DO LADO DE CÁ DO ATLÂNTICO:

um discípulo polonês de Édouard Claparède

 

ON THIS SIDE OF ATLANTIC:

a Polish disciple of Edouard Claparède

 

 

DE ESTE LADO DEL ATLÁNTICO:

un discípulo polaco de Édouard Claparède

 

Selma Barboza Perdomo

Universidade do Estado do Amazonas, Amazonas, Brasil

sperdomo@uea.edu.br - https://orcid.org/0000-0001-9670-742X

 

Ana Chrystina Venancio Mignot

Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

acmignot@terra.com.br- https://orcid.org/0000-0001-8944-2021

 

Daise Silva dos Santos

Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

daisesilva90@hotmail.com - https://orcid.org/0000-0003-0208-5186

 

 

Recebido em 21 de julho de 2020

Aprovado em 24 de fevereiro de 2022

Publicado em 31 de maio de 2022

 

 

RESUMO

Tomando como ponto de partida a chegada de Édouard Claparède ao Brasil em 1930, detivemo-nos nas manifestações elogiosas na imprensa que cercavam o visitante e nos discípulos que o aguardavam no porto do Rio de Janeiro. O foco foi dirigido a Waclaw Radecki, psicólogo polonês, que decidiu morar no Brasil em 1923. Fundou no Rio de Janeiro o Laboratório de Psicologia na Colônia dos Psicopatas do Engenho de Dentro e, sob a orientação de Claparède, concluiu doutorado em Genebra no ano de 1911. A análise da trajetória de Radecki tem como objetivo ampliar a compreensão sobre o intercâmbio de ideias entre a Suíça e o Brasil que inspirou importantes iniciativas na psicologia e na educação brasileira. Os resultados dessa análise mostraram que ele estabeleceu contato com o Institut Jean Jacques Rousseau em 1928, onde observou práticas e experimentos laboratoriais como descritos por Nilton Campos no “Relatório de viagem realizada à Europa para estudos psicológicos”, fonte aqui privilegiada. Após recepcionar o mestre, ampliou seus objetivos transformando o Laboratório em Instituto de Psicologia, ambicionando instituir ali o primeiro Curso de Psicologia em território brasileiro. Os ensinamentos de Claparède repercutiram na formulação de perspectivas teóricas com claras implicações na Pedagogia e na Psicologia contemporânea, contudo, parece não ter alcançado seu discípulo. A forma de atuação de Radecki sinaliza premissas do ensino prático do método experimental, da forma de atuação do Institut Jean Jacques Rousseau, norteando suas implementações inovadoras no Laboratório e Instituto de Psicologia, sendo este um importante legado deixado aos psicólogos e educadores brasileiros.

 

Palavras-chave: Waclaw Radecki; Édouard Claparède; Institut Jean Jacques Rousseau.

 

 

 

ABSTRACT

 

Taking as a starting point the arrival of Édouard Claparède to Brazil, in 1930, we stopped at the praising demonstrations in the press that surrounded the visitor and the disciples who awaited him at the port of Rio de Janeiro. The attention was at Waclaw Radecki, a Polish psychologist, living in Brazil since 1923, founder of the Psychology Laboratory at the Colony of Psychopaths of Engenho de Dentro, that, under the guidance of Claparède, completed a doctorate in Geneva in 1911. The analysis of Radecki aims to broaden the understanding of the brainstorming between Switzerland and Brazil that inspired important initiatives in Brazilian psychology and education. The results of this analysis showed that he established contact with the Institut Jean Jacques Rousseau, in 1928, where he observed laboratory practices and experiments as described by Nilton Campos in the “Trip report made to Europe for psychological studies”, a privileged source here. After welcoming the master, he expanded his objectives by transforming the Laboratory into an Institute of Psychology, aiming to establish the first Psychology Course in Brazilian territory. Claparède's teachings had an impact on the formulation of theoretical perspectives with clear implications in Pedagogy and contemporary Psychology, however, it seems to have not reached his disciple. Radecki's performance signals the premises of practical teaching of the experimental method, as well as the performance of the Institut Jean Jacques Rousseau, guiding his innovative implementations in the Laboratory and Institute of Psychology, which is an important legacy left to Brazilian psychologists and educators.

 

Keywords: Waclaw Radecki; Édouard Claparède; Institut Jean Jacques Rousseau.

 

 

RESUMEN

 

Partiendo de la llegada de Édouard Claparède al Brasil en 1930, nos detenemos en las manifestaciones elogiosas en la prensa que rodeaban el visitante y en los discípulos que lo esperaban en el puerto de Rio de Janeiro. La atención fue a Waclaw Radecki, psicólogo polaco, arraigado en Brasil desde 1923, creador del Laboratorio de Psicología en la Colonia de los Psicópatas de Engenho de Dentro que, bajo orientación de Claparède, concluyó doctorado en Ginebra en 1911. El análisis de la trayectoria de Radecki amplía la comprensión sobre el intercambio de ideas entre Suiza y Brasil, inspirando importantes iniciativas en la psicología y en la educación brasileña. Los resultados de ese análisis mostraron que él estableció contacto con el Institut Jean Jacques Rousseau en 1928, donde observó prácticas y experimentos de laboratorio como descritos por Nilton Campos en el “Informe de viaje realizado a Europa para estudios psicológicos”, fuente privilegiada aquí. Después de recibir al maestro, amplió sus objetivos transformando el Laboratorio en Instituto de Psicología, ambicionando instituir el primer Curso de Psicología en territorio brasileño. Las enseñanzas de Claparède repercutieron en la formulación de perspectivas teóricas con implicaciones en la Pedagogía y en la Psicología contemporánea, sin embargo, no alcanzó su discípulo. La actuación de Radecki señaliza las premisas de la enseñanza práctica del método experimental, así como la forma de actuación del Institut Jean Jacques Rousseau, orientando sus implementaciones innovadoras en el Laboratorio e Instituto de Psicología, siendo un importante legado dejado a los psicólogos y educadores brasileños.

 

Palabras clave: Waclaw Radecki; Édouard Claparède; Institut Jean Jacques Rousseau.

 

 

“Um eminente pedagogo” desembarca no Brasil

 

Na capa do periódico O Jornal de 14 de setembro de 1930, encontra-se estampada uma entrevista do “eminente pedagogo suíço”, como ressalta o título, concedida momentos antes de desembarcar no porto do Rio de Janeiro, acompanhada de uma fotografia. Tratava-se do psicólogo suíço Édouard Claparède, expressando ao jornal que visitar o Brasil era um desejo antigo, alimentado a cada notícia enviada por intermédio de cartas dos antigos discípulos que atuaram com ele no Institut Jean-Jacques Rousseau e que residiam no país, como Helena Antipoff que vivia em Belo Horizonte, desde o ano anterior, e lhe escrevera dizendo ser ele:

 

‘o grande e o mais puro apóstolo da Educação Nova e maior autoridade em matéria de psicologia’, ‘o grande deus da educação nova e seu grande inspirador’, ‘o nome de Claparède é canonizado aqui, se ouso me exprimir assim. Você não encontrará um só volume de Pedagogia ou de Psicologia que não se refira a você como o mais competente dos cientistas nesta matéria’, e, ainda, ‘Claparède, como já tenho escrito, é o nome mais admirado aqui entre os pedagogos’ (RUCHAT, 2008, p. 193).

