Espaçotempos na UniverS/Cidade: novas visibilidades aos olhares estudantis
Timespaces at UniverS/City: new visibilities for students views
Jardel Pelissari Machado
Psicólogo da Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Paraná, Brasil.
machadojardel@gmail.com - http://orcid.org/0000-0001-9840-8992
Andréa Vieira Zanella
Professora doutora na Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, Santa Catarina, Brasil.
avzanella@gmail.com - http://orcid.org/0000-0001-8949-0605
Recebido em 23 de julho de 2020
Aprovado em 30 de abril de 2021
Publicado em 24 de fevereiro de 2022
RESUMO
Inserido no campo dos estudos sobre a Educação Superior Brasileira, este trabalho tem por objetivo analisar respostas/posicionamentos de estudantes de graduação de uma universidade pública brasileira às dimensões e possibilidades espaçotemporais em suas vidas acadêmicas. Para tal, com base na filosofia da linguagem do Círculo de Bakhtin e na Filosofia Crítica, foi realizada uma pesquisa de caráter interventivo com Oficinas de fotografia, as quais produziram dados compostos por fotografias, diários de campo e transcrições de diálogos. Ao analisar os dados, discute-se sobre: a organização discursiva espaçotemporal da vida acadêmica e seus efeitos aos processos de produção de subjetividades das/os estudantes; a não homogeneidade e não linearidade dos espaçotempos na vida universitária; criação de novos olhares, sensibilidades, pensabilidades e possibilidades de ação a partir da instauração e convite a tempos lentos. Conclui-se sobre a necessidade de criação e visibilização de espaçotempos lentos, que permitam a apropriação crítica dos processos por aquelas/es que os vivenciam.
Palavras-chave: Educação Superior; Espaçotempo; Fotografia.
ABSTRACT
Inserted in the field of studies on Brazilian Higher Education, this work aims to analyze responses / positions of undergraduate students from a Brazilian public university to the spatial-temporal dimensions and possibilities in their academic lives. To this end, based on the philosophy of language of the Bakhtin Circle and on Critical Philosophy, an intervention study was carried out with photography workshops, which produced data composed of photographs, field diaries and dialog transcripts. When analyzing the data, we discuss about: the space-time discursive organization of academic life and its effects on the students' subjectivity production processes; the non-homogeneity and non-linearity of time-spaces in university life; creation of new perspectives, sensitivities, thoughts and possibilities for action based on the establishment and invitation to slow times. It concludes about the need for the creation and visualization of slow timespaces, which allow the critical appropriation of the processes by those who experience them.
Keywords: Higher Education; Timespaces; Photography.
Introdução
No início de cada semestre, na universidade lócus da pesquisa aqui relatada, as/os estudantes precisam acessar o sistema digital no qual fazem solicitações de matrículas. Nele, produzem suas grades-horárias, que serão cumpridas durante o período letivo. As grades-horárias levam esse nome, talvez, por conta de sua aparência, com linhas horizontais e verticais. Nos espaços entre as linhas há os horários a serem cumpridos, repetidos, assim como o onde, o espaço em que serão vividos.
Nessas mesmas grades encontram-se também várias vozes sociais (VOLÓCHINOV, 2017) que, ao organizarem espaços e tempos, organizam também processos que produzem subjetividades, enunciando formas de condução do processo educativo/formativo, formas de compreensão de quem sejam (ou devam ser) as/os estudantes universitárias/os, sobre ordenamentos de conteúdos a serem apre(e)ndidos, sobre formas de pensabilidade e sensibilidade preferidas e preteridas, sobre regras que definem aptas/os e não aptas/os, ou melhores ou piores, etc. Vemos então que o viver acadêmico é marcado por grades que produzem possibilidades de experiências. Nas linhas das grades residem tempos e espaços prescritos, organizados, ritmados. Mas ali residem também, dialogicamente, esgarçamentos, fugas e não-previstos de várias ordens, os quais abrem possibilidades de criações cotidianas, reminiscências que emergem em dias feriados (BENJAMIN, 2016). Trata-se a universidade, por conseguinte, de um contexto dialógico (BAKHTIN, 2018a; VOLOCHÍNOV, 2013a; VOLÓCHINOV, 2017), posto que marcada pela tensão constante entre variadas vozes sociais, ou seja, visões de mundo que ali se encontram, confrontam, incessantemente.
Considerando essa perspectiva de compreensão da educação superior brasileira, este trabalho tem por objetivo analisar como respondem/se posicionam estudantes de graduação às vozes sociais que constituem as dimensões espaçotemporais em suas formações profissionais/acadêmicas. Para tal, apresentamos e analisamos dados produzidos em uma pesquisa, de caráter interventivo, a qual teve por objetivo investigar os diálogos que estudantes tecem em seus cotidianos na e para com a UniverS/Cidade. UniverS/Cidade, grafada dessa forma, é uma palavra que criamos para designar a instituição e a cidade nas quais o estudo foi realizado. Trata-se de uma Universidade federal que possui a dimensão de uma cidade (com seus fluxos, ordenações, relações, etc.), e que é fragmentada em diversos espaços, amalgamada e compondo o corpo da cidade, uma capital de estado.
