Educação Intercultural em Saúde:

Um Debate Desejável à Disciplina Escolar de Ciências?

 

Health Intercultural Education:

ADesirable Debate in the School Sciences Curricula?

 

 

Fagner Henrique GuedesNeves

Instituto Oswaldo Cruz – FIOCRUZInstituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal Fluminense –Rio de Janeiro, Brasil

fagner.neves@ioc.fiocruz.br - https://orcid.org/0000-0002-7990-6299

 

Paulo Pires de Queiroz

Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil

ppqueiroz@yahoo.com.br - http://orcid.org/0000-0002-0609-6424

 

Recebido em 07 de agosto de 2020

Aprovado em 05 de abril de 2021

Publicado em 13 de outubro de 2022

 

 

RESUMO

Este artigo buscadialogar com o campo acadêmico de estudosacerca da formação docente e da prática pedagógica em Ciências no ensino fundamental, tendo como foco o conceito de educação intercultural em saúde. Explorando fontes teóricas, documentais e empíricas variadas, é desenhada uma dialética entre a potencialidade representada pela apropriação educativa dos conceitos de saúde, interculturalidade e reflexividade crítica e o debate acadêmico nacional. Atualmente, verifica-se uma reincidência de políticas e estudos sobre a educação em saúde na escola básica frente ao patente desafio representado pela promoção da saúde. Por sua vez, a pesquisa nacional acerca do ensino de Ciências tem-se tornado cada vez mais prolífica, abordando as problemáticas da saúde, da interculturalidade e da capacitação crítico-reflexiva dos professores. Contudo, quando se trata de reunir essas pautas num único esforço investigativo e proposititivo nota-se uma agenda ainda incipiente.Como síntese, a análise se debruça sobre enfoques teóricos e práticos, apontando como viável uma formação crítico-reflexiva que possa ajudá-los a compreender seu trabalho como exercício autônomo e coletivo de pesquisa em cooperação com a academia, reconfigurando a didática e o currículo escolar como campos de construção de significados e práticas interculturais e saudáveis.

Palavras-chave: Educação Intercultural em Saúde; Ensino de Ciências; Escola Básica.

 

ABSTRACT

This articleaims to dialogue with the academic research about teacher education and pedagogical practice in Science in elementary school, focusing on the concept of health intercultural education. Exploring various theoretical, documentary and empirical sources, a dialectic relationship is designed between the potential represented by the educational appropriation of the concepts of health, interculturality and critical reflexivity and the national academic debate. Nowadays, policies and studies on health education in elementary schools are very common. On the other hand, the national research on science teaching has become increasingly prolific, addressing the issues of health, interculturality and critical-reflexive training of teachers. However, joining these aspects in a single investigative and propositive effort remains incipient in Brazil. As a synthesis, the analysis approaches theoretical and practical aspects pointing out as viable a critical-reflexive formation that can help them understand their work as an autonomous and collective research exercise in cooperation with the academy, reconfiguring didactics and the school curriculum as fields of construction of meanings and practices intercultural and healthy.

Keywords: Health Intercultural Education; Science Education; School.

 

 

Introdução

 

A saúde considerada num sentido biopsicossocial, como recomenda a Organização Mundial da Saúde, é uma preocupação pública que se torna ainda mais urgente nestes tempos pandêmicos. Dentre outras esferas sociais, a escola básica poderia ser um espaço e processo de produção de bem-estar, em que relações sociais, mentalidades, emoções e movimentos orgânicos estejam em interação e interdependência numa perspectiva intercultural. Nessa direção, a reflexividade crítica se apresenta como uma referência capaz de favorecer uma qualificação docente compatível com o proposto, oferecendo ao professor, num intenso diálogo entre teoria e prática, entre universidade e escola, os saberes fundamentais à promoção dessa pauta educativa em currículos e práticas de ensino de Ciências. Especialmente, acreditamos no potencial da disciplina de Ciências de se converter num contexto como tal.

            Neste artigo, procuramos dialogar com o campo acadêmico de estudos acerca da formação docente e da prática pedagógica em Ciências no ensino fundamental, tendo como foco o conceito de educação intercultural em saúde. Definimos o conceito como um espaço e processo de ensino e aprendizagem, orientado por uma perspectiva crítico-reflexiva de docência, que possa favorecer diálogos livres e igualitários entre culturas e, consequentemente, estados de bem-estar.

Seria esse debate desejável à disciplina escolar de Ciências? Propomos que sim neste artigo. Num primeiro momento da reflexão, explorando fontes teóricas e documentais variadas, desenhamos uma dialética entre a potencialidade que enxergamos na apropriação educativa dos conceitos de saúde, interculturalidade e reflexividade crítica e o debate acadêmico. A partir dessa relação, numa segunda seção, defendemos a ampliação de enfoques que explorem conexões entre esses importantes tópicos na educação científica escolar. Na sequência, abordamos os aspectos estruturantes e os resultados preliminares de uma pesquisa que temos desenvolvido na escola básica à luz da discussão proposta.

           

Saúde, Interculturalidade e Reflexividade Crítica

 

Propomos o diálogo intercultural como um possível gatilho da autonomia dos sujeitos frente ao meio e, consequentemente, de relações saudáveis, mediadas por uma docência crítico-reflexiva no espaço escolar. Amparamos nossa perspectiva num diálogo com variadas referências desses campos teórico-conceituais.

Quanto ao conceito de saúde, buscamos as significativas contribuições da epistemologia das ciências de Georges Canguilhem (1990). A originalidade de sua proposta está em romper com o modelo positivista biomédico e sua clássica percepção da saúde e da doença (BERNARD, 2010), problematizando uma visão holística do problema, através do conceito de “normatividade vital” (ALMEIDA FILHO, 2000; PORTOCARRERO, 2009; SAFATLE, 2011). Para o autor, o que está em questão não é somente o aspecto fisiológico do fenômeno, mas a relação de cada organismo com os ambientes em que se situam.