 

 

Ao ser apresentada a oportunidade, ele não hesitou em aceitar o convite feito pelo Sr. Gustavo Lessa. A decisão pela travessia do Atlântico fazia parte de uma estratégia maior do Institut Jean-Jacques Rousseau que pretendia se constituir em centro de referência internacional, exigindo que seus idealizadores empreendessem viagens a diferentes países para estabelecer ou estreitar intercâmbios, divulgar pesquisas e disseminar ideias escolanovistas.

Partiu com satisfação em direção ao Rio de Janeiro, referindo-se de forma elogiosa aos amigos que o esperavam no porto, dentre os quais se encontravam Waclaw Radecki, psicólogo polonês com cidadania brasileira que estava na cidade desenvolvendo atividades profissionais no Engenho de Dentro, Francisco Lins professor, jornalista e poeta, radicado em Juiz de Fora, onde atuava na Escola Normal e Laura Jacobina Lacombe, diretora do Colégio Jacobina e membro da Associação Brasileira de Educação (O Jornal, 14/09/1930). Na recepção ao educador suíço, também estava Fernando Magalhães, presidente da Associação Brasileira de Educação (ABE), fazendo com que dissessem: “A chegada de Claparède ao Rio de Janeiro no ‘Conte Rosso’ que saíra de Gênova em 2 de setembro de 1930 é um acontecimento. Todos os amigos o esperavam no porto.” (RUCHAT, 2008, p. 195).

Convidar educadores e psicólogos para visitar o Brasil era um costume vigente à época, uma vez que a educação era entendida como principal ferramenta do “processo civilizatório”, o qual o país deveria se submeter se aproximando da realidade europeia. Isso significa dizer que “os intelectuais deveriam refinar seus conhecimentos dentro das perspectivas teóricas europeias” (JACÓ-VILELA e CENTOFANTI, 2012, p. 50, tradução nossa).

Seu desembarque no Rio de Janeiro foi festejado pelos educadores na imprensa. Segundo Mignot (2018) na crônica “A visita de um pedagogo notável” publicada na coluna Comentários da Página de Educação da qual era editora no Diário de Notícias, Cecília Meireles destacava a importância de receber um educador capaz de sintetizar os ideais de um mundo melhor no momento no qual eram discutidas reformas do ensino: “Vem quando os nossos interesses pedagógicos estão no ponto adequado de receber o definitivo retoque de uma prestigiosa presença.” (SEGUEL, 1930, p. 6). No artigo “O prestígio de Claparède na Nova Educação”, publicado no mesmo jornal, na página editada por Cecília Meireles, Gerardo Seguel destacou que graças à fundação do instituto

 

[...] acompanhado de Bovet, Ferriére e principalmente de seu célebre discípulo Jean Piaget, não só se estabelece o typo do novo educador, como também se pode dizer que, neste Instituto, surge em parte a atmosphera que impregna a actividade da Nova Escola. O Instituto Jean Jacques Rousseau revela claramente o sentido da moderna pedagogia na divisa que o define ‘Aprenda o mestre com a criança’” (Diário de Notícias, 14 de setembro de 1930, p. 4).

 

 

As publicações do psicólogo suíço que circulavam em língua estrangeira mundo afora chegavam a nosso país. Até então, no entanto, apenas um de seus livros havia sido traduzido e publicado por Lourenço Filho, em 1928, “A escola e a psychologia experimental” pela Companhia Melhoramentos, de São Paulo, quando “Claparède é apresentado aos brasileiros como grande sábio e renovador”, segundo Silva (2013, p. 49). Este autor destaca ainda que a presença desse livro em bibliotecas de escolas normais paulistas se devia ao fato de que, só na Escola Normal de São Carlos, cidade do interior daquele estado, “existiam 53 revistas que demonstravam interesse pela psicologia experimental e chegaram a citar Claparède já na década de 1910/20” (Idem, p. 53). Analisando uma das revistas, comenta:

 

O fato de haver uma disciplina com atenção a essa vertente da psicologia nesse período, como ocorreu nas demais escolas normais, é um ponto que não podemos desconsiderar. No caso de São Carlos/SP, a disciplina – que compreendia a parte pedagógica do currículo da normal – Psicologia Experimental, Pedagogia e Educação Cívica era ministrada por João de Toledo e seguia, como o título indica, a psicologia no viés experimental. Embora o nome de Claparède apareça em poucos momentos, pois seus livros ainda não haviam circulado com efeito pelo país, observa-se com bastante clareza o crescimento da produção de artigos sobre a psicologia, os testes, etc., e nomes de autores como William James (1842-1910) e Alfred Binet (1857-1911), duas referências importantes para Claparède. (SILVA, 2013, p. 53)

 

 

O educador suíço viajara ao Rio de Janeiro a convite da Associação Brasileira de Educação (ABE), onde proferiu uma conferência sobre “O sentimento de inferioridade na criança”, ocasião na qual discorreu sobre o sentimento que se faz sentir na idade adulta, tanto pela timidez como pela falta de coragem para enfrentar a vida. Ainda segundo Mignot (2018), a matéria divulgada destacou que, em sua conferência, Claparède observou que para evitar este sentimento seria necessário um método capaz de sanar o problema e enfatizou o

 

papel da escola nesse movimento pro-labore, e diz que desconhece ainda o que se tem feito na América, mas que na Europa o que as escolas têm feito é inspirar à creança um horror physico e uma repugnância intelectual pelo trabalho... (Revista Schola, 18 de setembro de 1930, p. 4).

 

 

Além dos educadores que aguardavam a chegada de Édouard Claparède, estava Waclaw Radecki, que viera para o Brasil em 1923, após ter realizado doutoramento em Genebra sob sua orientação e que passou despercebido na historiografia da educação nos estudos dedicados a esta viagem, possivelmente por não atuar diretamente em questões relativas à educação. A vida do psicólogo polonês tem sido explorada, no entanto, em alguns trabalhos acadêmicos voltados para a história da Psicologia no Brasil, dentre os quais destacamos: os estudos do psicólogo Rogério Centofanti publicado em “Radecki e a Psicologia no Brasil” (1982), “O discriminacionismo afetivo de Radecki” (2003) e “Radecki e a Psicologia no Brasil” (2004); e, mais recentemente, o de Luiz Eduardo Prado Fonseca e colaboradores que publicados nos artigos “Yes, nós temos Wundt: Radecki e a história da psicologia no Brasil” e “Propondo uma nova narrativa a um velho personagem”, em 2016 e 2018, respectivamente.

