A dicotomia entre as exigências do mercado e a política reparadora do Proeja

 

The dichotomy between market requirements and Proeja's repair policy

 

RESUMO

O artigo propõe um debate crítico sobre a formação discursiva do Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Jovens e Adultos (Proeja), apontando a dicotomia existente entre o discurso da política reparadora e a pressão por formação para atender aos interesses do mercado. O objetivo do artigo é mostrar que, em tempos de contrarreforma, a síntese entre a política reparadora e a supervalorização da formação para o mercado revela aspectos do processo de mercantilização da educação e a relação com a precarização do trabalho, conforme a reestruturação produtiva capitalista, em face dos avanços tecnológicos. A análise do problema se fundamenta nas concepções teórico-metodológicas do sociólogo Robert Castel, sobre as zonas de integração, vulnerabilidade, desfiliação e assistência, que permitem extrair evidências de integração precária (vulnerabilidade) ou mesmo completa exclusão do trabalhador do mercado de trabalho, devido ao fim do pleno emprego.

Palavras-chave: Proeja. Reestruturação produtiva. Precarização do trabalho.

 

ABSTRACT 

The paper proposes a critical debate about the discursive formation of the National Program for the Integration of Professional Education with Basic Education in the Youth and Adult Modality (Proeja), pointing out the dichotomy between the discourse of reparative politics and the pressure for training to meet the needs of market interests. The goal of this paper is to show that, in times of counter-reform, the synthesis between the restorative policy and the overvaluation of training for the market reveals aspects of the process of commodification of education and the relationship between the precariousness of work, according to the capitalist productive restructuring, in the face of technological advances. The analysis of the problem is based on the theoretical and methodological conceptions of the sociologist Robert Castel, about the areas of integration, vulnerability, disaffiliation and assistance, which allow extracting evidence of precarious integration (vulnerability) or even complete exclusion of the worker from the labor market, due at the end of full employment.

Keywords: Proeja; Productive restructuring; Precarious employment.

 

Introdução

Este artigo analisa a formação discursiva do Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na modalidade de Jovens e Adultos (Proeja), a fim de mostrar o discurso histórico que orienta a modalidade conforme um “princípio reparador” para com um público específico, em franca contradição com as exigências de formação para o mercado devido às condições históricas do momento, determinadas pelo sistema de produção e consumo capitalistas.

A política do Proeja tem uma explícita intencionalidade formativa - uma “política reparadora” -, que está sendo tensionada, influenciada e transformada por exigências externas ao campo educacional, produzindo como síntese, em princípio, um discurso de supervalorização da formação para o mercado que, consequentemente, revela aspectos que sugerem um gradual processo de mercantilização da educação, com sérios indícios de precarização do trabalho que vai afetar o público formado nos seus cursos técnicos.

A primeira seção do artigo apresenta a construção histórica da formação discursiva da modalidade até os dias de hoje, cujas concepções estão nos documentos que orientam as questões teórico-metodológicas para o ensino e a aprendizagem de jovens e adultos e as suas relações com os diferentes contextos ao longo do século XX, com ênfase no Parecer CNE/CEB nº. 01/2000, que emana um discurso reparador de caráter humanista, direcionado para a formação de um público que foi deixado para trás no processo de escolarização.

A segunda seção expõe os objetivos e diretrizes gerais do Proeja, conforme o seu público específico, e os vínculos indissociáveis entre a formação humanista e a formação para o mundo trabalho que caracterizam a modalidade. A formação para o mundo do trabalho não significa formação para o mercado.

A terceira seção traz as concepções teórico-metodológicas do sociólogo francês Robert Castel sobre as zonas de integração, vulnerabilidade, desfiliação e assistência, que compõem um sistema de coesão social, para analisar a formação ofertada pelo PROEJA, em função dos avanços tecnológicos e da reestruturação produtiva em curso.

Diante do exposto, o objetivo do artigo é mostrar a tensão entre o discurso reparador e as exigências do mercado, considerando a conjuntura mundial de enfrentamento da crise sanitária causada pela Covid-19 e, consequentemente, o aprofundamento da crise econômica, que vai acelerar o processo de reestruturação produtiva nos países de capitalismo tardio, como é o caso do Brasil, esfacelando o que resta do modelo vigente de industrialização e de bem-estar social associado a ele, produzindo como síntese uma precarização severa do trabalho e da vida. A fase atual de desenvolvimento do capitalismo permite vislumbrar um cenário de degradação e integração precária dos trabalhadores no mercado de trabalho. Essa análise produz uma reflexão sobre a formação técnica no Ensino Médio, deixando evidentes as contradições nos discursos e intencionalidade subjacentes ao Proeja, bem como questionamentos sobre o seu futuro, enquanto política nacional implementada para atender às demandas locais de formação para o trabalho.

A investigação se pautou numa pesquisa teórica de abordagem qualitativa, com foco na descrição do problema vivenciado pelos professores/pesquisadores que subscrevem este artigo e que atuam na modalidade, isto é, que possuem um conhecimento tácito acerca da abordagem teórico-metodológica para a formação de Jovens e adultos nos cursos técnicos do Proeja. Portanto, a pesquisa está ancorada em base empírica (vivência) e documental para compor uma narrativa que compreende os problemas inerentes ao processo formativo, envoltos em discursos e interesses dicotômicos. Os interesses externos ao campo educacional que interferem na formação – nos saberes e objetivos educacionais - estão alinhados aos processos de reestruturação produtiva, em face dos avanços tecnológico e da lógica perversa do capitalismo, que precarizam o trabalho e promovem o desmanche dos direitos e garantias sociais.

 

A formação discursiva da modalidade Proeja

O Decreto nº. 5.840/2006 instituiu, no âmbito federal, o Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na modalidade de Educação de Jovens e Adultos, dando início a um debate sobre um processo formativo permeado por um discurso que se materializou em 2007, com a composição própria de um documento normativo para orientar a prática docente, mas cuja historicidade se vincula, primeiramente, a Educação de Adultos nos anos de 1940 até o início dos anos de 1960, ausente no Mobral durante a ditadura, depois, retomado na Educação de Jovens Adultos (EJA) no período pós-ditadura. Vale ressaltar que as campanhas e programas de educação de adultos sempre estiveram vinculadas às políticas estatais, mas, tangencialmente, marcadas por descontinuidades e rupturas distribuídas ao longo do século XX, mantendo somente um fio condutor - como um objetivo comum - que perpassou a todas: a erradicação do analfabetismo e a formação para o trabalho.

