O significante comum na agenda política educacional contemporânea

 

The signifier common in the contemporary educational political agenda

 

Carmen Teresa Gabriel

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

carmenteresagabriel@gmail.com - https://orcid.org/0000-0001-9503-6740

 

Marcus Leonardo Bomfim Martins

Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil

marcus.bomfim@gmail.com - https://orcid.org/0000-0003-3369-9260

 

Recebido em 13 de julho de 2020

Aprovado em 30 de maio de 2021

Publicado em 31 de maio de 2022

 

RESUMO

Este texto se propõe a buscar outras possibilidades de entendimento do termo comum e seus efeitos para enfrentar os debates curriculares no Brasil. O campo empírico dessa análise consistiu em duas coletâneas sobre a BNCC: Base Nacional Comum: projetos curriculares em disputa (2015) e A BNCC na contramão do PNE 2014-2024: avaliação e perspectivas (2018). Tendo como interlocução privilegiada a abordagem discursiva pós-fundacional (LACLAU; MOUFFE, 2004, LACLAU, 1990, 2008, 2011, MARCHART, 2009), optou-se por analisar os sentidos do significante comum mobilizados e fixados nos textos que compõem as duas coletâneas selecionadas. Ao se constatar a hegemonia do sentido de comum no domínio exclusivo do jurídico propõe-se um deslocamento do sentido desse termo, defendendo-o como um princípio político que se manifesta pela instituição do inapropriável (DARDOT, LAVAL, 2017).  Essa proposta se inscreve em uma perspectiva radicalmente democrática para pensar escola, currículo e conhecimento. 

 

Palavras-chave: Comum; Currículo; Política Educacional.

 

ABSTRACT

This text proposes to search for other possibilities of understanding the term ‘common’ and its effects to face the curricular debates in Brazil. The empirical field of this analysis consisted in two collections about the National Curricular Guideline (BNCC): Common National Basis: curricular projects in dispute (2015) and BNCC contrary to PNE 2014-2024: evaluation and perspectives (2018). Having as privileged interlocution the post-foundational discursive approach (LACLAU; MOUFFE, 2004, LACLAU, 1990, 2008, 2011, MARCHART, 2009), it was chosen to analyze the meaning of the signifier common, whose meanings were mobilized and legitimated in the texts that compose both collections selected. By the time we verified the hegemony of the meaning common in the exclusive domain of legal field, we propose a displacement of the meaning of this category to the political domain, defending it as a political principle that is manifested by the institution of the non-appropriate (DARDOT; LAVAL, 2017). This propose considers thinking the school, the curriculum and the knowledge in a radically democratic perspective.

 

Keywords: Common; Curriculum; Educational policy.

 

 

 

Introdução

          Na realidade vivemos a tragédia do não comum.

 (DARDOT; LAVAL, 2017, p.14, grifo dos autores).

 

Este texto se propõe a buscar outras possibilidades de entendimento do termo comum e seus efeitos para pensar e enfrentar os debates e desafios que instituem e atravessam hoje o campo educacional no Brasil, e, em especial, o campo do Currículo. Ele parte de apostas e incômodos sobre o uso desse significante ao se significar/nomear políticas, processos e/ou tradições curriculares.

            Em termos de apostas, elas se traduzem na fixação do significante comum, entre os múltiplos sentidos disponíveis, como uma possibilidade de leitura política do social que abra pistas alternativas às perspectivas neoliberais e ultraconservadoras que participam e informam as disputas contemporâneas em torno de projetos de escola e de sociedade. Como provocam indagar Dardot e Laval (2017), com a afirmação que serve de epígrafe para iniciar este texto: qual a potência contida nesse significante cuja negação torna-se responsável pela tragédia na qual estamos imersos em nossa contemporaneidade? Como será desenvolvido ao longo deste texto, ao deslocarem o sentido de comum do domínio exclusivo do jurídico para o domínio do político, esses autores redimensionam os processos de significação desse termo, permitindo pensá-lo de outro lugar epistêmico. Objetiva-se aqui explorar os efeitos desse deslocamento nas reflexões curriculares.

            No que diz respeito aos incômodos, eles se manifestam pelo reconhecimento simultâneo da pertinência da crítica ao uso de um sentido particular do termo comum que vem sendo hegemonizado nos debates do campo educacional - em particular nas políticas curriculares recentes - e da naturalização da hegemonização desse sentido particular que tende a ser alçado ao lugar do universal, em parte pela própria escassez de debate acadêmico sobre os processos de definição desse termo. A presença de vertentes pós-estruturalistas no debate teórico curricular contemporâneo não significa que todos os significantes mobilizados sejam objeto de desestabilização ou desnaturalização. As (des)fixações de sentido também são seletivas em função do argumento defendido e/ou dos interesses em jogo (GABRIEL, 2013).

            A hipótese aqui levantada é que o significante comum ao ser mobilizado nos discursos do campo educacional, seja em defesa da diferença e/ou no combate à desigualdade social - ora como exterior constitutivo da primeira, ora como o ponto nodal da segunda, tende a reforçar e cristalizar sentidos particulares deste termo hegemonizados historicamente no domínio jurídico como por exemplo “bem” ou “direito” que - face a normatividade neoliberal dominante - não contribuem para fazer trabalhar as aporias que atravessam os debates dessa área.

            A mobilização do significante comum nos debates contemporâneos do campo do Currículo tem sido intensificada recentemente pelo seu uso como um dos adjetivos, juntamente com os significantes nacional e curricular, do termo base. Não cabe aqui analisar de forma aprofundada esses debates cuja pertinência é indiscutível. Trata-se principalmente, de explorar as estratégias discursivas que sustentam os embates, tendo como foco os usos do termo comum acionados seja para apoiar e/ou justificar a necessidade da construção de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC), seja para criticar não apenas essa base curricular específica, mas também e sobretudo para problematizar o argumento que sustenta a necessidade e pertinência de qualquer base.