Com o intuito de compreender as relações estabelecidas entre Radecki e Claparède, nos debruçamos sobre o “Relatório de viagem realizada à Europa para estudos psicológicos”, escrito por Nilton Campos, publicado nos Annaes da Colonia de Psychopathas, em 1928. Essa missão, chefiada por Radecki, tinha por propósito visitar diversas instituições naquele continente  e contou com a participação de importantes educadores brasileiros.

Entendemos que a relação acadêmica entre Édouard Claparède e Waclaw Radecki, assim como a viagem feita por esse último ao laboratório de Psicologia em Genebra em 1928, pode fornecer subsídios para refletir sobre a circulação do conhecimento a respeito da Psicologia como uma ciência autônoma na época. Vale também pensar como a escrita desse relatório de viagem colaborou para a divulgação de ideias.

Radecki influenciou a Psicologia na América Latina, em particular os três países por onde passou: Brasil, Uruguai e Argentina. Conhecer sua trajetória em território brasileiro e sua interlocução com Claparède permite ampliar a reflexão acerca do desenvolvimento da Psicologia em nosso país e, em especial, examinar como o trabalho levado a efeito no Institut Jean-Jacques Rousseau serviu de modelo para os projetos que aqui se pretendiam realizar.

 

O psicólogo polonês à espera do mestre

 

As informações sobre os motivos da vinda de Radecki ao Brasil, em 1923, são pouco esclarecidas na literatura. Sabemos que ele chegou primeiro na Região Sul do país, em Curitiba e lecionou Psicologia na Faculdade de Ciências Jurídicas da Universidade do Paraná. Nesse mesmo ano, passou pela cidade de São Paulo aonde estabeleceu contato com a Sociedade de Educação e proferiu uma conferência, contudo, firmou-se no Rio de Janeiro, em 1924, por intermédio de Manuel Bonfim, após ter encontrado um livro de sua autoria numa livraria que, ao lhe fornecer informações (CENTOFANTI, 1982), oportunizou conhecer pessoas influentes, como Gustavo Reidel (1887-1934), que viabilizaram sua ida à Colônia dos Psicopatas do Engenho de Dentro, local onde criou o Laboratório de Psicologia desta instituição (FONSECA, ROSA e FERREIRA, 2016).

Se não encontramos razões de natureza acadêmica para sua vinda ao Brasil e, em especial, primeiramente para Curitiba, um motivo de ordem familiar pode justificar sua escolha. Segundo Centofanti (1982), ele viajou para o Paraná com Halina Radecka, sua segunda mulher. A princípio, elegeram esse estado como residência, pois o irmão dela vivia ali:

Ora, a Curitiba dos anos 20 não deveria ser um lugar muito promissor para o desenvolvimento de uma ciência nascente, principalmente para as ambições de quem trazia um currículo desse quilate. Nesse sentido, ainda em 1923, Radecki começa explorar o meio, buscando novos horizontes. Nesse ano, esteve em São Paulo e foi acolhido pela Sociedade de Educação, onde promoveu uma conferência que foi publicada. Promove também conferência no círculo Oswaldo Cruz e na Sociedade de Medicina e Cirurgia, em cujo boletim publica "Métodos psicanalíticos em psicologia" (Radecki, 1923b apud CENTOFANTI, 1982, p. 8).

O autor prossegue, ainda, chamando a atenção para o fato de desconhecer maiores detalhes da formação de Halina Radecka – uma das muitas mulheres que ficaram apagadas na História da Psicologia, segundo Jacó Vilela, em sua pesquisa “Entre mulheres inventadas e inventoras na psicologia brasileira”[1] – que era a única colaboradora de Radecki quando chegou ao Rio de Janeiro:

 

Iniciadas as atividades do laboratório, em 1924, contava ele com a participação de apenas duas pessoas. O próprio Radecki, que acumulava as funções de técnico e de chefe do laboratório e de Halina Radecka, que era secretária e primeira assistente. Desconhecemos a formação de Halina, mas ela tinha alguns conhecimentos de Psicologia, mais notadamente em Psicologia Infantil. (...)

Halina também teve uma atuação significativa no Uruguai e Argentina. Seu ‘Exame psicológico da criança’, é traduzido para o espanhol em 1947. Em 1960, ela publica um volume de psicologia social.

Numa comunicação pessoal, recentemente enviada por Gabriel Ventayol, diretor geral do Instituto de Psicologia Waclaw Radecki, de Buenos Aires, soubemos que Halina Radecka ‘faleceu em 1980, em algum lugar da República Argentina, num estado de demência senil, com transtornos próprios do deterioramento físico da idade’ (CENTOFANTI, 1982, p. 27).

 

É importante considerar que este não foi o primeiro laboratório de psicologia que se tem descrito no Brasil. Dentre as iniciativas de criação de laboratórios anteriores à de Radecki podemos citar o Pedagogium (1890-1919), que teve Manuel Bonfim (1868-1932) como diretor no período de 1897 a 1905, instituição que foi símbolo da modernidade educacional republicana pretendendo ser um centro impulsionador das reformas educacionais no âmbito nacional e centro coordenador das atividades pedagógicas no país (MIGNOT, 2013). O segundo laboratório de psicologia no território brasileiro foi inaugurado em 1907, recebeu o nome de Laboratório de Psicologia Experimental da Clínica Psiquiátrica do Hospital Nacional dos Alienados, sob a direção de Juliano Moreira, chefiado por Mauricio de Medeiros, constituído sob a influência de Geoges Dunas, com quem Medeiros trabalhou em Paris, no Laboratório de Psicologia do Hospital SaintÁnne (ANTUNES, 2014).

Na sequência de criação, tem-se o Laboratório de Psicologia Experimental na Escola Normal de São Paulo, em 1914, que mais tarde foi transferido para a cátedra de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Letras. Somente com a chegada de Radecki no Rio de Janeiro foi criado o Laboratório da Colônia dos Psicopatas do Engenho de Dentro, sendo este transformado em Instituto de Psicologia, subordinado ao Ministério da Educação e Saúde Pública em 1932 (CENTOFANTI, 1982; ANTUNES, 2014).

Waclaw Radecki nasceu em Varsóvia, na Polônia, em 1887, e cresceu em uma época de efervescência política nesse país, uma vez que este estava sob domínio russo e, portanto, em constante vigilância da polícia do Czar. Quando jovem, participou da luta entre estudantes e a polícia czarista. Como consequência desse conflito, ficou ferido, adquiriu um problema respiratório – tuberculose – e, provavelmente por esse motivo, foi obrigado a viajar para a França para se recuperar. Tempos depois, voltou a Varsóvia, contudo, foi proibido de prosseguir seus estudos, porquanto pesavam sobre ele acusações de conspiração. Inscreveu-se, então, como ouvinte na Universidade de Cracóvia, que também estava sob domínio russo e, nessa ocasião, aos dezesseis anos, iniciou sua aproximação com a Psicologia (CENTOFANTI, 1982).