Contrapondo-se ao positivismo biomédico, Canguilhem desloca a discussão sobre a saúde da dicotomia normal/saúde versus patológico/doença à dicotomia entre o saudável e o patológico. A saúde diria respeito à capacidade do sujeito de normatizar a sua existência, infringindo normas antecedentes e investindo normas atuais, diante das circunstâncias. Inversamente, o patológico caracterizaria um estado de impotência do sujeito frente a um determinado contexto, onde há imposição de normas ao invés de produção ativa e própria.

Com efeito, para Canguilhem, a saúde nunca pode ser considerada como a “ausência de doença”, positiva e objetivamente observável. “Não existe fato que seja normal ou patológico em si” (CANGUILHEM, 1990, p. 113 – 114), isto é, que possa ser identificado e mensurado. O que diferencia “saúde” e “doença” é a capacidade de o organismo produzir as suas normas em todos os contextos (CANGUILHEM, 1990, p. 109). Nessa perspectiva, o normal nada mais seria do que um estado sentido pelo sujeito como um valor que ele possui e o patológico, como um valor que ele deseja obter. Entre o patológico e o normal não há “desvio” quantitativo, mas diferença qualitativa.

Essa atribuição de valor que caracteriza a “normatividade vital” é produto de uma interação do sujeito com o meio em que vive:

 

O ser vivo e o meio, considerados separadamente, não são normais, porém é a sua relação que os torna normais um para o outro. [...] Um ser vivo é normal num determinado meio na medida em que ele é a solução morfológica e funcional encontrada pela vida para responder a todas as exigências do meio (CANGUILHEM, 1990, p. 112 – 113).

 

Bem-estar diz respeito à capacidade do sujeito de normatizar a sua existência, infringindo normas que ele mesmo propôs e elegendo novas normas, diante das circunstâncias. Inversamente, o mal-estar caracteriza um estado de impotência do sujeito frente a um determinado contexto, onde há imposição de normas ao invés de produção ativa e própria. Mudam as situações e o organismo não é suficientemente capaz de determinar-se.

A norma é sempre uma ideia relativa. A pressão arterial pode ser patológica para uns e não ser para outros. A miopia não é tão perturbadora ao funcionário público quanto é para o motorista. Viver em terras muito altas pode ser nocivo a uns enquanto pode não ser a outros. Em suma, um quadro somente é “patológico” quando alguma “desvantagem” ou “impotência” impede de reinventar a vida. Saúde não é, essencialmente, algo somente sobre o fisiologismo, como também trata acerca da potencialidade de autonomia ou heteronomia do organismo diante de cada contexto em que se encontra. Existe saúde quando o sujeito se encontra disposto a agir, a fazer escolhas e a correr riscos nos contextos e situações que experimenta, criando sempre novas normas e tornando assim a sua vida mais segura e menos angustiante (CANGUILHEM, 1990, p. 158-160).

A vida é, pois, um processo dinâmico de interação entre os aspectos fisiológico, psíquico e coletivo da existência humana, sempre em transformação. A proposta canguilhemiana é, sem dúvida, desestabilizadora. Apela a uma concepção holística da saúde, como fenômeno no qual o fisiológico, o psíquico e o coletivo são interdependentes e suas relações são sempre abertas a transformações.

Considerando o papel da socialização na normatividade vital, chamamos a uma reflexão sobre a cultura como um campo crucial de promoção da saúde, inclusive na educação básica. Em uma época em que o convívio entre as culturas prolifera em termos nem sempre democráticos (BAUMAN, 2001; SANTOS, 2007), propomos que o conflito cultural tende a ser um dos mais claros gatilhos do mal-estar na atualidade. Pode não estar claro para muitas pessoas, mas a socialização é um fator de importância significativa na promoção da saúde, que torna necessária a adoção de alternativas sociais compatíveis com o bem-estar, inclusive na educação escolar.

Há tempos a diferença é um tópico presente do pensamento ocidental. Podemos referir as pautas relativistas de Montaigne (1980), no ensaio Dos Canibais, e na antropologia estrutural de Lévi-Strauss (1996). O debate, porém, se amplia somente na contemporaneidade, à luz de variados matizes teórico-conceituais interdisciplinares que se debruçam sobre tensões e embates acerca da justiça e da diversidade. Num universo muito vasto e controverso, que reúne discursos que vão desde os multiculturalismos liberais [Rawls, Habermas, Amartya Sen e outros] e socialistas [Santos, Hall e McLaren, por exemplo] até as chamadas “filosofias da diferença” [Foucault, Deleuze e Derrida, dentre outros] e aos pensadores atuais da biopolítica [Agamben, Zizek e outros], destacamos as contribuições do pensamento intercultural (BHABHA, 2010; SANTOS, 2007; TODOROV, 2012).

Temos como referência a ideia da interculturalidade como comunicação entre culturas possibilitada por aspectos que elas têm em comum. Algo como uma “tradução” ou “hermenêutica diatópica”, como proposto por Santos (2007), ou uma zona comum de comunicações entre culturas, conforme Bhabha (2010). Um espaço intermédio tornado possível mediante a existência de linguagens e valores humanísticos comuns, como a justiça e os direitos humanos, favorecendo discussões e encaminhamentos para uma vida melhor. Por exemplo, o que haveria de comum entre brancos e negros, o masculino e o feminino, o maduro e o jovem e o litoral e o sertão? O trabalho de tradução intercultural possibilitaria responder à pergunta, em proveito de uma sociedade mais plural e emancipatória.

 Em nosso ponto de vista, a interculturalidade teria muito, sim, a ver com a saúde nas diversas esferas sociais em que esta se processa. Sendo, conforme proposto, a saúde um processo de elaboração ativa de si em interação com o meio, dinâmicas pautadas pelo autoritarismo e a exclusão contribuiriam muito mais ao reprodutivismo, à passividade e à inação, alavancando mal-estar. De outra maneira, se construirmos espaços coletivos com liberdade, igualdade, pluralismo, inclusão e dialogicidade, poderíamos promover uma cultura propícia à autonomia e ao bem-estar.