O analfabetismo tem os seus efeitos históricos desde o período da colonização do Brasil pelos portugueses, período em que a dominação pela coroa dificultava “por todos os meios e modos a implantação de sistemas educacionais, chegando-se a proibir a instalação de estabelecimentos de ensino superior no Brasil”. O ensino básico também era precário. Assim, “[...] um dos resultados mais patentes da péssima situação educacional brasileira, era o imenso contingente de analfabetos, estimado por alguns autores com índices nunca inferiores a noventa por cento da população” (COSTA, 1986, p. 11-12). Após a Proclamação da República (1889), a situação ainda se mostrava a mesma, mas Costa (1986) evidencia que uma das causas foi o não cumprimento da primeira Constituição do Brasil de 1824, em que assegurava a gratuidade da instrução primária. Os dados do censo de 1872 apontavam que 85% da população total era composta por adultos analfabetos.

No entanto, a alfabetização de adultos começou a ser encarada como um problema durante a República Velha (1889-1930), quando “não mais se confiava apenas no ensino regular para a solução do problema educacional brasileiro” (COSTA, 1986, p. 13), sobretudo porque acarretava problemas econômicos e alijava os analfabetos de participar da vida pública, por serem impedidos de votar. Era necessário qualificar os indivíduos politicamente ativos. Em 1932, a criação da Cruzada Nacional de Educação teve esse intuito, diminuir os índices alarmantes de analfabetismo, após o fim do ciclo do café, um momento em que o país objetivava se desenvolver. “A campanha contra o analfabetismo precisava ter caráter de salvação pública e o objetivo de sua atuação era, portanto, lutar para apagar a mancha vergonhosa do analfabetismo que degrada e avilta o Brasil” (PAIVA, 1973, p. 131). Durante toda a primeira metade do século XX, surgiram medidas para combater o analfabetismo, principalmente, após os anos de 1940, quando o Brasil começou, de fato, a ter um surto industrial. Por exemplo, as ações e programas governamentais que se constituíram em campanhas, como “a criação do Fundo Nacional de Ensino Primário em 1942, do Serviço de Educação de Adultos e da Campanha de Educação de Adultos, ambos em 1947, da Campanha de Educação Rural iniciada em 1952 e da Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo em 1958” (DI PIERRO et al., 2001, p. 59).

Os censos de 1940, 1950 e 1960 apontaram que houve progresso na educação de primeiro grau, com os seguintes números, respectivamente, 56,2% de analfabetos, 50,7% e 39,4%, ou seja, houve decréscimo no analfabetismo, mas em números gerais, já que “em virtude do explosivo crescimento demográfico brasileiro, aumentava o número absoluto de adultos analfabetos: 13.329.779 em 1940, 15.332.644 em 1950 e 15.815.903 em 1960” (COSTA, 1986, p. 13). Em resumo, o analfabetismo entre os adultos aumentou e não podia mais ser tratado como política do ensino regular, mas como política específica, tendo em vista que não se podia ensinar um adulto da mesma forma que se ensinava uma criança.

A educação de adultos, enquanto política pública, foi materializada no Decreto nº. 38955/1956, com a Campanha Nacional de Educação Rural (CNER), cuja finalidade era difundir a Educação de Base no meio rural brasileiro, preconizando, também, uma campanha para levar os conhecimentos teóricos e técnicos indispensáveis para uma vida compatível com a dignidade humana, tendo em vista a participação no progresso econômico e social, atrelado ao nacional-desenvolvimentismo, período em que o Brasil estava em franco processo de industrialização. Os discursos de erradicação do analfabetismo ganharam contornos econômicos e tiveram a intervenção do Estado. Em 1958, a Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo, tornou-se uma política de Estado, de modo que, em 1959, foi criado o Decreto-Lei nº. 47251/1959, que dispunha sobre as Campanhas Extraordinárias de Educação, subordinadas ao Departamento Nacional de Educação, do Ministério da Educação.

Dessa perspectiva, a Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos, a Campanha de Educação Rural e a Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo engendraram discursos que se encaixaram na mesma formação discursiva de erradicação do analfabetismo como política de Estado, mas com foco na inserção no mundo do trabalho, fator que direcionava a educação para a qualificação de mão de obra.

Para Moacir Gadotti (2011), há que se destacar o 2º Congresso Nacional de Educação de Jovens e Adultos, com a participação de Paulo Freire, momento em que surgiram ideias mais amplas para o enfrentamento da erradicação do analfabetismo, em que se nota mudanças fundamentais no discurso da educação de adultos, que ganhou contornos políticos. O escolanovismo respondeu aos anseios da educação formal liberal, mas era despolitizado.

Este podia atender bem aos objetivos da democratização do ensino, da introdução de métodos pedagógicos ativos, da exigência de adequação do sistema educacional à formação de força de trabalho qualificada para o desenvolvimento nacional. Mas, certamente, não oferecia instrumentos adequados à educação da consciência, à condução de uma forma ‘ingênua’ a uma forma ‘crítica’ (PAIVA, 1986, p. 19).

 

Em 1962, Paulo Freire passou a direcionar diversas experiências com a educação de adultos no interior do nordeste, como no município de Angicos – Rio Grande do Norte -, onde 300 trabalhadores haviam sido alfabetizados em 45 dias, chamando a atenção das autoridades, inclusive do Presidente João Goulart que, no ano seguinte, junto com o ministro da educação Paulo de Tarso C. Santos, convidou o educador para articular a alfabetização de adultos em âmbito nacional.

Para Di Pierro et al. (2001, p. 60), foi o momento em que “professavam a necessidade de realizar uma educação de adultos crítica, voltada à transformação social e não apenas à adaptação dos trabalhadores aos processos de modernização conduzidos por forças exógenas”. Nesse período, nacional-desenvolvimentista, havia uma efervescência política e cultural, o que possibilitou que essas experiências na educação de adultos organizassem os grupos populares, articulando-os com sindicatos e outros movimentos sociais. O método de alfabetização de adultos proposto por Freire, ao mesmo tempo em que alfabetizava e politizava, tecia críticas à educação bancária, voltada para formar sujeitos passivos diante do progresso industrial. Lembra Freire (1989, p. 15), que antes de ensinar a ler as palavras, é necessário ensinar a ler o mundo.

Falar de alfabetização de adultos e de bibliotecas populares é falar, entre muitos outros, do problema da leitura e da escrita. Não da leitura de palavras e de sua escrita em si próprias, como se lê-las e escrevê-las não implicasse uma outra leitura, prévia e concomitante àquela, a leitura da realidade mesma.

