Docência na educação infantil: reflexões sobre aspectos subjetivos da profissão

 

Teaching in early childhood education: reflections on subjective aspects of the profession

 

Arinalda Silva Locatelli

Universidade Federal do Tocantins, Palmas, Tocantins, Brasil.

naldalli@uft.edu.br - https://orcid.org/0000-0002-3573-1706

 

Lívia Maria Fraga Vieira

Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.

liviafraga59@gmail.com - https://orcid.org/0000-0002-9036-0151

 

Recebido em 03 de agosto de 2020

Aprovado em 06 de janeiro de 2021

Publicado em 31 de maio de 2022

 

RESUMO

O artigo tem como objetivo analisar a categoria docência como profissão, considerando aspectos predominantemente subjetivos, a partir da dimensão status e identidade docente. Utilizou-se como base os resultados obtidos dos questionários aplicado a 137 sujeitos docentes (professoras e monitoras) atuantes nas instituições públicas de Educação Infantil, das áreas rural e urbana de dois municípios da região Amazônica, conhecida como Bico do Papagaio, localizada ao norte do estado do Tocantins. As análises mostram que as docentes pesquisadas constroem uma identidade com a profissão exercida, ainda que para algumas o ingresso tenha ocorrido por acaso.  É perceptível um forte traço maternal presente nesse construto identitário, fruto da visão estereotipada acerca da majoritária presença feminina no magistério e da não compreensão do cuidar como uma categoria social. No quesito status, as docentes sentem que suas ações são reconhecidas e se agarram a um ethos profissional para continuar na profissão.  

 

Palavras-chave: Educação Infantil; Docência; Profissão. Status. Identidade Profissional.

 

ABSTRACT

The article aims to analyze the category of teaching as a profession, considering predominantly subjective aspects, based on the status and teaching identity dimension. Based on the results obtained from the questionnaires applied to 137 teaching subjects (teachers and monitors) working in public institutions of Early Childhood Education, in the rural and urban areas of two municipalities in the Amazon region, known as Bico do Papagaio, located in the north of Brazil. state of Tocantins. The analyzes show that the researched teachers build an identity with the profession, although for some the entry occurred by chance. It is noticeable a strong maternal trait present in this identity construct, the result of the stereotyped view about the majority female presence in the teaching profession and the lack of understanding of care as a social category. In terms of status, the teachers feel that their actions are recognized and stick to a professional ethos to continue in the profession.

 

Keywords: Child education; Teaching; Profession. Status. Professional Identity.

 

Introdução

           

O estudo sobre a profissão docente requer abordagens teóricas distintas para alcançar as dimensões objetivas e subjetivas dos processos de profissionalização nos contextos escolares diversos. Neste artigo, pretendemos analisar o trabalho e a profissão docente na Educação Infantil (EI), considerando o processo de expansão das políticas educacionais nessa etapa da educação básica e a realidade dos sujeitos docentes (professores e monitores) nas escolas municipais da região norte do estado do Tocantins. As discussões aqui apresentadas integram os resultados da pesquisa “A emergência da Educação Infantil e o trabalho docente: um estudo sobre a rede pública de ensino no norte do Tocantins” (LOCATELLI, 2018). Adotamos a perspectiva da análise sociológica do trabalho, compreendido como uma construção histórica e social, que acontece em contextos de conflitos e tensões. A pesquisa, utilizando fontes documentais e empíricas, abarcou um universo de 31 instituições educacionais e 137 sujeitos docentes atuantes nas instituições de Educação Infantil (EI), das áreas rural e urbana de dois municípios - Araguatins e Tocantinópolis, integrantes da região do Bico do Papagaio, localizada ao norte do Tocantins[1].

Foram analisados documentos oficiais, com diferentes níveis de abrangência, tendo como delimitação temporal a década de 1990, momento histórico em que se registra a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases nº 9.394/96, que instituiu a Educação Infantil como primeira etapa da Educação Básica, até o ano de 2015.  Quanto à fonte empírica, trazemos as respostas dos sujeitos docentes aos questionários aplicados de agosto a novembro de 2016, em todas as instituições educacionais públicas municipais localizadas na região referida que atendem crianças na faixa de idades de zero a cinco anos.

Considera-se que a docência é constituída por elementos objetivos e subjetivos. O presente trabalho coloca em destaque a categoria “docência como profissão”, dando ênfase às questões de caráter predominantemente subjetivas que a constituem. Discorremos sobre as dimensões que se referem ao status e à identidade docente, tendo as seguintes questões norteadoras: que imagem os sujeitos docentes da Educação Infantil têm de si mesmos e de sua profissão? Sentem-se reconhecidos socialmente?

Partimos da perspectiva trabalhada por Tardif e Lessard (2005), de que a docência não é constituída apenas pelo exercício de uma atividade. É também uma questão de status, que diz respeito à normatização ou processo de institucionalização da função exercida. Isso remete à temática da identidade profissional, que é estabelecida tanto no espaço interno das instituições quanto no âmbito da organização social, “na medida em que essas funcionam de acordo com uma imposição de normas e regras que definem os papeis e as posições dos autores” (p. 50). A identidade deve ser entendida, de acordo com esses autores, como uma construção histórica e social.

A análise e discussão dos dados da pesquisa estão organizados em três tópicos: a) A docência como profissão: apontamentos iniciais; b) Aspectos constitutivos da dimensão do status e da identidade docente; e c) O status e a identidade profissional das docentes tocantinenses.

