Redução e retrocessos na política de tempo integral na escola brasileira: do Programa Mais Educação ao Programa Novo Mais Educação
Reductions and setbacks in full-time policy in Brazilian schools: from Programa Mais Educação to Programa Novo Mais Educação
Cintia Aurora Quaresma Cardoso
Universidade Federal do Para, Belém, Pará, Brasil.
cintiacard@yahoo.com.br - https://orcid.org/0000-0002-8929-1523
Ney Cristina Monteiro de Oliveira
Professora Doutora na Universidade Federal do Pará, Belém, Pará, Brasil.
neycmo@ufpa.br - http://orcid.org/0000-0002-8091-5213
Recebido em 19 de junho de 2020
Aprovado em 22 de fevereiro de 2021
Publicado em 27 de janeiro de 2022
RESUMO
O estudo tem como objetivo analisar comparativamente os macrocampos temáticos do Programa Mais Educação (PME) e do Programa Novo Mais Educação (PNME), no que se refere à proposta de formação integral do sujeito. Adota metodologicamente uma abordagem qualitativa, por meio de revisão bibliográfica e estudo documental. Os dados revelam que o PME, criado em 2007, foi a primeira tentativa a nível nacional de uma política pública de indução da educação integral, mas, apresentou percalços durante sua implementação e permanência nas escolas, decorrentes de problemas estruturais na educação pública brasileira. Em 2016, o Programa foi substituído pelo PNME; neste, embora se tenha incorporado, da versão anterior, os macrocampos Esporte, Lazer, Arte e Cultura, estas atividades têm como objetivo impulsionar a melhoria da aprendizagem do Português e da Matemática, o que evidencia uma matriz formativa reduzida à dimensão cognitiva de conteúdos curriculares relativos apenas à leitura e ao cálculo matemático, para serem testados nas avaliações nacionais, distante, assim, do ideal de formação plena do indivíduo.
Palavras-chave: Educação Integral; Macrocampos temáticos; Mais Educação.
ABSTRACT
The study aims to comparatively analyze the macrofields of the More Education Program (Programa Mais Educação – PME) and the New More Education Program (Programa Novo Mais Educação – PNME), regarding the proposal of integral education of the subject. Methodologically adopts a qualitative approach, through bibliographical review and documentary study. The data show that the PME, created in 2007, was the first attempt in a national level of a public policy for the induction of integral education, but it has presented problems during its implementation and permanence in schools, due to structural problems in Brazilian public education. In 2016, the Program was replaced by the PNME; in this one, although the macrofields Sports, Leisure, Art and Culture have been incorporated from the previous version, these activities aim to boost the learning of Portuguese and Mathematics, which shows a formative matrix reduced to the cognitive dimension of curricular contents related only to reading and mathematical calculation, because they are tested in national assessments, thus far from the ideal of full individual formation.
Keywords: Integral Education; Thematic macrofields; Mais Educação.
Introdução
Este artigo é fruto da pesquisa desenvolvida no mestrado do Programa de Pós-Graduação em Currículo e Gestão da Escola Básica (PPEB), da Universidade Federal do Pará (UFPA), tendo como objetivo analisar comparativamente os macrocampos temáticos do Programa Mais Educação (PME) e do Programa Novo Mais Educação (PNME), no que se refere à proposta de formação integral do sujeito. O tema se insere nas discussões contemporâneas do direito à educação pública e da formação integral ancorada numa política pública que busque minimizar as desigualdades educacionais (evasão, reprovação, distorção idade/série dos alunos) e sociais, por meio da ampliação do tempo escolar das crianças, adolescentes e jovens, com a oferta de atividades socioeducativas no contraturno escolar.
Quanto ao tipo de pesquisa, tem como abordagem a investigação qualitativa. Esta exige do investigador “que o mundo seja examinado com a ideia de que nada é trivial, que tudo tem potencial para constituir uma pista que nos permita estabelecer uma compreensão mais esclarecedora do nosso objecto de estudo” (BOGDAN; BIKLEN, 1999, p. 49). Desse modo, a abordagem qualitativa, ao entender o fenômeno específico em profundidade, é a que melhor contempla a problemática ora definida: como são trabalhados nos macrocampos temáticos do PME e do PNME a proposta da formação integral do ser?
Os procedimentos metodológicos utilizados foram a revisão bibliográfica, por meio do estudo da literatura existente sobre a educação integral e os processos de implantação do PME e do PNME; e a pesquisa documental, a qual “[...] se utiliza de métodos e técnicas para a apreensão, compreensão e análise de documentos dos mais variados tipos” (ALMEIDA; GUINDANI; SILVA, 2009, p. 5).
A pesquisa se justifica por tratar de um assunto que tem tido visibilidade nas últimas décadas, especialmente com a implantação, a nível nacional, do PME, em 2007, e, posteriormente, do PNME, o que tem levado à ampliação do debate e da discussão sobre essa temática, em cujos meandros há a finalidade de ampliar o tempo escolar para que seja induzida a educação integral.
Para dar conta de nosso objetivo, organizamos este artigo nas seguintes seções: Educação Integral/em Tempo Integral no Brasil, no qual destacamos aspectos da história da educação integral, resgatando a sua origem da paidéia grega até os dias atuais; Programa Mais Educação: uma proposta para indução da Educação Integral, em que expomos o PME; A lógica do Programa Novo Mais Educação: de que educação integral estamos falando?, na qual tratamos da nova política de educação em tempo integral instituída no governo Temer; e Macrocampos Temáticos do PME e do PNME, em que discorremos sobre os macrocampos e atividades das escolas urbanas e das escolas do campo em ambas as versões do Programa.
