A documentação pedagógica como ferramenta para dar visibilidade à criança que existe no sujeito-infantil tido como anormal na educação infantil[1]

Pedagogical documentation as a tool to give visibility to children considered abnormal in childhood education

 

Circe Mara Marques

Professora doutora na Universidade Comunitária da Região de Chapecó. Chapecó, Santa Catarina, Brasil.

circemaramarques@gmail.com - https://orcid.org/0000-0002-2137-4760

 

Vera Lúcia Simão

Professora doutora na Universidade Regional de Blumenau, Blumenau, Santa Catarina, Brasil e Universidade Alto Vale do Rio de Peixe, Caçador, Santa Catarina, Brasil

vsimao2@gmail.com - https://orcid.org/0000-0001-6169-0242

 

Marlene Zwierewicz

Professora doutora na Universidade Alto Vale do Rio de Peixe. Caçador, Santa Catarina, Brasil.

marlenezwie@yahoo.com.br - http://orcid.org/0000-0002-5840-1136

 

Recebido em 19 de julho de 2020

Aprovado em 20 de maio de 2021

Publicado em xx de abril de 2022

 

RESUMO

Esta pesquisa-ação trata da documentação pedagógica dos processos de inclusão na educação infantil. A obrigatoriedade de matrícula aos 4 anos, a inclusão das crianças com deficiência na escola regular e a expedição de documento escolar que ateste os processos de desenvolvimento e aprendizagem são determinações legais que impactam a educação infantil. Nesse sentido, a questão mobilizadora do estudo é saber quais verdades são produzidas sobre as crianças com deficiência na documentação pedagógica na educação infantil. Buscou-se conhecer os propósitos e modos como os professores documentam os processos de inclusão para problematizar os efeitos dessa documentação na produção do sujeito infantil a/normal. A metodologia consistiu na realização de observações e rodas de conversa com oito professoras de escolas públicas de educação infantil. A análise da documentação produzida pelas participantes acerca dos processos de inclusão transitou no campo teórico da Sociologia da Infância e estudos foucaultianos. Os resultados mostraram que os registros das experiências vividas pelas crianças com deficiência no contexto escolar são, de certo modo, negligenciados e/ou produzidos em momentos pontuais, destacando as necessidades e dificuldades em detrimento dos direitos e aprendizagens. A pesquisa deu visibilidade às possibilidades da formação continuada de professores em um diálogo entre a universidade e as escolas públicas para produzir outros modos de ser professor/a de crianças com deficiência e, também, outros modos de incluí-las na educação infantil. O estudo pode inspirar outros professores a romper a díade normal/anormal e aprender a conhecer a criança que habita no sujeito tido como anormal.

Palavras-chave: Documentação pedagógica; Educação infantil; Educação inclusiva.

 

ABSTRACT

This action research deals with the pedagogical documentation regarding the inclusion processes in early childhood education. Mandatory enrollment at the age of 4, the inclusion of children with disabilities in regular school, and the issuing of a school document attesting to the development and learning processes are legal determinations that impact early childhood education. In this sense, the mobilizing question of the study is to know what truths are produced about children with disabilities in pedagogical documentation in early childhood education. We sought to know the purposes and ways in which teachers document the inclusion processes to discuss the effects of this documentation on the production of a / normal child. The methodology consisted of conducting observations and conversations with eight teachers from public early childhood education schools. The analysis of the documentation produced by the participants about the inclusion processes was carried out in the theoretical field of Childhood Sociology and Foucault studies. The results showed that the records of the experiences of children with disabilities in the school context are, in a way, neglected and / or produced in specific moments, highlighting the needs and difficulties to the detriment of rights and learning. The research gave visibility to the possibilities of continuing teacher education, in a dialogue between the university and public schools, to produce other ways of being a teacher of children with disabilities and, also, other ways of including them in early childhood education. The study can inspire other teachers to break the normal/abnormal dyad and learn to know the child who lives in the subject considered to be abnormal.

Keywords: Pedagogical documentation; Child education; Inclusive education.

Introdução

Diversos estudos mostram o quanto as pessoas com deficiência estiveram historicamente excluídas do/no contexto educacional (BEYER, 2013; MANTOAN, 2003; MAZZOTTA, 2003; PADILHA, 2004). Desde a aprovação da Constituição Federal de 1988, a Educação como Direito de Todos é uma meta social, política e educacional que vem sendo perseguida na sociedade brasileira. Contudo, convém lançar um olhar sobre o modo como as práticas escolares apenas disfarçam marcas históricas da exclusão nas diferentes etapas da educação básica. O olhar apresentado neste estudo é feito na perspectiva da Sociologia da Infância e estudos pós-modernos.

Lasta (2009) considera que as políticas públicas, instituídas em diferentes momentos cronológicos, alteram as nomenclaturas, mas não mudam a lógica binária normal x anormal. Também Thoma (2004, p. 3) mostra que as formas de nomear os cegos, os surdos, os cadeirantes, os deficientes físicos, etc. “[...] são pensadas dentro da lógica binária de normalidade/anormalidade, de inclusão/exclusão.”. Na obra “Os Anormais”, Foucault (2002) desnaturaliza o caráter natural da díade normal/anormal e mostra, a partir de estudos genealógicos, que tal díade é uma construção discursiva moderna.

Este estudo trata mais especificamente de práticas de inclusão no contexto da educação infantil. A Lei n.º 12.796, de 4 de abril de 2013, que atualizou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), Lei n.º 9.394/96, estabelece a obrigatoriedade de matrícula na educação infantil a partir dos 4 anos e determina a expedição, por parte das escolas, de documento que ateste os processos de desenvolvimento e aprendizagem da criança (BRASIL, 2013). Considerando essas normativas, a questão mobilizadora do estudo consistiu em saber quais verdades são produzidas sobre as crianças tidas como anormais na documentação pedagógica elaborada nas escolas de educação infantil.

Entendemos que investigar/problematizar a documentação pedagógica dos processos de inclusão na educação infantil, em um diálogo entre as universidades e as Secretarias Municipais de Educação (SME), é relevante no momento atual. Esta pesquisa-ação buscou intervir nos modos como professores que cuidam e educam as crianças de 4 e 5 anos com deficiência documentam os processos de inclusão, bem como problematizar os efeitos dessa documentação na produção do sujeito infantil a/normal.