Se se concorda com Dardot e Laval (2015, 2017) em sua defesa pelo comum como um princípio político que nos permite desestabilizar a lógica neoliberal de seu lugar hegemônico, não seria talvez esse um caminho possível para “esgarçar a normatividade” (MACEDO, 2017, p. 521) produzida e estabilizada em meio às políticas curriculares? Ou ainda, se se concorda com Macedo (2014, 2015, 2018) quando essa autora aponta em suas análises sobre a BNCC a presença de articulações entre dois conjuntos de demandas - demandas neoliberais por accountability e demandas críticas por justiça social - que, nos debates curriculares, ora se aproximam, ora se distanciam - em função das oscilações da força política dos grupos de interesses em jogo, talvez entrar na disputa pelo termo comum pode ser um caminho potente para desequilibrar a balança a favor do reforço das demandas que se articulam em torno de justiça social. Afinal, ainda que inscrita no “princípio da irrealizabilidade” (MACEDO, 2015, p.905) e, portanto, não podendo ser vista como ‘uma promessa a ser cumprida’, a justiça social ainda ocupa um lugar potente como devir, como horizonte de expectativa, e como tal “ela precisa ser constantemente perseguida” (MACEDO 2015, p. 905).

            Entende-se aqui que a dimensão política do trabalho teórico, tendo como interlocução privilegiada a abordagem discursiva pós-fundacional (LACLAU; MOUFFE,2004, LACLAU, 1990, 2005, 2008, MARCHART, 2009), consiste tanto na desestabilização de fluxos de sentidos hegemônicos quanto no investimento em sentidos particulares de termos que se consideram, ainda que contingencialmente, serem potentes para pensar aquilo que se quer pensar.

            Com efeito, no quadro de inteligibilidade aqui defendido, qualquer processo de significação faz trabalhar a aporia da impossibilidade e da necessidade/inevitabilidade de toda definição, isto é, a tensão entre o reconhecimento das múltiplas e infinitas possibilidades abertas em todo processo de significação e a necessidade de selecionar e fixar, em meio a essa pluralidade, uma das possibilidades como forma de entrar na luta política, por meio da produção da fronteira que define provisoriamente o que é/ é/ está sendo/ interessa que seja e o que não é/ não está sendo/ não interessa que seja.

Fazer trabalhar essa aporia não significa, no entanto, negar ou buscar superar essa tensão, e sim reconhecer que na luta política qualquer fechamento ou fixação de sentido é sempre provisório e contingencial e, como tais, esses sentidos podem ser consolidados, estabilizados, hegemonizados ou desafixados, desestabilizados por meio do deslocamento das fronteiras na tentativa da produção de outras hegemonias e antagonismos. Definir, na abordagem pós-fundacional, é tanto diferenciar como objetivar, isto é, produzir um corte antagônico na cadeia indefinida de equivalências, visto como condição para que o processo de significação se efetive ainda que contingencial e provisoriamente. Afinal, como afirmam Laclau e Mouffe (2004), o antagonismo é a possibilidade e limite de qualquer possibilidade de objetivação. Desse modo, a definição de comum pressupõe a produção de uma cadeia equivalencial entre diferentes elementos, bem como um corte antagônico que produz e expulsa para fora dessa cadeia outros tantos elementos definidores do não comum.

No caso deste texto o que está em jogo é buscar ferramentas analíticas para continuar pensando politicamente o lugar da educação, da escola e do currículo na estruturação discursiva de uma ordem social desigual. O enfrentamento dos processos de significação em torno do termo comum foi, pois, a forma aqui encontrada para entrar nessa discussão. Essa opção se justifica pelo paradoxo acima mencionado: uma intensificação de seu uso no âmbito do debate sobre a BNCC e a rarefação dos discursos acadêmicos sobre seus processos de significação. Essa última afirmação é corroborada por Lopes (2018) quando a autora argumenta que:

 

Não é problematizado o que se entende por currículo comum e o que se entende por conhecimento comum (supostos como essenciais). Tampouco são apresentados elementos que sustentem a afirmação genérica e taxativa, como se todos os estudantes e escolas fossem iguais, de que alunas e alunos não aprendem na escola, desqualificando tudo que se realiza, desempoderando quem realiza. (LOPES, 2018, p. 25)

           

Os argumentos foram organizados em dois momentos. No primeiro, foi traçado um breve mapa das grandes linhas de argumentação presentes no debate curricular atual sublinhando as articulações entre a mobilização de sentidos particulares do termo comum e os grupos de interesse que contribuem para a sua fixação. No segundo, foram esboçadas outras possibilidades de interpretação desse mesmo termo, aqui considerados potentes, para serem igualmente lançadas nesse debate.

 

O que tem de comum na mobilização do uso do significante comum nos debates curriculares contemporâneos?

 

O campo empírico produzido para a realização dessa análise consistiu em duas coletâneas recentes de textos relacionados à BNCC publicadas em conjunturas políticas diferentes, embora próximas do ponto de vista cronológico, mas que convergem no sentido da escolha dessas duas coletâneas: a temática em torno da BNCC e o seu contexto de produção. Ambas foram organizadas por entidades políticas historicamente reconhecidas por sua militância progressista no campo educacional.

O foco na BNCC se justifica pelo fato de esse documento curricular condensar as disputas no campo curricular de mais de três décadas em torno do significante comum a partir das diferentes interpretações da tensão universal e particular e de suas múltiplas reatualizações como, por exemplo, nacional e local, coletivo e singular. Não é por acaso que o termo comum está grafado no próprio nome do documento, ocupando um lugar crucial nos debates e embates em torno do mesmo. Afinal, como sublinham Dardot e Laval (2017) , esse significante carrega uma historicidade condensada,, sendo possível observar nos últimos anos, uma explosão do uso do comum tanto no campo das práticas quanto no da reflexão intelectual.