 

A alfabetização crítica se lançava contra a visão ingênua e fatalista, típicas do sertão esquecido e dominado pelo populismo e pelo coronelismo, que viam na educação do povo um problema, pois os populistas e coronéis ligados aos partidos conservadores acreditavam que o método de Freire poderia alfabetizar e maximizar o eleitorado, mas era um problema para o chamado “voto de cabresto”. O método politizava e ensinava a amar a democracia. A esquerda, por sua vez, mostrou-se avessa ao método, porque era financiado por um programa norte-americano (PAIVA, 1986). O método propunha alfabetizar adultos em poucas semanas e a custos baixos e, atentos ao sucesso da técnica de alfabetização, os norte-americanos, a partir do programa da USAID[1], resolveram financiá-lo. Porém, em 1963, a imprensa local denunciou o método e o programa da USAID, obrigando o diretor a se pronunciar publicamente, mostrando que o método Paulo Freire era uma teoria não-política.

 

Logo em seguida a USAID retirou o apoio ao projeto devido à ‘inadequação dos procedimentos didáticos’ – como razão oficial -, mas na verdade porque passara a encarar o método como uma ‘fábrica de revoluções’. Mas quando isto ocorreu, Freire e seu método já estavam lançados no plano nacional. (PAIVA, 1986, p. 25).

 

A despeito das críticas infundadas, o método nasceu no interior do Movimento de Cultura Popular do Recife (MCP), no final dos anos de 1950, em meio aos chamados “círculos de cultura”, ou seja, nasceu como educação popular. Naquele momento, os saberes populares ganharam um significado educativo e, de acordo com o seu próprio contexto e compreensão solidária da realidade, vigoraram como experiência na alfabetização. Nos círculos de cultura todos os participantes eram expostos a situações conhecidas que podiam compartilhar, dando início a um processo gradual de reconhecimento mútuo, de se enxergarem diante da mesma realidade social e dos mesmos problemas. A politização tinha início com os saberes dos próprios sujeitos da educação, fazendo valer a célebre frase do autor, título de um capítulo do livro Pedagogia do Oprimido: “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 1987, p. 39). Segue-se daí, que a tomada de consciência dos problemas vivenciados pelo grupo ou comunidade perfazia, por si mesma, uma leitura crítica da realidade, que antecedia a leitura das palavras. 

“Em 1964, estava previsto a instalação de 20 mil círculos de cultura para 2 milhões de analfabetos. O golpe militar, no entanto, interrompeu os trabalhos bem no início e reprimiu toda a mobilização já conquistada” (GADOTTI, 1989, p. 32). Ficou explícita a ideia de que a ascensão das classes populares incomodava as elites, sobretudo, porque limitava o seu poder de dominação. O golpe militar foi apoiado pelas elites brasileiras, que queriam manter a cultura do silêncio e a democracia limitada às formalidades e abstrações liberais. Paulo Freire foi preso por 70 dias, conseguiu a liberdade, mas continuava pressionado pelos agentes da ditadura, de forma que sentiu que poderia ser morto e buscou o exílio em setembro de 1964.

O golpe militar extinguiu as ideias pedagógicas em vigência e criou propostas como a Campanha ABC (Ação Básica Cristã), seguida do Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral), sob a Lei nº. 5.379/67, para dar conta da educação de adultos. Observa-se a mudança de discurso, agora, diante da lei de segurança nacional, que interferiu sobremaneira no caráter político da educação. Durante a ditadura, com a prerrogativa de eliminar o analfabetismo, seguiram-se as leis n°. 5.540/68 e n°. 5.692/71, fundamentando as bases legais do Ensino Supletivo.

Segundo Haddad e Di Pierro (2000, p.117), o discurso que embasava o supletivo era o de “recuperar o atraso, reciclar o presente, formando uma mão de obra que contribuísse no esforço para o desenvolvimento nacional, através de um novo modelo de escola”, que pudesse levar os jovens e adultos a finalizarem os estudos. A despeito disso, a ditadura durou 21 anos (1964-1985) e muitos brasileiros foram perseguidos e perderam a vida, inclusive, muitos intelectuais que ajudaram a construir uma ideia de nação e de justiça social.

Com a redemocratização do país, em 1985, os debates em torno da educação ganharam efervescência em função da necessidade de drásticas mudanças na educação implantada pelos militares. No que tange à educação de adultos, já com o encaminhamento de que deveria estar direcionada para o desenvolvimento da cultura, em consonância com as experiências adquiridas pela vivência, retomando a perspectiva freireana, retomou a sua condição de politicidade como educação para a democracia.

A Constituição de 1988, também conhecida como constituição cidadã, nesse cenário, assegurou o direito à educação como direito público e subjetivo, para atender a todos os cidadãos. Então, sob a égide da Carta Magna, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei nº. 9.394/1996, dedicou uma seção exclusiva para tratar da Educação de Jovens e Adultos, a Seção V, em que o artigo 37, § 1º, chama a atenção por afirmar o seguinte:

Os sistemas de ensino assegurarão gratuitamente aos jovens e aos adultos, que não puderam efetuar os estudos na idade regular, oportunidades educacionais apropriadas, consideradas as características do alunado, seus interesses, condições de vida e de trabalho, mediante cursos e exames.

 

Então, a lei assegurava ao trabalhador o direito de concluir seus estudos em condições que consideravam as suas especificidades, deixando aberto o caminho para que algumas políticas públicas apresentassem propostas para a modalidade. O Proeja foi fruto dessa abertura, como se lê na próxima seção.

Vale destacar o Parecer CNE/CEB 11/2000, criado para fundamentar as Diretrizes Curriculares para a Educação de Jovens e Adultos e nortear o discurso legal em estreita relação com o que se espera da modalidade em termos de formação humana. O discurso desse documento icônico balizou a Educação de Jovens e Adultos até a atualidade, definindo um perfil de aluno, destacando a diferença do aluno das modalidades regulares, bem como exigindo a criação e a aplicação de metodologias diferenciadas de ensino para atender às demandas em suas especificidades. Assim, vislumbrou a necessidade de um Projeto Político Pedagógico próprio, bem como de um currículo que materializava conteúdos em estreita relação com as experiências dos alunos, ressaltando a importância dos saberes construídos em ambientes diversos dos escolares, bem como a cultura e suas singularidades para reconhecer as diferenças daqueles que se reconhecem e são tratados desigualmente, como grupos historicamente desfavorecidos.