Espaço e tempo - espaçotempos
Tempo e espaço, categorias centrais nas análises de processos da existência humana, posto que constituem as condições concretas nas quais a vida se dá (MARX; ENGELS, 2001), precisam ser analisados como constructos sociais e históricos (BENJAMIN, 2016; ELIAS, 1998; HARVEY, 2008; LEFEBVRE, 2013; MARX; ENGELS, 2001; SANTOS, 2014) que expressam e refletem determinadas vozes sociais. No espaço reside a história das experiências humanas, é configuração construída historicamente (CARERI, 2013). Produz-se por diversas relações dialéticas que envolvem sistemas de ação, processos econômicos e produtivos, estratégias políticas e ações cotidianas (CARLOS, 2011; LEFEBVRE, 1991, 2013; SANTOS, 2014), que não podem ser tomados isoladamente, “mas como o quadro único no qual a história se dá” (SANTOS, 2014, p. 63). No processo moderno/capitalista de produção do espaço, ao definir-se espaços preteridos e espaços privilegiados, definem-se também lugares que serão, em determinadas condições, autorizados ou proibidos a pessoas ou grupos (LEFEBVRE, 2013, p. 325), assim como suas imagens sociais. O espaço resulta, pois, em condição, meio e produto da (re)produção social (CARLOS, 2011), engendrando lugares não apenas físicos, mas políticos e sociais.
A produção do espaço, de sua organização, principalmente nas grandes cidades/metrópoles, condicionada pela modernidade e pela haussmannização[1] do urbano, aliada e direcionada pelo modelo produtivo e de circulação de bens de consumo no capitalismo (BENJAMIN, 2009, 2015; CARERI, 2013; LEFEBVRE, 1991, 2013; MATOS, 1997; SANTOS, 2014), busca ocultar uma cidade/espaço outra/o, uma “cidade transumante, ou metafórica” (CERTEAU, 2014, p. 159) que é formada pelo que não é previsível do cotidiano (CERTEAU, 2014; HELLER, 2015), pelo que se “inventa como mil maneiras de caça não autorizada” (CERTEAU, 2014, p. 38). No tecido organizado da cidade há também esgarçamentos, furos e dobras, inventividades, não previstos, ações não programadas pela racionalidade instrumental.
O espaço urbano é, pois, marcado por forças em constantes tensões (LEFEBVRE, 2013; SENNET, 2014), não sendo uma configuração estática de objetos num determinado tempo; é movimento, processos, cruzamentos, é “lugar praticado e plurivocal” (CERTEAU, 2014, p. 202). É emaranhado de escritas, uma sobre a outra, em papiro reaproveitado no qual o apagamento completo não é possível – é palimpsesto (SANTOS, 2014; SENNET, 2014). É, portanto, um acumulado de tempos, pois “o histórico, o diacrônico, o passado gerador deixa suas inscrições incessantes sobre o espaço” (LEFEBVRE, 2013, p. 164) e, ao mesmo tempo “é sempre atual, sincrônico e dado como um todo” (LEFEBVRE, 2013, p. 164).
A vida cotidiana, que se produz entre o que se mantém e o que se transforma (CERTEAU, 2014; HELLER, 2015), é marcada pela tensão de variadas vozes sociais, de diferentes tempos, que se inscrevem no espaço, que o constituem e que são por ele constituídos. Sendo mutuamente constitutivos e indissociáveis, toda transformação no espaço se dá também no tempo e vice-versa (ELIAS, 1998, p. 81). Assim, podemos analisar o espaçotempo, mútua e dialeticamente constituídos, como cronotopo. Esse conceito, transportado por Bakhtin (2018) das ciências matemáticas aos estudos literários, é utilizado pelo pensador para ressaltar a indissolubilidade da ligação entre espaço e tempo no campo da arte. O mesmo conceito nos auxilia a pensar a fusão tempo-espaço também da vida: tempo e espaço não são apenas cenários, mas matéria constitutiva das ações. Cronotopo, fusão espaçotemporal, sinaliza para a possibilidade de se ver no espaço marcas, rastros de tempos que, ao serem passado, também são presente, compondo o que chamamos de atualidade. O passado não é algo que foi, mas algo que está, que se reinventa a partir das possibilidades de sentidos outros na inventividade cotidiana. O cronotopo é mistura, é agregado de tempos não lineares que podem ser lidos no espaço.
A produção histórica do espaço urbano, principalmente nas metrópoles, produziu também as possibilidades de se compreender, sentir e vivenciar o que seja o tempo e suas relações (ELIAS, 1998; LEFEBVRE, 1991, 2013; SANTOS, 2014). Assim, “pelo estabelecimento progressivo de uma grade relativamente bem integrada de reguladores temporais, como os relógios de movimento contínuo” (ELIAS, 1998, p. 36), o tempo tem sido produzido, pensado e vivenciado como homogêneo e comum a todas e todos. Tempo, em conjunto com o espaço, que tem sido racionalizado, organizado, homogeneizado e condicionado por aparelhos-relógios (que, ao terem a função de transmitir mensagens institucionalizadas em uma sociedade) que produzem como principal efeito a “regulação da conduta e da sensibilidade humanas” (ELIAS, 1998, p. 30). O processo de globalização, por exemplo, tem instituído tempos rápidos, que passam a ter preponderância nas formas de organização da vida, criando formas que “delimitam e qualificam o tempo social, ditando, de longe e de cima, a duração e o nível da atividade econômica” (SANTOS, 2014, p. 149).