A primeira coletânea refere-se ao dossiê Base Nacional Comum: projetos curriculares em disputa publicado em 2015 na Revista Retratos da Escola, vinculada a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE)[1]. A segunda coletânea consiste no livro A BNCC na contramão do PNE 2014-2024: avaliação e perspectivas publicado em 2018 pela Biblioteca da Associação Nacional de Políticas e Administração da Educação (ANPAE)[2]. Dessa forma, 16 artigos compuseram o acervo empírico.

A intenção não foi fazer uma síntese de seus principais argumentos, mas mapear os arranjos discursivos em torno do significante comum que circulam nos debates. Para tal, foi produzida aqui uma outra intertextualidade/interdiscursividade resultante das interpretações desse conjunto de textos a partir do recorte privilegiado. Operou-se com fragmentos discursivos, extraídos dessas escritas, nos quais aparece a grafia do termo comum para além do seu uso como adjetivo da BNCC. Essa opção metodológica fez com que nem todos os textos do acervo empírico participassem da mesma forma na tecitura da narrativa trazida neste texto como objeto de análise.

O tratamento empírico desse material parte do entendimento, pois, que esse conjunto de textos representa discursos produzidos em contextos específicos nos quais os sujeitos se posicionam e são posicionados como estudiosos e militantes do campo educacional. Na escolha desses textos importou, portanto, mais o editorial ou apresentação de cada coletânea que os reuniu do que a forma como cada autor optou para entrar no debate. Os fragmentos discursivos produzidos pela equipe editorial ou organizadora de ambas as coletâneas permitem evidenciar a articulação buscada entre os campos intelectual e o da militância.

 

Visando problematizar a concepção e os desdobramentos da implantação da BNCC no campo educacional e na relação com as demais políticas setoriais, vários autores com seus respectivos textos participaram da elaboração deste Caderno que pretende contribuir com o debate no contexto da Conferência Nacional Popular de Educação 2018 (CONAPE 2018). (AGUIAR; DOURADO, 2017, p.7. Apresentação).

 

A intenção é apresentar aos leitores contribuições de professores e pesquisadores do cenário educacional brasileiro e, dessa forma, oferecer subsídios ao debate ora em curso que tem mobilizado os profissionais da educação e outros segmentos sociais envolvidos com a educação pública, vinculados a diferentes movimentos e espectros político-ideológicos. (COMITÊ EDITORIAL, 2015, p.265).

Assim, esses artigos são compreendidos como textos curriculares que, ao abordarem a temática da BNCC, participam da construção, estabilização e/ou desestabilização de sentidos particulares de diferentes significantes que habitam a discussão curricular. Entre esses significantes, como mencionado anteriormente, busca-se destacar as articulações discursivas nessa produção envolvendo o termo comum. Que lógicas de equivalência e de diferença são acionadas? O que é considerado e fixado como comum nesses debates? O que se expele como seu exterior constitutivo?

A primeira anotação que se traz para o debate é o uso recorrente nesses textos deste significante como adjetivo. Uma segunda observação diz respeito ao foco do adjetivo comum nessa coletânea, cujos textos ora orientam a discussão para os conhecimentos legitimados como objeto de ensino, ora se centram nos sujeitos posicionados como professores/as e/ou alunos/as. O comum é mobilizado para significar tanto o que é decidido como tal, quanto para quem, isto é, para qual comunidade de sujeitos esse comum se destina.

A leitura desse conjunto de artigos tende a apontar que esse adjetivo, a despeito do foco privilegiado, é mobilizado para qualificar argumentos tanto contrários quanto favoráveis à BNCC. Essa qualificação assume conotações tanto positivas quanto negativas dependendo do conjunto de demandas a que ela é associada e/ ou a perspectiva teórica que está sendo privilegiada. Referimo-nos mais especificamente a movimentos de valorização e de depreciação desse significante quando mobilizados na produção desses argumentos.

A conotação positiva do adjetivo comum tende a associá-lo a processos democráticos de acesso aos bens culturais desigualmente distribuídos. Trata-se de reforçar a importância de uma base curricular comum para a construção de uma escola pública democrática de maneira que todos tenham o direito de aprender conteúdos mínimos, de modo a assegurar a formação básica comum (MEC/BNCC, 2017, p. 8). Uma formação de base comum é vista como uma estratégia para garantir a equidade nos processos de ensino-aprendizagem em uma sociedade desigual, injusta e plural, por meio da definição de um conjunto de elementos - competências, saberes, valores - considerados como imprescindíveis e validados como objetos de ensino para garantir as aprendizagens essenciais (MEC/BNCC, 2017, p. 7) na educação básica. É possível reconhecer essa mesma percepção no fragmento abaixo:

 

Pode-se entender que a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é uma pretensão a ser alcançada em conformidade com o que estabeleceu a Constituição Federal de 1988 em seu artigo 210, parágrafos 1º e 2º, ao referir-se aos conteúdos mínimos a serem fixados para o ensino fundamental, no sentido de assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos nacionais e regionais, dispondo, ainda, sobre a obrigatoriedade de oferta de matrícula facultativa do ensino religioso, da ministração dessa etapa da educação básica em língua portuguesa e da possibilidade de utilização das línguas maternas e processos próprios de aprendizagem às comunidades indígenas. (MENDONÇA, 2018, p. 34).

 

O significante comum ocupa a função discursiva de um ponto nodal que condensa as demandas de justiça social encabeçadas pelos movimentos sociais, mas também pelo setor público-estatal e, simultaneamente, é percebido como o exterior constitutivo de termos como exclusão, desigualdade, privado e particular reatualizando discursos sobre a interface estado-público, que investem e apostam na função política dessa instituição de guardiã das conquistas sociais.

