Provoque: Cultura Visual, Masculinidades e Ensino de Artes Visuais

 

Francione Oliveira Carvalho

Faculdade de Educação - Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil

francioneoliveiracarvalho@gmail.com - https://orcid.org/0000-0001-7511-5708

 

Recebido em 17 de julho de 2020

Aprovado em 29 de agosto de 2020

Publicado em 31 de maio de 2022

 

            João Paulo Baliscei é professor no curso de Artes Visuais na Universidade Estadual de Maringá, e coordenador do Grupo de Pesquisa em Arte, Educação e Imagens – o ARTEI. O livro é uma adaptação da tese de doutorado que defendeu no Programa de Pós-Graduação em Educação da UEM com estudos na Facultad de Bellas Artes – Universitat de Barcelona. O autor comenta na introdução que para a publicação o texto foi revisto para o formato e a linguagem de livro. Esse cuidado é perceptível ao longo da leitura, pois o texto fluido e saboroso percorre autores, conceitos e ideias sem cair em lugares comuns ou simplificar a complexidade da discussão. Se na tese a análise da construção visual das masculinidades foi investigada a partir de cinco animações do Estúdio Disney, com destaque para os personagens heróis, vilões e coadjuvantes, no livro, foram selecionadas duas animações: Aladdin (1992) e Mulan (1998). 

            O interesse do autor é compreender como as imagens endereçadas à infância operam e impactam na subjetividade e na construção visual das masculinidades. A escolha pelos produtos Disney se deu pela presença massiva em diversos produtos consumidos pelas crianças. Não aleatória, ela também aponta o arcabouço teórico adotado na obra: os Estudos Culturais e os Estudos da Cultura Visual. Para desenvolver seu argumento, Baliscei divide a obra em quatro capítulos, além de uma introdução e um texto com considerações finais. 

            No capítulo 1 - Ensinando a olhar: os Estudos da Cultura Visual são discutidas as abordagens metodológicas de leitura de imagens mais presentes nas aulas de Arte das escolas brasileiras, tais como a Abordagem Triangular, sistematizada por Ana Mae Barbosa e a Abordagem Formalista, resultado das pesquisas de Rudolf Arnheim e Doris A. Dondis. Mesmo levando em consideração os avanços que as duas abordagens promoveram no ensino de Artes Visuais, Baliscei afirma que “é necessário repensar essas práticas, principalmente, considerando as condições contemporâneas nas quais as crianças, jovens e a própria escola estão inseridos”. (p.31). Por isso, defende uma proposta de leitura visual onde os “intérpretes visuais”,

 

termo cunhado por Fernando Hernández, sejam encarados menos como leitores e mais como construtores. “O substantivo “intérprete” destaca que as aproximações estabelecidas com os artefatos visuais não são meramente passivas, mas sim interativas, transitórias, mútuas e dinâmicas” (p. 32).   

            Ainda no capítulo 1 o autor destrincha o aporte teórico adotado na investigação.   Dos Estudos Culturais Britânicos elenca três ideias centrais que marcam o amplo escopo de discussões dos autores vinculados ao campo: artefatos culturais, identidades pós-modernas, centralidade da cultura. O artefato cultural caracteriza fenômenos construídos socialmente, que com o passar do tempo, tornam-se naturalizados e hegemônicos, tais os artefatos oriundos do cotidiano como brinquedos e roupas, ou artefatos da cultura da mídia como filmes e games. As identidades pós-modernas, problematizadas nas obras de Stuart Hall, e compreendidas como provisórias e fragmentadas, são fortemente impactadas pelos artefatos culturais, “sobretudo pelas imagens oriundas da cultura da mídia, representações que atuam como elementos para a composição de sua identidade cultural” (Baliscei, 2020, p. 39). Já a ideia de centralidade da cultura diz respeito a importância que a cultura assume na contemporaneidade, impactando as relações sociais, os vínculos afetivos, as construções identitárias e as práticas de consumo. Dos Estudos da Cultura Visual, o autor   adota a compreensão das imagens como dispositivos que materializam concepções político-culturais permeadas pelo poder. Defendendo que estes estudos “chamam a atenção para as relações estabelecidas entre os artefatos culturais que são vistos e os sujeitos que os veem” (p. 46).

