Filosofia e Ciências Humanas:

Uma leitura discursiva da BNCC

 

Philosophy and Human Sciences:

a discursive reading from BNCC

 

 

 

Kleber Santos Chaves

Secretaria de Educação do Estado da Bahia (SEC/BA)

kleber.ksc2@gmail.com - https://orcid.org/0000-0002-8005-1865

 

 

Maria de Fatima Hanaque Campos

Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas, Bahia, Brasil

mhcampos@uneb.br - https://orcid.org/0000-0002-7832-9872

 

 

Benedito Gonçalves Eugênio

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Departamento de Filosofia e Ciências Humanas, Bahia, Brasil

benedito.eugenio@uesb.edu.br - https://orcid.org/0000-0002-5781-764X

 

 

Recebido em 12 de agosto de 2020

Aprovado em 27 de julho de 2021

Publicado em 01 de agosto de 2022

 

RESUMO

Neste trabalho, aportamo-nos na Teoria do Discurso de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe para interpretar, de maneira discursiva, o documento de política pública instituído pelo Ministério da Educação do Brasil, que conformou a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Nosso objetivo foi analisar a posição da Filosofia no campo das Ciências Humanas, por meio de uma leitura discursiva da BNCC. Para tanto, identificamos os significados que o texto da Base Comum emprega tanto à Filosofia quanto às Ciências Humanas, relacionando tais significados para chegarmos à fase analítica. Com isso, a metodologia centrou-se em uma análise documental da BNCC e de documentos correlatos. Os resultados alcançados demonstram que existe um movimento de desvalorização das Humanas, e quase um total silenciamento da Filosofia no texto da Base Comum.

Palavras-chave: Filosofia; Ciências Humanas; BNCC.

 

ABSTRACT

In this work, we approached the Discourse Theory of Ernesto Laclau and Chantal Mouffe to interpret, in a discursive way, the public policy document established by the Brazilian Ministry of Education, which formed the National Common Curriculum Base. Our goal was to analyze the position of the Philosophy in the field of Human Sciences through a discursive reading of BNCC. Therefore, we identify the meanings that the text of the Common Base employs both Philosophy and to Human sciences, relating such meanings to reach analytical phase. Thus, the methodology focused on a document analysis of the BNCC and related documents. The results achieved demonstrate that there is a movement of devaluation of the Humanities and almost a total silencing of Philosophy in the text of the Common Base.

Keywords:  Philosophy; Human sciences; BNCC.

 

Introdução

Partindo do texto da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), investigamos os discursos acerca do ensino de Filosofia nesse documento, com o objetivo de analisar a posição da Filosofia no campo das Ciências Humanas, por meio de uma leitura discursiva da BNCC. Para tanto, foi necessário identificar o significado de Ciências Humanas e de Filosofia dentro do texto curricular, a fim de evidenciar a relação que a Base Comum estabelece entre os significados da disciplina com a grande área das Ciências Humanas.

Nosso interesse pela investigação teve início quando, no contato com o texto da Base Curricular, percebemos alguma negligência - aparentemente deliberada – no posicionamento tanto das Ciências Humanas quanto do ensino de Filosofia. Além disso, reforçou essa ideia, o contexto de fixação da BNCC, marcadamente a aprovação, por medida provisória (MPV), de uma reforma (mais, uma mudança radical) no Ensino médio brasileiro (BRASIL, 2017b).

Ao realizarmos uma revisão de literatura e uma pesquisa exploratória[i], percebemos que são poucos os trabalhos que analisam a BNCC em relação às ciências humanas e/ou mesmo em perspectiva discursiva. Das poucas exceções encontradas, destacam-se os trabalhos de Costa e Lopes (2018) e Jurach e Possani (2019).

Dadas as lacunas encontradas nesta investigação preliminar e a potência problematizadora apresentada por Ernesto Laclau e Chantal Mouffe em sua Teoria do Discurso, decidimos, em nossa pesquisa, promover uma leitura discursiva da BNCC, de modo a evidenciar os sentidos de Filosofia e de ciências humanas produzidos no texto curricular.

Desse modo, apresentamos, na primeira sessão do texto, como aporte teórico, o contexto de construção da teoria e os conceitos que, nesta pesquisa, foram por nós acionados para leitura e interpretação dos dados. Para chegarmos a tal interpretação, na segunda sessão, de delimitação metodológica, apresentamos o caminho percorrido para que, na terceira sessão, sintética, tivéssemos as condições de análise.

Finalmente, cabe sinalizar que, como professores, relacionados direta ou indiretamente, no trabalho ou pesquisa, com a área de Filosofia e com seu ensino, esta investigação se impõe como dever de não estarmos omissos diante da fixação, que se pretende hegemônica, de alguns discursos que desqualificam e constrangem as Ciências Humanas e a Filosofia.

Diante disso, nosso trabalho é uma voz antagônica, um gesto – que é também ato discursivo – de contradição a esse discurso e, finalmente, uma tentativa de articulação a outros projetos semelhantes para afirmar a indispensável colaboração que o campo das Ciências Humanas e a Filosofia têm dado à epistemologia geral.

 

 

Pela teoria do discurso, os sentidos de Humanidades, Ciências Humanas e Filosofia

 

Nossa pesquisa parte de uma perspectiva epistemológica de caráter pós-estruturalista e pós-fundacionalista. Nesse sentido, o primeiro tópico desta sessão contextualiza epistemologicamente a Teoria do Discurso (doravante, TD) em seu campo.

De antemão, é válido sinalizar que a TD não tem origem no campo educacional, mas na Ciência política. Trabalhos como os de Alice Casimiro Lopes e Elisabeth Macedo (2011) e Alice C. Lopes, Anna Luiza Oliveira e Gustavo Gilson Oliveira (2018) demonstram, de maneira enfática, a potência da TD no campo da pesquisa educacional.