Estudos recentes no âmbito das teorizações sociais (DARDOT; LAVAL, 2015, 2017) têm apontado, no entanto, que a sustentação teórica e política da defesa desse sentido particular de comum torna-se cada vez mais difícil na atualidade tendo em vista que “o Estado é ele mesmo o alvo das políticas que visam enquadrá-lo às normas do mercado, transformá-lo em uma quase empresa ‘competitiva’ e ‘eficaz’”. (DARDOT; LAVAL, 2015, p.267, grifos do original). Não é por acaso que Lopes (2018) aponta que um dos pressupostos que está na construção desta base e que precisa ser problematizado é justamente o fato de ela veicular a possibilidade de fornecer “garantias sociais de que todos os alunos e as alunas terão credenciais/padrões de aprendizado uniformes” (LOPES, 2018, p.23).

Essa forma de usar o significante comum nos debates curriculares apresenta vestígios que apontam a sua inscrição no grupo de demandas críticas por justiça social, como anteriormente mencionado. No entanto, argumenta-se aqui que essa possibilidade não se afirma per si. Ela depende das fixações contingenciais de sentidos dos demais termos - sujeito, conhecimento, conteúdos, direitos, Estado, público - que participam e configuram essa cadeia equivalencial.

Sem deslocamentos, desestabilizações e rearticulações desses/entre esses termos, a potência política do significante comum é fragilizada, não sustentando de forma radical o rompimento com a lógica neoliberal, individualista, privatista e competitiva que opera igualmente com o entendimento de comum, embora de forma reificada e reduzida ao domínio jurídico como será explorado mais adiante. A defesa do comum sem maiores problematizações e reconfigurações da cadeia equivalencial que o define contingencialmente não impede a reverberação, tampouco diminui a pertinência de questões como: quem tem direito de acessar o que é historicamente construído como sendo destinado para todos? Quem determina o que deve ser considerado o que é historicamente construído como bem comum?

O sentido negativo emerge com mais força quando o termo comum tende a ser associado ao adjetivo nacional que qualifica igualmente a base curricular reativando tensões clássicas - como universal/particular, identidade/diferença, individual/coletivo - que atravessam o campo educacional há décadas. Esse movimento de centralização curricular se traduz na busca de uma cultura escolar comum, por meio de estratégias que fortalecem os discursos de nação que a significam como antagônica de pluralidade e diversidade. (GABRIEL, 2015). Nessa linha argumentativa o significante comum se inscreve na cadeia equivalencial da qual participam termos como único, idêntico, padronização, homogeneização, expelindo termos como: diferença, desigualdade, diversidade, pluralidade, singularidade e heterogeneidade, que passam a ocupar o lugar de seu exterior constitutivo.

Como apontam as críticas a essa percepção, a articulação comum-idêntico-homogêneo tende a ser mobilizada de forma a nomear simultaneamente aquilo que é ou deve ser ensinado-aprendido na educação básica - sendo entendido como conteúdo universal - e a comunidade educacional formada pelos sujeitos posicionados como alunos/as dessa etapa do sistema de ensino, negando as singularidades de suas trajetórias individuais, bem como de seus pertencimentos culturais. Para Lopes (2018), por exemplo,

 

[...] uma base curricular comum, tal como organizada no país, pressupõe apostar em um registro estabelecido como tendo um selo oficial de verdade, um conjunto de conteúdos que adquire o poder de conhecimento essencial a ser ensinado e aprendido, metas uniformes e projetos identitários fixos, trajetórias de vida preconcebidas, esforços para conter a tradução e impor uma leitura como a correta, única e obrigatória. (LOPES, 2018, p. 27).

 

Essa crítica pode ser igualmente observada na argumentação de Silva (2015) quando afirma que:

 

[...] a proposta de Base Nacional Comum Curricular vai justamente em sentido oposto ao entendimento de que enfrentar as desigualdades passa por respeitar e atentar para a diferença e diversidade de todos os tipos, desde a condição social até as diferenças étnico- raciais, de gênero, sexo etc. (SILVA, 2015, p. 375).

 

Em linhas gerais, o que tem de comum no uso do significante comum nos debates curriculares contemporâneos é o registro jurídico onde esses discursos inscrevem esse significante ao mobilizá-lo como adjetivo de termos como bem, e/ou direito, tanto nos argumentos contrários quanto nos favoráveis à BNCC, e independente da dimensão - positiva ou negativa - enfatizada, no conjunto desses textos, o termo comum remete a algo que pode ou deve ser apropriado, seja de forma individual ou coletiva, seja no âmbito do espaço público ou privado. Um exemplo desse fluxo de sentidos em torno do comum pode ser percebido nessa afirmação de Ferreira (2015):

 

Na mesma linha, influenciado pelas mudanças na direção do reconhecimento dos direitos de grupos que historicamente estavam excluídos das pautas governamentais, gradualmente também, o termo diversidade foi sendo apropriado por movimentos sociais representativos de grupos distintos, que têm em comum o fato de que experimentam a desvantagem, seja na forma de não acesso aos bens sociais e culturais, seja na forma de exclusão educacional, de violação ao seu direito de participação ou porque sofrem preconceito e discriminação sutil, explícita ou, às vezes, escancarada. (FERREIRA, 2015, p. 303, grifo dos autores).

A interface comum-apropriação historicamente construída no mundo ocidental capitalista em torno da ideia de propriedade individual e/ou coletiva se acirra com a hegemonização da lógica neoliberal que a partir dos anos 1980 “com o auxílio de todo o arsenal das políticas públicas”, impôs uma via diferente que resultou em “um novo sistema de normas que se apropria das atividades de trabalho, dos comportamentos e das próprias mentes”. (DARDOT; LAVAL, 2017, p.12). Essa política deliberada do neoliberalismo conta com a participação do Estado “cuja principal função hoje é dobrar a sociedade às exigências do mercado mundial” (DARDOT; LAVAL, 2017, p.14).