Na escola básica, podemos favorecer a construção de contextos didáticos e curriculares interculturais. Numa instituição usualmente monocultural (FORQUIN, 1993; MCLAREN, 1997; VINCENT; LAHIRE; THIN, 1994), poderia emergir algo como uma terapêutica pedagógica de promoção da saúde, valorizando as contribuições de todos, e de suas pertenças culturais [étnico-raciais, de gênero, de comunidades de referência, de geração, de deficiência física, dentre outras que se possam enquadrar nesse campo]. Não somente uma prática educativa em que se aborde uma concepção holística de bem-estar como também um espaço e processo em que se possa produzir esse estado continuamente.

 Contudo, para que tal alternativa seja exequível, ressignificar a docência é importante. A práxis docente tradicional na escola básica tem sido pouco útil nessa direção, pois tende a ser orientada, em grande escala, por um modelo de qualificação profissional de base tecnicista e abstrata, pouco atenta às necessidades dos contextos escolares concretos.

Com efeito, um campo muito prolífico de estudos acadêmicos sobre a reflexividade crítica na formação de professores tem sido bastante influenciado pelas discussões de Schön (1983) acerca do desenvolvimento do senso reflexivo e investigativo dos trabalhadores sobre as suas próprias experiências laborais (GAUTHIER, 2006; GIROUX, 1997; NÓVOA, 1992; PIMENTA; GHEDIN, 2005; TARDIF, 2012). Nesse debate, um aspecto dessa perspectiva é largamente contestado: seu escasso compromisso social. Em diálogo com vertentes da teoria crítica, como o marxismo clássico e o gramsciano bem como o pensamento da Escola de Frankfurt, a corrente crítico-reflexiva pontua que esse movimento sempre deveria envolver um esforço de crítica às condições e implicações sociais da atividade docente.

Em termos gerais, a concepção crítico-reflexiva questiona dois pilares do paradigma tecnicista:

 

(1)  O abismo entre a teoria e a prática e

(2)   O desprestígio da parte pedagógica nos cursos de licenciatura em detrimento da parte específica.

 

Por um lado, o ensino é sempre uma prática contextualizada, de mobilização de saberes de acordo com situações, instituições e atores envolvidos. Por outro lado, garantir à parte pedagógica a sua desejável importância na formação do professor é o que permite estabelecer tal “ponte”.

O debate crítico-reflexivo convida-nos a admitir os professores como profissionais que continuamente desenvolvemdomínio sobre os instrumentos inerentes ao seu trabalho: os saberes de referência que lhe permitam mediar exitosamente as aprendizagens que se vislumbram no sistema escolar. Ferramentas pedagógicas, curriculares e escolares, situadas e construídas no tempo e no espaço das relações humanas, somente elaboradas nos contextos em que elas são empregadas e necessárias, ou seja, nas experiências docentes. Os chamados “saberes da docência” (TARDIF, 2012) cabem ser construídos no decorrer de trajetórias profissionais, em cada situação educativa vivenciada, em cada espaço educativo em que os professores se encontram. Para isso, o trabalho pode abastecer-se das contribuições de uma contínua prática investigativa e participativa nas escolas, desenhando séries de reflexões, experimentações e avaliações em torno de práticas didáticas e curriculares em variadas circunstâncias pedagógicas – caso da pesquisa que abordaremos mais adiante neste estudo.

Consideramos um recurso analítico frutífero neste debate o dualismo entre autonomia e heteronomia (Autor 1 e 2, 2020). Ou seja, a dicotomia entre duas normatividades vitais: uma norma elaborada pelo sujeito, que favorece seu bem-estar, e outra norma, imposta a ele em suas interações com os ambientes físico e social, que prejudica a sua saúde. Acreditamos que esse par perpassa todos os três eixos teórico-conceituais em que a discussão se estabelece: “saúde”, “interculturalidade” e “reflexividade crítica”.

Tanto em sua etimologia quanto num debate filosófico de longa data, os conceitos de autonomia e heteronomia respectivamente fazem alusão às ideias de independência e dependência. Em nosso caso, pensamos a dicotomia entre autonomia e heteronomia não como independência ou dependência em sentido estrito, mas como interdependência. Consideramos que, numa sociedade democrática, temos possibilidade de ser “autônomos”, tanto como sujeitos quanto como grupos socioculturais, quando determinamos as normas da nossa existência ao mesmo tempo em que elas são determinadas pelos outros na interação com eles. Quando pouco ou nada participamos dessa/nessa deliberação, somos heterônomos.

Organismo saudável seria aquele que exerce sua autonomia diante do ambiente. Por sua vez, a interculturalidade é um processo de emancipação plural, de governança partilhada por todos os grupos culturais. E a reflexividade crítica é uma radical negação ao tecnicismo, paradigma que produz a heteronomia do professor. Heteronomia esta que impossibilita a educação intercultural e, por sua vez, engendra mal-estar no espaço escolar, para todos os envolvidos. De outro modo, se pensarmos numa formação docente firmada num princípio reflexivo e crítico de autonomia profissional, as interações no espaço pedagógico escolar poderiam seguir-se na mesma direção, imprimindo efeitos benéficos à saúde de todos (NEVES; QUEIROZ, 2020).

Procuramos, assim, apreciar os achados preliminares da pesquisa que temos desenvolvido na educação escolar à luz destes enfoques teórico-conceituais. Antes, porém, cabe discutir a presença destas proposições na literatura nacional sobre a disciplina escolar de Ciências.

 

O debate acadêmico sobre a disciplina de Ciências, seus desafios e potencialidades

 

De outra parte, a pesquisa nacional voltada ao ensino de Ciências revela um cenário recheado de desafios e potencialidades em torno das questões da saúde, interculturalidade e formação docente crítico-reflexiva. Façamos, nesta seção, um breve levantamento histórico e analítico desse debate para apontar algumas proposições.

É no ideário das políticas internacionais de promoção da saúde (BUSS, 2003; ONU, 1986), nas últimas quatro décadas, que o conceito de saúde passa a ganhar espaço na escola básica brasileira, mediante a oferta de serviços de saúde e a proposição de diretrizes para o ensino e a aprendizagem.