No que concerne ao seu interesse pelo tema, é importante ressaltar que a Psicologia, como ciência independente da Filosofia, apresentava-se à época como novidade, uma vez que o primeiro laboratório no mundo dedicado aos experimentos relacionando à psique e à fisiologia havia sido recém-inaugurado por Wilhelm Wundt, em 1879, em Leipzig, na Alemanha. Foi neste país que Théodore Flournoy, psicólogo, adquiriu conhecimentos na área de psicologia experimental e, como discípulo direto de Wundt, encarregou-se de ensinar tais fundamentos na Faculdade de Ciências Naturais em Genebra, lecionando e deixando esse legado ao seu primo Claparède que, por sua vez, realizou seus estudos de Medicina em Leipizig e em Genebra. Em 1897, se tornou neurologista e a partir daí se voltou para a Psicologia, juntamente com Thèodore Flournoy (1854-1920), de quem foi assistente aos 28 anos. Nesse sentido, dois aspectos relevantes apontam para os conceitos sob os quais a Psicologia foi concebida em Genebra. Tais aspectos assinalados por Ruchat (2008) lançam luz sobre as práticas desencadeadas décadas mais tarde no Rio de Janeiro por Waclaw Radecki.

O primeiro deles foi o curso de Psicologia fisiológica ou experimental ministrado por Claparède, em 1891, na Faculdade de Ciências, que marcou a independência da Psicologia em relação à Filosofia; o segundo corresponde à criação de um laboratório de Psicologia experimental, em 1892, concebido como indispensável ao ensino, cujas funções principais deveriam ser as mesmas de um laboratório de fisiologia acessível a todos os estudantes, um local de reunião para os interessados em estudar Psicologia e, sobretudo, um espaço que propiciasse vincular a observação interna – introspecção – à experimentação, “duas qualidades que, para Flournoy, são características do temperamento intelectual suíço e do bom psicólogo”, como lembra Ruchat quando acentua:

 

A abordagem experimental, como preconiza Flournoy, e que Claparède retomará por sua conta, significa um ensino prático do método experimental que faz par com a investigação em psicologia conduzida em conjunto por mestres e alunos. Após ter escrito ‘A psicologia da criança e a pedagogia experimental’, sua primeira obra que marcou a história da psicologia e os fundamentos da escola de Genebra nesta matéria, em 1905, retoma, em 1908, a cadeira de psicologia (RUCHAT, 2008, p. 184 e 185).

 

 

É justamente nesse aspecto que se convergem as vidas de Claparède e Radecki. Este último sofreu perseguição política na Universidade de Cracóvia em 1907, fugiu para Florença, na Itália, onde se inscreveu como ouvinte livre na Faculdade de Ciências e se tornou aluno regular. No ano seguinte, 1908, segundo Centofanti,[...] a exemplo de muitos jovens poloneses no exílio, Radecki viajou para a Suíça e se inscreveu na Faculdade de Ciências Naturais de Genebra, onde vem a estudar Psicologia, sob a supervisão de Flournoy e Claparède” (CENTOFANTI, 1982, p. 6). 

 

 

Ainda sobre sua trajetória, sabe-se que:

 

Até 1908, inscreve-se como ouvinte e, posteriormente, estudante regular da Faculdade de Ciências Naturais e também executa atividades como violoncelista em Florença. Entretanto, em 1908, parte para Genebra, onde inicia seus estudos com Édouard Claparède. Esta é uma passagem importante pois o contato com Claparéde irá influenciar seus escritos, sendo recorrentemente citado em seus textos. Após se matricular na Faculdade de Ciências Naturais e Medicina de Genebra, em 1910 é nomeado assistente de laboratório de Claparède (FONSECA, 2018, p. 04).

 

            Conforme Centofanti (1982) e Fonseca, Rosa e Ferreira (2016), ele terminou seus estudos em Genebra, em 1911, obteve título de doutor com a tese intitulada Recherches experimentales sur lês phénomènes psychoélectriques e, ao que tudo indica, nesse mesmo ano exerceu atividades como livre docente na Universidade de Genebra. Retornou à Polônia em 1912 e lá desenvolveu atividades como chefe do Laboratório de Psicologia da Clínica Psiquiátrica da Universidade da Cracóvia e, tempos depois, como professor da Universidade Livre de Varsóvia.

            Quando o Institut Jean-Jacques Rousseau é criado, em 1912, ele não se encontrava entre os primeiros que ali estudaram. Levantamento efetuado por Arielle Jornod (1995) indica que a composição da turma contou com a presença de alunos de quatorze nacionalidades, dentre os quais, Francisco Lins como único brasileiro e Helena Antipoff, que veio para o Brasil, em 1929, onde se instalou em Belo Horizonte a convite de Francisco Campos, durante o processo de reforma do ensino mineiro, mas não é feita menção a Radecki.

            Com o correr do tempo, depois de sua partida de volta à Europa, parece que Édouard Claparède perdeu o discípulo de vista, pois, em cartas trocadas com Helena Antipoff, em julho de 1931, a educadora lhe informara que estava no Rio de Janeiro e que visitou o laboratório do Radecki, que a ajudou na compra de equipamentos para que pudesse fazer "experiências com fenômenos psicoelétricos" com seus alunos na Escola de Aperfeiçoamento de Minas Gerais[2]. Em outra missiva de outubro de 1936, Antipoff demonstra que Claparède buscava obter notícias do antigo discípulo ao afirmar: “você está interessado no destino de Radecki”, porém informa que as últimas notícias que teve sobre o polonês foram dois ou três anos antes, quando esteve em visita ao Rio de Janeiro. Escreve que não sabia exatamente o que aconteceu, mas havia coisas desagradáveis, pois alguns psicólogos que ele treinou reivindicavam o seu lugar. E confirma, ainda, que Radecki era "sim, um cara engraçado”, como se respondesse a uma afirmação de Claparède, e completa sua percepção sobre o polonês “paranoico, certamente, porque nunca deixou de sublinhar as 'suas' teorias, seu discernimento emocional é muito complicado, mas não vejo nenhuma originalidade: é uma salada de conceitos tirados de James, Wundt, Baldwin etc. Muito teórico também, porque nenhuma pesquisa experimental parecia direcionar suas conclusões"[3]. As cartas nas quais, provavelmente, Claparède indagou sobre Radecki e que resultaram nessas respostas de Antipoff, contudo, não foram localizadas.

 

Vínculos acadêmicos com o fundador do Institut Jean-Jacques Rousseau

 

No que se refere aos vínculos acadêmicos entre Claparède e Radecki, após o período de formação em Genebra, tem-se o registro de ao menos dois encontros entre eles. O primeiro, durante uma viagem feita à Europa em que Radecki passou por Genebra e, o segundo, ao recepcionar Claparède no Laboratório de Psicologia da Colônia dos Psicopatas no Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro.