Dito isso, no tópico segundo, apresentamos os conceitos mais importantes da Teoria do Discurso que acionamos para interpretação dos dados gerados em nossa pesquisa. Operando com esses conceitos, foi possível perseguir o objetivo de empreender uma leitura discursiva dos documentos apresentados e detalhados na sessão metodológica deste artigo. Finalmente, dedicamos o último tópico dessa sessão para situar as Humanidades e conceituar o campo das Ciências Humanas e da Filosofia presentes no texto da BNCC.

 

A teoria do discurso em seu contexto epistemológico

 

 

A Teoria do Discurso de Laclau e Mouffe (2015a) apresenta rupturas com alguns movimentos epistemológicos anteriores. Certamente, a mais contundente dentre essas é a cisão com o marxismo, apresentado em detalhes no texto intitulado Pós-marxismo sem pedidos de desculpa, que no Brasil compõe parte da obra de Lopes e Mendonça (2015).

Laclau e Mouffe (2015b) entendem que o sentido de “acabamento” de uma perspectiva teórica é impossível. Não pode uma teoria estar acabada, porque a realidade, donde se formulam as teorias, nunca estará. Ocorre, porém, que algumas perspectivas teóricas hegemônicas, como correntes mais ortodoxas do marxismo, após fixarem-se no campo teórico, tencionam para que toda epistemologia seja pensada a partir de seus próprios conceitos e categorias.

Discordantes desse movimento de fixação (que se pensa essencializante), os autores lembram que a sua obra objetiva recordar que

 

[...] essa história do pensamento contemporâneo é também uma história interna do marxismo, que o pensamento marxista também tem feito um esforço persistente para se adaptar à realidade do mundo contemporâneo e progressivamente se distanciar do essencialismo [pois] pensávamos que estávamos contribuindo para a revitalização de uma tradição intelectual (LACLAU; MOUFFE, 2015b, p. 59-60, grifo dos autores).

 

Ocorre que a Teoria do Discurso foi construída em uma realidade na qual as demandas, que movimentaram os elementos para sua construção já não eram passíveis de (adequada) compreensão pelos instrumentos do marxismo, do estruturalismo e do fundacionismo. Isso implica uma superação de muitos dos paradigmas dessas correntes com a afirmação de paradigmas pós: pós-marxista, pós-estruturalista, pós-fundacionista.

Por esse movimento de constante complexificação da realidade e consequente ampliação da complexidade das correntes teóricas, entendemos que as teorias precisam ser apresentadas não mais no singular, porque já não existe um consenso tal que una os pensadores de uma mesma corrente de maneira coesa. Por conta disso, é chegado o tempo de afirmações no plural: marxismos, estruturalismos, pós-estruturalismos, e tantos mais.

Cabe ainda ressaltar que, em relação ao estruturalismo, o pós-estruturalismo se difere “pela defesa da flutuação de sentidos do significante e pela desestruturação da unidade do signo” (LOPES, 2013, p. 13). Ou seja, a estrutura – como qualquer parte constituinte da realidade – tem um significado que lhe é atribuído pelo discurso. Sendo o discurso uma unidade precária – que não é suturada – nenhuma parte da realidade – nem mesmo a estrutura - nem ela como um todo possui um significado definitivo. Isso permite que todos os significados flutuem ao sabor das articulações hegemônicas.

Por isso também, apesar da nomenclatura, a Teoria do Discurso não se confunde com a Análise do Discurso (AD). A AD é uma ciência que estuda a estrutura do texto e procura compreender as construções ideológicas nele presentes. De origem estruturalista, Pêcheux é considerado seu fundador. O discurso é uma construção linguística, produzido no contexto social de desenvolvimento do texto. Em uma perspectiva pós-estrutural, o discurso não é a linguagem em si produzida no texto, mas uma ferramenta metodológica para a compreensão dos efeitos de sentidos e de vontade de verdade nas relações de saber/poder, como em Foucault. Certamente, existe espaço para o diálogo entre essas expressões epistemológicas[i], contudo existem peculiaridades, como apontam Andrade (2013) e Scirea (2015), que conformam a cada uma e as distinguem.

Tendo compreendido, até aqui, que “não é a estrutura em si que é posta em xeque, mas a forma essencialista como a mesma tinha sido tratada” (MENDONÇA; RODRIGUES, 2014, p. 39), resta apresentar as implicações da tonalidade pós-fundacional com que o pós-estruturalismo foi constituído e nas quais se posiciona a Teoria do Discurso.

Para tanto, é necessário trazer outra perspectiva teórica que dialoga com nosso aporte. Trata-se do desconstrucionismo de Jacques Derrida (2002). De maneira sintética, com Derrida, o pós-fundacionalismo afirma a impossibilidade de existência, nela mesma, de um centro fundante da estrutura. Isto é, como a estrutura, ela mesma, é construída e, como toda construção, é discursiva, sendo todo o discurso precário. Assim, não pode a estrutura possuir um fundamento (totalizante) que se sustente desde sempre e para sempre em si mesmo. Ou seja,

 

 

[...] pode-se determinar de outro modo a não totalização: não mais sobre o conceito de finitude como assignação à empiricidade mas sob o conceito de jogo. Se então a totalização não tem mais sentido, não é porque a infinitude de um campo não pode ser coberta por um olhar ou um discurso finito, mas porque a natureza do campo – a saber a linguagem e uma linguagem finita – exclui a totalização: este campo é com efeito o de um jogo, isto é, de substituições infinitas de fechamento de um conjunto finito (DERRIDA, 2002, p. 244, grifos do autor).

 

 Por esse motivo, sendo a realidade um discurso, ainda que seja nosso desejo fixar algum significado às coisas na realidade, e fixá-lo de uma vez por todas, essa é justamente uma impossibilidade constituinte da realidade discursiva. Sendo assim, sempre haverá uma falta, uma carência de um significado definitivo que será preenchido por um significado provisório. Essa “falta constitutiva significa justamente que, sendo impossível alcançar o sentido [...], a consequência é a eterna tentativa de cobrir esta falta a partir do preenchimento contingente de sentidos parciais” (MENDONÇA; RODRIGUES, 2014, p. 43).