No primeiro eixo, talvez o exemplo nacional mais proeminente seja o Programa Saúde na Escola, implantado no contexto da Política Nacional de Promoção da Saúde, a partir de 2006. Compreende-se a escola como lócus potencialmente saudável, por meio de ações diversificadas. Essas iniciativas pressupõem a construção de infraestruturas e recursos pessoais e profissionais necessários. No entanto, estes aspectos passam, inevitavelmente, pela construção de um currículo, ou seja, uma ideologia, cultura e política organizacional coerente com essa perspectiva de saúde. É este o desafio contemplado pelo segundo dos eixos elencados acima.

Pode-se considerar a disciplina “Programas de Saúde”, nos anos 1980, como um marco na construção de uma educação escolar em saúde no país. A partir da LDB de 1996, adotou-se uma abordagem transversal da saúde nos currículos escolares de ensino fundamental, especialmente nas Diretrizes Curriculares Nacionais – DCNEF e nos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNEF (BRASIL, 1999A e 1999B). Em debate com especialistas e professores de todo o país, os PCNEF desenvolvem os marcos oficiais norteadores de uma nova educação escolar em saúde, desta vez mais comprometida com uma concepção biopsicossocial de caráter democrático. O tópico é abordado no volume transversal “Saúde” (BRASIL, 1999A) e no tomo “Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias” (BRASIL, 1999B).

Nesse sentido, a saúde é um dos eixos temáticos do PCNEF, ao lado do ambiente e dos recursos tecnológicos. No documento, mais do que um fenômeno fisiológico, a saúde é compreendida como um fato holístico (físico, mental e social), no qual a estrutura biológica está em constante interação com o ambiente e com os artefatos materiais e sociais fabricados pelo ser humano. Multidimensionalidade e processualidade são os pilares de uma concepção educativa que tem como a sua meta principal “compreender o corpo humano como um todo integrado e a saúde como bem-estar físico, social e psíquico do indivíduo” (BRASIL, 1999b, p. 58). É significativa a veiculação nos PCNEF da ideia da socialização como um fator da saúde global do ser humano, que, nos termos do documento, pode assumir significados interculturais (BRASIL, 1999b, p. 51), exigindo um compromisso reflexivo dos cursos de licenciatura na área. 

Na prática, a educação em saúde tem sido admitida como uma questão muito mais cara ao ensino de Ciências Naturais do que a outras disciplinas escolares (BRASIL, 1999B; KRASILCHIK, 1987; 2000). A problemática da saúde entra nesse âmbito no bojo de uma reforma educacional que tentava romper com uma pedagogia tradicionalista, conteudista, que afirmava uma visão positivista da ciência, centrada na apreensão abstrata de teorias, conceitos e leis, prejudicando as aprendizagens. Frente às necessidades de uma educação cidadã, estava posto, no campo, um debate sobre o conhecimento escolar.

A discussão coloca, sem dúvida, um dilema diante do qual todo campo de estudos sobre uma disciplina escolar acaba por se deparar: o que compete à nossa disciplina na formação básica? O que, como, por que e para que devemos ensinar Ciências? Esse conjunto é representado por um conceito que gradualmente vai se tornando cada vez mais central no campo: a “alfabetização científica” (DELIZOICOV, ANGOTTI E PERNAMBUCO, 2007; KRASILCHIK E MARANDINO, 2004; MACEDO E LOPES, 2002; MARTÍNEZ-PÉREZ, 2012; SASSERON E CARVALHO, 2011).

Por alfabetização científica, diversos autores convergem à ideia de uma aprendizagem de conceitos e lógicas de pensamento biológico, físico e químico em favor da autonomia do estudante. Rejeitando o estereótipo da ciência como dogma relativo à academia, a alfabetização que a disciplina pode proporcionar consiste num processo educativo em que o aluno é introduzido ao universo científico e, com o passar do tempo, vai se apropriando de conceitos que o permitam a pensar e agir com criticidade e responsabilidade nas suas relações consigo próprio e com o meio ambiente, a biota e a comunidade humana.

A alfabetização científica se atina com a relação do educando com a linguagem das ciências naturais e sua pragmática nos contextos socioculturais onde é aplicável. Como a alfabetização na língua pátria ou estrangeira, consiste na apropriação de termos, conceitos, teorias e leis oriundas do pensamento científico, mas também a sua própria instrumentalização diante de problemas práticos. Em especial, esse ensino pode permitir a produção de explicações e argumentos críticos sobre os fenômenos naturais em sua relação com fenômenos histórico-sociais vivenciados (OSBORNE E PATTERSON, 2011), introduzindo os alunos no universo científico de maneira cidadã.

Acompanhando tal tendência, avança o pensamento construtivista no campo (MOREIRA, 2003) como meio proposto para se favorecer a autonomia dos estudantes nas aprendizagens científicas. Alia-se a isto uma percepção crescente dos pesquisadores da importância de se repensar a formação docente quanto a valores, saberes e práticas que poderiam envolver a disciplina de Ciências, apropriando-se de referenciais teóricos e metodológicos que possam subsidiar reflexões, proposições e experimentações plurais e construtivas. 

Duas alternativas nessa direção são o chamado modelo CTSA e as questões sociocientíficas (BRASIL, 1999B; SANTOS E MORTIMER, 2002). CTSA, sigla para o enlace entre ciência, tecnologia, sociedade e ambiente, objetiva:

 

[...] a emancipação dos sujeitos ao fazer com que eles problematizem a ciência e participem de seu questionamento público, engajando-se na construção de novas formas de vida e de relacionamento coletivo (MARTÍNEZ-PÉREZ, 2012, p. 55).

 

O paradigma CTSA vislumbra, como pauta para a qualificação de professores, uma educação dialógica e crítico-reflexiva, na contramão da racionalidade técnica, em torno de questões de referência, nas fronteiras entre os fatos sociais e naturais, quais sejam:

 

[...] energias alternativas, aquecimento global, poluição, transgênicos, armas nucleares e biológicas, produtos de beleza, clonagem, experimentação em animais, desenvolvimento de vacinas e medicamentos, uso de produtos químicos, efeitos adversos da utilização da telecomunicação, manipulação do genoma de seres vivos, manipulação de células-tronco, fertilização em vitro, entre outras (MARTÍNEZ-PÉREZ, 2012, p. 60, itálico do autor).