 

A docência como profissão: apontamentos iniciais

 

A literatura sobre a docência enquanto profissão traz uma complexidade de interrogações que questionam o seu próprio status enquanto profissão, pois é possível perceber, concomitantemente, “[...] características mais ou menos consensuais entre os especialistas no assunto, quando se trata de conceituar uma profissão, mas também certos traços quase incompatíveis, ao tentarmos aplicar esse conceito ao magistério” (LUDKE; BOING, 2004, p. 1161). Por esse viés, a docência é interpretada por alguns como uma semiprofissão, especialmente quando comparada às profissões clássicas (medicina, direito, engenharia). Essa é uma discussão clássica, no âmbito dos estudos da sociologia das profissões aplicada à categoria docente (CHAMPY, 2009).

No entendimento de Enguita (1991), o lugar de semiprofissão, socialmente relegado ao trabalho docente, é resultado da condição ambivalente dessa profissão, que a coloca num movimento contraditório e intermediário entre a proletarização e a profissionalização.

            Dubar (2012) esclarece que o não consenso na discussão sobre todas as ocupações serem profissões é uma marca presente nas correntes teóricas que formam a sociologia das profissões. Pela interpretação da corrente funcionalista (ou neofuncionalista), o profissionalismo seria exclusividade de certas atividades. Todavia, pelas correntes interacionistas e críticas (neomarxista, neoweberiana etc.), a questão da profissionalização liga-se a contextos socioculturais e políticos, sendo que “[...] toda ocupação tende a se organizar e lutar para se tornar ‘profissão’.” (DUBAR, 2012, p. 366).

Flores (2014) explicita que as causas da docência ser considerada uma semiprofissão residem no fato de carregar como características historicamente constituídas: o isolamento da sala de aula, a falta de autonomia e a falta de controle sobre os padrões profissionais. Ainda assim, ao citar os estudos realizados por Hargreaves e Goodson (1996), Flores (2014) adverte que, para a conceituação da profissão docente, é importante considerar suas peculiaridades ligadas às dimensões: pessoal, moral, emocional e social. Advoga-se, então, que o ensino deve ser entendido à luz das chamadas “caring professions” (FLORES, 2014, p. 854), ou seja, das profissões que se relacionam ao cuidado, à assistência e a um caráter social (DEMAILLY, 2008).

Para Freidson (2009, p. 93), uma profissão no sentido mais elementar ou mais abrangente é:

 

[...] um grupo de pessoas que desempenham um conjunto de atividades de onde tiram a parte de sua subsistência – estas atividades denominam-se “trabalho” e “vocação” e não “lazer” ou “passatempo”. Elas são exercidas em troca de uma remuneração e não para atender uma satisfação particular.

 

Vale ressaltar ainda que, para Freidson (2009), é a autonomia que garante o status de uma profissão. Para este autor, a posição privilegiada dentro da divisão do trabalho resulta do reconhecimento, por parte de segmentos da elite da sociedade, do seu valor especial, podendo ser retirado pelo mesmo segmento.

Importa assinalar que os debates atuais sobre a profissão docente apontam para um ataque frequente à sua autonomia, ao status de profissão e, por conseguinte, à identidade profissional, advindos das agendas políticas e econômicas internacionais que repercutem nacionalmente nas instituições educacionais (CHAMPY, 2009). 

As análises de Enguita (2001), Ludke e Boing (2004), Tenti Fanfani (2007), além de outros, apontam como demanda por parte dos docentes a dignidade profissional e o reconhecimento de seu trabalho, social e materialmente.

Conforme Vaillant (2013) e Torres (2000), uma política pública de qualidade na educação deve se vincular à atratividade docente e à permanência na profissão, especialmente quando se trata do trabalho em contextos com maiores dificuldades socioeconômicas e geográficas, como no meio rural e nas áreas indígenas.

De acordo com Tenti Fanfani (2005), mesmo que o contexto evidencie questões de desigualdades sociais, como por exemplo, o fato da maioria dos professores não terem acesso aos bens culturais, observa-se, entre os docentes, um grau de satisfação com a profissão em si. Os pontos de insatisfação apontam para as condições salariais e de trabalho (VIEIRA, PEREIRA Jr, 2020), que nos encaminham para os problemas relacionados à intensificação e à precarização do trabalho docente, situações que, aliadas à perda do reconhecimento social, têm sido motivo de desestímulo à permanência.

            No próximo tópico versaremos a respeito de alguns aspectos constitutivos da dimensão do status e da identidade docente que estruturam a docência como profissão.

 

Aspectos constitutivos da dimensão do status e identidade docente

 

O status, sendo o lugar ocupado socialmente pelo professor, é uma dimensão da profissão docente e relaciona-se, de maneira geral, com a normatização ou com o processo de institucionalização da função exercida. Coloca em cena, ainda, a complexa discussão acerca da identidade profissional, que se estabelece tanto no espaço interno das instituições quanto no âmbito social.

            Dubar (2005, 2012) analisa que a construção identitária de uma profissão se faz por meio de um processo de socialização profissional que “[...] conecta permanentemente situações e percursos, tarefas a realizar e perspectivas a seguir, relações com outros e consigo (self), concebido como um processo em construção permanente” (DUBAR, 2012, p. 358). A identidade, então, por essa compreensão, é um construto coletivo e individual simultâneo, resultado de um percurso de formação qualificante, num misto de teoria e prática a partir da vivência de episódios de trabalho, configurando-se como trajetórias individuais e sistemas de emprego, de trabalho e de formação.

