O golpe de 2016 e a educação no Brasil
The 2016 coup and the education in Brazil
Georgia Sobreira dos Santos Cêa
Professora associada da Universidade Federal de Alagoas. Maceió, Alagoas, Brasil.
gecea@uol.com.br - https://orcid.org/0000-0003-2131-217X
Camila Ferreira da Silva
Professora associada da Universidade Federal do Amazonas, Manaus, Amazonas, Brasil.
ferreira.camilasilva@gmail.com - http://orcid.org/0000-0002-2348-9350
Simone Natividade
Doutoranda na Universidade Federal de Alagoas. Maceió, Alagoas, Brasil.
simone.doutorado.sp@gmail.com - https://orcid.org/0000-0003-2758-9540
Recebido em 27 de junho de 2020
Aprovado em 16 de outubro de 2020
Publicado em 31 de julho de 2021
O livro “O golpe de 2016 e a educação no Brasil”, organizado por Nora Krawczyk e José Claudinei Lombardi, renomados pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), foi lançado em dezembro de 2018, durante o VI Seminário da Educação Brasileira (SEB), evento organizado pelo Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES). Publicado no formato de e-book, o livro está hospedado na Biblioteca Digital da Unicamp, tendo registrado, até junho de 2020, mais de 2 mil downloads.
No melhor estilo benjaminiano, mesmo que implicitamente, o livro nega, desde seu título, a interpretação dominante de que o desfecho dos movimentos que ensejaram o impeachment de Dilma Rousseff significou o pleno exercício democrático. Por esse posicionamento, o livro em questão realiza o exercício da leitura a contrapelo da história, desagarrada da empatia com o ponto de vista dos vencedores (BENJAMIN, 1987).
O tour promovido pela obra – atravessando os antecedentes, o processo e as sequelas do golpe, tendo como pretexto a educação nacional – revela a densidade de elementos da conjuntura política contemporânea a serem compreendidos. No percurso, o livro ratifica a visão de Souza (2016) de que o hodierno movimento da luta de classes que domina a cena política brasileira serviu de pano de fundo para a dinâmica golpista.
A compreensão do golpe jurídico-parlamentar-midiático de 2016, que culminou no impeachment de Dilma Rousseff, vem sendo buscada por diferentes intelectuais no âmbito acadêmico. Atividade de destaque nesse sentido foi a oferta da disciplina “Tópicos especiais em Ciência Política: O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil”, entre os meses de março e julho de 2018, sob a coordenação do professor Luis Felipe Miguel, da Universidade de Brasília (UnB), auxiliado pela monitora de pós-graduação Karina Damous Duailibe. Antes mesmo de seu início, a atividade sofreu tentativas de criminalização e de judicialização por parte do governo, à época, conforme nota do Ministério da Educação (MEC) divulgada em matéria do jornal O Globo online, em 21 de fevereiro de 2018. Sob o argumento de que a ocorrência de proselitismo político e ideológico em espaço público seria passível de improbidade administrativa, a nota indicava que a iniciativa do professor deveria ser averiguada por instâncias como a Advocacia-Geral da União (AGU), o Tribunal de Contas da União (TCU), a Controladoria-Geral da União (CGU) e o Ministério Público Federal (MPF) (O GLOBO, 2018).
Naquela ocasião, a tentativa frustrada de repressão por parte do MEC resultou em manifestações de repúdio de diversos agentes sociais e estimulou a realização de atividades semelhantes em dezenas de universidades do país. Deste último lado localiza-se, então, a construção coletiva de um curso livre na Faculdade de Educação da Unicamp, realizado entre março e junho de 2018, com o mesmo título do livro ora resenhado. Por conseguinte, a obra reúne contribuições de professores e pesquisadores que tomaram parte da atividade da Unicamp.
Pautados na autonomia universitária e na liberdade de cátedra, 17 pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento ganham voz em “O golpe de 2016 e a educação no Brasil”. Como anunciam os organizadores, o livro, assim como o curso livre que o ensejou, cumpre um duplo desiderato: é uma demonstração de solidariedade frente à ameaça de censura aos colegas da UnB, e uma expressão da defesa intransigente do caráter livre, crítico e independente que deve caracterizar a função da universidade como instituição social.
A obra é composta por doze capítulos, que podem ser agrupados em três conjuntos de discussão, nomeadamente: a) processos, forças, lutas e sujeitos constitutivos do mais recente golpe de Estado no Brasil, b) primeiras investidas deste golpe contra os trabalhadores e c) efeitos do golpe na educação. Vale a pena esclarecer que alguns textos, naturalmente, trafegam por mais de um desses grupos, de modo que não serão apresentados, necessariamente, na mesma ordem em que figuram no livro.
O primeiro grupo de capítulos lança luz em processos que possibilitaram a concretização do golpe de 2016 no país: “O golpe no Brasil e a reorganização imperialista em tempo de globalização” (Barnabé Medeiros Filho); “A crise política e o papel da educação na resistência ao golpe de 2016 no Brasil” (Dermeval Saviani); “O golpe de 2016, suas raízes. Perspectivas da resistência” (Reginaldo Moraes); “Micropolíticas das imagens e sons do golpe - apontamentos a partir do filme ‘O processo’, de Maria Augusta Ramos” (Carlos Eduardo A. Miranda e Wenceslao M. de Oliveira Jr.); “Golpes de Estado e educação no Brasil: a perpetuação da farsa” (José Claudinei Lombardi e Marcos R. Lima); “A revolução burguesa no Brasil e o golpe de 2016” (Debora Mazza). Esse conjunto faz a radiografia do golpe, contemplando as disputas sociais, econômicas, políticas e ideológicas que o engendraram, além de evidenciarem os sujeitos e seus papéis no jogo político em questão: o Legislativo e o Judiciário, as forças que compunham a coalisão do Executivo, a elite nacional, os partidos políticos, o empresariado, os movimentos sociais, a mídia, a influência internacional, entre outros. Há menção, ainda, às vicissitudes do golpe intrínsecas à “operação” ou “onda Bolsonaro”, como nomeiam, respectivamente, os autores dos dois primeiros capítulos supracitados.