 

Não há dúvidas de que todas essas questões perpassam os problemas da “educação em saúde” e da “educação intercultural”, nos sentidos que adotamos. Ressaltam-se trabalhos sobre a saúde como algo que transcende o movimento fisiológico de um corpo humano específico, mas como uma interação desse organismo com outros corpos e o ambiente, físico e sociocultural (MOHR, 2002; MOHR E VENTURI, 2013). Por outro lado, alguns pesquisadores têm trazido à baila reflexões em torno de alternativas didáticas e curriculares que façam o ensino de Ciências mais receptivo à pluralidade e ao cruzamento entre culturas (FERREIRA, 2014). Como apontado acima, a vertente crítico-reflexiva tem influência importante sobre as discussões em torno da alfabetização científica, do modelo CTSA e das questões sociocientíficas. 

Sem ter pretendido traçar uma exaustiva revisão de literatura, afirmamos que, com efeito, um campo de estudos acadêmicos promissor tem crescido em torno da saúde, da interculturalidade e da reflexividade crítica. Mas, a despeito disso, o trato da confluência entre essas ideias nos parece ainda escasso na área.

O que poderia acontecer é uma ampliação de esforços entre as interfaces da saúde, cultura e formação de professores, procurando pontos de convergência entre elas que contribuam, ainda mais, com a construção do debate sobre a educação intercultural em saúde no campo. O ensino de Ciências tem significativa possibilidade de abranger também esta questão.

Dentre os vários caminhos à disposição, um que vislumbramos o uso didático das “imagens desestabilizadoras”, artifício proposto por Boaventura de Sousa Santos (1996): ideias, pessoas ou objetos cuja menção problematiza o conflito cultural, podendo gerar um sentimento de inconformismo perante a sua continuidade. Essas imagens desestabilizadoras funcionariam como um gatilho dos processos sociológicos por excelência, o estranhamento e a desnaturalização dos preconceitos culturais correntes nas práticas sociais. Cada imagem dessas pode disparar discussões sobre muitas questões sociocientíficas.

Exemplos de imagens desestabilizadoras úteis são diversos: filmes e fotografias de lixões habitados por comunidades abandonadas pelo Estado ou de crianças africanas desnutridas, gráficos demográficos e epidemiológicos, marcadores de risco à saúde mental, altos indicadores referentes a síndromes advindas do trabalho social, dentre outros. Imagens e atividades como tais poderiam colaborar à construção intercultural de um conceito de saúde biopsicossocial nas escolas, promovendo bem-estar. Elas poderiam representar um significativo incremento de autonomia de pensamento e julgamento sobre justiça ambiental, saúde coletiva, poluição e várias outras questões, favorecendo não só estados de bem-estar como a pauta curricular atual da disciplina de Ciências. 

Pensar a formação de professores a partir desses princípios pode se revelar como um programa de valorização do aprimoramento pessoal e profissional do professorado e das instituições escolares, possibilitando experimentações e reflexões por um ensino de Ciências plural e uma sociedade melhor. Defendemos uma perspectiva que poderia ser ainda mais considerada pelo debate acadêmico e a escola básica democrática, especialmente no ensino de Ciências.  

 

 

Desenhando uma proposta investigativa na escola básica

 

Frente ao exposto, relatamos os aspectos estruturantes e o andamento de uma pesquisa que temos desenvolvido na escola básica. A iniciativa decorre de um estudo exploratório, abordado num artigo recentemente publicado (NEVES; QUEIROZ, 2020), que, além de propiciar reflexões críticas sobre os instrumentos e as finalidades da docência no ensino de Ciências, permitiu promover construções interculturais de conceitos e condutas voltadas à saúde física, mental e social numa escola da rede pública na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

A pesquisa é norteada pela seguinte pergunta: Como sujeitos docentes podem desenvolver ideias crítico-reflexivas em favor da promoção da educação intercultural em saúde? Diante da questão, propomos que a realização de dinâmicas dialógicas e práticas de ensino interculturais realizadas em conjunto com os docentes pode contribuir significativamente à construção de identidades profissionais comprometidas com a reflexividade crítica e a interculturalidade na educação em saúde da/na escola básica, em outras palavras com a educação intercultural em saúde. Como objetivo geral, a pesquisa visa analisar os efeitos do desenvolvimento de dinâmicas dialógicas interculturais nas ideias sobre a educação intercultural em saúde cultivadas por professores de Ciências do ensino fundamental de ambos os segmentos.

Para tanto, empregamos um desenho de pesquisa-ação organizado em etapas de diagnóstico, intervenção e avaliação (ELLIOTT, 1991), conforme a Figura 1: 

Figura 1: O desenho metodológico da pesquisa                   

 Fase   
Avaliativa
,Fase
Diagnóstica
,Fase 
Interventiva
 

 

 


Cada uma dessas etapas é empreendida visando alcançar um ou mais objetivos específicos da pesquisa, para isso utilizando estratégias metodológicas variadas (QUIVY; MARQUET; CAMPENHOUDT, 2017), segundo o Quadro 1:

 

Quadro 1: Os objetivos e as etapas da pesquisa

Etapa

Objetivo

Estratégia/s

 

 

 

Diagnóstica

 

Identificar as ideias que professores de Ciências de duas unidades de uma escola federal situada no município do Rio de Janeiro constroem acerca da educação intercultural em saúde.

Triangulação de dados

Entrevistas semiestruturadas

Questionários de pré-teste

Observações diretas

Análise documental

 

 

 

 

Interventiva

Planejar a realização de grupos focais a partir dos achados obtidos na etapa diagnóstica da pesquisa.

 

 

 

 

Grupos focais

Empreender grupos focais conjuntamente com os sujeitos participantes nas unidades selecionadas.

 

 

Avaliativa

Avaliar os resultados obtidos nos grupos focais frente aos achados alcançados na etapa diagnóstica da pesquisa.

 

 

Questionários de pós-teste

Fonte: Os autores.