            Tomando como referência os estudos de Dubar, Tardif e Lessard (2005) reafirmam que não se recebe uma identidade a partir de uma certificação, visto que a própria identidade é uma construção histórica, social e política. Por isso, Cardoso (2011), também se reportando a Dubar, propõe o uso do termo no plural (identidades), por tratar-se de um processo dinâmico e contínuo, “[...] que pode conhecer fases de rupturas, de continuidades ou reelaborações a partir de modelos anteriores de identificação” (TARDIF; LESSARD, 2005, p. 188).

            De forma geral, os estudos sobre a profissão docente mostram que há uma crise na construção de sua identidade profissional. Essa situação estaria ligada a duas questões que se complementam e que possuem vários desdobramentos: primeiro, a natureza do trabalho docente (vocação/missão ou serviço público estatal) e a segunda, as mudanças no cenário socioeconômico da América Latina, que afetam as relações de trabalho e têm se configurado na precarização do trabalho docente. (OLIVEIRA, 2010; YANNOULAS, 1992)

              Para Enguita (2001, p. 54) “[...] temos um grupo de professores, com origem e características formais de uma profissão burocrática, porém com ideal coletivo e a prática informal de uma profissão liberal”. Todavia, para esse mesmo autor, a profissão docente pública não deve se ater nem à perspectiva liberal, nem à burocrática. Para ele há a necessidade da construção do modelo profissional democrático, que estaria ligado ao compromisso com os fins da educação enquanto serviço “para” e “com” o público, visando assim um trabalho de fato integrado entre escola e comunidade. Nesse modelo, a identidade da docência enquanto profissão residiria no domínio do conhecimento profissional, que significa “[...] a capacidade diagnóstica de encontrar as formas de aprendizagem e de ensino adequadas para diferentes problemas e indivíduos” (ENGUITA, 2001, p. 59).

            A nosso ver a ideia de compromisso enunciada estabelece uma ligação com a concepção de ethos social proposto por Tenti Fanfani (2007). Isso não quer dizer mandato inato, sacrifício ou voluntariado, mas chama atenção para a necessidade de se perceber o princípio do respeito e do cuidado pelo outro como uma especificidade da profissão docente, que deve somar-se ao conhecimento racional e técnico que faz parte da prática profissional.

            Contribuindo com esse debate, Ludke e Boing (2004) demarcam o locus de construção da identidade profissional docente como sendo a instituição escolar, ou seja, a escola é o lugar onde, por meio da prática, o repertório pedagógico necessário ao exercício da profissão se consolida. É, no mesmo sentido, o lugar onde professores e professoras são reconhecidamente considerados profissionais. Tal afirmação remete-nos ao entendimento de Dubar (2012) sobre a socialização profissional baseada na construção de uma cultura profissional, na qual se agregam conhecimento teórico e práticas experienciadas.

            A indicação do espaço escolar como o local de exercício efetivo do profissionalismo docente, no entanto, manifesta seu viés burocrático, pois as escolas estão sob o controle estatal. Essa situação, para os estudos sobre profissionalização docente, é entendida como uma das causas da semiprofissionalização, posto o comprometimento de sua autonomia plena.

            Como observou Dubar (2012), em contrapartida, ao analisar a constituição da profissão médica, os médicos recém-formados preferem posições assalariadas em organizações, mesmo que isso signifique um comprometimento de sua autonomia plena, pois elas favoreceriam a consecução de uma estabilidade financeira e profissional. Ainda assim, como constata o mesmo autor, a vinculação institucional não compromete o status profissional da profissão médica. Tal fato parece somar-se ao que foi destacado por Freidson (2009), ao considerar que a fonte do status profissional está no valor que a sociedade empresta a determinada profissão, e enquanto esse valor persistir, seu status permanece.

            Passando à segunda questão sobre a existência de uma crise identitária, devemos chamar atenção para as mudanças no cenário socioeconômico e educacional da América Latina, sobretudo a partir da década de 1990. A esse respeito, Tello e Almeida (2014) afirmam que essas mudanças podem ser sentidas no cotidiano docente por meio de programas e projetos que buscam inserir, na escola pública, os modelos de organizações empresariais – o que transfere, cada vez mais, a responsabilidade pelos resultados do trabalho para o âmbito individual. Tenti Fanfani (2007) e Ludke e Boing (2004) enfatizam que a sociedade tende a ver o trabalho docente como uma panaceia para todos os males, e esperam mais do que a escola é capaz de produzir, especialmente se considerarmos as múltiplas funções atribuídas às docentes (além do próprio ensino, projetam-se psicóloga, mãe, enfermeira, assistente social, empreendedora etc.). Múltiplas atribuições que não são seguidas das condições de trabalho necessárias para a sua efetivação.

            Instaura-se, com todos esses elementos, um forte sentimento de descompasso entre o ideal e a realidade do ofício a ser desenvolvido. Isso acarreta situações ambivalentes, em que há, ao mesmo tempo, um sentimento de gratificação pelo trabalho que se desenvolve, e a vivência de situações de insatisfação.

            Souza (1996), ao procurar apreender as representações que as professoras têm sobre seu trabalho, conclui que a presente menção à docência como vocação ou à necessidade de “gostar” da profissão é um mecanismo de resistência, pois busca compensar as precárias condições de trabalho. Em suas palavras, “o professor, ao perder o espaço público do social, busca explicações no nível individual, ou seja, na vocação, para permanecer na docência”. (SOUZA, 1996, p. 103). Para a mesma autora, uma alternativa a essa situação está na “[...] constituição do espaço público – de ação e debate – e na constituição de uma nova sociabilidade” (SOUZA, 1996, p. 214).