Em termos de formação discursiva, o Parecer foi construído após muitas discussões, conferências e congressos, envolvendo especialistas e educadores, trazendo como destaque e grande diferenciação dos discursos anteriores, a preocupação em reparar socialmente os direitos das pessoas que não concluíram a educação formal em idade própria, garantindo-lhes, com base na Constituição Federal de 1988, o acesso à formação escolar. Para tanto, o parecer preceitua três funções essenciais: a reparação, a equalização e a permanência. A função reparadora foi justificada como uma dívida histórica para com o público trabalhador, assegurando aquele direito que havia sido negado - o de frequentar a escola -, de ter acesso ao conhecimento como prerrogativa para inserção no mundo do trabalho, a valorização dos direitos civis, o reconhecimento cultural e, fundamentalmente, a igualdade ontológica a que todo ser humano tem direito. Ressalta-se que o reconhecimento cultural retoma o discurso freireano de que os saberes e peculiaridades dos alunos devem ser respeitados e valorizados para que haja aprendizagem contextualizada. A função equalizadora merece atenção, pois

vai dar cobertura a trabalhadores e tantos outros segmentos sociais como donas de casa, migrantes, aposentados e encarcerados. A reentrada no sistema educacional dos que tiveram uma interrupção forçada seja pela repetência ou pela evasão, seja pelas desiguais oportunidades de permanência ou outras condições adversas, deve ser saudada como uma reparação corretiva, ainda que tardia, de estruturas arcaicas, possibilitando aos indivíduos novas inserções no mundo do trabalho, na vida social, nos espaços da estética e na abertura dos canais de participação. (BRASIL, 2000, p. 09).

 

Observa-se pelo excerto, uma crítica às estruturas arcaicas que não resolveram o problema do analfabetismo e excluíram milhares de brasileiros do ensino formal, causando grandes prejuízos às suas vidas, além de admitir que se trata de uma política pública que equaliza o acesso e a oportunidade, ao mesmo tempo, dá vez e voz aos que foram silenciados. “É preciso primeiro que, os que assim se encontram negados no direito primordial de dizer a palavra, reconquistem esse direito, proibindo que este assalto desumanizante continue” (FREIRE, 1987, p. 45). A educação, nesse contexto, torna-se a chave indispensável para o exercício da cidadania. 

A permanência, por sua vez, representa o próprio sentido da EJA, que além de primar pela manutenção do adulto na escola, visava “propiciar a todos a atualização de conhecimentos por toda a vida” (BRASIL, 2000, p. 11), projetando uma perspectiva qualificadora, que vai se materializar, depois, no âmbito do PROEJA, quando se agrega à Educação Básica o ensino técnico.

Evidentemente, as funções descritas perfazem um discurso de formação humanista, que envolve tanto a formação para a vida pública (cidadania) quanto a formação para o trabalho e, em diferentes momentos, verifica-se a influência do pensamento de Paulo Freire, da educação voltada para atender as demandas sociais, respeitando os saberes populares e seus contextos históricos. Esse discurso é claramente evidenciado no Documento Base do Proeja, como se explicita na próxima seção, um programa que foi criado para promover, além da formação humana, a formação contextualizada para o mundo do trabalho e não necessariamente para o mercado. A educação formal, como o próprio nome diz, forma, o mercado treina, ou seja, não se pode reduzir a formação a treinamento. Vale destacar essa diferença entre a formação para o mundo do trabalho do treinamento para o mercado.

O Proeja e a política reparação como fundamento da educação de Jovens e Adultos

A partir do Decreto nº. 5.478, de 24 de julho de 2005, foi criado e regulamentado o Proeja, no entanto, as determinações eram que os cursos ofertados na modalidade fossem de curta duração e restritos à Rede Federal de Ensino, gerando controvérsias. Os movimentos sociais e educacionais, organizados no país contra essa decisão e modelo, pressionaram para que houvesse mudanças e outro Decreto foi instituído, o de nº. 5.840, de 13 de julho de 2006, que está em vigor até a atualidade, referendado no Documento Base (2007), cuja finalidade é orientar o modo como a educação na modalidade Proeja se organiza para atender às demandas.

De acordo com os dispositivos legais do referido Decreto, cabe às Instituições Federais de Educação Tecnológica estruturar os cursos de formação, de preferência, nas áreas profissionais, considerando as que atendam as demandas locais e regionais, de forma a contribuir com o fortalecimento de estratégias de desenvolvimento econômico locais e regionais. A perspectiva de formação profissional possibilitou uma reconfiguração no formato educacional da Educação de Jovens e Adultos (EJA), a fim de contemplar uma formação mais ampla, conforme indica o Documento Base (BRASIL, 2007, p. 13):

O declínio sistemático do número de postos de trabalho obriga redimensionar a própria formação, tornando-a mais abrangente, permitindo ao sujeito, além de conhecer os processos produtivos, constituir instrumentos para inserir-se de modos diversos no mundo do trabalho, inclusive gerando emprego e renda.

Notadamente, a estrutura operacional e educativa do Proeja está voltada para atender às demandas do mundo do trabalho e, para isso, incluiu modificações nas práticas educativas, nas concepções, nos princípios, no Projeto Político Pedagógico, no currículo integrado, na avaliação processual e contínua, na formação inicial e continuada de professores e gestores, nas ofertas de vagas, no financiamento e monitoramento pelo SETEC/MEC, tendo em vista, o papel desenvolvido pela Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica. Desse modo, a implementação e desenvolvimento do programa assegura que a formação não seja apenas de cunho técnico, instrumental, mas que se observem as potencialidades humanas a se desenvolver conforme o contexto local e regional, de modo que o Documento Base orienta:

não se pode subsumir a cidadania à inclusão no ‘mercado de trabalho’, mas assumir a formação do cidadão que produz, pelo trabalho, a si mesmo e o mundo. Esse largo mundo do trabalho – não apenas das modernas tecnologias, mas de toda a construção histórica que homens e mulheres realizaram, das mais simples, cotidianas, inseridas e oriundas no/do espaço local até as mais complexas, expressas pela revolução da ciência e da tecnologia – força o mundo contemporâneo a rever a própria noção de trabalho (e de desenvolvimento) como inexoravelmente ligada à revolução industrial. (BRASIL, 2007, p. 13).

O Documento Base (2007) compreende que a cidadania e o trabalho se interseccionam no processo formativo, além de valorizar a formulação de políticas públicas que confluem para a reparação histórica e social aos trabalhadores alijados dos processos de produção e consumo, sem se submeter aos discursos mercadológicos, no que concerne à formação de um contingente de trabalhadores, embora a pressão para isso ocorra na prática.  Não distante do que preconiza o Documento Base (2007), a LDB também apresenta como um de seus objetivos formar para a cidadania. Em vias teóricas, além do olhar voltado ao trabalho e a cidadania, o Documento Base (2007) também orienta que a educação deve possibilitar o prosseguimento nos estudos, pois não basta proporcionar acesso aos saberes e à formação técnica, mas, como política de direitos, proporcionar as condições para que os indivíduos tenham oportunidades futuras de seguimento educacional. “A perspectiva precisa ser, portanto, de formação na vida e para a vida e não apenas de qualificação do mercado ou para ele” (BRASIL, 2007, p. 13).