Frente ao tempo acelerado produzido pelo processo de modernização, Benjamin (2015) faz emergir nas metrópoles duas figuras: o trapeiro e o flâneur. Enquanto o primeiro reúne e cataloga restos do que foi produzido pela modernidade e pelo consumo (o que não tem mais valor à sociedade, reunindo os “lixos da história”, retirando deles sua matéria heroica (BENJAMIN, 2015, p. 81), o flâneur emerge como aquele que, não se integrando na sociedade, mas escondendo-se no meio dela, busca, por um distanciamento e reflexão frente à enxurrada de estímulos e fluxos humanos, ver na cidade aquilo que a multidão já não consegue ver (BENJAMIN, 2015). Essas duas figuras são metáforas que definem aquelas/es para quem as imagens produzidas na e para a cidade, seguindo-se a lógica da produção, circulação e consumo, são miragens que se desfazem. Figuras semelhantes aos “homens lentos”, descritos por Milton Santos (2014), que, por força de sua lentidão, podem ver na/da cidade e no/do mundo aquilo que escapa aos que detém velocidade, a quem a “comunhão com as imagens, frequentemente pré-fabricadas, é sua perdição” (SANTOS, 2014, p. 325). A força dos lentos reside, assim, em sua contraposição à razão instrumental que produz a cidade acelerada e sem memória. A partir do olhar do homem lento, do trapeiro ou do flâneur, é possível a produção de um olhar de “dias feriados”, ou de infância, pelo qual é possível a suspensão do tempo linear (homogêneo e progressivo) e a abertura a um tempo de criação (SANTI, 2012).
Mesmo nos grandes centros urbanos, o tempo não é regular, tampouco vivenciado da mesma forma por todas/os. Constitui-se como algo que não é apenas de ordem natural, ou físico (o que constituiria que seria o mesmo a todo e qualquer momento e local), nem apenas sentido/experienciado individualmente: diversos tempos em diferentes condições de vida.
Espaçotempos na educação
As instituições formais de educação também refletem e refratam os diálogos e tensões entre vozes sociais que constituem os espoaçotempos na sociedade (ESCOLANO, 2001; FRAGO, 2001). A cada período histórico, com base em diferentes formas de concepção dos processos de ensino-aprendizagem, foram produzidos diferentes modelos e ordenamentos espaciais e temporais nas instituições escolares (MARQUES; OLIVEIRA; MONTEIRO, 2015; PINHO; SOUZA, 2015, 2017). Ao se lançar luz a essas dimensões, torna-se evidente o quanto não se tratam de aspectos neutros, como se fossem apenas o local e o momento onde/em que o ensino acontece (ESCOLANO, 2001; FRAGO, 2001). Ao contrário, em sua materialidade, compõem a discursividade das perspectivas e modelos educacionais, veiculando, instituindo e respondendo a sistemas de valores que constituem processos de produção de subjetividades.
A organização espaçotemporal na educação ganha visibilidade e centralidade, principalmente, a partir da modernidade, seguindo-se a mesma esteira de transformações sociais produzidas por todo o cabedal de ideias decorrentes desse período histórico (BENJAMIN, 2016; LEFEBVRE, 1991; SANTOS, 2014). Assim, a partir do século XVII as instituições escolares passaram a ser marcadas por uma série de características: a rígida divisão por sexos (com entradas e espaços separados); carteiras fixas no chão ou enfileiradas; mobiliários e suas disposições; locais destinados aos/às professores/as na sala ou na instituição; espaços destinados às atividades físicas, de recreação e de estudo; o tamanho das salas; o tempo de duração das aulas (de até quatro horas, de acordo com preceitos higienistas); o rígido controle dos corpos e suas movimentações; campainhas para marcar o tempo de aulas; a serialização de classes; distribuição gradual de conteúdos e do tempo necessário a ser dedicado a cada um deles; a assiduidade quanto a horários; etc. (ARROYO, 2012; PARENTE, 2010).
A partir do século XIX, com a assumpção da pedagogia em instituições coletivas, com a adoção de métodos mútuos e simultâneos de ensino, emergem também princípios homogeneizadores que configuram as organizações escolares “das normas, dos espaços, dos tempos, dos alunos, dos professores, dos saberes e dos processos de inculcação” (PINHO; SOUZA, 2015, p. 668). O tempo escolar passa a se constituir com base numa ideia de simultaneidade, a partir da concepção do aluno médio (com ritmos de aprendizagem supostamente médios e parecidos), produzida por perspectivas modernas e estruturalistas, a partir do que se formulam ordenações e graduações de conteúdos a serem ensinados e que devem ser aprendidos pelos estudantes em tempos determinados e selecionados (MARQUES; OLIVEIRA; MONTEIRO, 2015; PARENTE, 2010; PINHO;SOUZA, 2015, 2017).
A educação formal também reproduz, em sua organização espaçotemporal, a lógica de ciclos de produção e consumo, na qual prevalece a racionalização da ação pedagógica com vistas ao aumento da capacidade de produção (MARQUES; OLIVEIRA; MONTEIRO, 2015; SANTI, 2012). A organização do tempo se põe como central na elaboração/constituição de currículos escolares, lugares de disputas de poder, que são definidos, em grande parte, em atendimento aos ritmos postos pela economia globalizada e pela busca de resultados em rankings, produzindo um cotidiano escolar veloz e imediatista, privilegiando a constituição de tempos esvaziados de reflexão e a despolitização da escola (PONCE, 2016). A construção histórica da organização do trabalho também se reflete no ordenamento de jornadas escolares, nos hábitos de trabalho e valorização da produtividade (ARROYO, 2012, p. 203). Nesse sentido, a predominância passa a ser a vigilância de um tempo e rotinas a serem cumpridos, com foco em produtividade, em detrimento de uma ação mediadora da construção de conhecimentos (MARQUES; OLIVEIRA; MONTEIRO, 2015;). A racionalização/organização do tempo tem produzido um currículo que é voltado ao futuro, pautado na ideia de linearidade do tempo histórico, a qual pode ser observada no sequenciamento de disciplinas, organização de horários, práticas docentes, etc (SANTI, 2012).