Educação Integral/em Tempo Integral no Brasil
A educação integral é um assunto que tem ganhado visibilidade nas últimas décadas em nosso país, em função das diferentes propostas e projetos de ampliação da jornada escolar nas diferentes regiões do território nacional. No entanto, esse ideal não surgiu no Brasil, sendo manifestado em vários momentos anteriores da história da humanidade, tanto no período da Antiguidade clássica, quanto na modernidade e contemporaneidade.
A concepção de educação integral remonta à Antiguidade, pois foi nesse período que surgiram os ideais da formação do ser humano completo; os gregos compreendiam que a educação era a oportunidade de construir indivíduos integrais (COELHO, 2009). Para além de formar o homem, a educação deveria também formar o cidadão, com um conjunto de qualidades físicas, espirituais e morais necessárias a um indivíduo completo.
Na educação grega, encontramos uma formação voltada para o desenvolvimento pleno do ser humano, buscando-se uma individualidade perfeita e independente, por meio de uma formação integrada do corpo e da mente, do físico e do espiritual. O ideal de educação grega, objetivado por meio da Paidéia, era a formação do sujeito perfeito e completo, baseada nos conhecimentos adquiridos na ginástica, na música, na teologia, na gramática, retórica, matemática, geografia, história natural e filosofia.
A formação estava ligada à concepção de homem ideal do pensamento grego,
[...] segundo o qual se devia formar o indivíduo, não é um esquema vazio, independente do espaço e do tempo. É uma forma viva que se desenvolve no solo de um povo e persiste através das mudanças históricas. Recolhe e aceita todas as transformações do seu destino e todas as fases do seu desenvolvimento histórico (JAEGER, 1994, p. 13).
Desse modo, o homem ideal não poderia ser compreendido de maneira isolada, desconectado de tempo e espaço, já que as mudanças acontecem e afetam o ser, e esse ser compõe um todo, do qual cada parte exerce importância na formação desse conjunto, não podendo assim ser excluída ou desprezada. Compreendemos que a educação grega tinha como propósito a formação de um cidadão perfeito e completo, ou seja, com um conjunto de qualidades físicas, espirituais e morais.
A educação integral ressurge no período moderno, no contexto da Revolução Francesa, nos fins do século XVIII, liderada pelo grupo dos jacobinos, que defendiam os ideais de formação do homem completo, concebendo o desenvolvimento das crianças nos aspectos intelectual, físico e moral (COELHO, 2009).
No entanto, a educação aspirada pelos jacobinos não se concretizou em sua plenitude, pois apenas uma pequena parcela da sociedade da época passou a ter acesso a ela, tornando-se privilégio de poucos e ocasionando, ao longo dos séculos, reivindicações e lutas das classes e segmentos excluídos desse acesso à educação, visando à possibilidade de mudança e ascensão social.
Posteriormente, a concepção de educação integral foi recuperada pelo pensamento anarquista do século XIX, com os teóricos Proudhon, Bakunin e Robim, pensadores que criticaram o sistema educacional vigente à sua época (MORAES, 2009). Os pensadores anarquistas desejavam uma educação sem dominação e que favorecesse a formação integral do ser, com a articulação entre o saber intelectual e o manual, constituindo uma visão completa e equilibrada do sujeito, numa perspectiva de romper com o modelo e o privilégio de educação burguesa de então.
Essa concepção de formação integral do ser esteve presente na visão socialista de Karl Marx (1818-1883), o qual defendia uma educação socializadora e igualitária, para todos, que não ficasse restrita apenas à classe dominante, mas, à qual a classe trabalhadora tivesse acesso, e que fosse voltada para a formação omnilateral, ou seja, para “todos os lados ou dimensões” – corporal, intelectual, educacional, psicossocial, afetiva, estética e lúdica (FRIGOTTO, 2012, p. 267). Isso representa uma perspectiva de formação pautada no desenvolvimento integral do indivíduo, mediada pelas relações sociais de trabalho e produção humana.
Outra importante contribuição para a formação integral do sujeito foi a de Antônio Gramsci (1891-1937), ao propor a escola unitária, com base na formação humana por meio da integração entre trabalho, ciência e cultura, numa perspectiva de inovação do mundo material e social, dando possibilidade aos educandos à intervenção consciente na realidade em que estão inseridos e na compreensão do processo histórico de construção do conhecimento.
Desse modo, compreendemos que a formação integral do ser estava presente nas ideias desses pensadores, que lutaram contra o Estado burguês, defensor de uma educação excludente, elitista, instrumental e pragmática.
No Brasil, a educação integral para as classes populares começa a ser discutida a partir da primeira metade século XX, por meio de concepções e práticas diferentes. Neste contexto, destacamos os católicos, os integralistas, os anarquistas e os liberais.
A educação integral para os católicos reconhecia duas realidades: o corpo e a alma, sendo que o corpo físico não podia ser visto como algo separado da alma, pois a “educação integral Católica não deverá separar aquilo que é unido no composto harmônico. Neste sentido, não há educação física separada da educação moral” (CURY, 1988, p. 56).