 

Numa perspectiva linear, na primeira etapa propõe-se um diagnóstico das ideias elaboradas pelos professores, através de uma triangulação de dados empíricos (entrevistas com gestores, questionários aplicados a professores e observações diretas de espaços e processos pedagógicos), documentais e teórico-conceituais. Nessa diagnose, a coleta de dados empíricos é guiada por roteiros que tratam de aspectos referentes às experiências profissionais dos participantes, às suas concepções de saúde, educação em saúde, cultura e educação intercultural, bem como à construção de currículos e práticas de ensino. Num sentido não linear, as ações interventivas são desencadeadas com base no diagnóstico, enquanto esta mesma análise vai sendo retroalimentada com dados e informações surgidas nos grupos focais, mediante observações de campo e práticas de ensino.

Esta pesquisa tem acontecido em duas unidades de uma escola federal respectivamente situadas em dois bairros da capital fluminense. Participam a Chefe de Departamento de Ciências no primeiro e no segundo segmentos do ensino fundamental, Coordenadores pedagógicos de área e professores que ministrem a disciplina, tendo eles vínculos estatutário ou temporário com a escola, ficando excluídos quaisquer sujeitos que não atendam aos critérios. Nesse sentido, participam da pesquisa ao todo doze sujeitos – a Chefe Departamental, dois Coordenadores, quatro professoras do primeiro segmento (com vínculo temporário e formação em Pedagogia) e cinco professores do segundo segmento (com vínculo estatutário e formação em Ciências Biológicas).

Após longas rodadas de negociações, obteve-se o consentimento das autoridades competentes e dos participantes. A coleta de dados foi interrompida devido à pandemia da COVID-19sem ter havido ainda observações de aulas. Porém, o recomeço dos trabalhos de campo foi autorizado em março de 2021.

A base de dados obtidos revela recorrências significativas quanto a questões epistemológicas e pedagógicas de saúde, sociedade e cultura no ensino de Ciências, nos sentidos que propomos nesta reflexão. Sendo assim, nada melhor e mais apropriado do que dar voz e escuta aos participantes, examinando as entrevistas, os questionários, o volume de Ciências dos PCNEF e a versão mais recente do Projeto Político-Pedagógico (PPP) da escola, editada em 2017.

Examinando os dados, as primeiras recorrências importantes são as concepções de saúde identificadas. A seção do PPP voltada ao ensino de Ciências anos iniciais declara como um de seus objetivos [...]compreender a saúde como valor pessoal e social, articulando-se expressamente à argumentação dos PCNEF (Brasil, 1999b) quanto à saúde. No que tange aos anos finais, o documento firma o compromisso de “identificar fenômenos naturais e estabelecer relações, identificar padrões e transformações” e “[...] compreender o conhecimento científico e o tecnológico como resultados de uma construção humana, inseridos em um processo histórico e social”. A seção, contudo, não registra explicitamente as palavras “saúde” ou “bem-estar”, como nos PCNEF, abrindo caminho a interpretações diversas. 

Debatendo sobre o conceito de saúde, a Chefe Departamental declara a saúde como “um processo físico, mental e social”. Concordando com esse ponto de vista, a Coordenadora pedagógica de Ciências nos anos iniciais afirma:

 

“A saúde não é só doença, ausência de doença! [...] É você estar integralmente completo, ‘bem’ [...] Ah, mas a higiene é só sua? Não, é do ambiente. Mas as outras questões do ambiente podem interferir na sua saúde? Podem. A saúde é só ficar doente no hospital, com febre? Não. Questões que podem te abalar emocionalmente, de te tirar do eixo [...]” (Coordenadora pedagógica, anos iniciais)

 

 

            Por outro lado, para o Coordenador da disciplina de Ciências nos anos finais:

 

“Saúde é uma coisa muito mais ampla do que só falar de doenças. Mas quando a gente fala na parte de Ciências, a gente liga à questão da doença. Quais são as doenças transmitidas pelo ar, pela água? Qual protozoário causa tal doença? Qual platelminto causa tal doença? Como a gente pode combater? Quem são os vetores? [...]” (Coordenador pedagógico, anos finais)

 

Não que o Coordenador restrinja o fenômeno “saúde” à dinâmica fisiológica do organismo, tratando como “ausência de doença”, mas que a abordagem holística do fenômeno, como bem-estar físico, mental e social, não lhe parece uma atribuição da disciplina de Ciências. Coerentemente com o que afirmara, esse professor enxerga a saúde como um tópico sazonal na disciplina de Ciências, reservado a períodos específicos da grade curricular que tratam das doenças. Vejamos o seguinte excerto:

“[...] o ensino de saúde no ensino de Ciências fica muito restrito no 6º ano [...] a gente fala de atmosfera, solo, água, hidrosfera. A gente fala de doenças relacionadas a essas áreas. Doenças transmitidas pelo ar, pela água, por alimentos contaminados [...] No 6° ano tem isso. No 7°, aqui a gente nem fala tanto, a gente teve que “enxugar” o conteúdo porque tava muito grande, se fala principalmente de verminoses porque no 7° ano eles veem seres vivos. Então, quando você fala de algum grupo de seres vivos, você acaba falando da doença. Mas sempre um pouco como “coadjuvante”, não é o assunto principal. No 8°, você tem problemas relacionados a sistema digestório [...] A questão é falar sobre as doenças. E no nono ano não se fala de nada porque é física e química, não se fala de questões de saúde” (Coordenador, pedagógico, anos finais).

 

Alguém poderia objetar que essa oposição de ideias seria um reflexo deum entendimento firmado e compartilhado pelas duas equipes pedagógicas quanto aos PCNEF. Entre os professores envolvidos no segundo segmento do ensino fundamental, composto por biólogos em sua totalidade, o documento tende a ser pouco considerado como um referencial ao ensino. O grupo que trata do primeiro segmento, constituído por uma bióloga e quatro pedagogas, pensa numa outra direção, considerando os PCNEF contributivos à prática docente em Ciências.

Perguntada sobre o grau de influência dos PCNEF sobre a proposta pedagógica que desenvolvem para os anos finais do ensino fundamental, a Chefe Departamental afirmou que é “muito baixo”, ponto de vista partilhado pelo Coordenador, segundo o qual tal documento, em suas palavras, parece “posto de lado”. A Coordenadora pedagógica, no entanto, considera que o PPP “dialoga muito com os PCNEF”, que há evidentes transposições de ideias entre os documentos. De fato, como já afirmado, o teor do PPP quanto ao conceito de saúde nas seções de Ciências nos dois segmentos do ensino fundamental parece indicar que, na seção referente ao ensino de Ciências nos anos iniciais, a abordagem do conceito de saúde como bem-estar físico, mental e social é muito mais evidente do que na seção relativa a essa disciplina nos anos finais.