Essa lógica temporal irá se refletir em diversos âmbitos do cotidiano escolar, “Penetram nos agrupamentos dos alunos, no trabalho docente, nos rituais de avaliação, repetência, reprovação, até no julgamento que fazemos dos bons ou maus alunos” (ARROYO, 2012, p. 204). A organização e ordenação de conteúdos, tempos e espaços passa a se constituir de forma amalgamada ao que se compreende como instituição escolar, sendo “compreendidas como a própria essência da escola” (PARENTE, 2010, p. 143) e a tal ponto assumida e mantida pelos atores institucionais (principalmente professores) como condição sem a qual “transmissão do conhecimento seria ineficaz” (PARENTE, 2010, p. 143).
O ensino superior e a universidade pública brasileira também se organizam e sofrem os efeitos dessas mesmas lógicas, impactando a subjetividade de quem ali estuda e trabalha. Tendo isso em vista, buscamos neste artigo analisar como estudantes de graduação respondem a esse contexto dialógico (BANKHTIN, 2017, 2018a; VOLÓCHINOV, 2017; VOLOCHÍNOV, 2013) que constitui dimensões espaçotemporais de suas formações acadêmicas/profissionais.
Método
O processo de pesquisa, a produção dos materiais e sua análise foram realizados com base na Filosofia da Linguagem do Círculo de Bakhtin (BAKHTIN, 2010, 2011, 2016, 2017; MACHADO; ZANELLA, 2019; VOLÓCHINOV, 2017; VOLOCHÍNOV, 2013) e na sistematização dessa filosofia no campo da pesquisa em Ciências Humanas, denominada Análise Dialógica do Discurso (BRAMBILA, 2017; SOBRAL; GIACOMELLI, 2016). Realizamos uma pesquisa de cunho interventivo (BRITO; ZANELLA, 2017) através de Oficinas, procedimento recorrente em pesquisas em psicologia (BRITO; ZANELLA, 2017; SPINK; MENEGON; MEDRADO, 2014). O projeto de pesquisa, de doutorado em Psicologia[2], foi submetido e aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos[3]. Oficinas de Fotografia Mobile, compuseram a Pesquisa e foram ofertadas como atividade de extensão para estudantes de cursos de graduação de uma universidade federal brasileira. Respeitando-se os preceitos éticos em Pesquisa, tendo sido feitos todos os esclarecimentos, todas/os as/os estudantes optaram, conforme a escolha registrada nos Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) que assinaram, por terem não manterem seus nomes em sigilo, entendendo, portanto, que essa divulgação não lhes traria quaisquer prejuízos. Da mesma forma, também via assinatura do TCLE, autorizaram a utilização de suas fotografias (respeitando-se seus direitos e garantias quanto ao reconhecimento de suas autorias) para fins exclusivamente acadêmicos.
As oficinas foram direcionadas ao trabalho com fotografias produzidas com câmeras disponíveis em aparelhos de telefones celulares; por isso foram caracterizadas como Oficinas de Fotografia Mobile. O trabalho com os celulares se deu por ser um dispositivo ao qual a maioria da população acadêmica tem acesso (diferentemente de uma câmera fotográfica) e também por sua praticidade quanto ao transporte e na produção de imagens em momentos cotidianos, como era o foco das oficinas. Todas e todos as/os participantes utilizaram seus celulares durante as oficinas, à exceção e uma, que possuía uma câmera fotográfica e que preferiu trabalhar com ela.
As oficinas foram realizadas com dois grupos de oito estudantes cada. As/os participantes eram em sua maioria mulheres (12 do total de 16), de diferentes cursos de graduação (Terapia Ocupacional, Expressão Gráfica, Direito, Arquitetura e Urbanismo, Jornalismo, Pedagogia, Ciências Biológicas), com idades entre 18 e 30 anos.
As Oficinas tiveram duração de oito semanas. Nos dois encontros iniciais discutimos sobre: o cotidiano na universidade e na cidade; o visível e o não visível, a produção do olhar; história da fotografia; fotografia como produção sem/de um sujeito; fotografia urbana; fotografia como recorte e (re)produção; técnicas e composição; fotografia com o celular. Na sequência realizamos uma caminhada estética (CARERI, 2013) por espaços da universidade e da cidade. A quarta semana, sem encontro com o grupo, foi dedicada à produção de fotografias – solicitamos que produzissem fotografias a partir da seguinte questão: “o que você vê ou não em seu cotidiano na UniverS/Cidade?” Nas semanas seguintes realizamos: apresentação, leituras e discussões das fotografias produzidas; escolha de fotografias pelos participantes? Pelo grupo? e montagem das exposições. Por fim, na última semana, realizamos uma discussão sobre as experiências, a vida na universidade e os efeitos das oficinas às/aos estudantes participantes. Em todos os encontros trabalhamos com um projetor multimídia, com exposição de fotografias e trabalhos de artistas urbanos como temas disparadores.
Os encontros tiveram duração aproximada de duas horas cada, foram gravados em áudio e transcritos. Foram produzidas 167 fotografias das quais 120 (60 de cada grupo) foram escolhidas pelas/os participantes para compor exposições que ficaram disponíveis à comunidade acadêmica por nove semanas. Foram montadas também exposições virtuais que permanecem disponíveis à visitação[4]. Diários de campo (MEDRADO; SPINK; MÉLLO, 2014) também compuseram os materiais da pesquisa.