O anarquismo defendia um projeto educativo, com o propósito de capacitar trabalhadores para a transformação social, buscando uma nova sociedade socialista libertária. Segundo Ribeiro (2017, p. 37), o pensamento educacional desse movimento “consistia na formação intelectual, física, profissional e moral, tendo em vista a transformação social. A integralidade, nesta perspectiva, centrava-se nas dimensões da formação do indivíduo”.
Para os integralistas, as bases da educação integral eram a espiritualidade, o nacionalismo cívico, a disciplina, bases que podem ser caracterizadas como político-conservadoras (BRASIL, 2009). Os integralistas, assim como os católicos, representavam o pensamento conservador de educação integral no Brasil.
A educação integral no âmbito do pensamento educacional dos liberais conhecidos como Pioneiros da Educação Nova, em 1932, era vista como uma formação completa do ser, “[...] calcada em atividades intelectuais, artísticas, profissionais, físicas e de saúde, além daquelas de cunho ético-filosófico” (COELHO, 2009, p. 89). Entre seus principais pensadores, estão Fernando de Azevedo (1894-1974), Anísio Teixeira (1900-1971), Lourenço Filho (1897-1970) e Cecília Meireles (1901-1964).
A educação integral idealizada pelos liberais foi colocada em prática no Brasil nos anos 1950, com a implantação do Centro Educacional Carneiro Ribeiro (CECR) ou Escola Parque, em Salvador, por Anísio Teixeira, o qual defendia a escola pública para todos, visando proporcionar à criança uma educação integral, mediante atividades educativas, alimentação, cuidados com a higiene e assistência médico-odontológica. No Centro, as atividades curriculares eram realizadas nas chamadas Escolas-Classe no turno básico e nas Escolas-Parque no contraturno, sendo desenvolvidas as atividades educativas e socioeducativas.
Posteriormente, tiveram evidência outras experiências de educação integral em tempo integral em alguns governos, esferas públicas e sociedade civil em suas localidades, na busca pela melhoria da qualidade da educação brasileira e de, ao mesmo tempo, proteger integralmente as crianças em situação de vulnerabilidade social. Entre algumas experiências, encontramos o Centro Educacional Elementar (CEE) em Brasília, os Ginásios Vocacionais, em São Paulo, passando pelos famosos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs) , no Rio de Janeiro, o Programa de Formação Integral da Criança (PROFIC), em São Paulo, os Centros Integrados de Atendimento à Criança (CIACs), que passaram a se chamar Centros de Atenção Integral à Criança e aos Adolescentes (CAICs), Programa Escola Integrada (PEI), em Belo Horizonte, Centros Educacionais Unificados (CEUs), em São Paulo e Centros de Educação Integrada (CEIs), em Curitiba.
Vale ressaltar que os CIEPs foram criados por Darcy Ribeiro, inspirados no CECR, retomando o projeto de escola pública de tempo integral. Esse projeto pedagógico tinha como objetivo atender crianças e adolescentes em turnos estendidos e oferecer educação, esportes, assistência médica, alimentos e atividades culturais variadas. Compreendemos que Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro marcaram de maneira significativa a educação brasileira ao erguer seus sonhos de construir a educação integral no Brasil.
A nível nacional, no ano de 2007, o governo brasileiro implementou o Programa Mais Educação, o qual se constitui como estratégia do Ministério da Educação para indução da educação integral nas redes estaduais e municipais de ensino.
Programa Mais Educação: uma proposta para indução da Educação Integral
O PME, instituído pela Portaria Interministerial nº 17/2007 e pelo Decreto n° 7.083/2010 (BRASIL, 2007, 2010), tem por finalidade contribuir para a melhoria da aprendizagem, buscando proporcionar educação integral em tempo integral, ampliando os espaços, a organização curricular e as oportunidades de aprendizagem aos alunos, com desenvolvimento de atividades socioeducativas nos campos da educação, artes, cultura, esporte e lazer. Essas ações seriam realizadas no contraturno, impulsionando a melhoria do desempenho escolar, além de contribuírem para a proteção social e para formação para a cidadania.
O PME foi uma estratégia de política pública indutora para a EI, atendendo, prioritariamente, às escolas com baixo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), situadas no campo e na cidade, em territórios marcados por situações de vulnerabilidade e risco social. O Programa buscava minimizar as desigualdades educacionais e sociais, por meio da ampliação do tempo escolar das crianças, adolescentes e jovens, com a oferta de atividades socioeducativas em turno complementar, com a extensão do tempo de atividades escolares (RIBEIRO, 2017).
Em 2016, o MEC anunciou um novo formato para o PME, justificado pela afirmativa de que, aproximadamente, 50% das escolas de ensino fundamental (anos finais) não alcançaram a meta do Ideb (BRASIL, 2016a). Vale ressaltar que várias mudanças no cenário educacional brasileiro ocorreram naquele mesmo ano como reflexo da política nacional, quando a Presidenta Dilma Rousseff foi destituída do cargo, assumindo o seu vice, Michel Temer.