A tese defendida por esses autores em relação à importância do reconhecimento da potência política do termo comum parte justamente da constatação da falência do Estado Nacional, no momento atual de acumulação capitalista, como protetor das populações em relação à lógica concorrencial dos mercados financeiros e a seus efeitos nas relações sociais e nos processos de subjetivação. O fim das “crenças e esperanças progressistas depositadas no Estado” (DARDOT; LAVAL, 2017, p.15) faz emergir o imperativo da reinvenção do comum

 

No fundo, paradoxalmente, foi o próprio neoliberalismo que impôs a virada do pensamento político para o comum, rompendo com a falsa alternativa especular entre Estado e mercado mostrando que é inútil esperar que o Estado “volte a encaixar” a economia capitalista no direito republicano, na justiça social e mesmo na democracia liberal. (DARDOT; LAVAL, 2017, p.15)

           

Na abordagem defendida por esses teóricos, a redução da inscrição deste termo ao registro jurídico e mais especificamente à tradição jurídica da propriedade tem sido um movimento hegemônico tanto no campo político da esquerda como no da direita. Para eles:

 

[...] que tenha chamado de pública, nacional, coletiva ou social para distingui-la do setor capitalista, a esquerda viu nela [propriedade] o meio por excelência para ultrapassar o capitalismo, de modo que o socialismo inscreveu-se no esquema binário de origem jurídico que opõe o privado e o público (DARDOT; LAVAL, 2015, p.261-262).

Essa análise é bastante instigante para a reflexão sobre as políticas curriculares em curso no país quando se sabe que, seja para apontar as potencialidades da escola pública, seja para sublinhar suas fragilidades, os debates em torno da BNCC se organizam em torno desse esquema binário (GABRIEL, 2018).  A mobilização do termo comum nesse contexto discursivo reatualiza cadeias de equivalências que tendem a reafirmar a interface público-privado como termos antagônicos.

A leitura de Macedo (2015, 2017) sobre a dinâmica de aproximação das demandas - de mercado e de justiça social - em torno das quais se articulam os diferentes grupos de interesse que participam das discussões sobre a BNCC - encontra terreno fértil tanto para sua sustentação quanto para sua problematização na crítica de Dardot e Laval (2015, 2017) sobre a hegemonização de um sentido particular da interface pública-estatal-comum no registro jurídico que regula e defende a ideia de propriedade. Afinal, o que explicaria que as demandas formuladas no seio de grupos de interesses antagônicos podem ser articuladas em uma mesma cadeia de equivalência definidora de comum?

A argumentação sustentada por Macedo (2017) opera com a compreensão que essa articulação se manifesta na produção de discursos do comum que se sustentam “em oposição à imprevisibilidade da ação docente e em defesa do controle do currículo” (MACEDO, 2017, p. 509). Nessa lógica, o comum é compreendido como aquilo sobre o qual é preciso prever e é possível exercer o controle, reforçando a ideia de comum-apropriação-pertença.

Segundo Dardot e Laval (2015) esse entendimento evidencia a presença de estratégias discursivas por meio das quais o significante comum nomeia mais uma reivindicação de uma propriedade coletiva (bem, direito) do que o exercício de direito de uso coletivo. No que concerne mais diretamente às políticas curriculares, o desafio consiste, pois, em abrir caminhos teóricos para que outros sentidos de comum possam participar das lutas pela significação de currículo, de escola pública democrática e/ou de conhecimento escolar para além da lógica neoliberal. É possível pensar um sentido de comum capaz de se instituir em um espaço público como a escola sem que isso signifique o apagamento das diferenças da comunidade escolar, tampouco o investimento na valorização da neutralidade do conhecimento validado como objeto de ensino-aprendizagem nos currículos da educação básica?

Entende-se aqui que sem um deslocamento de sentido de comum de “apropriação-pertença” (bens e direitos) para “apropriação-destinação” (relação de finalidade dessa apropriação), tal como proposto por Dardot e Laval (2015, p.269), esse termo se esvazia de sua potência política, remetendo à impossibilidade de romper com essa lógica normativa dominante. A seguir, serão explorados os efeitos desse deslocamento para se continuar a pensar politicamente o campo educacional.

 

Outros lances possíveis em torno do comum no jogo da linguagem

 

Com o comum, não se trata mais de opor simplesmente a propriedade privada e a propriedade pública, mas de questionar prática e teoricamente os fundamentos e os efeitos do direito de propriedade, opondo-lhes o imperativo social do uso comum (DARDOT; LAVAL, 2015, p. 262).

 

A citação acima remete à tese desses dois autores, abrindo pistas para a reflexão sobre o termo comum que merecem ser exploradas no campo educacional, em particular nas reflexões que incidem ou tangenciam as políticas curriculares. Além disso, defende-se aqui que uma leitura pós-fundacional permite ainda potencializar as pistas apontadas por esses autores na medida em que, ao enfraquecer o estatuto ontológico do sentido de fundamento nos processos de definição/significação - neste caso do termo comum - e colocar em evidência a força da contingência na leitura política do social, abre possibilidades infinitas para movimentos no campo da diferença no qual nos instituímos e agimos como sujeitos.