Chegando a esse ponto, é inadiável fazermos a apresentação do discurso como entendido nesse campo teórico. De antemão, alertamos que ele não é apenas um referente para um conjunto de palavras ou escrito. Discurso, em nossa perspectiva, tem um sentido ontológico.

 

 

Discurso, discursividade e sentido

 

Discurso é uma das mais importantes categorias teóricas engendradas pelo esforço de Laclau e Mouffe (2015a). Entretanto, não consegue, sozinho, dar conta do exercício de explicação da realidade. Evidenciamos – inclusive pelos usos feitos acima - que uma característica marcante dessa teoria é o denso arco conceitual que se articula para explicar, demonstrando, que a realidade – porque discursiva – é um todo que significa sempre em interação. Não estamos mais trabalhando com signos sujeitos a significados (Saussure), mas com jogos de linguagem (Wittgenstein), em que significados se referem a outros significados.

 

O discurso, nesse sentido, é linguístico e não-linguístico. De modo algum, deve ser confundido com o puro ato de fala. A abrangência do discurso alcança as ações, os gestos, os não-ditos; enfim, chega a toda realidade disposta de algum significado, faz parte do todo, de uma realidade discursiva. Laclau e Mouffe chegam a dizer que “fora de qualquer contexto discursivo, os objetos não têm de ser, eles só têm existência” (LACLAU; MOUFFE, 2015b, p. 43, grifo dos autores). Ora, se por um lado dar-se a existência independe do significado, por outro o ser do elemento só é dado quando o conhecemos, pois somos nós seus construtores.

A partir daqui, compreendemos a gravidade de afirmarmos a realidade como discursiva. Cabe, contudo, distinguir o ser que é dado de maneira discursiva de um ser metafísico. O último é compreendido como o ser absoluto e supremo, que existe de maneira independente de todo o mais (como o primeiro-motor aristotélico) ou como um ente que, ainda que dependente, possui uma substância imutável (um centro fundante), essencial, que não permitiria uma mudança completa de significado (identidade).

Enquanto isso, o ser discursivo - significado - é dado ao elemento quando conhecido e em relação direta a outros significados. Quando descobrimos um novo planeta, o fato de o classificarmos como “planeta” implica construirmos inúmeras relações desse elemento com outros, tais como universo, galáxias, estrelas, cometas. O significado atribuído – planeta – inclusive distingue esse dos demais elementos com os quais ele se relaciona.

Apesar disso, essa nomeação e significado são provisórios. Não sustenta uma essência constituinte definitiva (um centro fundante), pois, em dado momento, outra cadeia discursiva pode ser evocada e aquele planeta ser reclassificado por “planetoide”, o que muda a sua identidade. Tal mudança, se ocorre, é justamente por conta da sua abertura, da sua não-saturação, da sua não-essencialidade.

Com isso, percebemos que o significado permanece pelo tempo indeterminado do movimento hegemônico que o produziu. Hegemonia é o resultado de articulações, que é um conjunto de associações entre diferentes que renunciam a algumas dessas diferenças em prol de um significado de equivalência. Esses diferentes são os elementos, as partes de menor carga significativa da totalidade discursiva. A reunião de elementos diferentes em torno desse significado comum gera um momento. O “em torno”, na TD, é conhecido por ponto-nodal, isto é, o nó a partir do qual se amarram diferentes elementos para, provisoriamente juntos, significarem um momento hegemônico.

Nessa apresentação, é válido recordar que a origem dessa teoria é o campo das ciências políticas, por isso o tom é sempre de tensão. Contudo, a realidade mesma, por que discursiva, ou seja, por que significada pela reunião de elementos distintos com um fim determinado, também pode ser entendida como realidade política.

Aceita essa configuração de realidade, podemos recordar que um momento hegemônico, uma vez estabelecido, não o fará em definitivo, isso porque, paralelo à formação da hegemonia, forma-se o antagonismo. Por sua vez, antagonismo é um conjunto de elementos que, por algum motivo, não conseguiu aglutinar significativamente as forças necessárias para hegemonizar e que, por isso, tensiona o hegemônico, gerando dois efeitos.

Por conta do antagônico, o hegemônico nunca será pleno, sempre haverá questionamento à sua fixação. Mais do que isso, o projeto do antagônico é chegar ao posto hegemônico, o que deixa a hegemonia, apesar de sua força, sempre em uma posição de ameaça.

Isso posto, é dado o momento em que discursividade já pode ser compreendida como o modo como a realidade é construída. A atribuição de um significado gera um sentido para determinado arranjo hegemônico. A conferência desse atributo ocorre e se sustenta na discursividade, pois a realidade mesma – como apresentado – é discursiva.

 

 

As Humanidades, as Ciências Humanas e a Filosofia

 

Nesse ponto, decidimos fazer um breve retorno para compreender de que modo as antigas Humanidades, as Ciências Humanas e a Filosofia se intercruzam no histórico da epistemologia.

Para tanto, partimos dos roteiros dos franceses Chervel e Compère (1999), que fazem uma apresentação histórica das Humanidades, antes de serem um campo do conhecimento e o processo de aglutinação que gerou as Ciências humanas; e dos brasileiros Julia Matos (2016) e Silvio Gallo (2013), com foco nas disciplinas de História e Filosofia, respectivamente.

As chamadas Humanidades não eram propriamente um campo epistemológico em sua primeira formulação. Na verdade, designava, na França, uma etapa no sistema escolar: “elas constituem a quase totalidade do ensino de 5ª a 8ª séries, ao menos nos cursos tradicionais, tanto no Antigo Regime como em dois terços do século XIX” (CHERVEL; COMPÈRE, 1999, p. 150). Ademais, a preocupação “que as humanidades clássicas apresentam” não é com a carreira escolar ou mesmo com a instrução, mas “com uma educação do indivíduo, do espírito, da inteligência, da alma” (CHERVEL; COMPÈRE, 1999, p. 152).