            O capítulo 2 é central na obra porque é onde João Paulo Baliscei apresenta o conjunto de procedimentos que criou para orientar investigações visuais críticas e inventivas que denominou de PROVOQUE- Problematizando Visualidades e Questionando Estereótipos. Inspirado tanto pelos Estudos Culturais e Cultura Visual como pelo Image Watching, sistema de análise de imagens criado na década de 1980, por Robert William Ott. O conceito de estereótipo questionado diz respeito as representações visuais que “economizam detalhes, apagam arestas, anulam as diferenças e evidenciam hierarquias” (p. 69).  As cinco etapas do PROVOQUE são: 1.

 

Flertando, formada por duas ações: a composição do corpus de análise e a exposição dos critérios de seleção das imagens; 2. Percebendo, também composto por duas ações: a apresentação visual e a apresentação verbal das imagens selecionadas, chamando atenção para as representações. As ações podem ser alteradas pelos intérpretes visuais; 3. Estranhando, engloba a formulação e o lançamento de perguntas capazes de problematizar os estereótipos presentes nas imagens. “A partir dessas perguntas, suponho, os/as intérpretes visuais podem “estranhar os estereótipos reincidentes e suspeitar daquilo que é apresentado como natural” (p. 75); 4. Dialogando, onde são propostos exercícios de pesquisa e de comparação entre as imagens inicialmente selecionadas e outras imagens, ou documentos e produtos que contribuam para a desconstrução do estereótipo analisado; 5. Compartilhando, última etapa do conjunto de procedimentos no qual haverá a socialização das vivências. Elas podem ser compartilhadas a partir de produções artísticas, rodas de conversa, oficinas, entre outras formas.

            O PROVOQUE busca colaborar na ampliação da percepção visual de maneira crítica, e no desvelamento das relações de poder materializadas nos estereótipos.  Por isso, no terceiro capítulo intitulado Imagens e o Projeto de Masculinização de Meninos, o autor apresenta os conceitos de gênero e de masculinidades que serão acionados na leitura crítica proposta para os dois filmes da Disney analisados na obra. Ambos os conceitos são operados a partir da abordagem construtivista que os compreendem como construções socioculturais, identidades relacionais que se transformam nas interações com as diferenças. Guacira Lopes Louro, Raewyn Connel, Marko Monteiro e Berenice Bento são alguns dos autores dos estudos das masculinidades que sustentam tanto os aspectos históricos quanto os conceituais tratados no capítulo. O conceito de Políticas da Masculinidade, elaborado por Connel, que revela as hierarquias estabelecidas nas relações entre os homens é importante porque ajudará na análise que Baliscei fará dos personagens masculinos da Disney no próximo capítulo do livro. As expressões identificadas por Connel são a masculinidade hegemônica, a masculinidade cúmplice, a masculinidade subordinada e a masculinidade marginalizada.   As quatro formas indicam hierarquia e diferentes

 

intensidades de poder, entretanto, elas não são fixas e definitivas aos sujeitos, sendo determinadas pelos contextos sociais onde estão inseridos.

            No quarto e último capítulo denominado Pedagogias Disney: Aladdin, Mulan e Outras Masculinidades, é proposto um exercício onde o PROVOQUE é acionado para investigar como os heróis, vilões e coadjuvantes dos dois filmes se relacionam com os projetos de masculinização dos meninos. Devido a fluidez das expressões apontadas por Connel, Baliscei trabalhou com cenas específicas de cada filme, dessa forma, o mesmo personagem surge desempenhando diferentes expressões de masculinidade.  É importante mencionar, que nas páginas finais do livro são destacados os frames das cenas analisadas e citadas no capítulo.