Importa aqui sublinhar que na abordagem pós-fundacional, a radicalização da crítica aos essencialismos, não pressupõe a assunção de uma postura antifundacionista. O que está em jogo é operar na e com a aporia da impossibilidade e da inevitabilidade de todo processo de significação. A crítica pós-fundacional está voltada à ideia de fundamento absoluto e metafísico cuja definição se encontraria fora do jogo da linguagem, ao abrigo, pois, das lutas pela significação que se inscrevem no campo discursivo. Essa postura não nega, no entanto, o reconhecimento da necessidade de um fechamento, ainda que contingencial e provisório, condição afinal para que todo processo de significação e de luta política possa ser efetivado.    

Como deixa entrever a citação que abre esta parte do texto, o reconhecimento da possibilidade de operar com fundamentos contingenciais, pode ser observado na medida em que se defende o questionamento prático e teórico de um sentido particular do comum fundamentado pelo “direito de propriedade”. Segundo esses autores, a fronteira a ser disputada nas lutas pela significação do comum é menos da ordem da tensão entre público e privado do que da ordem da desfixação do termo propriedade como direito bem como a produção de outros antagonismos, colocando no jogo político o argumento do “imperativo social do uso comum”.

Essa forma de entrar no debate opera com a ideia de fronteira como sendo justamente o lugar do corte, da produção do antagônico, do que é colocado para dentro da cadeia definidora por meio da lógica de equivalência e do que é expelido, passando a constituir, por meio da lógica da diferença, o seu exterior constitutivo. Não existe uma melhor forma ou uma forma mais adequada de definir comum, mas sim a possibilidade de lançar outros sentidos nos debates curriculares contemporâneos que permitem fazer trabalhar certas aporias que o atravessam.

Dito de outra forma, trata-se de privilegiar o lugar do corte, da marcação da fronteira na qual se entende ser mais produtiva investir no jogo da linguagem em questão. Afinal, como permite pensar a teoria do discurso de Laclau e Mouffe (2004), a disputa em meio às lutas pela significação é menos pela definição de um universal ou de um particular do que pelo estabelecimento da fronteira entre esses dois termos.

Não se trata, pois, de apenas problematizar uma definição de comum como sinônimo de universal, percebido como a negação da diferença, do singular, mas sim de operar com outras lentes epistêmicas e chaves de leitura que permitam continuar pensando politicamente com essa palavra ainda que se reconheça que ela esteja “sob rasura” (Hall, 2000). Isso leva a seguinte questão: como pensar o comum para além da universalização de um particular? Ou ainda: Qual sentido particular de comum não reforça a ideia de homogeneização ou universalização de um particular?

Os estudos recentes de Dardot e Laval (2015, 2017) sobre a problemática do comum tem justamente oferecido ferramentas para enfrentamento desse tipo de questionamento. Para esses autores, o uso desse termo pelos movimentos sociais carrega um novo sentido particular que precisar ser explorado ao se tentar contextualizá-lo na contemporaneidade. Na leitura deles, o termo comum emerge nos discursos e demandas formuladas no seio desses grupos como uma resposta simultânea ao Estado e ao Mercado. Não se trata, pois, como sublinhado por esses autores, de uma reatualização de sentidos hegemonizados desse termo, mas sim, de lançar outros sentidos ou melhor explorar outras possibilidades abertas.  Desse modo, foram identificadas aqui algumas estratégias discursivas trabalhadas por esses autores que parecem potentes para a reflexão aqui proposta.

A primeira diz respeito ao deslocamento do uso desse significante de adjetivo para substantivo. O comum passa a ser percebido como um princípio político a ser aplicado e não mais apenas como uma qualidade de pertencimento a ser instituído. O que está em jogo, nesse caso, é menos a defesa de um direito comum do que o direito do comum ou de comuns. Como afirmam esses autores:

 

[...] é preciso, por um lado, evitar entender o comum no sentido restrito de bens comuns e, por outro, desenvolver um direito do comum como um novo tipo de direito de uso, onde apropriações se distinguem dos usos proprietários e levem a criação de instituições do comum. (DARDOT, LAVAL, 2016, s/p)

 

Esse deslocamento é importante porque associa diretamente, e logo de saída, esse termo “ao princípio de atividade política constituído pela atividade específica da deliberação, julgamento, decisão e a aplicação de decisões” (DARDOT; LAVAL, 2016 s/p.). Esse entendimento permite, por um lado, diminuir o risco de reificação desse termo, na medida que se afasta da ideia de uma palavra que adjetiva um objeto oferecido, uma coisa que pode ser apropriada individual ou coletivamente por sujeitos posicionados em diferentes contextos. Por outro lado, ele exige um enfrentamento rigoroso do ponto de vista teórico com o entendimento de termos como, por exemplo, político e público.

A segunda estratégia discursiva diz respeito justamente aos processos de fixação do termo político nas reflexões desses autores que apresentam elementos de aproximação com as contribuições pós-fundacionais sobre essa questão. O comum significado como princípio político, que traz para o jogo da linguagem o entendimento do imperativo social do seu uso, da sua gestão, é um princípio pautado na contingência e no conflito em meio à diferença instituinte do social.

 

De fato, a lógica de agrupamento não deve ser confundida com a busca por unanimidade, harmonia e consenso como algo absoluto. Ao invés disso, ela procura superar os conflitos através da coprodução de normas e não através da abolição imaginária de conflitos que são necessariamente uma parte de toda vida coletiva. Esse ponto precisa ser enfatizado: conflito não é ruim por si; ele não é de modo algum a semente da guerra civil; pelo contrário, ele é seu antídoto desde que tenha uma expressão institucional. (DARDOT; LAVAL, 2016 s/ p.)