Além disso, é importante destacar que, nesse momento, não se concebiam de maneira rigorosa, como em nosso tempo, as disciplinas enquanto demarcação precisa de uma área. Sobre esse aspecto, Matos (2016) assevera que

 

[...] devemos perceber que o conceito de disciplina e como o mesmo posteriormente nos dias atuais veio a organizar a rotina escolar, não surgiu junto com a escola, pelo contrário, seu nascimento é contemporâneo e fruto de um contexto histórico de consolidação do modelo industrializado e neo-liberal (p. 115).

 

Por não haver a especialização do saber de maneira disciplinar como conhecemos hoje, até esse ponto ainda não era possível falar no campo das Ciências Humanas, já que em nosso tempo tal campo se refere, na Educação básica, às disciplinas de História, Geografia, Filosofia e Sociologia. No entanto, Matos (2016) frisa que, no contexto dos séculos XVI ao XIX,

 

[...] o ensino ainda não era proposto de forma nucleada e a separação dos saberes estava na ênfase das línguas e literaturas antigas. As Humanidades, área mãe das Ciências Humanas, eram compostas principalmente pelo Latim, literatura e retórica e de forma semelhante ao que hoje entendemos ser seu campo, também tinham o homem como centro de interesse (p. 114).

 

Daqui depreendemos que o elo que liga as antigas Humanidades com as atuais Ciências Humanas é que, de formas, por razões e com finalidades distintas, uma e outra eram centradas no Homem (lato sensu).

As Humanidades preocupavam-se na formação desse Homem, de maneira imediata e desligada, o quanto possível, de “distrações”, como a carreira profissional. As Ciências Humanas, por seu turno, têm esse Homem tanto como objeto de estudos, quanto, repetindo a primeira, como destinatário de uma formação que tem objetivos – aqui a distinção – também ligados ao mundo social e, nele, marcadamente a profissão.

Finalmente, cabe-nos situar em que medida a Filosofia se relaciona com o que foi apresentado até aqui, as Humanidades e as Ciências Humanas. Para tanto, incitamos a percepção do quanto é difusa a ideia (do senso comum à academia) que temos a respeito da Filosofia. Muito provavelmente, uma parte, dentre aqueles que a conhecem – ao menos ligeiramente – atestem a sua importância, se não agora, ao menos no passado, como um saber racionalmente sistematizado, do qual, depois, derivam outros saberes.

Não é estranha a apresentação da Filosofia como “mãe de todos os saberes”. Contudo, mesmo considerando essa impressão, a relação da Filosofia com as Humanidades era meramente utilitária, uma vez que seus conceitos serviam de “matéria” para as formas retóricas sustentarem sua argumentação “por mais que os estudos humanísticos se centrassem na formação da competência retórica e não na transmissão de conteúdos [...] os alunos precisavam dos saberes específicos para alimentar seus discursos” (MATOS, 2016, p. 120, grifos nossos).

Tais saberes não eram exclusivamente os filosóficos. Incluam-se aí também os históricos e outros que posteriormente compuseram as Ciências Humanas. Mas um fato de agravo dessa circunstância em relação à Filosofia é que, em relação ao período de estudos das humanidades, ela “permanecia explicitamente excluída, e, ao lado dos colégios que ofereciam toda a variedade de aulas, chamavam-se colégios de humanidades os estabelecimentos nos quais a Filosofia não era ensinada” (CHERVEL; COMPÈRE, 1999, p. 15, grifo nosso)

Sem nos determos muito mais neste aspecto, pelos limites deste trabalho, começamos a encontrar os antepassados dos movimentos hegemônicos que, de algum modo, minimizaram a presença da Filosofia nas escolas.

Vale recordar que o “ensino de Filosofia” é uma questão problemática, inclusive entre os filósofos. Kant, como um exemplo expressivo, alega a impossibilidade do ensino da filosofia, em defesa do ensino do filosofar. Adiante, Derrida também se debruçará sobre essa questão. Gallo (2013), analisando algumas considerações derridarianas, pondera os sentidos paralelos com os quais a mesma se constitui

 

[...] a filosofia é uma dimensão singular do pensamento e presa por aquilo que lhe dá esse tipo de unidade e consistência. Na mesma lógica, o que transborda tal unidade também é filosofia, só que numa relação diferenciada daquela. Por outro lado, a filosofia não é necessariamente aquilo a que corresponde a sua especificidade, ou unidade, e também não se encaixa apenas no que lhe dá essa consistência e, não sendo nem uma coisa nem outra e sim ambas, seria melhor caracterizada se fosse qualificada como localizável e transbordante ao mesmo tempo (GALLO, 2013, p. 12).

 

Por conta desse aspecto da Filosofia que se limita, e ao mesmo tempo transborda o seu limite, ocorrem algumas dificuldades para ela. Basta lembrarmos a configuração escolar, em que cada área está definida rigidamente nos contornos das disciplinas. Talvez por isso, ao analisar o texto da BNCC veremos que esta questão, mesmo tergiversante, está presente no documento, fixando uma posição acessória à Filosofia.

 

 

Caminhos da pesquisa

 

  O corpus da pesquisa: a BNCC

 

A BNCC é um documento de política pública, construído em um momento de profunda tensão política no país, marcadamente os anos de 2014 a 2018. Os trâmites institucionais decisivos ocorreram nos âmbitos do Conselho Nacional de Educação (CNE) e do próprio Ministério da Educação (MEC). Consta no site[i] oficial da Base uma linha do tempo que resume os eventos desse processo.