Essa sociabilidade é compreendida dentro da dimensão da práxis[2], ou seja, nas ações coletivas dos sujeitos docentes. A referida autora evidencia a necessidade do fortalecimento da organização política do magistério como forma de superação dos limites da profissão, complementada por ganhos coletivos e satisfações individuais, rumo à construção de uma identidade profissional positiva, conforme postula Dubar (2012).

            No âmbito da EI, a deferência ao “gostar” ou ter “paixão” pela profissão aparece constantemente para designar os seguintes âmbitos, conforme atestado por Nascimento et al. (2005): o compromisso político ou profissional, o sentido de coletividade, o envolvimento pessoal, o motivo para entrar e permanecer na profissão e continuar a busca por conhecimentos para atuar na área. Entretanto, para as pesquisadoras, a ênfase no termo “gostar” também se vincula à falta de políticas públicas adequadas e valorização da EI, ratificando-se, assim, a análise de Souza (1996) sobre a recorrência ao termo como subterfúgio ao contexto de dificuldades.

            Nesse cenário reside a transformação da noção de trabalho iniciada no século XX, e que ainda está vigente, passando de um contexto com definição explícita e prescritiva das tarefas a serem desenvolvidas, para uma realidade de obrigações implícitas, de investimento pessoal, cercada por incertezas e dependente da criatividade individual e coletiva. Dentro desse cenário, a docente passa daquela que ensina para aquela que facilita a aprendizagem (TENTI FANFANI, 2005). Emerge, ainda, a noção de empregabilidade e empreendedorismo, que repassa para o indivíduo a responsabilidade de se manter no mercado de trabalho por meio da busca individual por capacitar-se continuamente para progredir na carreira e melhorar seu salário (LUDKE; BOING, 2004).

            Feita essas considerações veremos a seguir, o que a pesquisa de campo nos mostra acerca do status e da identidade docente no norte do Tocantins.

 

O status e a identidade profissional das docentes tocantinenses

 

            A pesquisa teve como contexto macro o estado do Tocantins, com um recorte para a microrregião Bico do Papagaio[3], centrando-se em dois de seus municípios: Tocantinópolis e Araguatins.

O município de Araguatins é o sexto município mais populoso (31.329 habitantes) entre os 139 do estado do Tocantins, e ocupa a primeira colocação em relação aos 25 que compõem a microrregião citada. Por sua vez, Tocantinópolis é o nono município mais populoso do estado (22.619 habitantes) e o segundo da mesma microrregião.

Com base na Sinopse Estatística divulgada pelo Inep (2016), a Educação Básica do Município de Tocantinópolis, contava com um quantitativo de 36 escolas, sendo 20 localizadas na área urbana e 16 na área rural. Dessas, 15 pertenciam à rede municipal, 19 à rede estadual e 2 à rede privada. Vale ressaltar que das 16 escolas localizadas na área rural, 10 eram indígenas, atendendo somente do Ensino Fundamental ao Ensino Médio.

O Município de Araguatins também contava com 36 escolas, sendo 21 localizadas na área rural e 15 na área urbana. Decompondo por dependência administrativa, 11 estaduais, 20 municipais, 4 privadas e 01 federal que é o Instituto Federal do Tocantins - IFTO. O IFTO oferece Ensino Médio Básico, Médio Integrado, Médio Profissionalizante e Ensino Superior, e atende a área rural. Do total de escolas, 5 estavam situadas em áreas de assentamento, sendo 3 municipais e 2 estaduais.

Nesse contexto, foi aplicado presencialmente um questionário respondido por 137 docentes, sendo 3 homens.  Participaram professoras e monitoras, atuantes em turmas que atendem crianças nas idades de 0 a 5 anos, em instituições públicas dos referidos municípios. Foi constituído um banco de dados com base nos questionários aplicados, desagregando-os por segmento (creche, pré-escola e multisseriado/multietapa[4]) e por função docente (professoras e monitoras). Em seguida, utilizamos no processo de análise o software SPSS, visando à organização das informações contidas no banco de dados por meio de tabelas e gráficos.

Conforme mencionado anteriormente, discorremos sobre uma das dimensões analisadas, referente ao status e à identidade docente. Abordamos, então, essa dimensão a partir de dois elementos: a) a escolha da profissão e o reconhecimento social; e b) a questão de gênero e sua relevância na definição da profissional de EI.

 

A escolha da profissão e o reconhecimento social[5]

 

   Numa primeira abordagem junto ao público pesquisado, para saber o quanto se identificam com a docência na EI, procuramos saber o motivo que levou à escolha da profissão exercida. As três principais respostas das entrevistadas indicaram, de forma geral, que: 43,7% escolheram trabalhar na EI; para 32,6% foi o primeiro concurso ou processo seletivo que passou e 15,6% chegaram à função por acaso. As demais respostas (8,1%) totalizaram as opções não ter conseguido uma vaga no ensino fundamental ou outra etapa da educação básica e outros.

   Ao observarmos as respostas pela perspectiva dos segmentos, as docentes da pré-escola ficam em primeiro lugar dentre aquelas que escolheram estar nessa etapa, significando o percentual de 49,1%; em segundo lugar, estão as docentes das turmas multisseriadas/multietapas, com 43,8% e por último, aquelas que atuam em creche, 39,4%.

   Dentre os outros motivos para estar na profissão, um percentual de 14,3% das respostas, foi mencionado: designação pela secretaria de educação; conseguiu contrato/remuneração; devido a uma doença que impossibilitou exercer o trabalho de merendeira foi ser monitora; acabou gostando; indicação; influência da mãe; não teve condições de fazer outro curso e necessidade de trabalhar.