Em 1928, o professor Aloysio de Castro, Diretor Nacional do Ensino, instaurou uma comissão para realizar uma viagem à Europa com o objetivo de realizar estudos psicológicos, o que significava obter orientação quanto à ciência da época, aprofundar noções técnicas quanto à montagem de laboratório, conhecer a organização didática dos estudos de Psicologia e obter informações sobre suas aplicações a instituições visitadas (CAMPOS, 1928, p. 361). A este respeito, o professor e psicólogo Antonio Gomes Penna escreve o seguinte:

 

Entrementes, o material contido no ‘Relatório de Viagem realizada à Europa para estudos psicológicos’ é bastante rico de informações. A viagem foi realizada sob a chefia de Radecki e dela participaram Flávio Dias, Artur Fajardo da Silveira, Antonio Moniz de Aragão e Nilton Campos. Foram visitados os Institutos e Laboratórios de Psicologia das Universidades de Paris, Bruxelas, Louvain, Colônia, Bonn, Berlim, Varsóvia, Cracóvia, Viena, Munich e Genebra (PENNA, 1992, p. 19).

 

 

A despeito dos diferentes Institutos e Laboratórios visitados nessa expedição, decidimos nos ater aos registros de sua visita à Genebra, ao Institut Jean-Jacques Rousseau, pelo relacionamento acadêmico estabelecido por Waclaw Radecki com Claparède e pelo desdobramento dessa viagem que, possivelmente, deu contornos à visita do mestre ao laboratório no Rio de Janeiro. Ademais, a Suíça, desde o fim da grande guerra, tornara-se, segundo Moreau (2016), um centro nevrálgico, graças à aposta feita em favor do pacifismo e da neutralidade, o que permitiu a criação de várias organizações internacionais. Com a fundação da Sociedade das Nações, em 1919, o Institut Jean-Jacques Rousseau ganhou novo impulso, na medida em que se valeu da sua estrutura intergovernamental, tornando-se “um lugar de peregrinação para profissionais da educação de toda a Europa”, ainda nas palavras de Moreau (2016, p. 57). Por este motivo, provavelmente, durante a viagem, a comissão teve a oportunidade de presenciar o Congresso Internacional de Educação Nova, realizado em Locarno, com a participação de número superior a mil congressistas, com a representação de mais de quarenta países. A narrativa feita por Nilton Campos sobre esse evento nos mostra a perspectiva da comissão no âmbito das relações profissionais ali estabelecidas:

 

Não podendo tomar parte no Congresso, tivemos a oportunidade de conversar logo depois do seu encerramento com vários congressistas, inclusive o presidente, Prof. Bovet, diretor do Instituto J.J Rousseau, o que nos proporcionou o ensejo de discutir as questões pedagógicas em foco (CAMPOS, 1928, p. 385).Conforme descrito no relatório da viagem, a Psicologia na Universidade de Genebra fazia parte da Faculdade de Ciências, coordenada por Claparède, estava entre os diversos tipos de doutorado desta Faculdade e, como disciplina, estava presente em toda a organização dos estudos pedagógicos, assim como as Ciências da Educação estavam baseadas no conhecimento de todos os ramos da Psicologia, ministrados por diferentes especialistas:

 

É ocioso salientar o que representa para a Pedagogia mundial o célebre Instituto J.J Rousseau, que é uma instituição autônoma, mas ligada ao organismo universitário que lhe permite o cunho oficial. Fundado em 1912 pelo prof. Claparèd, desde logo se tornou um centro de estudos em Psychologia infantil, creando a Pedagogia experimental e cuidando dos princípios scientíficos dos systemas educativos. [...] Uma nova disciplina foi recentemente incluída no programma do Instituto: a Technopyschologia, que tem por objetivo a formação de psychologos especializados para a organização do trabalho e a orientação e seleção de profissionais (CAMPOS, 1928, p. 382 e 383).

 

 

Ademais à ênfase dada pelo Institut Jean-Jacques Rousseau à Psicologia aplicada à Pedagogia, amparada pelos valores da escola ativa presente em todas as práticas, o relatório traz a informação de que a educação dos sentimentos estava colocada na mesma importância, ou seja, no mesmo plano do desenvolvimento da inteligência e da cultura física. Além disso, o referido Instituto foi o primeiro na Europa a assinalar a importância de se estudar as aptidões profissionais na criança e encontrou nessa iniciativa apoio de várias instituições pedagógicas, comerciais e agrícolas (CAMPOS, 1928).

O relatório é finalizado com a conclusão de que a viagem nutriu as esperanças que os animaram a partir. Ao término, após os agradecimentos ao professor Aloysio de Castro, àquele que incentivou a iniciativa, a comissão exprime sua sincera gratidão ao mestre e prof. Radecki pela feliz organização.

Dezoito anos após sua saída da Faculdade de Ciências de Genebra e dois anos após visitar o Institut Jean-Jacques Rousseau, Radecki tem a oportunidade de receber Claparède em seu laboratório na Colônia dos Psicopatas. Seria esse encontro um desdobramento da viagem realizada anteriormente ao Instituto em Genebra?

É importante relembrar que, no Brasil, o ano de 1931 foi marcado pela reforma do Ensino Superior – realizada por Francisco Campos, que tomara posse como Ministro da Educação e Saúde Pública no ano anterior – na qual para se fundar uma Universidade, esta teria que estar vinculada a, pelo menos, três institutos de ensino superior. Indicando que esse item da reforma vinha ao encontro das ambições de Radecki, visto que, em 1930, “de modo providencial para os planos de Radecki, o laboratório tem a oportunidade de anfitriar duas grandes personagens da psicologia europeia: Claparède e Kohler” (CENTOFANT1, 1982, p. 17).

Se num momento inicial, em 1924, o Laboratório da Colônia dos Psicopatas tinha o objetivo de ser uma instituição auxiliar médica, auxiliar das necessidades sociais e práticas, ser núcleo científico e centro didático para formar técnicos brasileiros, após a viagem à Europa e visita de Claparède a essa instituição, em 1930, Radecki passa a planejar um novo formato de atuação e estabelece um Instituto com novas finalidades, a saber: atuar com ênfase nas pesquisas científicas de Psicologia geral, individual, coletiva e aplicada; se transformar num centro de aplicação psicológica; fundar a primeira Escola Superior de Psicologia no Brasil (CENTOFANTI, 1982).

Teria sido essa viagem e a visita de Claparède a inspiração para fundar o primeiro Instituto de Psicologia no Brasil, como uma instituição autônoma, mas ligada ao organismo universitário, tal qual o Institut Jean-Jacques Rousseau?

A partir das informações das visitas realizadas aos institutos europeus em 1928 e da oportunidade de recepcionar Claparède, inferimos que Radecki experenciou práticas psicológicas e observou distintos modelos de atuação, ampliando e adquirindo novos repertórios intelectuais para, dois anos mais tarde, transformar seu laboratório em Instituto de Psicologia. Aliás, Esch e Jacó-Vilela (2004) relatam que Radecki, desde 1930, projetava transformar o Laboratório em Instituto de Psicologia, intuito que foi alcançado em 1932, sob o decreto-lei nº 21.173.