Entretanto, as respostas aos questionários revelaram divergências dentro das equipes quanto ao conceito de saúde. Houve casos de professores dos anos iniciais que não identificaram a saúde numa chave holística (CANGUILHEM, 1990) e docentes nos anos finais que consideram o fenômeno nesse sentido. Por isso, acreditamos ser mais viável entender esses pontos de vista não como tendências partilhadas pelas duas equipes pedagógicas, mas como juízos de algumas pessoas em particular. Será preciso aprofundar os enfoques diagnósticos mediante observações de aulas para alcançar uma perspectiva mais acurada.

Prosseguindo nas análises, identificamos que o PPP da escola tem compatibilidade com o modelo CTSA (MARTÍNEZ-PÉREZ, 2012), comprometendo-se com uma alfabetização científica voltada à ação humana autônoma em seu ambiente social. Nos anos finais, por exemplo, são ressaltados o “domínio e uso dos conhecimentos científicos nas diferentes esferas da vida” e “relações existentes entre ciência, tecnologia, sociedade e meio-ambiente”. Nos anos iniciais, são evidentes esses enlaces através de fragmentos como “refletir sobre a ética implícita na relação entre ciências, sociedade e tecnologia”, “admitir a importância dos processos de comunicação” e “buscar a interação entre os conhecimentos escolares e os saberes cotidianos, valorizando diferentes práticas sociais e tornando a ciência mais próxima da realidade das crianças”.

De modo análogo ao modelo CTSA e ao disposto no PPP, os depoimentos coligidos são unânimes em exaltar a importância da contextualização dos conteúdos de ensino de Ciências por meio de métodos construtivistas de ensino, a exemplo dos seguintes depoimentos:

 

“Vou citar um projeto [...] Uma fruta na mochila, por exemplo [...] Você pode ter um horta e o aluno faz uma ligação entre aquele alimento e a alimentação dele, para que serve isso, quem planta aquele alimento [...] se você extrapola e faz uma ligação: esse alimento plantado é utilizado para uma alimentação saudável, mas, ao mesmo tempo, o que a gente faz com o resíduo desse alimento [...] Então, aí você vai fazendo todo um link[sic] que a alimentação não vira uma coisa “estática” como: “ah, preciso comer vitaminas, proteínas e sais minerais” (Professora, anos finais).

“Digamos assim, os alunos estão vendo agora sistema nervoso, sistema locomotor: eu sei que eu tenho que “dar” as questões que estão lá, mas eu não vou abordar isso de forma contextualizada? [...] a gente não fala: “o nome do osso é isso” [...] “ah os ossos isso” [...] ossos chatos, longos, curtos, as vértebras, as caixas que protegem, caixa toráxica, o crânio [...] mas, como a gente pode cuidar dos ossos? Eu trabalhei com eles o peso da mochila [...] As mochilas pesadas que eles carregam pra cima e pra baixo nessas escadas [...] isso é saúde.[...]” (Professora, anos iniciais).

           

Em ambas as unidades, os participantes declararam como necessária a proposição de inovações didáticas que possam logrartal contextualização diversificando espaços, tempos e linguagens educativas, utilizando-se, por exemplo, de aulas-passeio, incentivadas pela Direção da escola. Como declarou um professor:

“Em relação à aprendizagem do aluno, eu acho o trabalho de campo fundamental. Uma coisa é ele ver uma estação de tratamento de esgoto num Power Point[sic], num livro, que seja num filme, num vídeo, a outra coisa é ele estar lá, sentir o cheiro, ele vai perceber aquilo com vários sentidos que ele não percebe em sala de aula.” (Professor, Anos finais)

 

Porém, essas alternativas de nada adiantam se a avaliação não for compatível com essa filosofia educativa. Quanto a este ponto, identificou-se outro consenso: a escola adota uma metodologia composta por uma parte fixa e outra flexível, a critério de cada professor. Sessenta por cento da nota em cada bimestre corresponde a uma prova individual, sem consulta, aplicada por todos os professores dos Departamentos. Os outros quarenta por cento abrem possibilidade a uma pluralidade de instrumentos de avaliação. Nesse espaço, os participantes concordaram que o clássico recurso da prova escrita limita a criticidade e a criatividade do aluno, condicionando seus estudos somente a dar respostas consideradas “corretas” e “desejáveis” pelo professor. Segundo muitos dos participantes, trabalhos em grupo no laboratório, testes com consulta e relatórios de passeios pedagógicos foram citados como alternativas capazes de incentivar construções contextualizadas de conhecimentos científicos com autonomia.

A escola onde estamos desenvolvendo o estudo é considerada publicamente como um estabelecimento de excelência pedagógica, sendo o ingresso de seus estudantes muito desejado por famílias de diferentes classes sociais. Questionada sobre o perfil socioeconômico de seu alunado, a Coordenadora pedagógica dos anos iniciais, por exemplo, declara: “[...] aqui a gente recebe alunos com embasamento, poder aquisitivo maior e às vezes apoio da família, e alunos que vem de comunidades e que não tem apoio da família [...] Não tem aqui uma comunidade discente muito homogênea não[...]” (Coordenadora, Anos iniciais). A esse respeito, a Chefe Departamental pontua: “[...] nós temos um tipo de aluno aqui que entra por sorteio, às vezes ele tem uma renda baixa que, de um modo geral coincide, com uma característica de formação cultural menos favorecida [...]”.

Porém, ao mesmo tempo em que os participantes falam de “contextualização” e caracterizam seus estudantes em termos socioeconômicos outras identidades culturais ficam silenciadas e pouco abordadas em seus depoimentos. Não que o nível socioeconômico não possa ser considerado um aspecto “cultural”, como uma leitura bourdiesiana poderia sugerir (BOURDIEU, 1994), mas o conceito de cultura envolve um rol muito mais amplo de pertenças. Dois questionários fizeram referências breves à existência de “conflitos de gênero entre alunos e alunas” e um questionário mencionou “diferenças de comunidades locais e regionais” nas turmas.