A pesquisa foi de abordagem qualitativa, do tipo pesquisa-ação, e desenvolvida em dois municípios da Região Sul do Brasil, sendo um no Rio Grande do Sul e o outro em Santa Catarina, contudo, aqui nos atemos a apresentar os dados de apenas um desses municípios, o localizado na Região Oeste de Santa Catarina. Participaram da pesquisa desenvolvida em Santa Catarina, três profissionais de apoio e cinco professoras de educação infantil que possuem crianças com deficiência matriculadas em seus grupos de alunos.

A documentação dos processos de inclusão, realizadas pelas participantes, constituiu o corpus da investigação. Os dados foram produzidos a partir de rodas de conversa, escritas e desenhos feitos pelas participantes da pesquisa; e de registros, por meio de fotos e vídeos, das interações e brincadeiras das crianças com deficiência no ambiente escolar.

A pesquisa deu visibilidade às possibilidades da formação continuada de professores, em um diálogo entre a universidade e as redes de ensino de educação básica, para produzir outros modos de ser professor/a de crianças com deficiência e de se incluir essas crianças na educação infantil.

A educação inclusiva na educação infantil

Embora se reconheça que a educação como direito das crianças vem conquistando espaço na agenda nacional, a sociedade brasileira ainda não universalizou o acesso, tampouco a qualidade na oferta. Silva e Silva (2021, p. 17) alertam que:

 

Há um longo caminho para que as metas educacionais sejam atingidas pelo Brasil, pois o acesso à educação não foi universalizado. E o fornecimento de uma educação de qualidade para todos, diante da realidade, parece ser utópico e inalcançável, mas vemos de forma positiva a existência de um microssistema em que a criança seja considerada o centro para a fomentação dos direitos humanos e em que é considerada como sujeito de direitos.

           

Com relação ao atendimento das crianças com deficiência nas escolas de educação infantil, as atuais Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI), Resolução n.º 5, de 17 de dezembro de 2009, apontam em seu art. 8º, inc. VII, que as propostas pedagógicas devem promover condições para o trabalho coletivo e para organização de materiais, espaços e tempos que assegurem “[...] a acessibilidade de espaços, materiais, objetos, brinquedos e instruções para as crianças com deficiência, transtornos globais de desenvolvimento e altas habilidades/superdotação” (BRASIL, 2009).

A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, elaborado pela Secretaria de Educação Especial do Ministério da Educação, recomendou que o Atendimento Educacional Especializado (AEE) para crianças do zero aos três anos seja ofertado na forma de estimulação precoce para otimizar o processo de desenvolvimento e aprendizagem das crianças com deficiência (BRASIL, 2010). O referido documento também orienta que esse atendimento seja realizado no turno inverso ao escolar.

A Lei n.º 12.796/2013 alterou a LDBEN para dispor sobre a formação dos profissionais da educação e dar outras providências. Conforme o art. 4º, inc. III, fica garantido:

 

[...] atendimento educacional especializado gratuito aos educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, transversal a todos os níveis, etapas e modalidades, preferencialmente na rede regular de ensino; [...] (BRASIL, 2013).

 

Outra inovação que impacta a educação infantil refere-se a determinação de “[...] expedição de documentação que permita atestar os processos de desenvolvimento e aprendizagem da criança.” (BRASIL, 2013), consoante art. 31, inc. V.

Estudos de Marques (2013) mostraram que o paradigma da Psicologia do Desenvolvimento funciona como uma verdade sobre o que é ser criança em cada estágio de desenvolvimento nas propostas pedagógicas de muitas escolas infantis. Esse paradigma coloca as crianças, tidas como anormais, em desvantagem em relação às consideradas normais, uma vez que elas, de algum modo, distanciam-se do modelo tido como padrão. Bujes (2003, p. 10) afirma que desde a modernidade as crianças “[...] passaram a ser medidas, calculadas, categorizadas, descritas, ordenadas e organizadas não só do ponto de vista estatístico, mas também pela produção crescente de conhecimento sobre elas e sobre os fenômenos de sua vida”.

A ideia científica e normatizada do desenvolvimento infantil, apoiada na perspectiva da Biologia, da Psicologia e da Psiquiatria, é recente e costumeira na sociedade contemporânea. Podemos inferir, com isso, o quanto foi universalizando-se a ideia de que o conhecimento acerca de cada uma das etapas do desenvolvimento infantil fortaleceria a eficácia da Pedagogia. Com a propagação dessa episteme, rapidamente os duvidosos questionários foram dando espaço aos rigorosos testes científicos, feitos em laboratórios, culminando com o surgimento de uma ciência do desenvolvimento infantil.

Foucault (1986) rechaça essas teorias totalizantes de explicação da realidade social, bem como a visão de progresso científico e de superioridade do presente em relação ao passado. Ele desconstrói a ideia de verdade unívoca e aponta a verdade como uma produção histórica e social. Segundo Bujes (2000, p. 27),

 

Lançar um olhar sobre as crianças, circunscrever o âmbito das experiências que lhes são próprias em cada idade, descrever os cuidados de que elas devem ser objeto, estabelecer critérios para julgar de seu desenvolvimento sadio, de sua normalidade, das operações necessárias para garantir sua transformação em cidadãos úteis e ajustados à ordem social e econômica vigente tornaram-se preocupações sociais relevantes apenas muito recentemente.

 

Conhecer tanto quanto possível as crianças e institucionalizá-las desde muito cedo faz parte da lógica de governo das crianças – e a escola de educação infantil está a esse favor. Governo que, segundo Foucault (1997, p. 10), deve ser entendido como “[...] técnicas e procedimentos destinados a dirigir a conduta dos homens: governo das crianças, governo das almas e/ou das consciências, governo de uma casa, de um Estado ou de si mesmo.”.