Dois meses marcaram o intervalo entre o Decreto-Lei e a inauguração do Instituto de Psicologia. A manchete escrita no jornal Correio da Manhã de 12 de maio de 1932, citado por Fonseca (2018, p. 07), descreve o Instituto em detalhes, “de uma sobriedade elegante que agrada logo à primeira vista”, revela suas pretensões em ser um importante ramo da futura Faculdade de Educação, Ciências e Letras e cita a presença de autoridades e políticos, os quais prestigiaram o discurso de inauguração de Radecki.

Neste local, haveria de funcionar uma Escola Superior de Psicologia com a previsão de formar profissionais a partir de 1933, contudo, o instituto funcionou apenas por sete meses. Os relatos apontam o insucesso do Instituto graças à pressão dos médicos e, em especial, da intelectualidade católica, aliadas à falta de recursos que inviabilizaram o funcionamento, sendo essas possíveis causas para o seu fechamento. Neste sentido, Centofanti (1982), detém-se nas fortes críticas de Alceu Amoroso Lima que circulavam na imprensa católica, em tempos de exacerbação de conflitos ideológicos que repercutiram, também, entre os educadores:

 

Um documento que retrata as divergências existentes na época em que o Instituto foi criado é um artigo escrito em junho de 1932, por Alceu Amoroso Lima, intitulado ‘O instituto Official de psychologia’. O artigo foi publicado numa revista chamada ‘A Ordem’, porta-voz do Centro Dom Vital, reduto dos intelectuais católicos. Ali, Leonel Franca, posteriormente fundador da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, andava, em 1928 e 1929, promovendo uma série de conferências que, em 1933, foram publicadas num livro denominado ‘A psicologia da fé’.

Inicialmente revoltado contra o caráter arbitrário com que o instituto fora fundado (e nisso ele tinha razão, pois foi criado e extinto ditatorialmente), Alceu arma-se contra a infiltração da ‘filosofia nova’ (não religiosa) que vinha sendo introduzida no seio de nossa sociedade cristã, por Anísio Teixeira (simpatizante e talvez responsável pela criação do Instituto), Fernando de Azevedo, Celina Padilha e Cecília Meireles, arautos do ‘comunismo’ e do ‘sovietismo’(CENTOFANTI, 1982, p. 24).

 

É também conhecido o fato de Radecki ser considerado como uma pessoa antipática, arrogante, altivo, orgulhoso, dado a atitudes imperiais e, no falar de Jayme Grabois, “com fumaça de nobre” se autodenominava “psicólogo profissional”, segundo Centofanti (1982, p. 11). Pensemos que isso soava bastante estranho, e por que não dizer extravagante, para o ambiente nacional da época em que a aristocracia profissional era quase uma exclusividade para médicos, engenheiros e advogados

Radecki foi para a Argentina, depois para o Uruguai onde vem a falecer, em 1953. O instituto foi transferido para a Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro. Assim, pode-se compreender a afirmativa: “De tudo quanto se conseguiu apurar resta a convicção da extraordinária fecundidade do prof. Radecki cuja saída do país rumo à Argentina em 1932 acabou sendo o maior golpe sofrido pelo desenvolvimento dos estudos psicológicos no Brasil”, feita por Penna (1992, p. 54), expressando, a nosso ver, uma forma de lamento pela precoce interrupção na trajetória do desenvolvimento da Psicologia brasileira.

É relevante considerar que, no aspecto intelectual e de produção de conhecimento, no período em que esteve no Brasil, Radecki descreveu um sistema psicológico o qual denominou “Discriminacionismo Afetivo”. Este sistema se refere ao reconhecimento da discriminação e da sensibilidade afetiva como processos básicos e primordiais ao se tratar do psiquismo humano e, ao enunciar seu conceito, colocou em questão a relação entre o que era universal e particular. Com isso, ele afirmou ter limitado sua investigação teórica apenas indicando caminhos metodológicos de resolução de problemas no âmbito da prática da psicologia individual. A teoria descrita em seu sistema psicológico não teve fecundidade acadêmica e caiu no esquecimento. Seus notáveis assistentes optaram por outras abordagens psicológicas: Nilton Campos pela fenomenologia e Jayme Grabois pela psicanálise. Contudo, esse fato, segundo Centofanti (2003), não diminui seu mérito. O desejo de se ter um sistema unificado da Psicologia talvez seja o principal legado deixado por Radecki.

A despeito de o sistema psicológico “Discriminacionismo Afetivo” não ter fecundidade acadêmica, podemos constatar a influência de Radecki ao instituir práticas laboratoriais aprendidas com seu mestre Claparède no seu percurso por Genebra. Foi de lá que ele trazia em sua bagagem intelectual os conteúdos para ministrar cursos e treinamentos realizados na Colônia dos Psicopatas. Vários profissionais instruídos por ele hoje ocupam o protagonismo na história da Psicologia brasileira, tais como Nilton Campos (1898-1963), Jayme Grabois (1908-1990), Euryalo Cannabrava (1908-1978), como assinalam Fonseca, Rosa e Ferreira, (2016), dentre os quais alguns de áreas diferentes da Medicina, como o professor Edgar Sanches e a professora municipal Lucília Tavares, listados por Penna (1992).

É possível pensar que sua postura contundente na promoção dessa nova ciência à época, associada às suas idiossincrasias, não constituíram condições ideais para sua permanência no Brasil. Penna (1992) afirma que Radecki deixa como legado o desejo de elevar a Psicologia como ciência de alto nível.

Conhecer, e fazer conhecida, parte da trajetória desse psicólogo polaco brasileiro e seus entrelaçamentos com o Institut Jean-Jacques Rousseau nos faz compreender a dimensão e a importância de Radecki estar entre aqueles que esperavam por Claparède à beira do cais no Rio de Janeiro. Mignot (2017), ao se deter nas experiências de viagens, afirma que elas não se limitam apenas ao momento em que ocorrem:

 

[...] Realizadas por diferentes sujeitos em tempos e espaços distintos, para destinos diversos, por razões específicas, (...) não começam no dia da partida e não se encerram na hora da chegada. Daí a importância de interpretar os viajantes, os contextos, as motivações, as finalidades e as repercussões de cada travessia (MIGNOT, 2017, p. 267).

 

Tais palavras ajudam a interpretar os propósitos da comitiva enviada à Europa quando Nilton Campos, na introdução do relatório, sinaliza que a relevância da viagem, além de cumprir com os objetivos, era o de acentuar a circulação imediata de ideias, além da confirmação das relações entre o laboratório brasileiro e outros núcleos científicos mundiais. A escrita aponta para pretensões da comissão em estabelecer intercâmbio científico, para que, no futuro, fosse propagada a ciência brasileira na Europa.