Tomamos a fotografia como linguagem que, como tal, possui uma dimensão discursiva (ROUILLÉ, 2009) e dialógica (VOLÓCHINOV, 2017; ZANELLA, 2011), constituindo as teias discursivas, o diálogo entre vozes sociais, sendo produzida por uma pessoa que, no ato (est)ético de sua produção, situa-se no mundo respondendo à e a partir de conjunto de valores (ZANELLA, 2011, 2016). Da mesma forma, a imagem fotográfica é tomada aqui como um enunciado concreto, produção realizada por alguém numa determinada condição, tempo e espaço, e também como possibilidade de olhar crítico sobre o cotidiano (JOBIM E SOUZA; LOPES, 2002). Interessam, pois, o registro do olhar daquele que a produz (KOSSOY, 2012; ROUILLÉ, 2009; ZANELLA, 2011), a forma como faz e como essas imagens se inserem nas teias dialógicas.
Nas oficinas, o trabalho com fotografia se deu atrelado às discussões sobre as possibilidades de visibilidades cotidianas e sobre a produção dos olhares em meio à cidade e aos ritmos que organizam a vida. Questões técnicas da fotografia foram trabalhadas apenas como elemento-forma para a construção da imagem-enunciado. Pela fotografia, buscamos problematizar o visibilizado e o não visibilizado no cotidiano, os tempos da vida acadêmica, os espaços que são ou não cruzados, a produção de possibilidade de novos olhares. Com base nesse foco, evidenciamos vozes sociais (e suas tensões) que produzem espaçostempos e possibilidades de experiência e de olhares.
Nesse sentido, as respostas das/os estudantes, tanto imagéticas (fotografias) quanto em falas/diálogos (transcritas), são respostas a esse contexto. São respostas: às problemáticas levantadas pelo pesquisador[5], em campo, no contexto das Oficinas; às vozes sociais que constroem os espaçostempos; às formas de composição fotográfica que foram produzidas historicamente e; às diversas obras de fotógrafos e outros artistas urbanos que expusemos e sobre as quais debatemos/analisamos durante os encontros.
A análise realizada pautou-se nas compreensões de que: I. O pesquisador foi participante das situações de interlocução, constituindo as cenas enunciativas e compondo os diálogos entre as vozes sociais analisadas; II. A análise buscou tecer diálogos entre as vozes e sentidos que emergiram nas situações de interlocução das Oficinas (falas e fotografias) com demais vozes sociais que ressoam no cotidiano da/na UniverS/Cidade; III. Embora buscasse reconstruir as cenas enunciativas e de interlocução entendendo que o sentido do enunciado não pode ser separado de sua situação concreta (VOLOCHÍNOV, 2013), estes não foram passíveis de restituição no e pelo texto, ou seja, a construção textual se apresenta como um outro (com)texto; IV. Não se pretendeu apresentar interpretações absolutas ou finais, mas produzir sentidos que possibilitem ampliar e diversificar as formas de compreensão de determinados processos vivenciados nas instituições de ensino superior.
Tecendo diálogos com espaçotempos
Discussões sobre a questão do modo como as/os estudantes vivenciam os espaços e tempos na universidade emergiram em várias situações no decorrer das oficinas. No encontro final, discutimos sobre as experiências e as percepções com relação ao processo vivenciado. Nessas discussões questionava-se às/aos estudantes quanto as possíveis transformações de suas percepções sobre espaçostempos, sobre visibilizar o que antes estava invisibilizado, sobre o como isso os conduziu a refletir sobre aspectos que antes não refletiam, etc. Nesse mesmo contexto, abordávamos a facilidade ou dificuldade em conciliar atividades acadêmicas com a produção de fotografias e participação nas oficinas; questionamos sobre as percepções relacionadas ao tempo no dia-a-dia:
Pesquisador: Tem muita correria, então, na universidade? O que vocês acham?
Leomara (Ciências Biológicas): Não sei, eu acho que... pelo menos no meu caso, assim. Eu me cobro de me organizar mais, assim... Porque, um pouco dessa correria é porque eu vou deixando as coisas, assim... Daí... Mas, em geral tem sim. As vezes atrapalha um pouco a vida...
Gustavo (Expressão Gráfica): Social.
Leomara (Ciências Biológicas): É. Não, não existe (ri). Dentro da universidade, assim, que você tem vida social. Fora é bem raro. Complicado. Não sei se faz parte.
Daniela (Terapia Ocupacional): Na minha sala tem um monte de gente com ansiedade, com crises de ansiedade, pessoas tomando remédio porque tá uma correria enorme. Eu to no meu quarto ano, então tem TCC e mais estágio. E as vezes o estágio também, a gente não está preparado pra ver o que a gente vê, assim. Igual no semestre passado, eu fiz... era com criança, com neuropediatria. Daí a gente não vai... vai sem preparação nenhuma. A gente vai lá, chega uma criança com uma síndrome rara e tu... e a gente não sabe como lidar. Tá lidando com pessoas, ali, o tempo todo, é difícil. E a cobrança do TCC, que tem prazo e... Porque o TCC é uma disciplina...
Leomara (Ciências Biológicas): Tá um caos.
Juliana (Jornalismo): Eu e meus amigos, tem vezes que a gente fala que a faculdade é uma falta do que fazer, porque... tá todo mundo assim... surtando o tempo inteiro. Isso que ela falou, de que tá todo mundo com crise de ansiedade, tomando remédio... Grande parte da minha turma também tá nessa. Não é exclusividade.
Daniela (Terapia Ocupacional): A gente cuida dos outros, mas não cuida da gente (ri). (inaudível) fala que o pessoal que é profissional da saúde é o que menos cuida da saúde. Cuida dos outros e não cuida de si.