Além da mudança governamental, um dos elementos impulsionadores para mudança do Programa foi o Relatório de Avaliação Econômica e Estudos Qualitativos do PME, pesquisa que utilizou como indicadores as notas de Matemática e Português na Prova Brasil (do 5º ao 9º anos) e Taxa de Abandono (dos ciclos I e II do Ensino Fundamental) das escolas atendidas pelo Programa (FUNDAÇÃO ITAÚ SOCIAL, 2015). Os resultados da pesquisa da Fundação Itaú Social demonstram que essas instituições, no período de 2008 e 2010, apresentaram ineficácia no desempenho médio dos alunos nas avaliações do Ideb.
O relatório da empresa não analisou questões referentes ao espaço, à infraestrutura, à formação de profissionais, à integração das atividades no projeto pedagógico, aos critérios para priorizar escolas e alunos, recursos para sua implementação, entre outros fatores que poderiam influenciar nos resultados e na qualidade da educação, uma vez que, nas pesquisas nacionais, são elementos identificados como percalços para a efetivação do PME.
De acordo com o estudo de Sousa (2016), algumas situações contribuíram para inviabilizar a ampliação da jornada escolar na instituição lócus de sua pesquisa, como a precariedade do espaço e da infraestrutura, a formação de profissional, a jornada escolar e o recurso.
Para Mendonça (2017, p. 107), a implantação do PME nas escolas brasileiras colocou em evidência as dificuldades do uso do espaço na ampliação da jornada escolar, pois encontramos nas instituições “[...] insuficiência de banheiros; cozinhas e cantinas inadequadas para servir refeições; uso do pátio e de quadras por um número”.
Ainda assim, o governo federal substituiu o PME pelo PNME exclusivamente sob a alegação do não alcance das metas de aprendizagem estabelecidas pelo Ideb, como se esse fosse o único balizador para uma formação integral e instrumento avaliativo para medir a aprendizagem do aluno.
A lógica do Programa Novo Mais Educação: de que educação integral estamos falando?
O Programa Novo Mais Educação, instituído pelo presidente Michel Temer por meio da Portaria nº 1.114/2016 e regido pela Resolução FNDE nº 5/2016 (BRASIL, 2016b), propõe a melhoria da aprendizagem em Língua Portuguesa e Matemática no ensino fundamental, com a ampliação da jornada escolar de crianças e adolescentes, mediante a complementação da carga horária de cinco ou quinze horas semanais no turno, ou contra turno escolar.
O novo Programa tinha como uma estratégia do Ministério da Educação para elevar a aprendizagem dos alunos das escolas públicas do ensino fundamental por meio da ampliação de tempos, espaços escolares e oportunidades educacionais (BRASIL, 2017). Para isso, propunha o aumento da jornada escolar de cinco ou quinze horas semanais, no turno e contraturno escolar.
A organização das atividades prevista no PNME era realizada da seguinte maneira: as escolas que fizeram adesão por 5 horas semanais deveriam obrigatoriamente desenvolver 2 (duas) atividades de acompanhamento pedagógico, uma de língua portuguesa, com a carga horária de 2 horas e meia de duração, e outra de matemática, também com 2 horas e meia de duração. Já as instituições que optaram por 15 horas de atividades semanais teriam a oportunidade de realizar as atividades de acompanhamento pedagógico, de língua portuguesa e matemática, ambas com carga horária semanal de 4 horas de duração, além das 3 (três) atividades complementares de livre escolha, nos campos das artes, cultura, esporte e lazer.
Em relação à organização e número de alunos por turma, o PNME indicava que as turmas de acompanhamento pedagógico deveriam ser preenchidas por, no máximo, 20 (vinte) estudantes; já as turmas de atividades complementares devem ser compostas por, no máximo, 30 (trinta) estudantes.
O PNME se desenvolveu na escola de ensino fundamental com acompanhamento pedagógico (orientação de estudos de leitura, escrita, alfabetização e letramento; acompanhamento de matemática) e atividades complementares (nos campos das artes, cultura, esporte e lazer). O acompanhamento pedagógico era um campo de caráter obrigatório, que buscava a ampliação das oportunidades de aprendizado dos estudantes, com foco na aprendizagem do aluno em Língua Portuguesa e Matemática. Para isso, segundo o documento orientador “devem se valer de metodologias inovadoras e ter como foco a superação dos desafios apontados pela avaliação diagnóstica de cada aluno” (BRASIL, 2016c, p. 8).
Desse modo, compreendemos que, ao priorizar o número menor de alunos e maior carga horária nas atividades de acompanhamento pedagógico, o Programa deixa evidente sua preocupação com as atividades curriculares de língua portuguesa e matemática, delegando menor importância às atividades nos campos das artes, cultura, esporte e lazer.
Macrocampos Temáticos do PME e do PNME
Com vistas à indução da educação integral, o PME e o PNME tinham suas atividades distribuídas em macrocampos temáticos, os quais apresentaram diferenças quanto à oferta das atividades, decorrentes de sua intencionalidade para a educação, conforme mostramos nos Quadros 1 e 2.
O PME organizou suas atividades em macrocampos e atividades para as escolas urbanas e macrocampos e atividades para as escolas do campo, pois se entendia que qualquer proposta que buscasse uma educação de qualidade deveria pensar a realidade local, suas especificidades ambientais e particularidades étnicas adequadas ao modo de viver, pensar e produzir das populações, o que remete a procedimentos específicos na implantação do Programa nas escolas do campo (BRASIL, 2014). Já o PNME dividiu suas atividades, mas, sem fazer distinção entre os macrocampos das escolas do campo e da cidade.