 

Algumas considerações finais

 

Ao considerarmos o tempo de convívio de Waclaw Radecki com Théodore Flournoy e Édouard Claparède em Genebra, associando às atividades iniciadas por esse primeiro no Rio de Janeiro a partir de 1924, observamos os traços da psicologia genebrina tal qual era à época, ou seja, a prática psicológica científica era aquela decorrente da observação interna – introspecção – associada à experimentação.

Seguindo os moldes da psicologia genebrina, especificamente a aprendida com seu mestre Claparède, ao criar um Laboratório de Psicologia Experimental, marcou no território brasileiro a independência da Psicologia, não só em relação à Filosofia como também uma prática diagnóstica apartada da Medicina, o que lhe causou grandes desafetos.

Contudo, observamos algumas distinções nos propósitos de ambos. Se por um lado Claparède, ao fundar o Institut Jean-Jacques Rousseau, em 1912, estabeleceu referências à formação de educadores e a realização de pesquisas na área de Psicologia e Pedagogia, por outro, Radecki estreou o Instituto de Psicologia em 1932 com o intuito de ser referência nas pesquisas científicas de Psicologia geral, individual, coletiva e aplicada, um centro de aplicação prática nas técnicas psicológicas e uma Escola Superior de Psicologia, conforme afirma Centofanti (1982). À primeira vista, um distanciamento nos objetivos de tais instituições, ainda que ambos mantivessem como base a psicologia experimental.

Ao concebermos o entrelaçamento dessas vidas, podemos fazer alguma ideia do que significava a presença de Waclaw Radecki no porto do Rio de Janeiro, à espera de Claparède e o quanto esse encontro animou os acontecimentos e os rumos daquele laboratório que, em 1932, foi transformado em Instituto de Psicologia. A experiência da viagem à Europa, em especial ao Instituto dirigido por seu antigo mestre, nos dá pistas de como Radecki se aproximou e se apropriou dos princípios de funcionamento do Institut Jean-Jacques Rousseau, motivando a essa transformação.

Sendo assim, entendemos que a criação do Laboratório de Psicologia da Colônia de Psicopatas do Engenho de Dentro recebeu influência direta dos estudos e convívio com Claparède, uma vez que as práticas ali instituídas buscavam ancorar o psiquismo humano em seu sistema fisiológico, por meio do campo das associações entre a percepção e a realidade passíveis de serem medidos por intermédio da testagem psicológica, prática bastante difundida para aqueles que representavam ser as primeiras gerações de psicólogos experimentais.

Segundo Centofanti (1982), a passagem de Radecki pelo Brasil foi marcada por um conjunto de atitudes que o diferenciou dos psicólogos anteriores: ele veio na condição de residente; deve ter sido o mais promissor dos pioneiros na pesquisa pura em Psicologia no Brasil, embora tenha sabido complementá-la com importantes pesquisas aplicadas; no laboratório estabeleceu objetivos de longo alcance, visando a edificação de uma psicologia científica no Brasil;  preocupou-se com a formação de um grupo de assistentes nacionais; lutou pela criação de uma escola de psicologia e pela profissionalização do psicólogo; organizou um Instituto de Psicologia com dois assistentes, Jayme Grabois e  Nilton Campos, que de certo modo deram continuidade ao serviço. Aliás, Silva (2013) destaca que o segundo livro de Édouard Claparède – “A educação funccional” – publicado no Brasil pela Companhia Editora Nacional, em 1933, foi traduzido por Jayme Grabois.

A fundação formal do Laboratório de Psicologia da Colônia de Psicopatas do Engenho de Dentro, dirigida por Waclaw Radecki, baseando-se nas premissas da psicologia apreendida nos anos de estudo e atuação em Genebra, rendeu reconhecimento à psicologia brasileira, contribuindo para seu desenvolvimento, institucionalização e autonomia nas décadas vindouras no Brasil.

Uma pista que ajuda a compreender seu esquecimento no âmbito da Educação talvez possa ser encontrada em aspectos levantados por Centofanti (1982). Dizem respeito ao modo como o trabalho desenvolvido por Radecki foi registrado de modo crítico e preconceituoso por Lourenço Filho em duas ocasiões. Uma, no discurso que proferiu quando da posse de Nilton Campos na Cátedra de Psicologia, na Faculdade Nacional de Filosofia, em 1963, e, o segundo, em seu estudo “A Psicologia no Brasil”, de 1955, respectivamente, como se pode ver abaixo:

 

não o assustavam (a Nilton) os ademanes hieráticos do professor Waclaw Radecki (...) nem ainda, é certo, a estranha decoração, algo cabalística, de que o ilustre especialista polonês mandara revestir as paredes de algumas das salas do laboratório, em fundo verde carregado de arabescos e tridentes de prata... (Lourenço Filho, 1963). Puro preconceito. (...)

Mas o incansável preconceito de Lourenço contra o discriminacionismo permite visualizar melhor o clima da época. O problema de Radecki, em nossa opinião, foi insistir na posição de se manter autônomo e independente. Mesmo depois de ter saído do Brasil, parece ter permanecido no mesmo hábito. Trabalhava com o seu sistema, o seu laboratório, o seu instituto, os seus assistentes, as suas publicações, os seus cursos, a sua escola e, por fim, o seu Congresso. Vivia como que à margem dos acontecimentos circundantes. Ora, isso não agradava às pessoas ou grupos de pessoas que também atuavam em psicologia ou em áreas afins. Marginalização aqui, marginalização acolá (CENTOFANTI, 1982, p. 35).

 

 

O reconhecimento das ideias de Édouard Claparède que defendia uma escola sob medida, isto é, na medida dos interesses e necessidades das crianças, perspectiva retomada no livro “A escola sob medida e estudos complementares sobre Claparède e sua doutrina por Jean Piaget, Louis Meyla, Pierre Bovet” publicado postumamente em 1959 (CLAPARÈDE, 1959) – traduzido em diversos idiomas e que, como outras obras suas, influenciou na formação de psicólogos e educadores, com relevante impacto na formulação de perspectivas teóricas, ou seja, na maneira de conceber a educação – teve, segundo Nassif e Campos (2005), desdobramentos na Pedagogia e na Psicologia contemporâneas. Um exemplo disso pode ser visto quando observamos que depois de mais de 40 anos de sua viagem ao Brasil, o ano de 1973 – ano do centenário de nascimento do mestre suíço – seria marcado por celebrações no Rio de Janeiro e Belo Horizonte, respectivamente, em sessão especial da Associação Brasileira de Educação, onde Laura Jacobina Lacombe discursou em sua homenagem e, como lembra Silva (2013), em publicação do livro “Invenção dirigida”, pela Faculdade de Educação da UFMG. [4]

 

 

 

 

Referências

 

ANTUNES, Mitsuko Aparecida Makino. A psicologia no Brasil: leitura histórica sobre sua constituição. 5ª ed.  São Paulo: EDUC, 2014.

 

CAMPOS, Nilton. Relatório de Viagem realizada à Europa para estudos psicológicos. Annaes da Colonia de Psychopathas, vol.1, Rio de Janeiro, 1928.