Cuidadosamente lida, essa linha revela uma mudança de rumos brusca na elaboração da Base Curricular. Tal mudança divide a construção do texto em dois momentos. No primeiro, no governo Dilma Rousseff, havia a participação democrática de vários setores sociais cuja expressão mais destacada eram as Conferências Nacionais de Educação (CONAEs), expressividade que se demonstrava inclusive pelo poder deliberativo das Conferências. Um segundo momento, já no governo de Michel Temer, quando a construção do texto fica restrita à participação (e decisão) de pessoas ligadas a ramos da educação privada, bem como a grupos sociais conservadores[ii].

Esse segundo grupo, responsável pela versão final do texto oficial, fixa uma política curricular que determina, para além de conteúdos oficiais, o retorno das habilidades e competências, a serem desenvolvidas por todos os alunos da educação básica em escolas públicas e privadas de todo país. O texto, tal como disposto, justifica a sua própria existência no aparecimento da expressão “base comum”, tanto na Constituição (BRASIL, 1988) quanto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, LDB (BRASIL, 1996)[iii]. Contudo, existe grande divergência[iv] de que o simples emprego da expressão “base comum”, naqueles textos legais, chamasse à existência um documento de nomenclatura análoga e com fins tão reguladores.

 

Restringimo-nos, neste artigo, as muitas discussões que esses dados de apresentação geram, porque o documento mesmo é conflituoso, conforme apontam os trabalhos de Aguiar e Dourado (2018) e Silva (2015; 2018).

 

Procedimentos

 

Ao investigar a BNCC, mapeamos a recorrência das expressões Ciências Humanas e Filosofia. Para isso, usamos a versão em PDF (portable document format, formato de documento portátil, livre tradução), do texto legal, aplicando sobre o mesmo uma busca por meio da ferramenta “encontrar na página” dos navegadores Internet Explore (M. Software) e Chrome (Google). Normalmente, a ferramenta é acionada pelo comando “CTRL + F”.

Por meio desse procedimento, identificamos o emprego da expressão Ciências Humanas em cento e sete (107) vezes; e vinte e seis (26) da palavra Filosofia. A apresentação de tais dados fica melhor organizada conforme abaixo (quadro 01).

 

Quadro 01 – Emprego das expressões “Ciências humanas” e “Filosofia” na BNCC em seu contexto

CIÊNCIAS HUMANAS (CH)

Parte do texto / Dados

R

P

Descrição contextual do emprego do termo

Sumário

05

4

Aponta a localização de assuntos relativos às CH no decorrer do texto

Apresentação introdutória de competências e habilidades

05

27-34

Posiciona a área das CH e Humanas e sociais aplicadas na educação básica, submetendo-a à aquisição de competências e habilidades

Títulos de capítulos e tópicos

03

353

561

571

Enuncia o propósito do capítulo ou tópico de demonstrar a relação de algum componente da educação básica como as Ciências humanas

Topo de página – marcação de área do texto – E. Fundamental

41

353-433

Marcação gráfica que indica parte do texto relativa às CH no Ens. Fundamental

Topo de página – marcação de área do texto - Ensino Médio

10

469-477

Marcação gráfica que indica parte do texto relativa às Humanas no Ens. Médio

Tópico 4.4 “A área de CH – Ensino Fundamental

17

353-433

Apresentação enfaticamente prescritiva do papel das ciências humanas no Ens. Fundamental. (ver quadro 02)

Tópico 4.5 “O Ens. Religioso”

01

436

Aponta o “conhecimento religioso” como produto dos estudos da área de CH

Cap. 5 “A etapa do Ens. médio”

07

469-477

Essa parte do texto é marcada pela reiteração de competências e habilidades. (ver quadro 02)

Tópico 5.4. “A área de CH e sociais aplicadas”

18

561-

579

A parte mais densa do texto em relação ao tema, relaciona de maneira explícita as CH a História e Geografia. Subentende-se algum apontamento para Filosofa. (ver quadro 02)

FILOSOFIA

Finalidade

R

P

Descrição contextual do emprego do termo

Relacionar a disciplina de Religião no E. Fundamental

20

436-459

Apesar do emprego da palavra, não diz respeito à área de Filosofia propriamente. Apresenta “Filosofia de vida” como uma alternativa à prática religiosa.

Elencar disciplinas

03

33 476

561

Primeira e terceira vez anuncia as disciplinas da área de CH e sociais aplicadas. Segunda vez elenca estudos e práticas.

Anunciar incorporação da disciplina Filosofia no E. Médio

01

472

Anuncia expectativas para as CH, mas não há explicitação direta dos motivos da incorporação ou os benefícios próprios da mesma.

Designar uma subárea da Filosofia

01

556

“História e filosofia da ciência” no momento em que o texto aborda o tema das Ciências Exatas e Naturais.

Relacionar a conteúdo

01

563

Conteúdo “Tempo”, quando o texto se dedica às Ciências Exatas e Naturais.

R: Recorrência; P: página (s).

Fonte: Elaboração própria a partir da BNCC (BRASIL, 2018)

             Depois dessa etapa, filtramos aquelas oportunidades em que as expressões apareciam acompanhadas de uma definição. Esse é um momento decisivo da análise do documento, pois, por meio dele, chegamos ao entendimento do que o texto da BNCC apresenta sobre nosso objeto de investigação.

Então, tendo chegado à definição, restava mapear as relações diretas entre as expressões. Realizando esse passo, pudemos prosseguir para análise discursiva dos significados apresentados para as expressões Ciências humanas e Filosofia.

Tanto a filtragem das definições quanto o mapeamento das relações foram alcançados por meio da leitura mecânica e discursiva do texto. Entendemos por leitura mecânica aquela em que se busca a expressão por ela mesma, independentemente do contexto. Esse mecanismo beira a contagem. Enquanto isso, a leitura discursiva consiste na aplicação do aporte teórico para a interpretação dos dados alcançados na etapa mecânica.