Ao compararmos os macrocampos temáticos ofertados à educação integral dos dois programas, em relação às escolas do campo, percebemos modificações nas atividades socioeducativas, pois, segundo o Manual Operacional de Educação Integral (BRASIL, 2014), o PME apresentava sete macrocampos temáticos de atividades; já o Documento Orientador (BRASIL, 2016c), apenas três. Esses macrocampos são demonstrados no Quadro 1.
Em relação ao acompanhamento pedagógico das escolas do campo, o PME buscava a ampliação das oportunidades de aprendizado aos estudantes por meio de uma atividade única chamada Campos do Conhecimento, a qual deveria abranger todas as áreas de conhecimento, ao contrário do PNME que contempla apenas duas disciplinas curriculares – Português e Matemática.
Quadro 1 – Macrocampos temáticos ofertados à educação integral (escolas do campo)
PME |
PNME |
Acompanhamento Pedagógico: dá-se por meio de uma atividade única chamada Campos do Conhecimento, devendo essa contemplar todas as áreas de conhecimento: Ciências Humanas, Ciências e Saúde, Etnolinguagem, Leitura e Produção Textual e Matemática |
Acompanhamento Pedagógico: Língua Portuguesa e Matemática |
Agroecologia: Canteiros Sustentáveis; COM-VIDA – Comissão de Meio Ambiente e Qualidade de Vida; Conservação do Solo e Composteira (ou Minhocário); Cuidado com Animais; Uso Eficiente de Água e Energia |
FOI EXCLUÍDO |
Iniciação Científica
|
FOI EXCLUÍDO |
Educação em Direitos Humanos: Arte audiovisual e corporal, Arte corporal e som, Arte corporal e jogos, Arte gráfica e literatura, Arte gráfica e mídias, Arte gráfica e mídia |
FOI EXCLUÍDO |
Cultura, Artes e Educação Patrimonial: Brinquedos e Artesanato Regional, Canto Coral, Capoeira, Cineclube, Contos, Danças, Desenho, Escultura/Cerâmica, Etnojogos, Literatura de Cordel, Mosaico, Música, Percussão, Pintura, Práticas Circenses, Teatro |
Cultura, Artes: Artesanato, Iniciação Musical/ Banda/Canto Coral, Cineclube, Dança, Desenho, Educação Patrimonial, Escultura/Cerâmica, Leitura, Pintura, Teatro/Práticas Circenses |
Esporte e Lazer: Atletismo; Basquete; Futebol; Futsal; Handebol; Tênis de Mesa; Voleibol; Xadrez Tradicional; Esporte na Escola/Atletismo e Múltiplas Vivências Esportivas; Ciclismo; Corrida de Orientação; Etnojogos; Judô; Recreação e Lazer/ Brinquedoteca |
Esporte e Lazer: Atletismo, Badminton, Basquete, Futebol, Futsal, Handebol, Natação, Tênis de Campo, Tênis de Mesa, Voleibol, Vôlei de Praia, Capoeira, Xadrez Tradicional, Xadrez Virtual, Judô, Karatê, Luta Olímpica, Taekwondo, Ginástica Rítmica |
Memória e História das Comunidades Tradicionais: Brinquedos e Artesanato Regional; Canto Coral; Capoeira; Cineclube; Contos; Danças; Desenho; Escultura/Cerâmica; Etnojogos; Literatura de Cordel; Mosaico; Percussão; Pintura; Práticas Circenses e Teatro |
FOI EXCLUÍDO |
Fonte: Elaborado pela autora a partir do Manual Operacional de Educação Integral (BRASIL, 2014) e documento orientador (BRASIL, 2016c).
Referente ao macrocampo Esporte e Lazer, identificamos uma redução de atividades, pois, enquanto o PME ofertava número maior de atividades, o PNME eliminou as seguintes: Esporte na Escola/Atletismo e Múltiplas Vivências Esportivas; Ciclismo; Corrida de Orientação, Etnojogos, Recreação e Lazer/Brinquedoteca; embora tenha inserido: Badminton, Natação, Karatê, Luta Olímpica, Taekwondo, e Ginástica Rítmica. Dessas atividades eliminadas, a que nos chama atenção é Etnojogos, por se tratar de uma atividade que valoriza e preserva os jogos tradicionais, brincadeiras e manifestações esportivas regionais, significando com isso desconhecimento dessa modalidade e até mesmo o desrespeito à diversidade etno-cultural da população do campo.
Nos macrocampos Cultura, Artes e Educação Patrimonial, houve a exclusão das atividades: Brinquedos e Artesanato Regional, Capoeira, Cineclube, Contos, Etnojogos, Literatura de Cordel, Mosaico, Percussão, Teatro; sendo que Artesanato Regional, Contos, Etnojogos e Literatura de Cordel são atividades que favorecem a produção artística dos estudantes, enquanto manifestações da cultura popular, contribuindo para o conhecimento, preservação e valorização cultural, bem como para o prazer e satisfação de pertencer ao campo.
No que se refere aos macrocampos excluídos pelo PNME, podemos inferir que a retirada do macrocampo Agroecologia significa o empobrecimento do conhecimento voltado à construção de valores sociais que promovem a sustentabilidade socioambiental e a qualidade de vida das pessoas, uma vez que possibilitava processos educativos “[...] baseados na agricultura familiar, no resgate da cultura tradicional local e na valorização da biodiversidade, princípios fundamentais para apoiar a escola na transição para a sustentabilidade” (BRASIL, 2014, p. 22).