   A pesquisa realizada por Souza (1996), que fez a mesma indagação aos professores de uma escola da rede estadual localizada na periferia de São Paulo, obteve respostas que, em parte, diferem do que apresentamos aqui. Percebe-se que as respostas mais evidenciadas na pesquisa da autora indicaram a influência da família e a situação socioeconômica como fatores determinantes para escolha do magistério, pontos com pouca evidência em nossa pesquisa. No entanto, ao considerarmos respostas como: primeiro concurso/seletivo que passou e chegaram à função por acaso, percebemos que há aqui uma relação importante com a conclusão da autora quando afirma que “o professor, na vida cotidiana, ao optar pelo caminho possível ante as contingências, opta pelo magistério” (SOUZA,1996, p. 74). Outra confluência está nas variáveis a respeito da vontade de mudar de profissão e nos motivos que as fazem permanecer nela.

   Desse modo, em nossa pesquisa, mesmo que a EI não represente uma escolha unânime, as docentes das creches são aquelas que mais indicam (70,6%) que sempre recomeçariam sua vida profissional pela EI; em seguida, as docentes das turmas multisseriadas/multietapas (68,8%). As docentes da pré-escola, embora representem 58,5%, foram aquelas que apresentaram o menor percentual nessa questão. Por sua vez, observa-se uma correlação na ordem que demonstra uma insatisfação com as condições que possuem e a vontade de continuar a trabalhar na etapa, pois 83,1% das docentes da pré-escola, 73,4% das de turmas multisseriadas/multietapa e 64,2% das docentes de creche sentem que sempre ou frequentemente seu trabalho poderia ser mais eficiente, caso fosse planejado e executado em condições mais favoráveis. Ou seja, as docentes de pré-escola foram aquelas que menos recomeçariam profissionalmente pela EI e aquelas que mais se ressentem por seu trabalho não ser tão eficiente devido às condições disponíveis.

   A respeito do que as motivava a continuar exercendo a docência em EI, destacou-se o desejo de acompanhar e estimular o desenvolvimento infantil. Do segundo ao quarto lugares, com percentuais equivalentes a 13,2% apareceram as seguintes justificativas: a) contribuir com o futuro do país ou com as etapas posteriores de ensino; b) perfil/vocação[6] e c) busca por novas experiências, conhecimentos e desafios. Em relação ao ideal de perfil/vocação, praticamente todas as respondentes que optaram por essa alternativa a complementavam dizendo que, para trabalhar na EI, é necessário gostar do que se faz. A esse respeito, concordamos com Souza (1996, p. 79), quando concebe o “gostar” como integrante da “condição de ser docente”, sendo elemento de resistência à conjuntura de um trabalho árduo e desvalorizado.

Complementando essa questão, Souza (1996) explica-nos que:

 

A docência como vocação – no sentido de ‘é da minha vontade ser professor’ – aparece sempre relacionada com as motivações apresentadas para a permanência no magistério e se exprime no dom, no gosto, no caráter social da profissão. Talvez o professor dissimule assim as condições de trabalho (baixos salários, intensas jornadas em várias escolas, etc.) e a falta de perspectiva de mudança profissional. (SOUZA, 1996, p. 79, grifos nossos)

 

   O gráfico 1 compila as respostas a partir da perspectiva dos segmentos – creche, pré-escola e multisseriado/multietapa:

 

Gráfico 1 - Avaliação dos sujeitos docentes acerca dos motivos para continuar exercendo a docência na Educação Infantil, de acordo com segmentos

 

 

 

 

 

 


 

 

 

 

 

 

 

 

Fonte: Elaborado pelas autoras com base nos questionários aplicados em sujeitos docentes, 2016.

 

   Observa-se que as respostas ligadas a um ideal de contributos para o futuro do país, o desenvolvimento das crianças, perfil/vocação e busca de novos conhecimentos, novamente despontam entre as principais justificativas para se manter na profissão, ainda que existam algumas variações entre os segmentos. Reitera-se que a questão salarial, a estabilidade na carreira e o respeito aos profissionais não são motivos expressivos para prosseguirem na profissão, sendo que essas duas últimas questões não figuram entre as respostas dos sujeitos docentes que atuam em turmas multisseriadas/multietapas. Sobre a questão salarial, percebe-se novamente um consenso entre os segmentos. Embora o menor percentual esteja entre os sujeitos docentes da pré-escola (0,7%), que também apresentam o menor índice a respeito da continuidade na profissão ser uma realização pessoal (9,0%).

Dentre as possíveis interpretações que podem ser feitas dos dados apresentados, a avaliação das docentes revela que, mesmo com baixos salários, diante das perspectivas de trabalho que se tem nos municípios, o magistério ainda é uma boa escolha. Outro setor de trabalho seria a área de comércio, que vem diminuindo seu quadro de oferta a cada ano. Vale lembrar que analisamos os dois maiores municípios em número de habitantes dentre os 25 que compõem a região Bico do Papagaio, o que significa afirmar que para se ter outras opções de trabalho, seria necessária a mudança para outra região do estado, ou até mesmo mudar-se para outro estado da federação, o que não apresentou ser uma opção em pauta para o grupo pesquisado.

   Depreendemos que os motivos que levaram à escolha da profissão, e que as mantêm no seu exercício, se sustentam na satisfação com o fato de ser professora, simbolizada de forma geral, numa média de 24,5% das respondentes que se declaram muito satisfeitas.