Na lógica moderna, para prevenir o risco social e garantir a produtividade dos sujeitos, é preciso governar as crianças, inclusive as tidas como anormais. Um dos desafios é provocar inquietações no pensamento dos profissionais que atuam na educação infantil, de modo que transponham a “muralha” da Psicologia do Desenvolvimento para que possam olhar para as crianças com deficiência a partir de outras lentes, como aquelas advindas dos estudos Pós-Modernos e da Sociologia da Infância. Trata-se de garantir que na educação infantil todas as crianças vivam uma “[...] ética de um encontro [...] que emana do respeito pela criança e pelo reconhecimento da diferença e da multiplicidade e que luta por evitar transformar o Outro no mesmo que eu.” (DAHLBERG; MOSS; PENCE, 2003, p. 204). Todas as crianças têm o direito de serem cuidadas e educadas para que cada uma possa ser o melhor daquilo que é.

Na contramão desse direito, estudos de Bello, Capellini e Ribeiro (2017) mostram que muitos professores ainda apresentam uma visão homogeneizante, compreendendo a inclusão como mero acesso das crianças com deficiência à escola. Esses pesquisadores alertam que tal “[...] concepção desconsidera as diferenças individuais de cada aluno, os vê como uma massa de pessoas iguais, na qual os alunos com deficiência se sobressaem por serem os únicos ‘diferentes’” (BELLO; CAPELLINI; RIBEIRO, 2017, p. 702, grifo dos autores).

Documentação pedagógica na educação infantil

De acordo com as DCNEI, em seu art. 10, “As instituições de Educação Infantil devem criar procedimentos para acompanhamento do trabalho pedagógico e para avaliação do desenvolvimento das crianças, sem objetivo de seleção, promoção ou classificação [...]” (BRASIL, 2009). Esses procedimentos devem garantir observação, utilização de múltiplos registros, continuidade dos processos de aprendizagem, documentação que dê visibilidade aos processos de desenvolvimento e aprendizagem das crianças.

Dahlberg, Moss e Pence (2003, p. 203) destacam que documentar a ação pedagógica “[...] é um empreendimento perigoso”. Tal processo nunca é neutro e inocente, considerando que, na perspectiva dos estudos foucaultianos, a produção de conhecimento está relacionada à produção de poder. Segundo Barbosa e Fernandes (2012), a documentação pedagógica tem potência para produzir outros sentidos, pois rompe com a tradicional linearidade do planejamento e “[...] sacode as já cansadas e saturadas palavras da didática, como planejamento, currículo e avaliação” (BARBOSA; FERNANDES, 2012, p. 9). Fazendo alusão às práticas italianas, essas pesquisadoras apontam que a documentação pedagógica dá visibilidade à vida que acontece na escola e permite analisar as situações registradas (BARBOSA; FERNANDES, 2012).

Documentar não se restringe a observar, filmar, fotografar, fazer exposições, elaborar portfólios, relatórios de avaliação, etc., como já vem sendo feito nas escolas. Mas requer o enfrentamento de novos desafios, entre eles o de

 

[...] observar as crianças, ver como cada uma delas age, aprende, constrói percursos na resolução dos problemas que se apresentam no cotidiano da escola e nos momentos em que, sozinhas ou com seus pares, organizam suas brincadeiras e seus fazeres. (BARBOSA; FERNANDES, 2012, p. 9).

 

Entendemos, então, que a prática da documentação pedagógica dos processos de desenvolvimento e aprendizagem das crianças nas escolas de educação infantil pode ser mote para que outros discursos sobre as crianças com deficiência circulem na escola e na sociedade.

Sobre os caminhos da pesquisa

A metodologia desta pesquisa não foi definida de antemão para poder constituir-se “[...] como um certo modo de perguntar, de interrogar, de formular questões e de construir problemas de pesquisa que é articulado a um conjunto de procedimentos de coleta de informações.” (MEYER; PARAÍSO, 2012, p. 16). Essa plasticidade permitiu acompanhar o percurso das experiências que surgiram com/entre as participantes da pesquisa. Ou seja, foi sendo inventada seguindo os movimentos “para lá e para cá, de um lado para outro, dos lados para o centro, fazendo contornos, curvas” (MEYER; PARAÍSO, 2012, p. 16), afastando-nos das verdades universais e nos aproximando dos pensamentos que nos movem.

Como já foi dito anteriormente, a pesquisa foi desenvolvida em dois municípios da Região Sul do Brasil, contudo, aqui nos atemos a apresentar os dados do município localizado no Oeste de Santa Catarina. Nesse município, foram selecionadas, em conjunto com a Secretaria Municipal de Educação, duas Escolas Municipais de Educação Infantil (EMEIs) que tivessem matrículas de crianças de 4 a 5 anos com deficiência e que desenvolvessem algum tipo de documentação desses processos inclusivos. Tendo em vista os critérios éticos para realização de pesquisa envolvendo seres humanos, o projeto de pesquisa foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética, em 2018, sob o nº 2.986.305.

Consideramos importante contar com a participação das cinco professoras (P1, P2, P3, P4 e P5) e das três profissionais de apoio (PA1, PA2 e PA3) que atuam nas EMEIs pesquisadas (EMEI A e EMEI B), uma vez que observamos haver uma clara divisão de tarefas: a professora se responsabiliza em conduzir o trabalho das crianças “sem” deficiência, e a profissional de apoio de conduzir o trabalho das crianças “com” deficiência.

Todas as professoras possuem formação exigida pela legislação brasileira para o exercício da docência na educação infantil. A função de profissional de apoio é exercida por graduandas em Pedagogia, na modalidade EaD, contratadas pela SME. Um dos problemas enfrentados nesta pesquisa foram as mudanças na equipe de participantes em decorrência da designação de professoras e profissionais de apoio para outras funções e escolas. P1 e P3 entraram em licença saúde e foram substituídas no grupo de pesquisa por P2. P5 foi remanejada para o exercício de direção de outra escola, sendo substituída por P6. Também PA1 foi remanejada pela SME para outra escola, sendo substituída por PA2. A rotatividade dessas profissionais, de certo modo, exigia que fosse retomado com as novas participantes aquilo que já havia sido feito anteriormente. Entendemos a necessidade da rede em remanejar professores e profissionais de apoio, contudo, a transitoriedade de profissionais pode afetar negativamente a construção de vínculos das crianças com as pessoas de referência no espaço escolar.