Gustavo (Expressão Gráfica): É, prefiro mexer com máquinas. (risos). Eu, dentro da vida acadêmica, assim, tive umas correrias, mas de leve. Eu nunca cheguei a me desesperar, mas é porque eu nunca dei tanta prioridade assim pra vida acadêmica. Eu sempre priorizei projetos fora e a academia ficava em segundo plano. Tanto é que atrasei o meu curso. Mas ainda assim você consegue sentir um pouco da correria. Você vê um amigo que se desespera porque está perdendo o prazo disso, prazo daquilo. E tem toda a cobrança externa também, da família, ou de emprego. Acaba não sendo só da tua cobrança, tem muita gente assim. Mas eu tenho passado uma graduação bem tranquila (ri).
Pesquisador: Vocês acham que essa correria dificulta um pouco a pensar na própria vida? A pensar na própria correria e no efeito dessa correria?
Com movimento de cabeça, respondem afirmativo.
Ao questionar sobre a correria da vida universitária, o pesquisador põe as/os estudantes frente à organização espaçotemporal que produz possibilidades de ação e de pensamento em seus cotidianos. Frente à voz social que organiza a vida acadêmica, as/os estudantes contrapõem os efeitos dessa racionalidade temporal: a ausência de uma “vida social” fora da universidade e indícios de sofrimento, adoecimento e culpabilização de si ao cobrar-se por “me organizar mais”. Nessas respostas, as/os estudantes inserem-se no contexto dialógico das tensões, evidenciando efeitos da organização espaçotemporal que também constitui a universidade e os processos de produção de subjetividade daquelas/es que ali estudam. A vida, para dar conta da velocidade (im)posta, é transformada em “um caos”, uma “correria” na qual há “um monte de gente com ansiedade, com crises de ansiedade, pessoas tomando remédio”, “surtando o tempo inteiro”. A ausência de vida social fora da universidade chega a ser questionada por Leomara como, talvez, algo que “faz parte”; que, como afirma Juliana, afeta “todo mundo”, algo que não gera mais estranhamento, que nos cursos da área de saúde, faz com que as/os estudante aprendam a cuidar do outro, mas não de si, como afirma Daniela. Esse algo, que (im)põe essas condições, são as relações espaçotemporais vivenciadas pelas/os estudantes cotidianamente.
Frente aos ritmos da universidade, Gustavo apresenta a forma como tem conduzido sua formação acadêmica e profissional, não dando tanta prioridade à vida acadêmica. Para não se “desesperar”, embora pudesse “sentir um pouco a correria”, precisou, como efeito, atrasar seu curso e enfrentar “toda a cobrança externa também, da família, ou de emprego”. Essa cobrança, com a qual precisa se haver ao enfrentar a lógica acelerada na universidade, é enunciada (e anunciada) pela voz que diz da possibilidade de exclusão em diversos âmbitos da vida. Essa voz, ao constituir a cidade, a universidade, as relações de produção, constitui também as pensabilidades e sensibilidades, sendo enunciada pelas/os próprias/os estudantes ao afirmaram cobranças que fazem a si mesmas/os, o que pode se perceber pelos enunciados de Gustavo e de Leomara, que diz de uma falta de organização como possível geradora da sensação de correria, e também por familiares, por possíveis empregadores, por agentes institucionais da universidade. Não seguir o tempo racionalizado das instituições de ensino e dos centros urbanos é possível, porém, para isso, como afirma Gustavo, é necessário enfrentar seus efeitos, suas cobranças.
As respostas à questão do pesquisador são também respostas a outras vozes que possuem centralidade nos processos de organização e possibilidades de experiência do tempo, quais sejam, vozes que dizem da necessidade de produtividade (maior e em menos tempo), vozes que sustentam práticas que classificam estudantes (em todos os níveis, assim como a trabalhadores) como melhores ou piores, como os que dão ou não conta de exigências e rotinas exaustivas.
O tempo experienciado na universidade, porém, não é homogêneo e igual a todas/os, como querem as máquinas e dispositivos de marcação e controle temporal. Ao enunciar uma vida acadêmica mais lenta, embora o enfrentamento de seus efeitos, Gustavo sinaliza também para a possibilidade de abertura de outros tempos, a um esgarçamento e recriação das experiências espaçotemporais, a outros cronotopos.
Como descrito acima, um dos encontros das Oficinas de Fotografia foi dedicado às leituras e interpretações das fotografias produzidas pelas/os estudantes. Com um projetor multimídia, expusemos as fotografias a todo o grupo, enquanto discutíamos sobre elas quanto a diversos aspectos, abrindo-as a leituras/interpretações, análises e comentários. Após a exposição das imagens produzidas por Thuany, a estudante comentou sobre sua produção:
Thuany (Arquitetura e Urbanismo): Então, em algumas fotos eu quis... Na verdade, na maioria delas, eu quis mostrar uma universidade que nem sempre é o que eu vejo, assim. Porque elas são umas fotos muito tranquilas (ri). Muito diferentes do caos que é o dia-a-dia. Até essa última foto (estudante refere-se à Figura 1), eu tirei acho que faz umas duas semanas. E era o dia que eu estava correndo, estava voltando do RU[6] porque eu tinha que ir pro estágio e tinha várias pessoas encostadas nas árvores, lendo. E eu: “Nossa! Como essas pessoas estão na mesma universidade que eu e estão tão tranquilas?”. E então eu quis retratar um pouco disso.