 

Resultados

 

Ao realizarmos a leitura mecânica, ficou evidente que a maior recorrência da expressão Ciências Humanas estava em um contexto de pouco ou nenhum significado definidor da expressão. Das cento e sete vezes em que aparece, apenas em quarenta e duas temos material sobre o qual investigar. Ainda que esse volume seja relativamente pequeno em relação ao todo, pelos limites que essa apresentação comporta, lançamos mão do quadro 02 como aquele em que as informações ficam compiladas e melhor apresentadas.

Nesse ponto, cabe destacar, ainda na leitura do quadro anterior (01), que o emprego da palavra Filosofia não gerou dados para além do que foi exposto antes. Tal fato, bem como os dados que apresentamos no quadro abaixo, serão discutidos no tópico seguinte. Para isso, é necessário considerar a relação de dependências com a qual construímos os quadros 01 e 02.

 

 Quadro 02 – Análise da recorrência significativa da expressão ciências humanas

A área de Ciências Humanas – Ensino Fundamental (tópico 4.4)

Recorrência: 17 vezes

Definições centrais

1 - devem favorecer a compreensão, pelos alunos, dos tempos sociais e da natureza e de suas relações com os espaços (p. 353);

2 - devem estimular uma formação ética, elemento fundamental para a formação das novas gerações, auxiliando os alunos a construir um sentido de responsabilidade (p. 354);

3 - Cabe, ainda, às Ciências Humanas cultivar a formação de alunos intelectualmente autônomos, com capacidade de articular categorias de pensamento histórico e geográfico em face de seu próprio tempo (p. 354);

4 - deve promover explorações sociocognitivas, afetivas e lúdicas capazes de potencializar sentidos e experiências com saberes sobre a pessoa, o mundo social e a natureza (p. 354);

5 - devem contribuir para que os alunos desenvolvam a capacidade de observação de diferentes indivíduos, situações e objetos que trazem à tona dinâmicas sociais em razão de sua própria natureza (p. 355);

6 - deve propiciar aos alunos a capacidade de interpretar o mundo, de compreender processos e fenômenos sociais, políticos e culturais e de atuar de forma ética, responsável e autônoma diante de fenômenos sociais e naturais (p. 356);

7 - deve garantir aos alunos o desenvolvimento de algumas competências específicas (p. 357).

Demais recorrências

Das outras dez vezes, quatro estão no quadro de competências que devem ser desenvolvidas nos alunos pela área, e as outras seis, relacionam, ainda no corpo do texto, tais competências a noções de espaço e tempo, frisando-se a relação direta de tais temas às disciplinas de História e Geografia.

 A etapa do Ensino Médio (Cap. 5)

Recorrência: 07 vezes

 

Definições centrais

1 - A área de Ciências Humanas, tanto no Ensino Fundamental como no Ensino Médio, define aprendizagens centradas no desenvolvimento das competências de identificação, análise, comparação e interpretação de ideias, pensamentos, fenômenos e processos históricos, geográficos, sociais, econômicos, políticos e culturais (p. 472);

2 - [...] com a incorporação da Filosofia e da Sociologia, a área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas propõe o aprofundamento e a ampliação da base conceitual e dos modos de construção da argumentação e sistematização do raciocínio, operacionalizados com base em procedimentos analíticos e interpretativos (p. 472).

Demais

Nas cinco outras oportunidades, a expressão aparece como parte do elenco das áreas e/ou competências gerais da BNCC. Em nenhuma dessas oportunidades o texto reflete sobre a expressão.

A área de ciências Humanas e sociais aplicadas (tópico 5.4)

Recorrência: 18 vezes

 

Definições centrais

1 - A BNCC da área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas – integrada por Filosofia, Geografia, História e Sociologia – propõe a ampliação e o aprofundamento das aprendizagens essenciais desenvolvidas no Ensino Fundamental, sempre orientada para uma formação ética (p. 61);

2 - [...] a BNCC da área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas está organizada de modo a tematizar e problematizar algumas categorias da área, fundamentais à formação dos estudantes: Tempo e Espaço; Territórios e Fronteiras; Indivíduo, Natureza, Sociedade, Cultura e Ética; e Política e Trabalho (p. 562).

Definições

dependentes

O emprego da expressão nas vezes seguintes está predominantemente relacionado a dois temas a) Ética e b) Cultura. Quando não, estão explicitamente relacionados a História e Geografia. Existem momentos dos quais se supõe haver um encaminhamento para Filosofia e sociologia, contudo não se explicita, como no caso das duas primeiras disciplinas.

Demais

As quatro últimas aparições da expressão “Ciências humanas” estão relacionadas ao quadro de competências e habilidades a serem desenvolvidas pelos alunos no período de estudos do Ensino Médio. Novamente, não se explicita Filosofia. Isso gera a impressão de que as mesmas foram construídas da disciplina de Filosofia.

Fonte: Elaboração própria a partir da BNCC (BRASIL, 2018

 

 

 

Discussão

 

BNCC, uma base centralizadora, prescritiva e tendenciosa

 

De maneira geral, o texto da BNCC tem um caráter prescritivo. Não parece um objetivo que os sistemas de ensino, nas diversas regiões e realidades do já diverso Brasil, pensem o currículo por si. A BNCC toma esse lugar de decisão, assim o fazendo, como anuncia o ministro da educação Rossieli Soares da Silva, logo no começo do texto, “atingimos o objetivo de uma Base para toda a Educação Básica brasileira [...] a BNCC é uma peça central nessa direção, em especial para o Ensino Médio” (BRASIL, 2018, p. 5).

Atentos aos resultados apresentados nos quadros 01 e 02, percebemos esse caráter prescritivo, sobretudo no tópico 4.4 (BRASIL, 2018, p. 353-434), em que se desenha o papel das Ciências Humanas em relação ao Ensino fundamental.

O campo das Ciências Humanas, para a BNCC, é aquele em que se desenvolvem as habilidades e competências relativas a dois temas centrais, Ética e Cultura, pensados em duas categorias, Tempo e Espaço. Tal definição é reiteradamente apresentada no capítulo 05 da Base.