O Quadro 1 mostra o laudo médico das cinco crianças com deficiência matriculadas nas duas escolas pesquisadas. Esse documento foi disponibilizado às pesquisadoras pela escola:

 

 

 

 

Quadro 1 – Laudos das crianças com deficiência matriculadas nas escolas

ESCOLA

CRIANÇA, GÊNERO E IDADE

LAUDO

 

EMEI A

 

Cr1

(masc./5 anos)

 

 

Paralisia cerebral. A paralisia cerebral é um conjunto de desordens permanentes que afetam o movimento e postura.

Cr2

(fem./4 anos)

 

Sem laudo. A família relatou epilepsia. A criança demonstra dificuldade de marcha e dificuldade na fala.

 

EMEI B

Cr3

(masc./4 anos)

 

Transtorno Espectro Autismo e baixa visão.

Cr4

(masc./5 anos)

 

Transtorno Espectro Autismo.

Cr5 (masc.5 anos)

 

Transtorno Espectro Autismo – Indica que a criança “é incapaz para os atos da vida social”.

Fonte: As autoras (2018).

           

Os discursos das participantes foram analisados na perspectiva foucaultiana. A partir de Foucault (2009, p. 10), entendemos que “[...] discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que se luta, o poder do qual nós queremos apoderar”. Nessa perspectiva, o discurso não pode ser entendido como uma combinação de palavras que representam o mundo, mas, ao contrário, como algo que constitui os objetos de que fala.

Inspiradas nesse filósofo, para fazer as análises dos materiais produzidos, recusamo-nos às “[...] explicações unívocas, às fáceis interpretações e, igualmente, à busca insistente do sentido último ou do sentido oculto das coisas.” (FISCHER, 2001, p. 198). Buscamos olhar para aquilo que foi efetivamente dito, feito e documentado pelas professoras sem a intenção de fazer “[...] interpretações reveladoras de verdades e sentidos reprimidos.” (FISCHER, 2001, p. 205).

Além de prestar atenção no que as profissionais disseram ou fizeram durante as práticas e as rodas de conversa, ocupamo-nos daquilo que documentaram acerca dos processos inclusivos. Então, o corpus de análise da pesquisa foram os registros das observações no espaço escolar e as gravações em vídeo dessas aulas; as rodas de conversa com o grupo de profissionais sobre a documentação e as respectivas gravações desses encontros; e as documentações feitas pelas profissionais envolvidas nesta pesquisa. Como foi dito anteriormente, entendemos que os processos de documentação não são neutros e inocentes, mas produzem determinados tipos de sujeitos na educação infantil.

Metodologicamente foram propostas seis rodas de conversa (Quadro 2) com/entre as pesquisadoras e participantes. Segundo Larrosa (2003), conversar pressupõe estar aberto a ouvir o que o outro tem a dizer “[...] porque se alguém pode discutir, ou dialogar, ou debater, com qualquer um, é claro que não se pode conversar com qualquer um [...]” (LARROSA, 2003, p. 212).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Quadro 2 – Caminhos metodológicos: as rodas de conversa

RODA

AÇÕES REALIZADAS

Roda de conversa 1

As participantes foram convidadas a desenhar seus alunos com deficiência; a partir deles, apresentaram oralmente as crianças aos demais participantes e descreveram o perfil do professor que a criança tem direito.

Roda de conversa 2

As participantes retomaram os desenhos realizados no encontro anterior e expressaram as alegrias, dificuldades e desafios enfrentados na prática pedagógica com as crianças com deficiência.

Roda de conversa 3

As participantes trouxeram as documentações que produzem de seus alunos com deficiência para pensar/conversar sobre esse material.

Roda de conversa 4

As participantes assistiram, em grupo, a cenas de vídeos que registram situações envolvendo a participação das crianças com deficiência nos diferentes momentos e espaços da escola, coletadas pelas pesquisadoras durante as observações e previamente selecionadas para serem discutidos no grupo. Problematizamos a documentação e seus efeitos na produção do sujeito infantil a/normal.

Roda de conversa 5

Promovemos um segundo olhar sobre a documentação. Para essa roda de conversa, as professoras novamente trouxeram suas documentações para discutir as mudanças que produziram em seus registros.

Seminário Municipal

As pesquisadoras e as participantes da pesquisa compartilharam com os professores de educação infantil, gestores das escolas e da SME e com os estudantes de Pedagogia os resultados da pesquisa.

Fonte: As autoras (2018).

 

Sobre os discursos das participantes em relação às crianças com deficiência

A efetivação da participação das professoras e profissionais de apoio foi concretizada mediante sua concordância e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para maiores de idade e, no caso da observação das crianças na escola, mediante assentimento delas mesmas e assinatura pelos pais do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para menores de idade. Houve também assinatura de autorização para uso de imagens por parte de todos os participantes e seus responsáveis.

Na primeira roda de conversa, com o propósito de garantir tempo para que cada uma das participantes pensasse em seu aluno com deficiência, solicitamos que desenhassem e escrevessem algumas características da criança. As descrições encontram-se no Quadro 3:

 

Quadro 3 – Discurso das participantes com relação a seus alunos com deficiência

ALUNO/A

DESCRIÇÃO DA PROFESSORA OU PROFISSIONAL DE APOIO

Cr1

Quando chegou, era tímido, ainda não falava e não tinha socialização. É carinhoso, a família é presente. A fala melhorou, tenta fazer as atividades. Vai duas vezes na semana na APAE. Desenvolveu muito, tem bastante amigos e às vezes estão todos abaixados como ele. É quase parecido com os demais. (P2)

 

É muito comportado, obediente e esforçado. Adora pintar, colorir os desenhos. Faz rabiscos, porque não tem coordenação motora, e eu ajudo ele a escrever o nome, a data – eu faço ele fazer comigo. Adora sair da cadeira e brincar no chão. Usa fralda. Como se arrasta no chão, está sempre com a roupa rasgada. (PA1)

 

Tem facilidade de fazer amizades. Demonstra e fala suas vontades. Gosta de conversar e fazer travessuras. Vai na APAE e participa de todas as atividades aqui na escola. Os colegas têm um cuidado especial com ele. (P1)