O documento expressa uma intencionalidade em relação à política de permanência dos alunos trabalhadores, visando minimizar os impactos dos índices de evasão, de abandono, de exclusão que, normalmente, ocorrem devido às dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores de se manterem no sistema educacional. A preocupação é com o acesso e a permanência - o acesso é gratuito, com caráter universal, embora, na prática, a permanência ainda seja um obstáculo a ser superado, já que o discurso legal não sustenta os meios para a manutenção dos alunos nos cursos.

De acordo com o Relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE, 2018) – “Um olhar sobre a educação” -, o Brasil aparece como um dos países com um índice alto de pessoas sem conclusão da educação básica, sendo mais da metade adultos (52% com idade entre 25 e 64 anos), que são potencialmente alunos do Proeja. Em suma, uma grande parcela da população brasileira foi excluída da Educação Básica por diferentes motivos e, em função dos processos de reestruturação produtiva, estão retornando aos bancos escolares e trazendo demandas que exigem do Estado a criação de políticas públicas. Em relação à educação profissional, segundo dados do portal do INEP (2018), os resultados são negativos se comparados a outros países, considerando que “em média, entre os países da OCDE, 42% dos formados no ensino médio são concluintes da educação profissional. No Brasil, os concluintes da educação profissional representam apenas 8% dos concluintes do ensino médio”. Ou seja, a política de permanência precisa ter uma política pública para a manutenção dos custos e para garantir que os alunos concluam o curso profissionalizante. No entanto, há outros problemas emergentes, como o fechamento de postos de trabalho, por exemplo, reconhecido no documento base do Proeja:

Este fato tem representado um aumento substantivo de jovens na EJA, todos com escolaridade descontínua, não-concluintes com êxito do ensino fundamental, obrigados a abandonar o percurso ou pelas reiteradas repetências, indicadoras do próprio ‘fracasso’, ou pelas exigências de compor renda familiar, insuficiente para a sobrevivência, face ao desemprego crescente, à informalidade e a degradação das relações de trabalho, ao decréscimo do número de postos. (BRASIL, 2007, p.18).

 

Diante disso, a formação técnica do Proeja não pode garantir o status de trabalhador formal aos concluintes do curso, ou seja, a empregabilidade independe da formação. O discurso das políticas de reparação, de formação para a cidadania e para o mundo do trabalho, bem como a valorização e defesa dos direitos sociais, são fundamentais, mas não se sustentam frente ao atual momento histórico do próprio capitalismo, em que o processo de reestruturação produtiva exige a alta qualificação profissional para atender aos avanços tecnológicos.

Na seção seguinte, a síntese histórica entre a política de reparação e a supervalorização da formação para o mercado - uma exigência mercadológica externa ao campo educacional -, vem tencionando a formação técnica do Proeja e produzindo contradições com reflexos, inclusive, para o futuro do programa. Em face dos avanços tecnológicos, no atual estágio de desenvolvimento do capitalismo, a formação humana e técnica consegue acompanhar as exigências do mercado? Quais as consequências dos avanços tecnológicos para a formação nos cursos técnicos? A reestruturação produtiva põe fim ao pleno emprego, mas exige, no revés, um alto nível de qualificação profissional, antecipando um problema sério para os cursos técnicos ofertados no Ensino Médio: a precarização do trabalho. Os problemas ganham contornos dramáticos, mais adiante, quando analisados a partir das concepções teóricas do sociólogo francês Robert Castel.

A dicotomia entre as exigências do mercado e as políticas reparadoras do Proeja

Em tempos de contrarreformas[2] econômicas e políticas, o campo educacional sofre pressões para ceder aos interesses do mercado frente às novas configurações produzidas pela reestruturação produtiva, que afetam diretamente as relações de trabalho. A tendência é que o processo formativo atenda aos interesses mercadológicos, consoante à lógica privatista em curso, e gradual desmantelamento do Estado. Este último, é a única instituição capaz de gerir as políticas públicas e realizar a manutenção do estado de bem-estar social. “O uso do termo Estado social não atribui a priori nenhuma avaliação valorativa sobre sua condição de ‘bem-estar’ ou de ‘mal-estar’. Apenas informa que se refere à ação do Estado na esfera social” (BOSCHETTI, 2018, p. 77). Evidentemente, o esfacelamento do Estado, num contexto de ultraneoliberalismo, conduz à ideia de um Estado mínimo e ascensão máxima do capital, que passa a impor as regras de funcionamento das instituições para consolidar um modelo unidimensional de organização social, pautado no sistema de produção e consumo, e voltado para a mercantilização da vida em suas várias esferas.

Nessa seção, o objetivo é refletir sobre as implicações desse quadro sombrio nas políticas educacionais do Proeja, no sentido de mostrar que a dicotomia entre a política de reparação e a política de mercado, com foco na interferência negativa na formação e na prática docente. Como fica a situação do Proeja, por exemplo, diante da reestruturação produtiva em face dos avanços tecnológicos? No Brasil, o processo de reestruturação pode se acirrar após a pandemia? Quais as consequências para a formação técnica no Ensino Médio? São questões que balizam algumas reflexões e que precisam ser consideradas.

O objetivo de educar para o mundo do trabalho é notadamente diferente de educar para o mercado, dado que a educação para o mundo do trabalho tem como foco as relações de trabalho e não as relações de mercado. Os valores que permeiam esse debate são diferentes.

O todo econômico nunca fundou uma ordem social; numa sociedade complexa, a solidariedade não é mais um dado mas um construído; a propriedade social é, simultaneamente, compatível com o patrimônio privado e necessária para inseri-lo em estratégias coletivas; o salário, para escapar de sua indignidade secular, não pode se reduzir à simples remuneração de uma tarefa; a necessidade de preparar para cada um lugar na sociedade democrática não pode ser realizada por meio da completa transformação da sociedade em mercadoria, cavando qualquer ‘jazida de emprego’ etc. (CASTEL, 2001, p. 497).

 

O excerto de Castel expressa o espírito da análise que se pretende fazer das atuais políticas do Proeja, considerando a pressão de formar para o mercado, conforme as exigências do capital. O pressuposto de que a formação para o mercado gera contradições no Proeja se consubstancia à medida que a formação técnica no Ensino Médio acentua a precarização do trabalho, devido ao fim do pleno emprego e das exigências do mercado por demanda altamente qualificada. A partir do pensamento de Castel, foi possível fazer uma análise crítica da atual conjuntura em que se insere o Proeja e extrair uma síntese.