   Na decomposição por segmentos, os percentuais na escala satisfeitas coincidem. Mas quando se agrega a variável muito satisfeita, observamos que o maior índice é das docentes de turmas multisseriadas/multietapas, com 81,3%. Em seguida, as docentes de creche, com 79,4%, e por último, as de pré-escolas, com 69,2%. Especificamente na escala insatisfeitas, também encontramos o maior percentual entre as docentes de pré-escola (15,4%); logo após, as docentes de creche (8,8%). Em relação às docentes de turmas multisseriadas/multietapas, não houve registro nessa escala.

   Os índices de satisfação são convergentes com o resultado encontrado por Tenti Fanfani (2005), no qual 79,3% dos professores brasileiros se declararam satisfeitos com a atividade docente em si. Assemelham-se, também, à pesquisa desenvolvida pelo GESTRADO (VIEIRA et al., 2013), para a qual 63,5% dos sujeitos docentes de EI sentem-se satisfeitos com a profissão.

   Tais similaridades, em espaços de tempo diferentes, sugerem que o exercício da docência em si propicia autorrealização profissional, e que os pontos de insatisfação docente geralmente referem-se às condições objetivas de trabalho ou a fatores extrínsecos à profissão, relativos à ordem social vigente, conforme tematizado por Ongari e Molina (2003).

   Na sequência, pertinente ao status, está o reconhecimento social. Sob essa perspectiva, procuramos verificar as respostas relacionadas à percepção sobre as seguintes instâncias: a secretaria de educação, coordenação ou supervisão pedagógica e os familiares das crianças. As duas primeiras instâncias foram agregadas numa única pergunta.

   No que diz respeito à primeira instância, as docentes de turmas multisseriadas/multietapas sentem-se mais reconhecidas pela secretaria de educação, coordenação ou supervisão pedagógica etc., apresentando o percentual de 81,3% na escala, seguidas pelas professoras de creche, com 79,1%. Mantendo a perspectiva de maior insatisfação, estão as docentes de pré-escola, com o percentual de 65,4%. Em relação à família, as docentes que atuam em creche são aquelas que se sentem menos reconhecidas por parte das famílias, seguidas pelas professoras da pré-escola. As docentes de turmas multisseriadas/multietapas são aquelas que melhor avaliaram a situação em relação às famílias. 

Das respostas obtidas, deduzimos que o segmento como maior status profissional é o das turmas multisseriadas/multietapas, com reconhecimento por parte das duas instâncias. Assim sendo, a pré-escola seria o segmento menos reconhecido pela instância da secretaria de educação, e a creche, o menos reconhecido pelas famílias.

   Vale destacar também que os significativos índices de avaliação positiva para a primeira instância representam de fato a visão que os sujeitos docentes têm mais especificamente da coordenação ou supervisão pedagógica[7], não correspondendo, assim, à avaliação que se faz da secretaria de educação, denotando, portanto, um aspecto que precisa ser melhor explorado posteriormente.

    Sobre a instância família, cabe ponderar que, se por um lado ela é vista por um viés positivo, por outro, a necessidade de contar com mais apoio das famílias fica em quarto lugar, com média de 16,4% das avaliações, entre os pontos que seriam importantes para melhorar a qualidade do trabalho desenvolvido.  Representando ainda o segundo maior índice (média de 25,5%) sobre de quem as docentes indicam receberem mais cobrança.

Entre as justificativas apresentadas para esses resultados, nota-se a presença de um movimento ambíguo de dois modelos mencionados por Tenti Fanfani (2005). Por um lado, o modelo profissional que evoca a ideia de investimento na carreira por meio de aprendizados científicos, e, por outro, o modelo vocacional que se pauta numa atitude de responsabilidade e respeito para com as crianças, mas que não seria contrária à incorporação de conhecimentos científicos. Tal movimento resultaria no conceito de ethos, como identidade social da profissão, em que a concepção de vocação, ligada à ideia de dom, sacrifício ou algo inato, cede lugar à perspectiva de compromisso, respeito e cuidado com o outro (TENTI FANFANI, 2007). Reconhece-se essa perspectiva nas respostas que indicaram o desejo de acompanhar e estimular o desenvolvimento infantil.

Há nos depoimentos das professoras de EI um misto de compromisso político e paixão, em que esse último termo não necessariamente representa uma forma alienada de ver a profissão.

   Os dados indicam ainda que, mesmo sem representar um índice majoritário acerca da escolha da profissão exercida, atualmente as professoras e monitoras pesquisadas demonstram construir uma identidade com a EI, pois, dentre outras questões, é possível inferir a perspectiva de futuro na profissão (DUBAR, 2012), que se fortalece num ideal de perfil/vocação no sentido de gostar do que fazem, a despeito das adversidades que são enfrentadas no cotidiano.

Seguindo a perspectiva de Souza (1996), entendemos que a imagem intelectual, humanitária, social e política atribuída à profissão docente, que dá sentido às avaliações feitas no sentido de autorrealização, é fruto de um movimento ambivalente e ambíguo, que envolve conformismo e resistência nas relações estabelecidas com a referida profissão.

 

A questão de gênero: um traço identitário na Educação Infantil

 

   Dentro da dimensão do status e identidade docente, outro ponto que gostaríamos de destacar coloca em cena a questão de gênero. Os debates sobre essa temática emergiram a partir do novo contexto de divisão sexual do trabalho que integrou a organização dos sistemas educativos nacionais e se configurou numa forma de opressão da mulher, ao mesmo tempo em que se constitui objeto de luta por reconhecimento e por igualdade.