Cr2

É bastante faltosa, mimada e participa pouco das atividades na escola. A família até agora não apresentou o laudo, assim, a gente não sabe direito como trabalhar com ela. Não fala, só três ou quatro palavras. Vive no mundinho dela. Tem deficiência de equilíbrio. Ainda não frequenta a APAE por não ter laudo. A família é desleixada. (P2)

 

Demonstra pouco os seus sentimentos. É pouco sociável e gosta de estar sozinha. Está se desenvolvendo e fica muito feliz quando consegue realizar atividades propostas. Gosta de imitar a independência dos colegas como tomar água no bebedouro. Tem uma simpatia que conquista. Vejo que ela tem interesse e tem potencial. Não sabemos direito o que fazer, porque ela não tem laudo. Acho que se for acompanhada por Psicóloga poderá vir a falar. Ela tem vontade de falar. Percebo que ela se desenvolve a cada dia. Hoje, vi que sentou com colegas para brincar. Os colegas gostam dela. Usa fralda, mas a família está tirando. Reage quando não gosta de algo. Os pais tiveram de ser chamados em função das faltas. (PA3)

Cr3

Além de ser autista, tem um sério problema de visão e de audição, é albino, gordo e baixinho. É difícil de lidar com ele. Frequenta a APAE na parte da manhã, o que auxilia muito, porque as professoras da APAE sabem o que estão fazendo. É supermedicado bastante medicado e se não tomasse medicação a escola não daria conta dele. A gente consegue ter um contato maior com ele, diferente do Cr4. (P5)

Cr4

Quando chega à escola, faz um pouco de “manha” para ficar, mas depois participa das atividades. Quando é o momento de brincar, ele fica muito feliz com seu carrinho. Vai duas manhãs na APAE e nas demais vem à escola. Quando chega, emburra e não quer entrar. Tem que deixar ele por um tempo, depois ele pendura a mochila e vai sentar, mas tem de ser no tempo dele. Participa das atividades do jeito dele. Fui questionada se adaptava atividades, mas como é educação infantil eu acredito que não seja preciso, pois participa daquilo que proponho. Depois, na alfabetização, a professora terá de adaptar. O momento mais feliz é quando dá para pegar o brinquedo. Brinca com o carrinho como se não tivesse mais ninguém na sala – se desliga do mundo. É uma criança calma, mas precisa de ajuda para se socializar. Faz dois anos que está na escola. Sei que antes chorava muito. (P4)

Cr5

É muito difícil de lidar com ele. Até esse momento, não demonstrou nenhum sentimento; nunca falou; nunca tive contato visual com ele. Não demonstra sentimento nenhum. Criança extremamente fechada; tem muita dificuldade, sendo que necessita de auxílio para realizar as atividades, e eu preciso sentar ao lado dele o tempo todo. São bem cansativos [Cr4 e Cr5]. Acho que gosta das aulas de informática – eu nunca vi sentimento naquele rosto. Se chegar perto dele, vira a cabeça e fecha os olhos. Para mim ele está sempre igual, nunca sorriu. (P5)

Fonte: As autoras (2018).

 

O Quadro 3 mostra que o fato de a criança frequentar ou não a APAE atravessou os discursos de P1, P2, P4 e P5. Essa última professora ainda menciona a “supermedicação” como sendo a alternativa para a escola dar conta da criança com deficiência e também destaca que são as profissionais da APAE que sabem como lidar com ela. Assim deixa subentendida a intenção de normalização da criança e a ideia de que a escola regular não está dando conta. A educação, segundo Ferre (2001, p. 196), tomou para si o compromisso de fazer de cada um “[...] alguém com uma identidade bem definida pelos cânones da normalidade, os cânones que marcam aquilo que deve ser habitual, reto, em cada um de nós.”. P5 também destacou o fato de as crianças com deficiência serem “cansativas” e o quanto “é difícil lidar com elas”, ou seja, são mais difíceis de serem governadas (FOUCAULT, 1996, 1997).

As falas de P2 e de PA3 dão destaque ao laudo médico. A ausência de laudo é apontada como empecilho ao trabalho escolar: “[...] assim, a gente não sabe direito como trabalhar com ela.” (P2), confirmando a sobreposição do discurso médico ao pedagógico. De encontro a essa ideia, Soncini (2016) destaca que antes de conhecer o diagnóstico é preciso que os professores busquem conhecer a própria criança. 

Zortéa (2011, p. 51, grifo da autora) alerta que “[...] o diagnóstico médico ‘batiza’, dá nome à dificuldade e nos diz o que esperar do sujeito. Talvez em muitos casos, nos diga mais dos limites do que das possibilidades”. Essa pesquisadora ainda conclui que “[...] assim como não podemos dizer aos médicos sobre como tratar seus pacientes, do mesmo modo não podemos pedir a eles ou outros especialistas que nos digam sobre como daremos conta na escola das aprendizagens das nossas crianças [...]” (ZORTÉA, 2011, p. 48).

Outro aspecto relevante é que, ao descreverem seus alunos/as com deficiência, as participantes pouco mencionaram as aprendizagens das crianças, mas se ativeram a relatar, principalmente, os comportamentos e dificuldades. Vejamos alguns excertos dos discursos:

“É bastante faltosa, mimada e participa pouco das atividades na escola.” (P2)

“Demonstra pouco os seus sentimentos. Pouco sociável.” (PA3)

“Adora pintar e colorir os desenhos. Faz rabiscos, porque não tem coordenação motora, e eu ajudo ele a escrever o nome, a data – eu faço ele fazer comigo.” (PA1)

“Evoluiu bastante e se deixar ele solto é quase parecido com os demais na fala, na disputa e dedura os outros.” (P2)

“É muito comportado, obediente e esforçado.” (PA1)

“Tem uma facilidade de fazer amizades.” (P1)

“Até esse momento, não demonstrou nenhum sentimento; nunca falou; nunca tive contato visual com ele.” (P5)

 “Participa das atividades do jeito dele.” (P4)

“O momento mais feliz é quando dá para pegar o brinquedo.” (P4)

O modo como PA3 falou de sua aluna com deficiência é, notadamente, contraditório. Descreve a criança como “pouco sociável” ao mesmo tempo em que também destaca que tem “uma simpatia que conquista”; que “gosta de estar sozinha” e de que “gosta de imitar as atividades dos colegas”; que “demonstra pouco os sentimentos”; e que “fica feliz quando consegue realizar as atividades”.