No contexto das oficinas, no qual as/os estudantes foram convidados a refletir sobre seus olhares, e não apenas a pensar técnicas em fotografia, Thuany relata sobre um estranhamento, que a conduz a questionar se as pessoas, como a que aparece na primeira fotografia (Figura 1), estão na mesma universidade que ela. A princípio, parece ser inconcebível a possibilidade de sentar-se debaixo de árvores para ler, frente à uma vida tão corrida, com horários rígidos (de aulas, almoço, estágio) a serem cumpridos. O estranhamento relatado por Thuany denuncia o quanto, nessa instituição e na formação profissional e acadêmica, a aceleração da vida é produzida. O mesmo estranhamento, assim como a imagem que a estudante produziu, dizem de uma transformação do olhar que passa a buscar apreender elementos que até então não lhe eram possíveis.
Figura 1 - Fotografia produzida por Thuany Aline Santos
Embora não se possa saber o que liam as pessoas referidas pela estudante, o ato de leitura a conduz a produzir a fotografia como a enunciar que espaçostempos de pessoas “tranquilas” são possíveis. É essa tranquilidade, diferente “do caos que é o dia-a-dia”, que passa a ser visível ao olhar de Thuany, sendo por ela registrado nas imagens dos espaçotempos da UniverS/Cidade. A surpresa da estudante, o convite ao olhar lento, o convite à fotografia, parecem ter se aberto como uma fissura no tempo acelerado e organizado, vivenciado pela estudante: seu olhar se volta ao vazio, o não ocupado e lento (Figura 2), assim como às ocupações não previstas do espaço, aos momentos de descontração, como o grupo de estudantes que dançava e ensaiava coreografias (Figura 3). A fissura produzida dá vazão a outros tempos, esgarçados e lentos, fraturando o pretenso tempo homogêneo, vivenciado da mesma forma por todas/os na UniverS/Cidade. O olhar de Thuany passa a enunciar, assim, tempos lentos que escoam pelos espaços da universidade, que não podem ser contidos e programados, mas experienciados.
Figura 2 - Fotografia produzida por Thuany Aline Santos
Figura 3 - Fotografia produzida por Thuany Aline Santos
No mesmo encontro, alguns elementos das fotografias são destacados aos/às participantes pelo pesquisador. Dentre eles, o fato de a maioria das imagens não conterem pessoas. No TCLE, assinado pelas/os estudantes, referente à pesquisa que deu origem a este trabalho, consta a necessidade de utilizarmos recursos para que não seja possível a identificação de pessoas que eventualmente aparecessem nas fotografias, resguardando-se o direito de imagem, conforme previsto na legislação brasileira. Frente a isso, questionamos o motivo, acreditando ser este (a preservação do direito de imagem), o porquê de, na maioria das fotografias produzidas, não constarem pessoas. A ausência das pessoas, segundo resposta das/os estudantes, se refletiu em outra questão: o tempo.
Pesquisador: Uma coisa que eu percebi nas fotos, não sei se vocês sentiram isso também, mas tem muito pouca gente sempre. Vocês pensaram sobre isso quando vocês produziram as fotos?
Carla (Arquitetura e Urbanismo): O meu foi proposital. Eu fugi das pessoas (ri).
Jakcson (Arquitetura e Urbanismo): Nas horas em que eu pensei em tirar a fotografia era uma hora em que eu estava mais tranquilo, e consequentemente todo o resto que se exploda (risos). Porque num outro momento, sei lá, que você tem que pegar o ônibus, nem sequer passou pela minha cabeça tirar uma foto, e essa é a hora que tem mais gente, sabe? Então acho que não bateu o horário, sabe? Na hora que eu pensei, sei lá, não tinha gente.
Alexia (Expressão Gráfica): As minhas fotos, a maioria delas eu tentei pegar um pouco mais aproximado, ou de cima, pra não mostrar, eu acho, muito a correria, assim, que a… uma coisa que está bem… eu tentei mostrar uma coisa diferente, eu acho.
As fotografias foram produzidas, e talvez muitas delas só tenham sido possíveis, em situações definidas como mais tranquilas, em momentos de suspensão da correria, nas quais o contato com pessoas era menor – e é aí que entram em cena, sendo enquadradas e registradas pelos olhares das/os estudantes, os detalhes, cenas ou espaços não (ou pouco) visibilizados anteriormente. A ausência de pessoas resulta como efeito, portanto, da produção da fotografia em tempos lentos que permitem olhares ao que antes passava despercebido.
As fotografias de Jackson (exemplificadas pelas Figuras 4 e 5) evidenciam sua produção em tempos lentos, em que foi possível suspender a aceleração da vida acadêmica. Na Figura 4, consta um espaço de convivência montado pelas/os estudantes de Arquitetura e Urbanismo, que denominam Estufa (devido à cobertura do espaço), onde muitas vezes se encontram em intervalos e momentos de descontração. A Figura 5, outra fotografia de Jackson, retrata também o olhar do estudante em um momento de tempo lento; trata-se do teto do centro acadêmico – fotografia que foi produzida enquanto estava deitado em um sofá. Assim como nas fotografias de Thuany, as de Jackson, revelam o olhar do estudante ao espaçotempo universitário e retratam, em sua composição e condição de produção, a possibilidade de tempos lentos, mesmo que eles possam emergir apenas em momentos em que “todo o resto que se exploda”, ou seja, momentos em que se enfrenta possíveis consequências e condições.