 

Nessa perspectiva, a instituição de um comum não pressupõe a negação dos conflitos, mas sim a coprodução das normas que regulam o seu uso coletivo. É o que esses autores nomeiam de “apropriação-destinação” mencionada anteriormente. O que importa é menos o direito de propriedade de um bem comum do que a participação democrática coletiva - com toda a sua conflitualidade - do uso desse bem instituído como comum. Não se trata assim, de apropriar-se de algo, seja de um bem ou de um direito, mas de “instituir o inapropriável” (DARDOT; LAVAL, 2017). Isto é: “uma vez instituído, um comum não é alienável; a partir de então ele se instala na esfera de coisas que não podem ser apropriadas. Isto significa que ele escapa da lógica proprietária em qualquer de suas formas (privada ou estatal)”. (DARDOT; LAVAL, 2016, s/p).

O ato de instituir o(s) comum(ns) é, por sua vez, a possibilidade de refundar ou reinstituir, em permanência, o Social de forma que o comum (como um princípio) não seja confundido com aquilo que é comum (como um atributo ou característica de certas coisas). “Todo comum que é instituído é um bem, mas nenhum bem é por si comum” (DARDOT; LAVAL, 2016, s/p.). Importa sublinhar que essa definição não nega a existência de um bem comum, mas o desloca em termos de sua definição e funcionalidade discursiva no debate político. Em termos de definição ela desnaturaliza o sentido de bem comum como se fosse algo “naturalmente intrínseco a certos tipos de ‘bens’”. (DARDOT, LAVAL, 2016, s/p.). Um bem comum é um bem que é instituído em meio às lutas hegemônicas como tal e que uma vez instituído deixa de ser propriedade de alguém ou de algum grupo. Afinal,

 

[...] o que está em questão não é a apropriação do comum para o que ele se destina, mas apropriar-se da conduta dos membros do coletivo. O objetivo é garantir, através de normas de uso coletivo, que o comportamento de apropriação predatória não desvie do objetivo de uma específica destinação social em comum. Em outras palavras, o objetivo é regular o uso do comum sem precisar fazer-se seu proprietário, isto é, sem conceder a si o poder de dispor dele como seu dono supremo. (DARDOT; LAVAL, 2016, s/p.)

 

Em termos da função discursiva atribuída ao termo bem comum nos debates políticos contemporâneos, a perspectiva trabalhada por esses autores permite deslocá-la do lugar de ponto nodal em torno do qual se articulariam as forças progressistas em defesa da justiça social para um momento da cadeia equivalencial definidora do comum como princípio político.  Desse modo, agir politicamente significa menos a adesão a uma determinada comunidade, por mais amplo que isso possa ser, do que da participação na produção das normas e da gestão das atividades ou tarefas que a constituem.

A terceira estratégia discursiva mobilizada por esses autores no seu enfrentamento com a questão do comum, diz respeito à forma de entendimento da interface comum-público-Estado. Segundo a perspectiva aqui defendida, na conjuntura atual, onde o Estado tornou-se um protagonista da lógica neoliberal, o entendimento de bem comum como bem público não garante o deslocamento do sentido de comum de apropriação-pertença (direito, bem, comunidade) para o de apropriação-destinação. Ao contrário essa articulação entre comum-público na adjetivação do significante bem tende a reafirmar um sentido particular de comum do qual os argumentos desenvolvidos, até aqui, pretendem se afastar. Como afirmam Dardot e Laval (2016):

 

O Estado/Público repousa sobre dois requisitos completamente contraditórios: por um lado, garantir o acesso universal aos serviços públicos; por outro, dar à administração estatal o monopólio da gestão desses serviços e reduzir seus usuários a consumidores, enquanto são excluídos de qualquer forma de participação na gestão. (DARDOT; LAVAL, 2016 s/p).

Nesse mesmo movimento, sobre a articulação entre os significantes comum e público, Tassin (1991) tem trazido igualmente fecundas contribuições, ao se debruçar de forma crítica nas fixações em torno do significante público. Para esse autor essa articulação pode ser explorada a partir de duas interrogações conjuntas: como se passa do comum para o público? Que comunidade se institui a partir de um espaço público?

As respostas esboçadas por Tassin (1991) abrem caminhos instigantes para pensar igualmente o deslocamento defendido por Dardot e Laval (2015, 2016, 2017) do sentido de comum/comunidade da ideia de apropriação-pertença para apropriação-destinação. Ou, se preferimos, do entendimento de comum como coisa passível de ser apropriada e transmitida, ou de comunidade como comunhão de unidades diferenciais que se fundem em um corpo único, para a sua compreensão como um princípio político que se manifesta pela instituição do inapropriável, como mencionado anteriormente.

Com efeito, Tassin (1991), ao definir o espaço público como espaço de mediação, de distanciamento, de dispersão e de difusão com força suficiente para desviar os indivíduos de toda adesão massiva em nome de uma identificação comunitária, remete à ideia de comunidade política, permitindo pensar outras possibilidades de definição do comum de forma articulada com o espaço público. O espaço é público quando não é mais comum, ou melhor, quando ele não mais se inscreve em uma comunidade-comunhão tendencialmente próxima de pertencimento, se aproximando assim, do entendimento de comum como princípio político defendido por Dardot e Laval (2015, 2016, 2017).

Assim, falar de domínio público significa operar com topos da pluralidade, da diferença que se institui como um comum que não se funda ou se justifica em noção alguma de comunidade originária e que recusa, por princípio, toda ideia de comunhão final e, se pode acrescentar, direito à propriedade. Nessa perspectiva, a questão do comum se define pela relação entre domínio público e mundo comum, sendo a primeira condição do segundo. Como afirma Tassin (1991, p. 35):

 

[...] o mundo comum é fenomenologicamente irredutível. Mas ele não é dado: nem natural, tampouco inocente. Nós não nascemos nesse mundo: nascemos somente em mundos que são tais – mundos - por causa do mundo que eles não são.