 

Considerando a pouca formação das profissionais de apoio e o fato de ficarem responsáveis pelo acompanhamento das crianças com deficiência, percebemos, em diversos momentos durante as observações, o quanto elas interferem nas produções gráficas das crianças (desenhos, pinturas, colagens...) para que o resultado fique mais próximo ao das demais crianças da turma. Essas intervenções foram do tipo: segurar na mão da criança com deficiência enquanto pinta ou recorta uma figura; servir o suco e o prato dela para que não precise entrar na fila e não derrame algo na mesa ou no chão; colocar a cola na figura para que a criança não aperte por demais o tubo, usando mais cola que o necessário, etc.

Outro aspecto que fica evidente nas descrições feitas pelas professoras é que a criança com deficiência física foi descrita de modo bastante positivo tanto pela professora como pela profissional de apoio, enquanto que as com Transtorno Espectro Autismo (TEA) e a criança sem laudo foram descritas a partir daquilo que lhes falta. Além disso, o foco da descrição deu-se nos aspectos comportamentais e nas características físicas da criança, em detrimento de suas capacidades e aprendizagens, dando evidências de que, nos contextos pesquisados, cuidar da educação de crianças com TEA representa um desafio maior às professoras e profissionais de apoio.

Sobre as dificuldades e as alegrias na docência com as crianças com deficiência

As dificuldades e as alegrias expressas pelas professoras, referente ao trabalho que realizam com as crianças com deficiência, foram sistematizadas no Quadro 4 e organizadas em três categorias: recursos físicos e materiais, recursos humanos e experiências escolares.

 

Quadro 4 – Dificuldades e alegrias na docência com as crianças com deficiência

DIFICULDADES

ALEGRIAS

RECURSOS FÍSICOS E MATERIAIS:

poucos investimentos públicos;

precariedade de recursos econômicos;

falta de materiais e falta de espaço.

 

RECURSOS HUMANOS:

falta de interesse das famílias em ajudar as crianças;

falta equipe multidisciplinar;

falta formação continuada sobre inclusão;

pouca valorização dos profissionais;

frustração pela demora na resolução de coisas básicas e necessárias como laudos, materiais, atendimento;

 

EXPERIÊNCIAS ESCOLARES:

as crianças mostram pouco estímulo para participar das atividades;

não apresentam muitas reações;

há preconceito na escola;

dificuldade para realizar atividades gráficas;

dificuldades na fala;

o constante movimento da criança;

brigas, beliscões e mordidas;

insegurança e angústia para atender a criança;

resultados insatisfatórios;

deixa a sala agitada;

pouca socialização da criança com deficiência;

pouca concentração nas atividades.

 

RECURSOS FÍSICOS E MATERIAIS:

 

 

 

 

RECURSOS HUMANOS:

a união da equipe.

 

 

 

 

 

 

 

 

EXPERIÊNCIAS ESCOLARES:

a escola se interessa pelo aluno;

poder ver a criança frequentar a escola regular;

ver a vontade das crianças para fazer as atividades;

saída das fraldas;

quando dá abraço e beijo;

quando a criança consegue fazer as atividades sozinha;

oportunidade de conviver com as diferenças;

a evolução da inclusão;

a troca;

a convivência;

os resultados;

atenção;

carinho;

a inclusão entre os pares;

visão diferente sobre os alunos especiais.

Fonte: As autoras (2019).

Os discursos das participantes dão evidência ao descompasso entre as dificuldades e alegrias com as quais se deparam em suas experiências diárias. Foi elencado a falta de diferentes recursos materiais e humanos necessários no contexto escolar para cuidar e educar crianças com deficiência na educação infantil. Essa precariedade não pode ser dissociada da falta de políticas distributivas que coloquem a educação infantil e a educação inclusiva como prioridade nas pautas governamentais. Os parcos investimentos públicos continuam sendo realidade na história da educação das crianças pequenas e na educação das pessoas com deficiência.

Com relação às alegrias vivenciadas, as participantes elencaram “carinho”, “atenção”, “convivência”, etc. em detrimento das aprendizagens construídas pelas crianças na relação com seus pares na escola, dando mostras do quanto o viés assistencialista ainda atravessa a educação inclusiva e a educação infantil, de modo que elas são descritas na perspectiva daquilo que lhes falta e daquilo que ainda não são em relação ao adulto e em relação às crianças tidas como normais.

A documentação feita pelas professoras: algumas mudanças durante o processo

As participantes compreendem a documentação pedagógica como restrita aos pareceres trimestrais que elaboram de seus alunos, aos trabalhos gráficos que as crianças realizam e ao conjunto de fotos que possuem dos alunos em seus aparelhos celulares. Trouxeram poucos materiais de seus alunos e explicaram que as crianças costumam levar as produções para casa ao final de cada projeto para mostrar à família. As avaliações, relataram as participantes, são entregues às famílias, sendo que as escolas não costumam guardar cópia desses documentos.

Os trabalhos feitos pelas crianças, trazidos por P2, PA1, PA2 e PA3, eram relativos a um projeto sobre as lendas brasileiras que estava sendo realizado por todas as turmas da EMEI. Foi possível identificar que a maioria das atividades ainda consiste em colorir e completar figuras fotocopiadas, em detrimento de desenhos e pinturas realizados pelas próprias crianças. Essas propostas de atividades ajudam a compreender a invisibilidade das aprendizagens das crianças nos discursos das participantes.

Somente P2 trouxe o relatório de avaliação de uma das crianças da EMEI A. Nesse documento, relativo ao segundo trimestre de 2018, a criança foi assim avaliada:

 

Adquiriu algumas noções, mas necessita desenvolver, pois possui limitações em seus afazeres diários, como, por exemplo, nas atividades que exigem coordenação motora ampla e fina, espaço, lateralidade, equilíbrio e outros. Apresenta atraso em seu desenvolvimento comum para sua idade principalmente na fala (nunca falou uma palavra se quer na sala de aula) e no convívio com o grupo. Demonstra pouco interesse nas atividades propostas, ou seja, não desperta sem estímulos, não tem iniciativa. Totalmente dependente das professoras e colegas de turma.