Observa-se que o público atendido na modalidade volta a estudar por diferentes motivos - a exigência de qualificação profissional, a manutenção do emprego ou mesmo a recolocação no mercado de trabalho -, porém, como afirma Castel (2001, p. 496), o capitalismo sofre retração e os trabalhadores vivenciam o fim do pleno emprego, retratando uma característica perturbadora, a saber, “o reaparecimento de um perfil de ‘trabalhadores sem trabalho’ [...], os quais literalmente, ocupam na sociedade um lugar de supranumerários, de ‘inúteis para  o mundo’”.

Nesse caso, o Proeja oferta um curso técnico e sustenta um discurso de reparação para com seu público, mas, independentemente da sua intencionalidade, os alunos compõem um contingente de trabalhadores intermitentes para o mercado. Castel (2005) compreende trabalhadores intermitentes como aqueles que oscilam entre a precarização do trabalho (vulnerabilidade) e os riscos da desfiliação, sobretudo em meio à reorganização capitalista.

Assumir um discurso de reparação é fundamental e pode contribuir para minimizar os impactos de algumas problemáticas do tecido social, mas não as variáveis que provocam essas problemáticas. O trabalhador parece condenado a uma precariedade permanente, bem como a uma insegurança cotidiana em relação ao mercado, oscilando entre a vulnerabilidade, a mendicância e a vagabundagem (CASTEL, 2013).

No Brasil, as várias políticas públicas implementadas para reparar os processos de desestabilização e precarização estão fragilizadas e sob o ataque constante de forças conservadoras de ultradireita, que têm como fulcro somente a dilapidação da riqueza pública via privatizações, bem como a mercantilização da natureza. Salienta-se, ainda, que após a promulgação da Emenda Constitucional n°. 95/2016 - conhecida como PEC da morte por congelar os gastos com políticas públicas por 20 anos, afetando diretamente setores como a saúde e a educação - projetou um programa de privatizações, de concentração de renda e de exclusão social.

A pandemia da Covid-19 acelerou as demandas por privatizações e a mercantilização da natureza, visíveis nos discursos que defendem o avanço do agronegócio sobre as reservas indígenas, as terras das comunidades quilombolas e aquelas do próprio Estado que compõem parques e reservas biológicas (como as do Cerrado e da Amazônia). O discurso do então Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em 22 de abril de 2020, foi emblemático por utilizar a expressão “passar a boiada” para defender o desmatamento e o desmonte das políticas ambientais do país, aproveitando-se do fato de que a mídia noticiava a tragédia brasileira diante da pandemia da Covid-19 (naquele dia informando a morte de 2.924 brasileiros pela doença, a superlotação nos hospitais, a falta de insumos etc.). O discurso insensível dele, evidentemente, compactua ideologicamente dos interesses com o grupo ao qual pertence: o agronegócio.

O cargo ministerial – enquanto lugar de poder institucionalizado e regulatório – concede a legitimidade requerida ao ato de fala do ministro, que atua como a junção de outros discursos pré-existentes, buscando e manifestando coerência discursiva com os demais sujeitos envolvidos naquele ato de enunciação. Ou seja, o discurso de Salles, enquanto maior autoridade do Ministério do Meio Ambiente, pode ser interpretado como a manifestação de políticas ambientais compartilhadas pelo grupo ao qual pertence [...]. (RIBEIRO; ALMEIDA, 2021, p. 2339-2340).

Os efeitos da pandemia no desaquecimento da economia mundial foram devastadores, mas, em especial,

na América Latina e no Caribe, a redução do passo da economia ocasionou ou agravou crises fiscais à luz da queda na arrecadação de impostos somada a uma demanda mais intensa de serviços públicos, a começar por atendimentos de saúde de alto custo, medidas de proteção social e recuperação econômica. (OXFAM BRASIL, 2021, p. 26).

Diante desse contexto, ainda que se tenha uma intenção de reparação, o Proeja faz parte das políticas que não mais encontram apoio político, senão do próprio capital para preparar os trabalhadores intermitentes para suprirem as necessidades do mercado de forma precarizada. Em meio à crise sanitária, esse parece ser o problema enfrentado pelos cursos de formação técnicos ofertados no Ensino Médio.

A questão social não se reduz à constatação da tragédia social dos excluídos, tampouco se confunde com formas de ‘gestão de problemas sociais’ por meio de políticas focalizadas, seletivas e localizadas e vai além do apelo a uma vaga solidariedade moral. Pois o que está em pauta nos tempos atuais é a exigência de renegociar o difícil equilíbrio entre mercado e trabalho e construir uma figura do Estado social à altura dos desafios atuais. (TELLES, 1998, s/p).

Essa figura do Estado social está se esfacelando no Brasil, concorrendo para que os trabalhadores sejam deixados à própria sorte no equilíbrio entre o mercado e o trabalho. Para compreender essa situação, tem-se que considerar o que Castel (2005, 2013) denomina como zonas de transição da coesão social, que funcionam como uma espécie de pirâmide para seccionar a sociedade em quatro categorias básicas: a zona de integração, a zona de vulnerabilidade, a zona de desfiliação e a zona de assistência social. Cada zona tem um funcionamento próprio para a manutenção da coesão social.

A primeira zona, chamada pelo teórico de zona de integração, tem por finalidade classificar os indivíduos que têm acesso às melhores condições sociais, os integrados totalmente por meio das condições de trabalho, que perfaz uma pequena minoria da população mundial. Raríssimos indivíduos que tiveram acesso às políticas de reparação conseguiriam entrar nessa zona, isto é, de migrar da zona de vulnerabilidade para a zona de integração. Os indivíduos da zona de integração têm acesso ao melhor que o capital pode oferecer em termos de educação, saúde, segurança, lazer, moradia etc. Em suma, as políticas de bem-estar social – se existiram no capitalismo – foi para uma pequena parcela da população mundial.

A zona de vulnerabilidade, por sua vez, contempla os indivíduos que estão precariamente integrados no mercado de trabalho e concentra a maior parte da população mundial, sendo a maior das quatro zonas. A zona de vulnerabilidade garante a estabilidade e a segurança da zona de integração, embora seja uma zona configurada pelo trabalho precário e expresse a fragilidade de apoio relacional (CASTEL, 2013).  Por meio do trabalho, os integrantes dessa zona têm acesso à educação, saúde etc., mesmo que de forma precária. Castel (2005, p. 416) declara que “[...] a classe operária vive a participação na subordinação: o consumo (mas de massa), a instrução (mas primária), o lazer (mas popular), a habitação (mas a habitação popular)”. Então, o perfil dos integrantes dessa zona é bem próximo daquele perfil descrito como público-alvo do Proeja, trabalhadores que sobrevivem com sérias limitações, isto é, expostos a uma vida social em estreita relação com as condições precárias de trabalho e de vida.