Figura 4 - Fotografia produzida por Jackson Reis Rispoli de Oliveira
Figura 5 - Fotografia produzida por Jackson Reis Rispoli de Oliveira
O não (ou pouco) visibilizado que é produzido pela lógica acelerada e cotidiana emerge também nas imagens produzidas por Alexia (Figuras 6, 7 e 8) que, ao trazerem elementos vistos “um pouco mais aproximado, ou de cima”, não mostram “muito a correria”. A estudante afirma ter buscado retratar outros aspectos, os quais evidenciam, ou que são possíveis a partir de um olhar lento. Tal qual os trapeiros, mencionados por Benjamin (2015), Alexia parece recolher em suas fotografias alguns restos: de folhas (Figura 6), cigarros (Figura 7), sobras de grafias de movimentos estudantis na luta pelo transporte público (Figura 8). Na busca pela não correria, dá visibilidade a miudezas, insignificâncias, sobras que, talvez, só chamem a atenção quando compreendidas como lixo, sujeira ou marcas que precisam ser removidas. Assim como a surpresa de Thuany a leva olhar a um tempo lento, Alexia, ao apresentar detalhes, miudezas, também o faz a partir de um posicionamento que se contrapõe à aceleração da vida.
Figura 6 - Fotografia produzida por Lexia Christinny
Figura 7 - Fotografia produzida por Alexia Christinny
Fonte: Fotografia produzida por Alexia Christinny no âmbito das Oficinas de Fotografia Mobile
Os espaçostempos universitários, programados, racionalizados e hierarquizados de acordo com competências que são adquiridas de forma progressiva, são apresentados em grades-horárias, como vimos na introdução deste artigo. A partir do convite para reflexão sobre o que é (in)visibilizado na UniverS/Cidade, essas grades e o espaço parecem ter sido fendidos. Das fendas e(s)coam tempos outros, lentos, possíveis, e que também compõem a vida estudantil.
Figura 8 - Fotografia produzida por Alexia Christinny
Fonte: Fotografia produzida por Alexia Christinny no âmbito das Oficinas de Fotografia Mobile
Considerações finais
Ao iniciarmos a pesquisa com foco nas relações espaçotemporais das/os estudantes na UniverS/Cidade, imaginávamos que as fotografias que seriam produzidas mostrariam a correria da vida acadêmica, os espaços acessados todos os dias, como salas de aulas, laboratórios, Restaurante Universitário, pontos de ônibus e suas longas filas. As respostas das/os estudantes, objetivadas na maioria das fotografias que produziram, remetem, porém, a tempos lentos, a espaços vazios, abertos a usos (talvez) não previstos, a detalhes. Remetem a tempos de pausas, em que o fotografar foi possível. Nesse sentido, podemos nos questionar: quanto do exercício de enquadramento, de seleção de um fragmento da realidade, da produção de um enunciado imagético, enfim, da produção fotográfica, requer um tempo lento? Em que situações o fotografar, tantas vezes ajustado ao próprio ritmo acelerado e às facilidades que o torna possível com simples recursos, em qualquer espaço e tempo, se contrapõe a essas condições e se afirma como um fazer outro, em um tempo outro?
Essas questões nos levam a refletir sobre o caráter interventivo de nossa ação de pesquisa. Levamos às/aos estudantes questões e tensões entre vozes sociais, produzimos espaçostempos nos quais foi possível que essas questões fossem tema de discussões e reflexões. Com as oficinas produziu-se um espaçotempo lento que possibilitou não apenas pensar sobre o próprio olhar e sobre as (in)visibilidades que são produzidas pelo modo de organização da vida no qual estamos todas/os inseridas/os nos grandes centros urbanos, mas, principalmente, pensar essa organização da vida, os processos de produção de subjetividades do qual o olhar e sua constituição é um efeito. Como flâneurs, buscando novos olhares e composições outras, fotografias e discussões emergiram como enunciados/respostas ao contexto concreto no qual foram produzidas, mas também responderam às vozes sociais que produzem seus cotidianos. Emergem como rastro dos olhares daquelas/es que, frente ao convite para refletirem sobre seus próprios olhares, puderam se surpreender com novos cronotopos, com restos e sobras deixadas/esquecidas, com aquilo que resta do passado constituindo o agora, com a possibilidade de construir esses tempos lentos ainda que enfrentando consequências e cobranças das vozes que possuem lugares centrais nas teias dialógicas da universidade. Nas fotografias ficaram grafadas, pois, as transformações de olhares estudantis aos espaçostempos cotidianos, as possibilidades de novas experiências, de novos cronotopos.
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Notas
[1] Gerorges-Eugène Haussmann, o “Barão de Haussmann”, foi o responsável pelo processo de reforma urbana de Paris que ocorreu entre os anos de 1853 e 1870, sob o governo de Napoleão III. Pautada em preceitos modernos e higienistas, Paris foi remodelada, em um processo conturbado de desapropriações de imóveis e periferização das camadas mais pobres da população, tendo seu espaço racionalizado e linearizado de modo a facilitar a circulação de pessoas e mercadorias, assim como aumentar o controle sobre a população e ações coletivas.
[2] A Pesquisa teve por objetivo investigar os sentidos que as e os estudantes atribuem à UniverS/Cidade e às tensões constitutivas de seus olhares com e a ela.
[3] Projeto sob o Certificado de Apresentação n.º 59949416.9.0000.0121, na Plataforma Brasil, aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos pelo Parecer n.º 1.767.876.
[4] Página no Facebook: https://www.facebook.com/Oficinas-de-Fotografia-Mobile-UFPR-691044781079959/- Grupo Prédio Histórico:https://www.flickr.com/photos/149363309@N04/sets/72157682018495062/- Grupo Politécnico:https://www.flickr.com/photos/149363309@N04/sets/72157681856242262/
[5] A pessoa identificada como “Pesquisador” é o primeiro autor deste trabalho.
[6] Restaurante Universitário.