 

Olhar para o discurso sobre a criança, escrito nesse documento, bem como os excertos dos discursos das participantes apresentados no Quadro 3, remete-nos a pensar com Foucault o quanto aquilo que é dito, escrito e feito nas escolas infantis produz sujeitos tidos como anormais na educação infantil e sobre os impactos desses discursos na vida das crianças.

Ao serem indagadas sobre a existência de fotos, gravações de voz e vídeo, elas mostraram inúmeros registros em seus aparelhos celulares. A maioria das fotos consistia em imagens nas quais as crianças estavam “posando” para fotos. Esses registros além de darem pouca evidência às aprendizagens que estavam sendo construídas coletiva ou individualmente, pouco contribuem para refletir e revigorar as práticas. Com relação ao que era feito com tais fotos e vídeos, elas explicaram que costumam mostrá-los às crianças e suas famílias. Nenhuma das participantes considerou a possibilidade de usar tais registros como subsídio para planejamento da ação educativa e/ou avaliação das aprendizagens coletivas e/ou individuais.

Era preciso instigá-las a pensar diferente daquilo que vinham pensando sobre a criança com deficiência. O caminho escolhido foi a prática da documentação pedagógica como metodologia para inverter os discursos naturalizados e recorrentes que circulam nas escolas sobre os processos de inclusão. Tais discursos tendem a descrever a criança na perspectiva daquilo que lhe falta, tendo como parâmetro as verdades advindas do campo da Saúde.

Nesse sentido, corroboramos Foucault (2009) quando afirma que os discursos produzem determinadas verdades, nesse caso, produzem crianças tidas como anormais na educação infantil. Para interrompê-los, foram selecionados alguns trechos de vídeos gravados pelas pesquisadoras durante as visitas realizadas nas turmas. Os vídeos foram editados em sequência de fotos: onde se passa a cena? Quem está envolvido? O que está acontecendo? Quais aprendizagens estão sendo construídas? Que intervenção pode ser feita para dar continuidade/potencializar as aprendizagens? Esse desdobramento foi dando maior visibilidade ao que estava acontecendo em cada cena e às aprendizagens que estavam sendo construídas pelas crianças com deficiência. Após olhar e discutir as cenas envolvendo seus alunos com deficiência, as professoras foram desafiadas a construir pequenas histórias relatando os episódios.

A escrita de “episódios” foi inspirada no trabalho desenvolvido por Zortéa (2011) ao fazer uso de “janelas” para descrever pequenos recortes de seu diário de campo. Ao avaliar o exercício coletivo de documentação, P2 considerou: “– Estou aprendendo a ver a criança que existe na criança com deficiência e, para isso, realmente não precisa do laudo.” (informação verbal)[2]. Elas também lamentaram a falta de tempo que dispõem no dia a dia para se debruçarem sobre os registros que fazem da vida que acontece na escola, contudo, também consideraram a relevância de construir uma nova pauta de olhar/registrar, com foco naquilo que a criança faz e nas mediações pedagógicas que podem ser realizadas no contexto da escola regular, sem perder de vista o diálogo com a própria criança, com os profissionais de áreas especializadas e com as famílias. Um dos maiores desafios para que a escola regular construa seu próprio discurso sobre inclusão – discurso pedagógico – é soltar as correntes que a aprisionam ao discurso da saúde, quer seja na área da Medicina ou da Psicologia.

Encontrar tempo regularmente para interpretar ou avaliar coletivamente as informações tende a ser uma barreira enfrentada nas escolas. Fyfe (2016, p. 282) destaca que as equipes devem planejar tempo para “[...] refletir conjuntamente sobre o que a documentação revela a respeito das ideias, dos interesses, dos sentimentos, das opiniões, das suposições ou das teorias das crianças.”. Somente depois disso é que “[...] os professores devem planejar como irão organizar, diversificar ou coordenar o seu trabalho à luz das suas interpretações e projeções.” (FYFE, 2016, p. 282).

Nos encontros seguintes, as participantes foram trazendo os próprios registros que faziam das crianças com deficiência nos diferentes espaços e momentos da rotina e, nesse processo, as aprendizagens construídas pelas crianças com seus pares foram ganhando visibilidade em seus discursos. Foi possível perceber significativas mudanças nos materiais que traziam: as fotos estavam deixando de se restringir à exibição de selfies para dar lugar ao registro de momentos significativos de brincadeiras, interações e aprendizagens. Parar olhar as cenas de momentos vividos por/com seus alunos com deficiência, foi dando maior visibilidade às aprendizagens que ocorriam. Aos poucos, as participantes também começaram a trazer as anotações daquilo que observavam, daquilo que ouviam das próprias crianças e ainda as anotações dos pontos que gostariam de mostrar e conversar no grupo.

Também foi observado que a maioria dos registros ainda tinha como foco os momentos de brincadeiras espontâneas na sala e no pátio. Então, as participantes foram desafiadas a observar e registrar outros momentos da rotina para documentar também as situações de lanche, de higiene, de realização de experiências como desenhar, pintar, modelar, escrever o nome, etc.

Para Soncini (2016, p. 192), “A observação e a documentação são sempre fundamentais, mas são particularmente benéficas para as crianças com direitos especiais.”. As documentações feitas pelas participantes da pesquisa, aos poucos, foram dando visibilidade àquilo que as crianças com deficiência dizem, fazem e são no dia a dia da escola. Dentre elas, daremos evidência aqui a três excertos dessas outras histórias documentadas coletivamente pelas participantes:

Episódio 1: P2 trouxe um vídeo em que Cr2 usava o bebedouro. Até então, a menina, com dificuldade na área motora, costumava ser servida pelas professoras em um copo próprio para bebês. Naquele dia, por iniciativa própria, ela havia usado o bebedouro para tomar água. Como se deu esse processo de aprendizagem? Editar o vídeo para construir uma sequência de fotos[3] ajudou a compreender a inteireza do processo: 1) primeiramente, apoiou-se nas laterais do bebedouro para subir no banco de madeira que eleva a criança, permitindo acesso à torneira do equipamento; 2) ao mesmo tempo em que se equilibrava sobre banco, ela segurava um copo descartável na mão, tendo como desafio controlar a força para não apertar por demais e amassar o recipiente de plástico descartável; 3) depois de várias tentativas, a menina tentou usar o dedo indicador para pressionar o botão que fazia verter a água. Depois de diversas tentativas, experimentou pressionar usando a palma da mão e conseguiu; 4) a borda do copo já estava um tanto amassada e foi preciso esforço para mirar o fluxo da água dentro do copo; 5) Cr2 serviu-se de meio copo de água e bebeu ali mesmo. Sorria, demonstrando estar visivelmente satisfeita com a nova aprendizagem. 