A terceira zona, chamada de zona de desfiliação, contempla todos os indivíduos que não estão inseridos no mercado de trabalho: são marginalizados e não conseguem se manter estáveis num emprego formal (CASTEL, 2013). Essa zona pode representar a exclusão total e definitiva do mercado de trabalho formal, seja pela ausência de trabalho (o fim do pleno emprego), seja pelo isolamento relacional. Em ambos os casos, o trabalhador é marginalizado socialmente (CASTEL, 2005). A zona de desfiliação é a zona da marginalidade, onde vivem os vagabundos, os que não trabalham (mesmo estando aptos), os rejeitados, os excluídos etc.; ela existe para mostrar aos precariamente integrados, da zona de vulnerabilidade, que se eles não se submeterem aquilo que é ofertado, estarão sujeitos a integrar as margens da sociedade. Sobre os indivíduos desfiliados recaem as medidas repressivas para o rechaçamento e a eliminação.  Contudo, o tratamento dispensado a eles é diferente daquele dispensado aos inválidos, velhos, crianças etc., que dependem de suporte social. Para estes, existe uma quarta zona, a saber, a zona da assistência social, cujo princípio é a caridade.

As políticas públicas com caráter reparador, como a do Proeja, começam a funcionar como uma espécie de “pronto-socorro social” (CASTEL, 2013). Elas irão intervir, pontualmente, em algumas questões para evitar a ruptura no tecido social. “[...] Parece mais fácil e mais realista intervir sobre os efeitos de um disfuncionamento social do que controlar os processos que o acionam” (CASTEL, 2013, p. 42). O disfuncionamento social é provocado por processos de exclusão e precarização do trabalho. “É no coração da condição salarial que aparecem as fissuras que são responsáveis pela exclusão” (CASTEL, 2005, p. 46), porém, nota-se que a política de reparação histórica e social, nesse caso, pode estar contribuindo com a demanda mercadológica na medida em que a formalização de saberes escolares atende às novas configurações assumidas pelo trabalho precarizado, inerentes à zona de vulnerabilidade.

Assim, a formação no Proeja pode até auxiliar para que se evite a ruptura do tecido social, conferindo certa estabilidade ao capital, pressupondo que o aluno (após formado num curso técnico) seja integrado, mesmo que precariamente, no mercado de trabalho.

 Hoje, a insegurança do capitalismo mundial e as constantes crises econômicas, como a acirrada pela pandemia da Covid-19, por exemplo, tendem a acentuar os efeitos nefastos para os trabalhadores, produzindo a exclusão definitiva de uma parcela considerável deles do mercado de trabalho formal, passando da zona de vulnerabilidade para a desfiliação. Em tempos de pandemia,

o simulacro do combate ao desemprego pela via da precarização, o home office e a uberização são componentes que se destacam na conjuntura pandêmica, inclusive provocando reações dos trabalhadores contra esse processo, vide manifestações durante a pandemia. (SOUZA, 2021, p. 01)

Dessa perspectiva, em função da precarização do trabalho, as políticas sociais ganham respaldo jurídico-legal para socorrer os trabalhadores intermitentes e vulneráveis, procurando evitar a sua total exclusão. La Taille (2009, p. 34) descreve as condições precárias do trabalhador intermitente e do trabalhador que extrapolou os limites da vulnerabilidade e não tem mais acesso às políticas: “É notável que a exclusão tem algo de cruel: enquanto o pobre, apesar de pobre, tem utilidade social, o excluído não tem. O rico precisa do pobre, ninguém precisa do excluído.” A zona de transição – da vulnerabilidade para a desfiliação – é uma fragmentação do tecido social, que indica um processo de não coesão e, em suma, a exclusão total dos trabalhadores.

Vivemos em uma sociedade permeada por riscos de fraturar a coesão social, a tal ponto que os trabalhadores vulneráveis e precariamente incluídos podem se tornar desfiliados. A educação técnica ofertada pelo Proeja, embora tenha um discurso de caráter humanista e de proteção social importantes, o horizonte dos alunos trabalhadores que retornaram aos bancos escolares é o da integração precária, em meio às relações de trabalho dissolvidas pela reestruturação produtiva, uma síntese possível diante dos avanços tecnológicos e do fim do pleno emprego.

Considerações Finais

Vimos ao longo do debate que o Proeja é uma política nacional de fundamental importância para a formação humana, vinculada à formação para o trabalho e voltada ao atendimento de alunos excluídos, em outros tempos, do processo educacional. Contudo, a supervalorização de formação para o mercado, que é uma exigência externa ao campo educacional, produz contradições e evidencia uma síntese do processo educacional, a saber, que esse modelo de formação não pode romper com as condições de vulnerabilidade dos trabalhadores, no atual estágio de desenvolvimento do capitalismo, já que não há mais garantia do pleno emprego e nem de melhores condições de existência. Sabidamente, o capitalismo existe em meio a constantes crises sociais, econômicas, políticas, ambientais, sanitárias etc., sempre aprofundando as contradições. A precarização do trabalho tende a se acentuar em meio à dinâmica das crises do capital e ser parte do processo de reestruturação produtiva. A impressão é que o sistema capitalista está esgotando as possibilidades civilizatórias.

Em meio ao problema, Castel aponta para o caminho de uma social-democracia como forma de manter o Estado e, consequentemente, a manutenção das políticas de bem-estar social, como se observa em países europeus. Diferentemente, o contexto do capitalismo tardio brasileiro, cuja precarização da vida e das relações de trabalho tendem a se aprofundar após a pandemia da Covid-19, o horizonte parece ser a luta constante dos trabalhadores intermitentes por manutenção da existência, já que o trabalho pouco qualificado perde a relevância e o valor nos processos de reestruturação produtiva, em face dos avanços tecnológicos, de forma que uma política pública como a ofertada pelo Proeja, que forma e prepara para o mundo do trabalho, choca-se com as exigências do mercado.

