p. 511-531, julho-setembro de 2010.

SCHWEDE, M. A.; LIMA FILHO, D. L. Aproximações e distanciamentos da C&T da educação dos trabalhadores nos institutos federais. Argumentos Pró-Educação, Pouso Alegre, v. 3, n. 7, p. 249 – 266, jan. – abr., 2017.

SCHWEDE, M. A. A ciência e a tecnologia entre projetos de sociedade em disputa: O caso do IFSC. 2015. 327 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Mestrado em Tecnologia e Sociedade, Programa de Pós-graduação em Tecnologia e Sociedade, Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Curitiba, 2015.

SETEC. Educação Profissional Técnica de Nível Médio integrada ao Ensino Médio: documento base. 2007. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/setec/arquivos/pdf/documento_base.pdf. Acesso em 29 de maio de 2019.

SETEC. Um novo modelo em educação Profissional e Tecnológica. Concepção e Diretrizes. 2010. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=6691-if-concepcaoediretrizes&category_slug=setembro-2010-pdf&Itemid=30192. Acesso em 29 de maio de 2019.

WÜNSCH, Paulo Roberto; RUPP, Luis Carlos D.; ALMANÇA, Marcus André K. O uso ou desuso de EPIs na aplicação de agrotóxico na videira. In: SOARES, Franco Nero A.; TREVISAN, Janine B. (Orgs.). Humanidades: reflexões e ações. Bento Gonçalves, RS: IFRS, 2020. p. 71-82.

VEIGA, J. E. A emergência socioambiental. São Paulo: Senac São Paulo, 2007, 144 p.

VEIGA, J. E. Desenvolvimento Sustentável: o desafio do século XXI. 3. ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2008, 220 p.

VEIGA, I. P. A. (Org). Projeto político-pedagógico da escola:  uma construção possível. São Paulo: Papirus, 29. ed., 2011.

 

WELLER, W., PFAFF, N. (Orgs.). Metodologias de pesquisa qualitativa em Educação. 3. ed., Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, 336 p.

This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International (CC BY-NC 4.0)