Episódio 2: PA3 trouxe um vídeo de uma situação em que as crianças brincavam com telefone de latinhas. Ao desdobrarmos o vídeo em uma sequência de fotos e olharmos cuidadosamente o que ocorria nas cenas, percebemos este encadeamento: 1) Cr2 observava duas crianças brincarem com o telefone de latinhas[4]; 2) a colega percebeu o interesse dela e perguntou-lhe: “– Quer brincar Cr2?”. Ao escutar o convite, outra criança disse: “– Ela não fala!”; 3) mesmo assim, a colega colocou a latinha no ouvido de Cr2. A outra criança falava e Cr2 sorria ao escutar o som; 4) a mesma colega tirou a latinha do ouvido de Cr2 e a posicionou em frente à sua boca, dizendo: “– Pode falar agora!”; 5) Cr2 demorou algum tempo e, depois, sussurrou algo no telefone de latinha; 6) as crianças comemoraram: “– A Cr2 falou! E não entendi, mas, mas ela falou. Falou do jeito dela.”

Episódio 3: PA1 apresentou um vídeo que registrava o final do recreio, quando as crianças se dirigiam à sala e iam se posicionando em fila em frente à porta. Cr1 arrastava-se pelo chão, indo em direção ao grupo. Uma das colegas parou, agachou-se e estendeu os braços em direção a ele, mostrando que estava à sua espera. Em seguida, outros dois colegas chegam correndo, colocam-se de joelhos no chão ao lado de Cr1 e o abraçam. Os dois meninos arrastam-se pelo chão ao lado dele até entrarem na sala.

Esses três episódios, entre outros documentados pelas participantes da pesquisa, comprovam a afirmação de Soncini (2016, p. 198) quando diz que “[...] ter uma criança com direitos especiais na turma é altamente educativo para as outras crianças, porque força-as a ajustar o seu comportamento, sua linguagem, sua comunicação e até seu contato físico.”.

Os exercícios de documentação pedagógica, realizados durante a pesquisa, foram socializados pelas pesquisadoras e participantes deste estudo em um Seminário aberto aos professores da rede municipal e aos professores e alunos do curso de Pedagogia da universidade envolvida no trabalho, constituindo-se em uma formação em contexto e entre pares. Esse encontro de pesquisa e extensão teve o propósito de mostrar que universidade e sistema municipal de educação podem, juntos, construir outros discursos sobre inclusão na educação infantil, bem como problematizar os efeitos de tais discursos na vida das crianças.

Considerações finais

Uma das contribuições desta pesquisa está relacionada ao fato de colocar em discussão, nas escolas de educação infantil e na formação de professores, pontos importantes trazidos pela Ementa Constitucional n.º 59/09 e pela Lei n.º 12.796/13, assim como buscar estratégias para a concretização de tais desafios.

Participar de um exercício coletivo de documentação foi o mote para que as participantes problematizassem seus discursos sobre as crianças com deficiência. As experiências de documentação pedagógica apresentadas aqui se afastam das práticas de produção de discursos prescritivos e universais sobre processos de inclusão na escola regular e nos lança nos caminhos do singular, do inusitado, do surpreendente, do admirável... Para isso, foi preciso desafiar a observação coletiva e individual das crianças; despir-se das concepções universais de infância e conhecer a singularidade de cada uma delas; rever o foco das práticas de registros para aprender a olhar a vida que acontece nos tempos e espaços das escolas; desafiar a própria memória para fazer uso de ferramentas outras como fotos, vídeos, anotações do/a professor/a, escuta e produções das próprias crianças; revisitar os registros em uma experiência de olhar “com” o outro, para aprender com outros a enxergar – para além do óbvio, do evidente e do familiar – aquilo que está nas entrelinhas dos processos inclusivos; embrenhar-se na produção de outros discursos sobre os processos de inclusão – discursos esses comprometidos com a singularidade de cada criança. Assim, quem sabe, todos os professores possam romper a díade “normal x anormal” e aprender a conhecer a criança que habita na criança tida como anormal.

Nada de prescritivo foi apresentado neste estudo em respeito à singularidade de cada criança, “com” ou “sem” deficiência. Aliás, reconhecemos a limitação da pesquisa ao não trazer à tona a participação mais direta das próprias crianças com deficiência e suas famílias no processo de documentação, as quais, sem dúvidas, são merecedoras de protagonismo em outras pesquisas que tratem da educação infantil na perspectiva inclusiva. 

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Notas



[1] Este artigo apresenta parte da pesquisa “Documentação dos processos de inclusão e produção do sujeito a/normal na Educação Infantil”, desenvolvida no decorrer de 2017, 2018 e 2019, envolvendo a rede municipal de ensino de dois municípios brasileiros, sendo um do estado do Rio Grande do Sul e o outro do estado de Santa Catarina, em parceria com duas universidades comunitárias localizadas nos respectivos municípios. A pesquisa contou com apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), conforme edital MCTI/CNPq N.º 01/2016.

[2] Fala da P2 coletada na EMEI ao avaliar o exercício da escrita de “episódios”.

[3] Mesmo tendo autorização assinada pelas famílias das crianças com deficiência para uso das imagens, optamos por não compartilhar as fotos, mas apenas a descrição das cenas.

[4] Consiste em um brinquedo infantil que imita o telefone convencional. Duas latas interligadas por um barbante permitem uma conversa à distância. Nessa brincadeira, as ondas produzidas pelo som da voz são transmitidas pela vibração do barbante.