A exclusão da iniciação científica representa um enfraquecimento
do pensar científico da investigação, da construção do conhecimento e da busca
de soluções.
A iniciação científica possibilita a fuga da rotina e da estrutura curricular,
possibilitando a autonomia, melhor capacidade de análise crítica do assunto
estudado e um maior discernimento para enfrentar as dificuldades.
A retirada do macrocampo Educação em Direitos Humanos (EDH) representou o definhamento de atividades que promoviam “[...] o respeito de todos os direitos e liberdades fundamentais, contribuindo para a prevenção e combate ao preconceito, discriminação e violências” (BRASIL, 2014, p. 24). A EDH é um processo sistemático e multidimensional que orienta a formação dos sujeitos de direito, estando intimamente ligada à igualdade de direitos e ao respeito às diferenças, necessária na busca de sua efetivação para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
Ao excluir das escolas do campo os macrocampos Iniciação Científica, Educação em Direitos Humanos, Memória e História das Comunidades Tradicionais e também atividades de outros macrocampos, o PNME empobreceu uma proposta que valorizava o ser humano como sujeito de direitos, o respeito às diferenças, as diferentes realidades, modos de viver, pensar e produzir das populações do campo, desconsiderando e desrespeitando as especificidades ambientais e particularidades étnicas dessas populações, o que contribui para invisibilizar o sujeito do campo como protagonista da sua história, indo de encontro com a concepção de desenvolvimento pleno do ser humano.
Em relação aos macrocampos e atividades das escolas urbanas, conforme demostra o Quadro 2, inferirmos que houve uma redução de atividades socioeducativas ofertadas pelo PNME, pois, enquanto o PME ofertava sete macrocampos temáticos com atividades diversas, o novo Programa contempla apenas três macrocampos, sendo esses os mesmos propostos para as escolas do campo.
No Quadro 2, constatamos a permanência de alguns macrocampos, como, por exemplo, Acompanhamento Pedagógico, Esporte/Lazer, Cultura/Artes; entretanto, há a exclusão (no PNME) de outros, como Comunicação, Uso de Mídias e Cultura Digital e Tecnológica; Comunicação Ambiental, Desenvolvimento Sustentável e Economia Solidária e Criativa/Educação Econômica, Direitos Humanos em Educação e Promoção da Saúde.
Quadro 2 – Macrocampos temáticos ofertados à educação integral (escolas urbanas)
MACROCAMPOS TEMÁTICOS – ESCOLAS URBANAS |
|
PME |
PNME |
Acompanhamento Pedagógico: Orientação de Estudos e Leitura Contemplando as diferentes áreas do conhecimento (alfabetização, matemática, história, ciências, geografia, línguas estrangeiras e outras) |
Acompanhamento Pedagógico: Língua Portuguesa e Matemática |
Comunicação, Uso de Mídias e Cultura Digital e Tecnológica: Ambiente de Redes Sociais, Fotografia, Histórias em Quadrinhos, Jornal Escolar, Rádio Escolar, Vídeo, Robótica Educacional, Tecnologias Educacionais |
FOI EXCLUÍDO |
Cultura, Artes e Educação Patrimonial: Artesanato Popular, Banda, Canto Coral; Capoeira, Cineclube, Danças, Desenho, Educação Patrimonial, Escultura/Cerâmica, Grafite, Hip-Hop, Iniciação Musical de Instrumentos de Cordas, Iniciação Musical por meio da Flauta Doce, Leitura e Produção Textual, Leitura: Organização de Clubes de Leitura, Mosaico, Percussão, Pintura, Práticas Circenses, Sala Temática para o Estudo de Línguas Estrangeiras e Teatro |
Cultura e Artes: Artesanato, Iniciação Musical/Banda/Canto Coral, Cineclube, Dança, Desenho, Educação Patrimonial, Escultura/Cerâmica, Leitura, Pintura, Teatro/Práticas Circenses |
Educação Ambiental, Desenvolvimento Sustentável e Economia Solidária e Criativa/Educação Econômica (Educação Financeira e Fiscal): Horta Escolar e/ou Comunitária, Jardinagem Escolar |
FOI EXCLUÍDO |
Esporte e Lazer: Atletismo, Badminton, Basquete de Rua, Basquete, Corrida de Orientação, Esporte da Escola/Atletismo e Múltiplas Vivências Esportivas (basquete, futebol, futsal, handebol, voleibol e xadrez), Futebol, Futsal, Ginástica Rítmica, Handebol, Judô, Karatê, Luta Olímpica, Natação, Recreação e Lazer/Brinquedoteca, Taekwondo, Tênis de Campo, Tênis de Mesa, Voleibol, Vôlei de Praia, Xadrez Tradicional, Xadrez Virtual, Yoga/Meditação |
Esporte e Lazer: Atletismo, Badminton, Basquete, Futebol, Futsal, Handebol, Natação, Tênis de Campo, Tênis de Mesa, Voleibol, Vôlei de Praia, Capoeira, Xadrez Tradicional, Xadrez Virtual, Judô, Karatê, Luta Olímpica, Taekwondo, Ginástica Rítmica |
Direitos Humanos em Educação: Educação em Direitos Humanos |
FOI EXCLUÍDO |
Promoção da Saúde: Promoção da Saúde e Prevenção de Doenças e Agravos à Saúde |
FOI EXCLUÍDO |
Fonte: Elaborado pela autora a partir do Manual Operacional de Educação Integral (BRASIL, 2014) e documento orientador (BRASIL, 2016c).