   No caso mais específico da EI brasileira, a presença da mulher no mercado de trabalho caminhou paralelo com os movimentos de luta por creches e pré-escolas de qualidade, iniciados no final dos anos de 1970 pelas mulheres trabalhadoras, e trazem em seu cerne as tensões de interesses entre atores da sociedade civil, agências internacionais e instâncias governamentais. Tais movimentos foram marcados pelos debates sobre o seu caráter assistencial e a necessidade de incorporação de sua perspectiva educacional. (LOCATELLI; VIEIRA; DINIZ, 2016)

   Temática muito cara à categoria docente e talvez mais ainda para a EI, no âmbito do status e valorização do magistério, geralmente está atrelada à tendência de desvalorização de seus profissionais. Aqui se deve atentar para a linha tênue entre o profissional e o doméstico, na qual a condição de vulnerabilidade manifesta-se na “[...] dependência da criança em relação ao adulto nas rotinas de cuidados (higiene, limpeza, saúde) [...]” (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2005, p. 136), o que muitas vezes se confunde com as tarefas de uma mãe.         

   Nesse sentido, buscamos compreender qual a relação que os próprios sujeitos docentes faziam da maternidade com o exercício da docência. Para tanto, foram dadas quatro alternativas e as respondentes deveriam fazer a opção por duas[8]. Podemos depreender que temos uma posição ambígua por parte dos sujeitos docentes sobre a questão proposta. Verifica-se uma relativização da ideia de que a profissão docente é essencialmente feminina, observada no percentual de 35,7% das docentes que escolheram a opção “Tanto a mulher como o homem pode trabalhar muito bem como professores na Educação Infantil” e no índice de 26,2% das que consideram que “Ter filhos ajuda apenas em certos aspectos práticos como reconhecer as doenças infecciosas, trocar fraldas, etc.”. Todavia, para 9,0% das docentes, ainda prevalece a percepção de que “Para trabalhar bem na Educação Infantil é necessário ter tido a experiência de mãe”. Consideramos também que o forte apelo feminino para atuar na EI se faz presente no percentual de 31,3% dos respondentes que escolheram a  opção “A professora que também é mãe entende melhor as exigências das crianças e dos outros pais”.

   Em pesquisa similar feita por Ongari e Molina (2003), baseada em questionários respondidos por 240 educadoras de creche italianas, apenas uma professora considerou que para ser boa educadora era preciso ter tido a experiência como mãe, o que a nosso ver significa um avanço na visão que se tem da profissão por parte das professoras italianas. Contrastando os outros resultados, percebemos que sobre a ideia de que “A professora que também é mãe entende melhor as exigências das crianças e dos outros pais”, a pesquisa realizada pelas referidas autoras apresenta um resultado mais elevado de professoras adepta a essa ideia (equivalendo a 55%), enquanto o nosso percentual teve uma média menor (31,3%). Todavia a respeito da assertiva sobre “Ter filhos ajuda apenas em certos aspectos práticos - reconhecer as doenças infecciosas, trocar fraldas, etc.”, nossos percentuais convergem com a pesquisa realizada pelas das autoras, que foi de 19%.

   Na análise das mesmas autoras, as professoras entrevistadas evidenciaram dois níveis de representação da profissão: em um nível expressivo, compartilhou-se a ideia do trabalho em termos altamente profissionalizados e desligados da própria experiência pessoal. Em outro, mais profundo e menos consciente, as próprias vivências pessoais fazem parte da ideia de profissão (ONGARI; MOLINA, 2003). Seguindo essa mesma linha de raciocínio, podemos dizer que os dois níveis são perceptíveis em nossos resultados, porém com representatividade mais forte para o segundo nível, no qual a perspectiva de profissão mescla-se intensamente com a maternidade.             

   É significativo registrar que ao analisarmos as escolhas das docentes a partir do critério dos segmentos, notamos que as atuantes em creche foram as que apresentaram os maiores percentuais de escolha das questões que colocam a figura feminina como um determinante para atuar na EI. O que nos faz considerar que trazem a feminização (YANNOULAS, 1992) como um traço de sua identidade profissional, talvez por serem aquelas que mais têm as ações de cuidado como um componente marcante de suas tarefas cotidianas. Assim, destaca-se mais uma vez, o segundo nível de representação da profissão, proposto por Ongari e Molina (2003), para o qual a perspectiva de profissão mescla-se intensamente com a maternidade.

   Na concepção de Maranhão e Sarti (2008), o próprio uso da denominação tia para a professora é uma questão complexa, pois ideologicamente pode ser utilizado para negar a necessidade dessa profissional ter um saber sistematizado, que embase sua prática, sugerindo assim que basta o afeto e o conhecimento do senso comum para ser professora.

   Acreditamos que a valorização da mulher como profissional passa pela desconstrução dos estereótipos ainda presentes no imaginário social, reforçado pelos próprios sujeitos docentes e demais executores das políticas públicas para atendimento às crianças de 0 a 5 anos de idade, conforme percebido nos resultados da pesquisa por nós realizada.

   Um desses estereótipos encontra-se na diminuta presença masculina na EI. Basta lembrar que dos 137 sujeitos docentes participantes da pesquisa, apenas três estão em sala de aula e são do sexo masculino, mas nenhum atua em creche – a não ser que ocupe o cargo de gestão, caso encontrado no município A. De acordo com esse gestor escolar (que é concursado como professor), os pais têm muito receio das crianças serem molestadas pelos professores homens, especialmente as meninas.