Um segundo grupo de capítulos discute as primeiras consequências do golpe de 2016, com fortes investidas contra o ordenamento jurídico constitucional. Em “Mercantilização da educação, a reforma trabalhista e os professores: o que vem por aí?” (Evaldo Piolli) e “A reforma trabalhista no Brasil e o golpe de 2016: uma abordagem sócio-jurídica” (Roberto Heloani), os autores escrutinam bastidores, arenas e desdobramentos da Emenda Constitucional nº 95/2016, da reforma trabalhista e da proposta de reforma da previdência, medidas que desnudaram por completo a agudização do direcionamento neoliberal na breve e contundente era Temer.
Compõem um terceiro bloco argumentativo no livro quatro capítulos que tratam de temas educacionais, sendo eles: “A disputa cultural: o pensamento conservador no ensino médio brasileiro” (Dirce Zan e Nora Krawczyk); “Formação de professores: o Estado pós-democrático, a ditadura e os golpes de 1964 e 2016 no Brasil” (Nima Spigolon); “O golpe e a gestão democrática das escolas” (Cristiane Machado e Mara Regina M. Jacomeli); “Educação infantil em risco: ‘cadê o direito que estava aqui?! O golpe comeu!’” (Marcia Lucia Anacleto Souza e Ana Lúcia G. de Faria). Priorizando medidas e perspectivas para a educação no contexto pós-golpe, esses textos sublinham o tom autoritário assumido pelo Estado brasileiro no âmbito das tomadas de decisões para a educação, caracterizadas, desde então, por um movimento unilateral e do tipo top-down, minando o incipiente esforço de diálogo com a sociedade civil na construção de políticas mais inclusivas e democráticas para o setor, incluindo nisso a representatividade de educadores e de movimentos sociais de nuance popular.
Sem esgotar as possibilidades de síntese da leitura do livro, é cristalina a força argumentativa da tipificação da alternância de forças no poder no Brasil recente como um golpe de Estado, do que o impeachment de Dilma Rousseff foi o zênite. Nesse quesito, não poderia ser mais elucidativa a definição desse processo histórico como um “golpichment”, conforme cunhado pelos organizadores do livro em tela (KRAWCZYK; LOMBARDI, 2018, p. 2). A energia do exercício analítico empenhado pelos autores, sem exceção, é derivação exemplar da combinação de três fontes caras à produção de conhecimento científico de linhagem crítica do real: o recorte cirúrgico de objetos de estudo tomados à análise, a fundamentação em insignes referenciais teóricos empáticos à causa dos grupos sociais historicamente subjugados à ordem social burguesa e, last but not least, a robusteza de dados empíricos sobre os temas escrutinados.
Sem qualquer menosprezo à qualidade e à importância da obra resenhada, cabe a advertência ao tangencial tratamento, no livro, de contradições intestinas presentes no entrelaçamento de projetos – de país e de poder – levado a efeito pela irresistibilidade dos governos de Lula da Silva e de Dilma Rousseff frente ao estabelecimento de consensos, especialmente entre forças sociais inconciliáveis. O reconhecimento de influências da governança neoliberal nas gestões daqueles chefes do Executivo, de um lado, e da existência de conflitos e de imensas distâncias entre os projetos de Brasis dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) e do governo de Michel Temer, de outro, são, de fato, elementos transversais às análises presentes no livro. Não obstante, tais considerações parecem ter deixado a meio caminho a tarefa de projetar o porvir, mesmo que nos limites da democracia representativa. Mas, é forçoso reconhecer, a obra organizada por Krawczyk e Lombardi é ferramenta rara, nesses tempos sombrios decorrentes do golpe de 2016, que encoraja à compreensão e ao enfrentamento de novíssimas estratégias da histórica luta social em curso no Brasil.
Ao fundamentar – com densidade e coerência – a legitimidade da leitura de ocorrência de um golpe jurídico, parlamentar e midiático no Brasil, em 2016, o conjunto de capítulos revela uma atitude primorosa, audaciosa – e, por que não dizer, necessária – que toca em particularidades da história recente do país, por vezes silenciadas/ocultadas, que merecem ser denunciadas, debatidas e desmistificadas, a despeito da coerção ao exercício de suspeição da (ir)racionalidade orientadora das forças no poder.
Além de ser uma produção coletiva, pública, de qualidade e elaborada por intelectuais comprometidos com a luta contra o desmonte e a mercadorização da educação pública, o e-book guarda ainda outro diferencial: é obra de acesso livre e gratuito na rede mundial de computadores. Uma subversão alentadora em tempos de mercantilização da ciência e do ofício dos intelectuais.
Referências
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, v. 1. São Paulo: Brasiliense, 1987.
KRAWCZYK, Nora; LOMBARDI, José Claudinei (Orgs.). O golpe de 2016 e a educação no Brasil. Uberlândia: Navegando Publicações, 2018. E-book (208 p.). ISBN: 978-85-53111-28-2. Disponível em: https://www.fe.unicamp.br/publicacoes/noticias/e-book-o-golpe-de-2016-e-a-educacao-no-brasil. Acesso em: 20 out. 2019.
SOUZA, Jessé. A radiografia do golpe: entenda como e por que você foi enganado. Rio de Janeiro: LeYa, 2016.