            Do filme Aladdin foram destacados os personagens Jafar e Aladdin, vilão e herói da história, como também os coadjuvantes Gazeem, Sultão, Gênio, entre outros. Em Mulan, o papel de herói é desempenhado pela própria Mulan, quando assume a identidade masculina chamada Ping. O vilão é representado por Shan Yu e entre os coadjuvantes Fa Zhou, Lee Shang, Mushu. Após percorrer todo o conjunto de procedimentos do PROVOQUE, o autor identifica padrões nos comportamentos e caracterizações dos heróis e vilões, tais como: pertencerem a grupos exclusivamente masculinos; envolverem-se em lutas com armas e ferirem outros personagens. Os heróis de ambos os filmes se manifestam como heterossexuais, inclusive Mulan quando assume a persona de Ping, e unem-se aos coadjuvantes para ridicularizar o comportamento dos outros homens enquanto os vilões não apresentam nenhum interesse afetivo ou sexual. Os heróis possuem traços suavizados que remetem ao padrão de beleza ocidental, e os vilões traços exagerados que provocam estranheza e repulsa. Nenhum herói ou vilão aparece chorando, com familiares ou realizando atividades domésticas. Já os coadjuvantes transitam e assumem com mais flexibilidade as hierarquias apontadas por Connel, como também ajudam a reforçar as masculinidades hegemônicas dos heróis e vilões.

            No término do capítulo e dentro da etapa Compartilhando, João Paulo Baliscei propõe intervenções artísticas na caracterização e nos contextos originais de quatro personagens analisados: Aladdin, Jafar,  Ping e  Lee Shang.     O objetivo é provocar

 

questionamentos das concepções de masculinidades. A cada desenho que reposiciona o personagem foram acrescentadas duas frases. Na parte de cima da imagem uma frase que apresenta uma normativa a respeito da masculinidade e na parte de baixo uma frase interrogativa que questiona essa afirmação.  Para o autor:

 

Nessas imagens, Aladdin manifesta desejos homossexuais pelo Gênio; Jafar orgulha-se por movimentar suas mãos; Ping e Lee Shang demonstram habilidades com ginástica artística e Shan Yu rende-se com uma bandeira branca. Considero que, somadas às imagens, as frases acrescentadas convidam à reflexão sobre a construção visual das masculinidades e os processos que ela envolve (BALISCEI, 2020, p. 177). 

 

            Nas considerações finais o autor aponta que as investigações visuais propostas pelo PROVOQUE a respeito dos personagens homens da Disney indicam a produção de pedagogias culturais que ao mesmo tempo em que valorizam a masculinidade hegemônica, desautorizam as outras expressões de masculinidade que os sujeitos podem adotar.  E afirma a pertinência da pesquisa à área da Educação e da formação de professores, “uma vez que as situações de ensino exercidas pelos artefatos da cultura visual sugerem referências de identificação para meninos e meninas, dentro e fora da escola” (p. 187).

            A obra visual Quem tornou masculino o corpo infantil do menino (2019), produzida pelo próprio João Paulo Baliscei é retomada nas considerações finais. Não é aleatório que além de surgir nas notas do autor no início do livro, a obra também seja utilizada na capa. Criada em comemoração ao seu 30º aniversário, ela resgata uma fotografia de uma matinê de carnaval onde aos oito anos aparece vestido de dançarino do grupo É o Tchan! Se na infância ela era o registro de um momento feliz, na adolescência tornou-se indício de uma possível masculinidade não hegemônica, e, por isso, escondida.  Saída do armário após mais de duas décadas a imagem torna-se afirmação de subjetividade, ao mesmo tempo em que revela diversos atravessamentos. As 30 cópias da fotografia que formam a obra visual questionam   símbolos e representações de masculinidade. “Com agulha e linha azul, fiz intervenções nas imagens em alusão às histórias e instituições que – tais como as escolas, a igreja e as mídias – atravessaram meu corpo” (p. 11).

           

            O livro PROVOQUE: Cultura Visual, Masculinidades e Ensino de Artes Visuais afirma a importância de problematizarmos a ação docente no que diz respeito às questões de gênero. Afinal, há muitos estereótipos que precisam ser questionados, inclusive em relação às masculinidades, temática pouca discutida na produção teórica da área de Arte/Educação e Ensino de Arte. Portanto, o livro é uma importante contribuição. Além disso, mais do que apontar limitações e ausências tanto na formação docente quanto na ação pedagógica realizada por professoras e professores de Artes Visuais na Educação Básica, a obra propõe possíveis procedimentos para orientar investigações visuais críticas e inventivas. A qualidade do projeto gráfico e da impressão do livro também devem ser destacados, afinal são itens importantes quando falamos em estudos dedicados às imagens. 

 

 

Referência

BALISCEI, João Paulo. Provoque: cultura visual, masculinidades e ensino de artes visuais. 1. Ed. Rio de Janeiro: Metanoia, 2020.

 

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