   Outro estereótipo que precisa ser descontruído é a concepção de cuidado como uma tarefa inferior e qualificada como essencialmente feminina. Conforme atestado pelos estudos de Dumont-Pena (2015), é possível compreender que as relações sociais estabelecidas que envolvem o cuidado revelam tensões sociais entre quem cuida e quem recebe o cuidado – herança histórica da divisão social e sexual do trabalho. Resulta, assim, um contexto permeado por ambiguidades, contradições e relações de poder, manifestadas, por exemplo, nas narrativas em que aparecem o termo tomar conta, advindas de uma compreensão do senso comum, reportando à ideia ora de um serviço, ora de caridade.

   Assim, uma compreensão mais crítica sobre o cuidado é central para as lutas no campo da igualdade profissional, pois ao se trazer para o palco das discussões os aspectos referentes a gênero, classe social e etnia, ampliam-se as discussões necessárias tanto no domínio do direito da criança a uma educação de qualidade, quanto à formação e condições de trabalho das profissionais que cuidam das crianças (LOCATELLI; VIEIRA, 2017).

   Acreditamos, então, que o primeiro passo dado está no estranhamento do que seria natural, simbolizado no percentual de 35,6% dos sujeitos docentes que consideram homens e mulheres aptos a serem docentes na EI. Assis (2009) complementa nossa análise acrescentando como outros passos a serem dados para superação da ambiguidade presente: “[...] a necessidade de mudanças de concepções sobre infância, educação, sociedade e consequentemente, com a realização de alterações nas práticas cotidianas.” (ASSIS, 2009, p. 49).

 

Considerações finais

 

Para tecer algumas considerações finais acerca da docência como profissão a partir da dimensão do status e identidade docente, retomaremos as duas questões que nortearam o percurso das discussões: que imagem as profissionais da EI têm de si mesmos e de sua profissão? Sentem-se reconhecidas socialmente?

Os resultados encontrados mostram que embora muitas tenham ingressado na profissão por acaso, há um processo de construção identitária com a EI, pois há uma perspectiva de futuro na profissão (DUBAR, 2012), evidenciada nas afirmativas de que querem continuar atuando na educação e na mesma etapa em questão.

Percebe-se ainda na identidade docente um forte traço maternal, fruto da visão estereotipada acerca da majoritária presença feminina no magistério, que se faz presente tanto no ambiente interno das instituições, quanto no espaço fora dela, e da incompreensão sobre a dimensão social do cuidar, que acaba considerando a mulher como a pessoa naturalmente qualificada para a função docente. Tal visão se manifesta na ausência de professores do sexo masculino nas turmas de EI. Vale ressaltar que a identidade construída é fortalecida pela concepção de “gosto pelo que se faz”, num ideal de perfil/vocação para atuar na área.

A despeito de adversidades que enfrentam diariamente, observa-se que as docentes sentem que suas ações são reconhecidas, ou seja, ainda possuem um certo status social, e agarram-se a um ethos profissional, simbolizando um compromisso com o outro (a criança) e com o social para continuar exercendo seu trabalho da melhor forma possível.

Consideramos, assim como Souza (1996), que no campo do reconhecimento social pelo trabalho desenvolvido há um jogo conflitante: os sujeitos docentes, ainda que assumam para si a responsabilidade pela qualidade de seu trabalho e a justifiquem pelo viés da vocação (ou gosto pelo que se faz), ao se perceberem como trabalhadores desejam que os direitos a melhores condições de trabalho, carreira e formação sejam garantidos. Esse movimento denota uma oscilação entre o cotidiano alienante e o possibilitador da construção de uma práxis, desde que a constituição da socialização profissional se dê em outros moldes.

 

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[1] Em conformidade com os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), os nomes das participantes e os nomes das escolas foram preservados em nossa exposição. As docentes que responderam aos questionários foram identificadas por números na sequência de 1 a 137.

[2] A autora utiliza o termo com base nos estudos de Hannah Arendt.

[3] O estado apresenta uma organização em mesorregiões e microrregiões, realizada em 1990 pelo IBGE. A partir de então, o estado do Tocantins foi dividido em duas mesorregiões: Ocidental do Tocantins e Oriental do Tocantins. A primeira é composta por cinco microrregiões: Bico do Papagaio, Araguaína, Miracema, Rio Formoso e Gurupi. Já a segunda, por três microrregiões: Porto Nacional, Jalapão e Dianópolis (IBGE, 1990).

[4] O segmento multisseriado/multietapa refere-se a organização de turma onde estudam, na mesma sala sob a regência de um único docente, crianças na faixa etária de EI e de Ensino Fundamental.

[5] Na pesquisa, as respostas foram analisadas de forma geral e desagregada a partir da função exercida (professora, monitora) e segmentos (creche, pré-escola e salas multisseriadas/multietapas. Pelo limite do presente trabalho, enfatizaremos somente as respostas por segmentos.

[6] Os termos perfil/vocação foram utilizados no mesmo sentido indicando a existência de características pessoais que se afinam com a função requerida, como por exemplo, gostar de crianças.

[7] A coordenação pedagógica (ou supervisão pedagógica) compõe o quadro de pessoal atuante dentro das instituições escolares. Por sua vez, a equipe da secretaria de educação representa agentes externos às escolas.

[8] As opções dadas foram: a) Para trabalhar bem na Educação Infantil é necessário ter tido a experiência de mãe. b) A professora que também é mãe entende melhor as exigências das crianças e dos outros pais. c) Ter filhos ajuda apenas em certos aspectos práticos (reconhecer as doenças infecciosas, trocar fraldas, etc) e d) Tanto a mulher como o homem podem trabalhar muito bem como professores na Educação Infantil.