Ligar a área a esses temas e categorias poderia ser um movimento no sentido de superação da organização disciplinar do currículo. Contudo, conforme apresentamos no quadro 02, na BNCC se faz questão de, no campo das Ciências Humanas, citar e relacionar reiteradas vezes as disciplinas de História e Geografia.

Ora, então, não há superação, mas reforço da organização disciplinar? Sendo assim, porque a disciplina Filosofia fica marginalizada? Alguns fatos no texto e fora dele, lidos com a TD, nos ajudam a compreender essa questão.

Tendo observado cuidadosamente o quadro 01, percebemos que a expressão Filosofia aparece mais vezes quando a BNCC trata do Ensino Religioso. Dois fatos são instigantes aqui: primeiro, o ensino religioso, que, no Brasil, conforme a LDB (BRASIL, 2017) tem sua matrícula facultativa; apesar disso, recebe um tópico exclusivo no conjunto do texto para pensar sua organização, inclusive com instrução de competência e códigos específicos de habilidades. O segundo fato é que, mesmo a Filosofia sendo uma disciplina obrigatória[i], não é apresentada como tal, não há tópicos, na verdade, sequer parágrafos nos quais se apresentam a mesma ou os seus objetivos. Nem mesmo existem habilidades com códigos específicos para a disciplina.

Resta perceber que se formou, no texto, uma tendência: afirmar as Ciências Humanas a partir de temas gerais e categorias, negando o lugar da Filosofia, como também da Sociologia, nesse quadro; tanto que uma disciplina de frequência facultativa é aquela com a qual a expressão Filosofia mais está relacionada. Relação, inclusive, de descaracterização da disciplina Filosofia.

 

Ciências Humanas e Filosofia, uma relação casual

 

Motiva a relação da Filosofia com as Ciências Humanas no texto legal uma causalidade gritante. Tanto assim que a Filosofia em mais de uma oportunidade está explicitamente relacionada às ciências da natureza (quadro 01). Juntas, as expressões aparecem quando a BNCC elenca as disciplinas que compõem, no Ensino médio, as Ciências Humanas; a partir de então, Ciências Humanas e Sociais aplicadas.

Em alguns momentos breves do tópico 5.4, o texto apresenta expressões diretamente ligadas à área de Filosofia, são elas: ética, cultura, metafísica, Sócrates, liberdade, como as mais evidentes. Ainda aqui, não se apresenta tais temas como próprios ou prioritários a uma abordagem filosófica.

A filosofia parece estar inserida na área das Ciências Humanas, como poderia estar em qualquer outro lugar. Contudo, a determinação epistemológica não é aquela em que pese a decisão.

 

Um olhar discursivo

 

Uma leitura discursiva nos leva, na interpretação de todos estes dados, a percepção do movimento – que está se hegemonizando – de esvaziamento da Filosofia no currículo escolar. Tal movimento é parte de outro maior: a desvalorização das Ciências Humanas, em benefício de conhecimentos mais funcionais, práticos, que estejam diretamente relacionados ao modus operandi das carreiras profissionais, logicamente conforme o entendimento dos mercados – ainda que o texto voluntária e antecipadamente negue essa constatação, quando afirma que “a preparação básica para o trabalho e a cidadania, [...] não significa a profissionalização precoce ou precária dos jovens ou o atendimento das necessidades imediatas do mercado de trabalho” (BRASIL, 2018, p. 465).

 

 

Apesar dessa negativa, são várias as ocasiões em que a preocupação do documento é de cunho profissionalizante e relacionado ao mercado de trabalho. A BNCC exige que os jovens:

 

[...] reconheçam suas potencialidades e vocações, identifiquem perspectivas e possibilidades, construam aspirações e metas de formação e inserção profissional presentes e/ou futuras, e desenvolvam uma postura empreendedora, ética e responsável para transitar no mundo do trabalho e na sociedade em geral (p. 466);

[...] prepará-los para profissões que ainda não existem, para usar tecnologias que ainda não foram inventadas e para resolver problemas que ainda não conhecemos (p. 473);

[...] que possibilitem vislumbrar trajetórias pessoais e profissionais (BRASIL, 2018, p. 511).

Assentada em premissas tão curtas e limitantes, não seria de se admirar que toda a construção da BNCC no campo das Ciências Humanas se dê, negando um lugar à Filosofia. Às próprias Ciências Humanas, o lugar que encontram na BNCC é funcional: que determinadas habilidades e competências se desenvolvam.

O discurso hegemônico na BNCC, para se consolidar, une elementos e articula todos eles em torno do ponto-nodal: educação igual para todos os brasileiros de todos os cantos. Esses elementos são: a) necessidade de pensar no futuro; b) carreira profissional; c) desenvolvimento de habilidades e competências; d) ensino médio perdido em si, pois não prepara para o vestibular nem para a vida; e) necessidade de renovação; f) novas tecnologias; g) mudança; h) perspectiva gerencial da realidade. Tal articulação fixa um momento hegemônico cujo sentido está expresso em todo o documento com a finalidade de centralização e prescrição normativa que conformam um novo currículo.

Nesse processo de articulação, ficam os elementos antagônicos em posição de luta, de afirmação de si, buscando outros elementos insatisfeitos com o hegemônico estabelecido para a ele fazer frente. Da leitura da BNCC, ficam evidenciados que elementos a ela se contrapõem.

 

Os espaços que a Filosofia (não) ocupa no texto, bem como o papel (marginal) legado às Ciências Humanas, deixam evidente quem são os antagonistas do projeto político no qual se constrói o texto da Base Comum. Diante desse papel, as comunidades disciplinares de Filosofia, bem como das demais disciplinas da área de Ciências Humanas, tanto quanto aqueles que entendem educação e ensino como processos mais amplos do que os das mentalidades gerenciais, precisam estar alerta para esse papel.