Paralelamente, a Direção da escola admite ostensivamente, dentre seus princípios político-pedagógicos e algumas de suas iniciativas práticas, o reconhecimento cultural, a inclusão e a interculturalidade. Por exemplo, em duas jornadas pedagógicas de que participamos na escola em 2019, cada uma delas ocorrida em uma das unidades selecionadas, observamos diversas ações pedagógicas de valorização e diálogo entre identidades culturais, tais como dinâmicas e oficinas pedagógicas, bem como trabalhos artísticos afixados em murais ou expostos nos pátios.

A nosso juízo, os participantes concordam sobre a importância de um ensino contextualizado, nos termos do modelo CTSA, mas sem clareza efetiva sobre as variadas identidades culturais que a compõem. Se considerarmos os depoimentos e o PPP, a cultura como um leque amplo de identidades construídas no tecido social ainda não parece ser uma referência nesse campo disciplinar, possivelmente graças ao desenho de sua formação profissional. Está certo que um debate como esse não tem repercussão nas ciências naturais acadêmicas e ficaria, assim, na responsabilidade da qualificação pedagógica do professor (MARTÍNEZ-PÉREZ, 2012). Mas, como temos insistido, essa formação tende a ser tecnicista, pouco vinculada à realidade concreta da escola onde o profissional vai atuar, uma instituição onde culturas estão em relação, muitas vezes conflituosa – como pudemos observar. Mesmo com todo o discurso favorável à autonomia do educando que se identificou no campo de pesquisa, esse mesmo discurso parece ainda não ter um encaixe claro e prático no problema da gestão dialógica da diversidade cultural na escola básica.

 Em síntese, tanto a apropriação da saúde como produção de um bem-estar físico, mental e social como referencial quanto à interculturalidade como um processo pelo qual se podem construir práticas de interdependência entre culturas são importantes necessidades identificadas nos dados analisados. Se não tocarmos nessas questões, como produzir as normas de nosso bem-estar numa construção coletiva plural como é a escola? Precisamos pensar em meios de favorecer autonomia nas práticas de ensino de Ciências. Nesse âmbito, vislumbramos a etapa interventiva da pesquisa como uma proposta de formação profissional docente voltada a um ensino situado no inter, no encontro entre sujeitos e na interdependência entre seus múltiplos referenciais culturais.

Procuraremos alavancar nos grupos focais leituras, discussões e planos de aula que respaldem práticas pedagógicas baseadas na interdependência, na produção interativa das normas de nosso bem-estar no ensino de Ciências mediante processos interculturais e crítico-reflexivos. Pretendemos desenhar nos encontros a ideia e a proposição de uma educação intercultural em saúde que os participantes possam colocar em prática no cotidiano escolar.

O modelo CTSA tem muito a abastecer tal proposta, configurando um canal de alfabetização científica e diálogo entre saberes científicos e saberes e experiências dos estudantes em torno de questões sociocientíficas – QSCs e imagens desestabilizadoras. Por exemplo, a pandemia pode suscitar questões e imagens como a epidemia enquanto um fato biopsicossocial, as vacinas e seu confronto com remédios e curas alternativas, o isolamento social, bioética, discursos e tecnologias biomédicas, dentre outras, contribuindo assim com a construção de um senso crítico sobre esta crise sanitária que persiste. E o ciclo de planejamento, experimentação e avaliação contínua das práticas, característico do paradigma crítico-reflexivo de formação docente, parece-nos o meio mais eficaz de operacionalizar uma proposta como essa.

            Em que pese a pausa devido à pandemia, os resultados preliminares suscitam recorrências e proposições de muito valor e pertença à construção de uma educação intercultural em saúde na disciplina de Ciências. Proposições cuja concretude no campo, claro, dependerá da colaboração dos participantes nos movimentos de pesquisa-ação que pretendemos efetuar neste ano.

Conclusões Provisórias

Em suma, este artigo procurou afirmar a educação intercultural em saúde como um debate desejável à disciplina escolar de Ciências.Procurou estabelecer uma relação dialética entre o vislumbre teórico de uma educação intercultural em saúde e o estado presente desta discussão no campo do ensino de Ciências da/na escola básica. Nesse processo, a tese foi representada pelos apontamentos teórico-conceituais registrados sobre saúde, interculturalidade e reflexividade crítica. A revisão de literatura empreendida exerceu a função de antítese. O relato de uma pesquisa em andamento na escola básica emergiu como a síntese dos movimentos anteriores do artigo.

Nosso posicionamento teórico-prático é por uma docência que seja capacitada para rearranjar o ensino de Ciências como espaço e processoque possa favorecer diálogos interculturaise estados de bem-estar.Admitimos, nesse sentido, como viável uma formação crítico-reflexiva que possa ajudar o professor a compreender seu trabalho como exercício autônomo e coletivo de pesquisa em cooperação com a academia, reconfigurando a didática e o currículo escolar como campos de construção de significados e práticas interculturais e saudáveis.

Atualmente, verifica-se uma reincidência de políticas e estudos acadêmicos sobre a educação em saúde na escola básica frente ao patente desafio representado pela promoção da saúde. Por sua vez, a pesquisa nacional acerca do ensino de Ciências tem-se tornado cada vez mais prolífica, abordando as problemáticas da saúde, da interculturalidade e da capacitação crítico-reflexiva dos professores. Contudo, quando se trata de reunir essas pautas num único esforço investigativo e propostitivo estamos diante de uma agenda ainda incipiente.

No entanto, a educação intercultural em saúde pode tornar-se um enfoque ainda mais explorado pela literatura acadêmica e o sistema escolar no que se refere à disciplina de Ciências do/no ensino fundamental, em iniciativas individuais e coletivas. Ainda que as mudanças sejam lentas e graduais, sobretudo em tempos adversos como estes, esta é uma proposta que tem potencialidade de reunir escola, academia, vida e sociedade. Nossos esforços investigativos seguem-se nessa direção.

 

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