 

CENTOFANTI, Rogério. Radecki e a Psicologia no Brasil. Psicol. cienc. prof, Brasília, v. 3, n. 1,   p. 2-50,1982.  Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98931982000100001&lng=en&nrm=iso>. access on 20 Jan.  2020.  http://dx.doi.org/10.1590/S1414-98931982000100001.

 

_______.  O discrininacionismo afetivo de Radecki. Memorandum, 5, p. 94-104, 2003.

 

_______. Radecki e a Psicologia no Brasil. In: Antunes, M. A. M.  História da psicologia no Brasil: Primeiros ensaios. Rio de Janeiro, Brasil: Eduerj, 2004. p. 177-208.

 

CENTOFANTI, Rogério; Jacó-Vilela, Ana Maria. O laboratório da Colônia de Psicopatas do Engenho de Dentro. In: Campos, R. H. F.; Vieira, R. C.  Instituições e psicologia no Brasil. Rio de Janeiro, Brasil: Nau, 2007, p. 179-192.

 

CLAPARÈDE, Édouard. A escola sob medida e estudos complementares sobre Claparède e sua doutrina por Jean Piaget, Louis Meyla, Pierre Bovet. 3.ed. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1959.

 

ESCH, Cristiane Ferreira; JACÓ-VILELA, Ana Maria. A regulamentação da profissão de psicólogo e os currículos de formação psi. In: JACÓ-VILELA, A. M; CEREZZO, A. C; RODRIGUES, H. B. C. (orgs). Clio-psyché hoje: fazeres e dizeres psi na história do Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2012, p. 3-12. Disponível em: https://static.scielo.org/scielobooks/hkyyb/pdf/jaco-9788579820618.pdf. Acesso em 16/07/20.

 

 

FONSECA, Luiz Eduardo Prado. WaclawRadecki: Propondo uma nova narrativa a um velho personagem. Rev. psicol. Santiago, v. 27, n. 2, p. 103-114, dic.  2018.   Disponibleen<https://scielo.conicyt.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0719-05812018000200103&lng=es&nrm=iso>. Acedido en 24 enero 2020.

 

FONSECA, Luiz Eduardo Prado da; ROSA, Hugo Leonardo Rocha Silva da; FERREIRA, Arthur Arruda Leal. Yes, nós temos Wundt: Radecki a história da psicologia no Brasil.  Tesis psicológica, v.11, n.1, p.18-35, enero-junio, 2016.

 

 

 

JORNOD, Arielle. Renseignements détaillés sur lês quatre premières voles d’étudiants de l’Institut Jean-Jacques Rousseau de 1912 à 1916. Instituto Jean-Jacques Rousseau,.Arquivos do Instituto Jean-Jacques Rousseau, Genebra,1995.

 

 

MEIRELES, Cecília. A visita de um pedagogo notável, Rio de Janeiro: Diário de Notícias, 13 de setembro de 1930, p. 6.

 

MIGNOT, Ana Chrystina. Claparède, mestre e amigo: memórias de travessias. Revista Interinstitucional Artes de Educar (RIAE), (Rio de Janeiro: Online), v 2, 2016. Disponível em https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/riae/article/view/25510. Acesso em 2 de julho de 2020.

 

_______. Encontros marcados: redes de ideias e afetos de educadores em escritas de viagem. In: MIGNOT, Ana Chrystina; MORAES, Dislane Zerbinatti; MARTINS, Raimundo. (Org.). Atos de biografar: narrativas digitais, história, literatura e artes. Curitiba: CRV, 2018, v. 2, p. 101-120.

 

_______. (org) Pedagogium: símbolo da modernidade educacional republicana. Editora: Quartet – Faperj, 2013.

 

_______. Viagens e narrativas (auto)biográficas. Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)biográfica, v. 2, 2017, p. 263-267.

 

MOREAU, Angel. C. La influencia de Genebra em laprimerafundamentación de la psicopedagogia española. In: HERNANDEZ DIAZ, José Maria (coord). Influenciassuizas enlaeducaciónespañola e iberoamericana. Salamanca: Aquilafuentes, 2016, p. 53-68.

 

NASSIF, Lilian E.; CAMPOS, Regina Helena de F. Édouard Claparède (1870-1940): interesse, afetividade e inteligência na concepção da psicologia funcional. Memorandum, Belo Horizonte, v.9, 2005, p. 91-104.

 

PENNA, Antonio Gomes. História da Psicologia no Rio de Janeiro. Editora Imago, 1992.

 

REVISTA SCHOLA. Rio de Janeiro, RJ. Associação Brasileira de Educação, ano 1, n.8, set, 1930.

 

RUCHAT. A Escola de Psicologia de Genebra em Belo Horizonte: um estudo por meio da correspondência entre Édouard Claparède e Hélène Antipoff (1915-1940). Revista Brasileira de História da Educação, v. 8, n. 2 [17], p. 181-205. maio-ago, 2008.

 

SEGUEL, Gerardo. O prestígio de Claparède na Nova Educação.  Rio de Janeiro: Diário de Notícias, 14 de setembro 1930, p. 4.

 

SILVA, Emerson Correia da. As apropriações e representações de Édouard Claparède no Brasil (1928-1973). Marília, Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Filosofia e Ciências, Tese (Doutorado em Educação), 2013.

 

This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International (CC BY-NC 4.0)

 

 

Notas



[1] Ver matéria “O poder feminino na invenção do inconsciente”. Publicado em 17 de abril de 2008. Ver. http://www.faperj.br/?id=1195.2.0. Acesso em 5 de junho de 2020.

 

[2] Carta escrita por Helena Antipoff em 22 de setembro de 1931. In: RUCHAT, Martine. Édouard Claparède et Hélène Antipoff Correspondance (1914-1940). Firenze: Leo S. Olschki Editore, 2010, p. 123-124. Tradução livre do francês.

 

[3] Carta escrita por Helena Antipoff em 29 de outubro de 1936. In: RUCHAT, Martine. Édouard Claparède et Hélène Antipoff Correspondance (1914-1940). Firenze: Leo S. Olschki Editore, 2010, p. 187-189. Tradução livre do francês.

 

[4] A este respeito consultar: MIGNOT, Ana Chrystina (2016) e SILVA, Emerson Correia (2013). No primeiro, a autora se volta para a análise do discurso proferido por Laura Jacobina Lacombe na sessão comemorativa do centenário e que teve por título “Clapárède, mestre e amigo”, documento este presente no acervo da Associação Brasileira de Educação e, no segundo, o autor examina a publicação Invenção dirigida como um dos livros nos quais “Claparède foi oferecido no Brasil como um autor estrangeiro portador de soluções para os problemas brasileiros, mesmo que ele vivesse a milhares de quilômetros de distância do Brasil e pouco conhecesse do país. Entendemos que seus tradutores realizaram um processo de naturalização do autor estrangeiro” (Silva, 2013, p. 16).