Na posição antagônica, cabe a tais pessoas de diferentes organismos pensar as formas de, na reinterpretação que a BNCC vai ganhando nas demais esferas e contextos das diversas redes de ensino, serem feitas correções do seu curso, minimizado os seus impactos. Também colabora na aglutinação de elementos antagônicos os trabalhos acadêmicos que venham a demonstrar os conflitos que a fixação do texto da Base Comum tem na vida escolar, bem como as possíveis saídas para esses problemas.

Finalmente, cabe ressaltar que, assim como houve, em diferentes momentos, ideias distintas de condução curricular, porque outros eram os arranjos hegemônicos, também o momento da BNCC dura enquanto durar a articulação daqueles elementos que a sustentam. Por isso, à posição antagônica cabe problematizar.

 

Últimas Considerações

 

 

Importa para nós, mais do que quaisquer considerações que possamos levar a cabo, todo o percurso teórico/metodológico realizado na pesquisa. Entendemos como uma contribuição válida à comunidade acadêmica, antes do mais, o levantamento e a organização dos dados como aqui apresentados.

Ao identificar o significado que as Ciências Humanas e a Filosofia carregam no texto curricular, evidenciamos a relação que a Base Comum (pouco) estabeleceu entre os significados da Filosofia - que não se chega a concluir como uma disciplina ou não - com as Ciências Humanas, de maneira mais ampla. Tais passos nos possibilitaram analisar a Filosofia no campo das ciências humanas, por meio de uma leitura discursiva da BNCC.

De tudo que investigamos, fica evidente que, como os conteúdos na época das Humanidades serviam para dar materialidade à retórica, servem às Ciências Humanas e a Filosofia de meros objetos de desenvolvimento para competências e habilidades, ao sabor das necessidades dos que promoveram a fixação do texto da Base Comum. Para além deste resultado, ficam pistas para o empreendimento de novas pesquisas, pois o terreno deste campo é fértil, havendo espaço para se aprofundar variados aspectos que aqui apenas sinalizamos.

Em outra leitura, talvez os fatos apresentados fossem pensados como uma volta ao passado. Em nossa perspectiva, entretanto, o que há é a nossa intenção de sujeitos discursivos em dar significado à realidade em todos os seus níveis. Na BNCC, esse foi dado por aqueles que, em um contexto maior, conseguiram se fixar, bem como fixar os seus discursos.

Em tal jogo de significação, hegemonizam aqueles elementos que conseguirem formar um ponto de equivalência, onde algumas demandas são deixadas, por um tempo, de lado, em prol de uma mais urgente. Coube-nos, no lado antagônico da configuração discursiva, apontar frontalmente para aquele que poderia passar como apenas mais um documento sobre educação e currículo, afim de articular mais esforços de pesquisa, como também outras ações, na busca de tensionando o campo curricular e educacional, não assumir o momento hegemônico presente como perene ou imutável.

 

 Referências

 

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Notas

[1] A pesquisa da qual resultou este artigo foi desenvolvida em 2020 na conclusão do curso de Especialização Interdisciplinar em Estudos Sociais e Humanidades da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Sendo autor/concluinte Kleber Santos Chaves, professor de Filosofia da rede estadual baiana, sob orientação da Profª. Drª. Maria de Fatima H. Campos (UNEB) e coorientação do Prof. Dr. Benedito G. Eugênio, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB).

[2] Sinteticamente, os procedimentos da pesquisa exploratória se deram por meio do Portal “Periódicos” (CAPES, 2020). Nele, acionamos os campos “qualquer”, “contém”, “qualquer ano” “todos os itens” e “qualquer idioma” e procedemos as seguintes buscas 01) Descritor (D.) “BNCC”, resultado, 375 artigos; 02) acionado o “período: últimos 2 anos” (período de vigor da BNCC), havia um total de 125 artigos; 03) adicionado também o D. “discurso”, 19 artigos; 04) trocamos “discurso” por “humanas”, 15 artigos. Um terço dos artigos da busca 03 resultaram em artigos relacionados à educação matemática. Além disso, as perspectivas teórico-discursivas mais recorrentes foram as do francês Michel Pêcheux e do britânico Stephen Ball. Em toda a pesquisa, apenas o artigo de Costa e Lopes (2018), acima, embasava-se na Teoria do Discurso de Laclau. As buscas em 04 geraram um resultado bastante difuso, havendo pesquisas “das C. Humanas” enfocadas desde questões de “juventude” até em traços legais da BNCC, contudo, não havia leituras discursivas.

[3] Um exemplo dessa aproximação é Laclau e Foucault: Desconstrução e genealogia, de Ronaldo Sales Júnior (MENDONÇA; RODRIGUES, 2014).

[4] http://basenacionalcomum.mec.gov.br/historico

[5] Reportagem do Jornal UNICAMP retrata tais aspectos pelo prisma de pesquisadores da Educação: https://www.unicamp.br/unicamp/ju/noticias/2017/12/04/base-curricular-e-conservadora-privatizante-e-ameaca-autonomia-avaliam

[6] “Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais” (Brasil, 1988, s/p, grifo nosso);

“Art. 26.  Os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos” (Brasil, 1996, p. 19, grifo nosso).

[7] Ilustra essa divergência o enfático posicionamento de Cesar Callegari, que se demitiu da presidência da comissão responsável pela elaboração da BNCC por entender que a mesma devia ser rejeita por levar “à formação de uma geração de jovens pouco qualificados, acríticos, manipuláveis, incapazes de criar e condenados aos trabalhos mais simples e entediantes” (OGLOBO, 2018, s/p).

[8] Existe um imbróglio nessa questão. A Lei 11.684/2008 (BRASIL, 2008) tornou as disciplinas de Filosofia e Sociologia obrigatórias em todas as séries do Ensino médio. Já a Lei nº 13.415/2017 (BRASIL, 2017) apresenta Filosofia, Sociologia, Artes e Educação Física como “estudos e práticas obrigatórias”, ainda que a descrição não mencione a revogação da lei de 2008, como fez com outras.

 

 

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