Referente ao acompanhamento pedagógico, identificamos que houve uma redução das atividades ofertadas pelo PNME, pois, enquanto o PME buscava a articulação do currículo escolar com as atividades pedagógicas, por meio da oferta do macrocampo Acompanhamento Pedagógico, que oferecia a Orientação de Estudos e Leitura, com propósito de abranger as diferentes áreas do conhecimento, como alfabetização, matemática, história, ciências, geografia, línguas estrangeiras, entre outras, interligando as várias áreas do saber de modo interdisciplinar, a nova versão do Programa oferta apenas duas atividades: a Língua Portuguesa e a Matemática, com a finalidade de melhorar o desempenho escolar do aluno, na leitura, escrita, alfabetização e letramento.
Em relação ao macrocampo Cultura, Arte e Educação Patrimonial, verificamos que a temática “Educação Patrimonial” foi retirada da composição do macrocampo do PNME, mas, permaneceu como atividade educativa. Já em relação às atividades desse macrocampo, observamos ainda que foram eliminadas as atividades Capoeira, Grafite, Hip-Hop, Iniciação Musical de Instrumentos de Cordas, Iniciação Musical por meio da Flauta Doce, Leitura: Organização de Clubes de Leitura, Mosaico, Percussão, Sala Temática para o Estudo de Línguas Estrangeiras. Isso representa a negação de atividades socioeducativas que promovem engajamento social de jovens de periferia, reduzindo o direito dos estudantes ao acesso à cultura e expressões artísticas significativas.
Já o macrocampo Esporte e Lazer, identificamos uma diminuição das atividades. Enquanto a versão de 2007 ofertava várias delas (Quadro 2), como Basquete de Rua, Corrida de Orientação, Recreação e Lazer, Brinquedoteca, Yoga/Meditação, o PNME excluiu essas atividades do seu macrocampo, entretanto, acrescentou a atividade da Capoeira. Vale mencionar que esta já era ofertada pelo PME, mas, fazia parte do macrocampo Cultura e Arte.
Concernente ainda a esse campo, chama a atenção a exclusão da capoeira do macrocampo Cultura e Arte, e sua inclusão no Esporte e Lazer, pois a capoeira surgiu no Brasil como uma forma de resistência dos escravos trazidos da África no período colonial. Assim, ao se inserir no macrocampo Cultura e Arte, possibilitava que os estudantes ampliassem seu conhecimento sobre a história do negro no Brasil e sua contribuição na formação de nossa sociedade e identidade cultural, dando maior projeção a esse povo que lutou e resistiu contra todo tipo de opressão, repressão, escravidão e estigmatização a que foram submetidos pela classe dominante da época. No entanto, quando a capoeira é excluída desse campo e representada como Esporte e Lazer, ela passa a ser pensada numa perspectiva reduzida ao gesto corporal, ao esporte, sendo desconsiderada como expressão cultural de resistência e de construção/afirmação de identidade étnico-cultural.
No que se refere aos macrocampos excluídos pelo PNME, quanto à temática Educação em Direitos Humanos, esse assunto se faz necessário na escola, independentemente da existência ou não de programas de indução de educação integral, pois contribui para que os membros da sociedade tenham um maior conhecimento e sensibilização sobre os problemas mundiais e possam também participar nas discussões e soluções dessas questões (RAYO, 2004).
Desse modo, a retirada desse macrocampo diminui o horizonte de conhecimentos dos alunos sobre seus direitos e responsabilidades na sociedade, uma vez que a EDH contribui para a consciência crítica acerca da realidade e dos problemas sociais, e estimula a formação de uma cultura de respeito à dignidade humana através da promoção e da vivência dos valores da liberdade, da justiça, da igualdade, da solidariedade, da cooperação, da tolerância e da paz, portanto, fundamental para indução da educação integral, porque favorece a interface com outras temáticas atinentes ao empoderamento da criança e do adolescente.
Quanto à exclusão do macrocampo Comunicação Ambiental, Desenvolvimento Sustentável e Economia Solidária e Criativa/Educação Econômica, revela uma grande perda na formação do sujeito global, que pense o planeta, a vida, a preservação e o uso racional e sustentável dos recursos naturais. Os conhecimentos produzidos neste macrocampo estimulam a mudança de atitudes e a formação de novos hábitos com relação à utilização dos recursos naturais, contribuem para a reflexão sobre a responsabilidade ética de nossa espécie, colaborando para que as futuras gerações usufruam de um ambiente saudável e sustentável.
A retirada do macrocampo da Saúde, por sua vez, impede que a escola tenha recursos mínimos para desenvolver atividades e ações voltadas para alimentação saudável, saúde bucal, educação para a saúde sexual, saúde reprodutiva e prevenção das IST/Aids; prevenção ao uso de álcool, tabaco e outras drogas; saúde ambiental; promoção da cultura de paz e prevenção em saúde, entre outras, além de orientar os discentes sobre doenças e enfermidades que podem comprometer não só a saúde física, como mental.