O resultado é a precarização, pois a educação não pode legitimar as práticas econômicas, sob a pena de perder o caráter de formação humana e o viés crítico de formação para a vida e para o trabalho. Da mesma forma, não pode ser mercantilizada e servir para remediar problemas do mercado em sua gênese perversa, embora, as políticas mercadológicas ultraneoliberais, em voga hoje no Brasil, além de promoverem a destruição do Estado, negar direitos, privatizar e dilapidar o patrimônio público, estejam interferindo negativamente no campo educacional para satisfazer interesses escusos aos educacionais.

Referências

BEHRING, Elaine Rossetti; BOSCHETTI, Ivanete. Política Social: fundamentos e história. São Paulo: Cortez, 2007.

 

BOSCHETTI, Ivanete. Crítica marxista do estado social e dos direitos no capitalismo. In.: BOSCHETTI, Ivanete; BEHRING, Elaine Rossetti; LIMA, Rita de Lourdes de (Orgs.). Marxismo, política social e direitos. São Paulo: Cortez, 2018.

 

BRASIL. Senado Federal. Constituição da República Federativa do Brasil: 1988. Brasília/DF,1988. Disponível em: http://www.senado.gov.br/sf Acesso em: 7 mai 2020.

 

_______. Ministério da Educação. Lei n°. 9394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília/DF, 1996. Disponível em www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm. Acesso em 20/10/2018 Acesso em: 14 abr. 2020.

 

_______. Ministério da Educação. Parecer CNE/CEB nº. 01/2000. Estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação e Jovens e Adultos. Brasília/DF, 2000. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CEB012000.pdf Acesso em: 3 mai 2020.

 

_______. Congresso Nacional. Decreto n°. 5.840. Institui, no âmbito federal, o Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos - Proeja, e dá outras providências. Brasília/DF, 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Decreto/D5840.htm Acesso em: 3 mai 2020.

 

_______. Ministério da Educação. Programa Nacional de Integração da Educação profissional com a Educação Básica na modalidade da Educação de Jovens e Adultos: Educação Profissional Técnica de Nível Médio. Brasília/DF: 2007. (DOCUMENTO BASE).

 

_______. Emenda Constitucional n°. 95, de 15 de dezembro de 2016. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc95.htm

Acesso em: 25 ago. 2020.

 

_______. Inep Divulga nova edição do relatório Panorama da Educação: Destaques do Education at a Glance. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. 2018. Disponível em: http://inep.gov.br/artigo/-/asset_publisher/B4AQV9zFY7Bv/content/inep-divulga-nova-edicao-do-relatorio-panorama-da-educacao-destaques-do-education-at-a-glance/21206 Acesso em: 25 jul. 2020.

 

CASTEL, Robert. As armadilhas da exclusão. In: BELFIORE-WANDERLEY, Mariangela; BÓGUS, Lúcia; YAZBEK, Maria Carmelita. Desigualdade e a questão social.  4 ed. São Paulo: EDUC, 2013.

 

CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. 3 ed. Trad. Iraci D. Poleti. Petrópolis/RJ: Vozes, 2001.

 

CASTEL, Robert.  A insegurança social: o que é ser protegido? Petrópolis/RJ: Vozes, 2005.


COSTA, Roberto Mário Cunha da. Mobral: nascimento, vida, paixão e morte. Rio de Janeiro: Xogun, 1986.

 

DI PIERRO, Maria Clara et al. Visões da educação de jovens e adultos no Brasil. Cad. CEDES. Campinas. V. 21, n°. 55, p. 58-77, Nov. 2001. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/ccedes/v21n55/5541.pdf Acesso em: 5 mai. 2020.

 

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987

 

GADOTTI, Moacir. Convite à leitura de Paulo Freire. Série pensamento e ação no magistério. São Paulo: Editora Scipione, 1989.

 

GADOTTI, Moacir. Educação de Jovens e Adultos: correntes e tendências. In: GADOTTI, Moacir; ROMÃO, José Eustáquio (Orgs.). Educação de Jovens e Adultos: teoria, prática e proposta. 12 ed. São Paulo: Cortez, 2011.

 

HADDAD, Sérgio; DI PIERRO, Maria Clara. Escolarização de jovens e adultos. Revista Brasileira de Educação, São Paulo, n°. 14, p. 108-130, mai./ago. 2000. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/rbedu/n14/n14a07 Acesso em: 7 mai. 2020.

 

HILSDORF, Maria Lúcia Spedo. História da educação brasileira: leituras. São Paulo: Cengage Leanrning, 2015.

 

LA TAILLE, Yves de. Formação ética: do tédio ao respeito de si. Porto Alegre/RS: Artmed, 2009.

 

ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO. Education at a Glance 2018 – um olhar sobre a educação. Paris: OCDE, 2018. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1787/eag-2018-en Acesso em: 25 jul. 2020.

 

OXFAM BRASIL. Nós e as desigualdades: pesquisa Oxfam Brasil/DataFolha – percepções sobre desigualdades no Brasil. Maio de 2021. Disponível em: https://www.oxfam.org.br/um-retrato-das-desigualdades-brasileiras/pesquisa-nos-e-as-desigualdades/pesquisa-nos-e-as-desigualdades-2021/ Acesso em: 12 de set. 2021.

 

PAIVA, Vanilda. Educação popular e educação de adultos: contribuição a história da educação brasileira. São Paulo: Edições Loyola, 1973.

 

PAIVA, Vanilda. Paulo Freire e o nacionalismo-desenvolvimentista. Rio de Janeiro: Editora Civilização brasileira, 1986.

RIBEIRO, Camila B.; ALMEIDA, Maria C. “Passando a boiada”: aspectos dialógicos e interdiscursivos em textos relacionados ao discurso do Ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles. Rev. Estud. Ling. Belo Horizonte. V. 29, n°. 4, p. 2335-2366, 2021.

SOUZA, Diego O. As dimensões da precarização do trabalho em face da pandemia de Covid-19. Trabalho. Trab. Educ. Saúde. Rio de Janeiro. V. 19, p. 01-15, 2021.

TELLES, Vera da Silva. Inúteis para o mundo. Jornal de Resenhas. Folha de São Paulo. São Paulo, sábado, 12 de setembro de 1998. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/resenha/rs12099814.htm Acesso em: 23 jun. 2020.

 

 



[1] Agency for international Development (USAID), agência norte-americana que prestou assessoria ao Ministério de Educação, entre 1964 e 1968, combinando uma mentalidade empresarial com medidas de exceção da área militar para a política educacional brasileira (HILSDORF, 2015).

[2] Diante do avanço das políticas neoliberais, do desmantelamento do Estado e da perda de direitos, qualquer reforma que prejudica a vida e precariza o trabalho não pode ser definida como reforma, mas como contrarreforma (BEHRING; BOSCHETTI, 2007).