 

Esse entendimento de público de Tassin (1991) coincide com o que Dardot e Laval (2016, 2017) apostam ao afirmarem que o comum - como princípio político - não se opõe ao público se não significarmos mais esse último em termos de propriedade. O que lhes interessa reter do significante público é justamente a destinação social que ele carrega e pela qual vale a pena lutar. Nessa perspectiva, a questão do comum pode ser definida pela relação entre domínio público e mundo comum, para além da reafirmação do binarismo público-privado. A interface público-comum não é vista como um objeto de propriedade, mas como expressão da dimensão do indisponível e do inapropriável. 

Inapropriável, mas visível, o domínio público é o lugar da emergência do mundo no sentido que sem esse espaço o mundo não poderia aparecer como comum. A heterogeneidade é um elemento constitutivo do domínio público e é somente nesse sentido que ele pode ser nomeado como comum. Do mesmo modo,

 

[...] o bem público não pode ser apanágio de nenhuma comunidade particular, não pode consistir na afirmação e na preservação de uma pretensa identidade comunitária: ele é a preservação do espaço político e da visibilidade que dá lugar a um mundo comum. (TASSIN, 1991, p.36).

 

Essas breves reflexões sobre o comum promovem o desafio de buscar outros arranjos discursivos para entrar no debate educacional e em particular no debate curricular contemporâneo. Se se reconhece, como Masschelin e Simons (2015), que a escola é o lugar no qual o mundo comum é tornado público, visível para as novas gerações, o desafio consiste, então, em disputar a fronteira sempre aberta entre aqueles que participam e os que não participam ativamente do controle da coprodução das normas que fazem a gestão do que é validado como digno de visibilidade.

Esse movimento exige a reinvenção de “instituições que funcionem explicitamente no sentido de impedir a apropriação por uma minoria, de proibir a deturpação de suas propostas e também de prevenir a ‘ossificação’ de suas normas” (DARDOT; LAVAL, 2016, s/p). Essa exigência pode servir de eixo orientador para manter o termo comum como elemento potente nas reflexões do campo educacional e continuar, assim, pensando politicamente com ele sentidos de escola, currículo e conhecimento.

O que está em jogo talvez não seja a reinvenção da escola pública, mas sim a sua reinstitucionalização na esfera do comum. Isso significa que não se está falando de escola como lócus de produção de currículo ou de transmissão de conhecimentos considerados como bens comuns reduzidos a uma categoria jurídica. O argumento, no entanto, é que ela seja concebida como instituição que “comuniza” (DARDOT; LAVAL, 2017, p. 618) o que é instituído pelos sujeitos que nela habitam como um comum cuja apropriação por grupos de interesse particulares é impossível.

 

Considerações finais

 

A análise, com base em uma teorização pós-fundacional, de duas coletâneas acadêmicas sobre a BNCC - que se assumem em perspectivas crítica e progressista para pensar a educação - apontou que o significante comum foi, nesses espaços discursivos, majoritariamente mobilizado com o sentido de ‘direito a’, na lógica jurídica. Procuramos argumentar ao longo do texto que, a despeito das pertinentes críticas formuladas por esse conjunto de textos ao caráter homogeneizador ensejado pelo texto curricular oficial, a hegemonização desse sentido de comum impede, ou ao menos dificulta, projetos de educação e de sociedade radicalmente democráticos, como sustenta Mouffe (2003).

Nesse sentido, sublinhamos a insuficiência da perspectiva jurídica e apostamos na politização da significação do comum como forma de privilegiar a pluralidade, o público, a diferença - nas perspectivas aqui enunciadas – nos debates curriculares. Afinal, como nos ensina Mouffe (2015), democracia pressupõe conflitos, dissensos e negociações e não, consenso. A disputa pelo significante comum em meios aos debates curriculares nos parece uma estratégia política mais potente do que a sua negação como momento incontornável de uma cadeia equivalencial em torno de um sentido possível de escola democrática.

 

Referências

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DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian.  O comum: um ensaio sobre revolução no século 21, publicado na categoria Tenda do site Universidade Nômade em novembro de 2016. trad. de Renan Porto.

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GABRIEL, Carmen Teresa. Quando 'nacional' e 'comum' adjetivam o currículo da escola pùblica. Retratos da Escola, v. 9, p. 283-297, 2015.

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[1] Os textos e seus respectivos autores são: O conceito de diversidade na BNCC: relações de poder e interesses ocultos (Windyz Brazão Ferreira); Contribuições da neurociência para a concepção de currículo (Elvira Souza Lima); O público e o privado na educação: projetos em disputa? (Vera Maria Vidal Peroni e Maria Raquel Caetano); BNC e educação infantil: quais as possibilidades? (Rosânia Campos e Maria Carmen Silveira Barbosa); Currículo, ensino médio e BNCC: um cenário de disputas (Mônica Ribeiro da Silva); O ensino de língua portuguesa e a Base Nacional Comum Curricular (João Wanderley Geraldi); Avaliação, Currículo e suas implicações: projetos de sociedade em disputa (Claudia Oliveira Fernandes).

 

[2] os textos e seus respectivos autores são: Relato da resistência à instituição da BNCC pelo Conselho Nacional de Educação mediante pedido de vista e declarações de votos (Márcia Angela da S. Aguiar); Apostando na produção contextual do currículo (Alice Casimiro Lopes); “A base é a base”. E o currículo o que é? (Elizabeth Macedo); PNE e Base Nacional Comum Curricular (BNCC): impactos na gestão da educação e da escola (Erasto Fortes Mendonça); Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e os impactos nas políticas de regulação e avaliação da educação superior (Luiz Fernandes Dourado e João Ferreira de Oliveira); PNE, Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e os cotidianos das escolas: relações possíveis? (Nilda Alves); A formação das novas gerações como campo para os negócios? (Theresa Adrião e Vera Peroni); Políticas curriculares no contexto do golpe de 2016: debates atuais, embates e resistências (Inês Barbosa de Oliveira).