A eliminação do macrocampo Comunicação, Uso de Mídias e Cultura Digital e Tecnológica representa o empobrecimento no fortalecimento das práticas de socialização, interação e convivência no espaço escolar, pois, segundo o Manual de Orientação do PME, a prática “educomunicativa” amplia as possibilidades dos alunos trabalharem com a comunicação, “[...] neste momento em que temas estruturantes e transversais como ‘Educação em Direitos Humanos, Ética e Cidadania’ e ‘Promoção da Saúde’ encontram possibilidades criativas e inovadoras no espaço escolar” (BRASIL, 2014, p. 9).
Além disso, nesse macrocampo, o aluno tinha a oportunidade ampliar seu conhecimento sobre cultura digital e tecnológica, visto que há necessidade da inserção do estudante (e da escola) no mundo digital, pois o acesso à tecnologia para todos os segmentos da sociedade se tornou algo imprescindível para o exercício da cidadania, pois sabemos que não podemos pensar a tecnologia com algo distante da escola nem da vida dos sujeitos. Dessa maneira, é fundamental que os alunos tenham acesso às diversas linguagens, inclusive e principalmente, às digitais, considerando que vivemos em um mundo digital e não podemos ser alijados desse processo.
Diante da lógica de funcionamento e dos objetivos do PNME, este se centraliza no saber tradicional e tecnicista com foco na melhoria da aprendizagem dos alunos nas disciplinas de língua portuguesa, ao utilizar como método de avaliação dessas habilidades a realização de testes e relatórios “[...] que visam balizar não apenas as ações pedagógicas desenvolvidas pela escola, como também a formação dos articuladores e mediadores e, também, o acompanhamento da execução do programa” (BRASIL, 2017, p. 37), por meio de indicadores.
Desse modo, constatamos que a concepção de educação integral do PNME é alinhada ao modelo neoliberal e neogerencialista de educação, os quais reproduzem as desigualdades sociais. Nesta relação, o tempo ampliado visa atender à lógica dos resultados quantificáveis dos sistemas padronizados de avaliação, o que não representa os ideais da concepção de educação integral.
Considerações finais
O PME foi a primeira tentativa a nível nacional de uma política de ampliação do tempo escolar e organização curricular para indução da educação integral, por meio da oferta de atividades diversificadas, incluindo acompanhamento pedagógico, esporte/lazer, cultura/artes; comunicação, uso de mídias e cultura digital e tecnológica, comunicação ambiental desenvolvimento sustentável e economia solidária e criativa/educação econômica, direitos humanos em educação e promoção da saúde. No entanto, durante sua vigência, o Programa apresentou uma gama de problemas decorrentes da herança histórica de décadas de descaso com a educação pública, em um país que não colocou a educação entre as prioridades da agenda da política nacional.
Embora o PME tenha apresentado sérios problemas durante sua implantação e existência nas escolas, como precariedade dos espaços, da infraestrutura, da formação de profissionais, recursos e a dificuldade na integração das atividades com o Projeto Político Pedagógico da escola, decorrente de uma história de exclusão e de calamidade do ensino público brasileiro, ainda assim, buscava uma formação integral do ser, o que se tornou distante com o PNME; o que vemos neste é retrocesso de uma política que busque a indução da educação integral em tempo integral.
As mudanças no cenário político brasileiro, em 2016, ocasionaram a substituição do PME pelo PNME e, consequentemente, a reformulação dos macrocampos e atividades do Programa, a fim de atender aos objetivos da nova política, que é a melhoria do desempenho em Língua Portuguesa e Matemática das crianças e dos adolescentes.
A nova política dá destaque aos saberes cognitivos, o que se revela nos macroacampos temáticos do PNME, que, embora contemple arte, cultura, esporte e lazer, focaliza seus interesses na melhoria dos resultados de aprendizagem em Língua Portuguesa e Matemática, configurando-se como uma proposta atrelada à lógica dos resultados quantificáveis dos sistemas padronizados de avaliação com ênfase no conhecimento científico, em detrimento das demais dimensões de formação humana (física, social, emocional), o que afasta as escolas da proposta de formação integral do sujeito e as aproxima mais ainda do paradigma cognitivista, competitivo e produtivista de educação.
Além disso, compreendemos que a retirada dos macrocampos e a exclusão de algumas atividades dos campos Esporte/Lazer e Cultura/Artes nega às crianças e adolescentes o desenvolvimento de todas as suas dimensões, numa sociedade em que há necessidade de se alfabetizar digitalmente, de respeitar o meio ambiente, de atuar e modificar seu meio social, de discutir e viver situações de democracia, respeitar e conhecer as especificidades ambientais e particularidades étnicas da população do campo, de formar para a tolerância e o respeito à diversidade.
Desse modo, inferimos que a vigência do PNME e seus macrocampos temáticos trouxe para a educação pública brasileira um retrocesso na busca da formação multidimensional do ser. Em contrapartida, percebemos o avanço na concepção liberal-pragmática de educação, assentada nos ideais meritocráticos, competitivos, de racionalidade e produtividade, dada a ênfase do Programa aos resultados do Ideb. Com isso, o PNME legitima os processos de reconfiguração da educação ao modo de acumulação flexível do capitalismo.
As mudanças arquitetadas no cenário educacional nos últimos anos, como a substituição do PME pelo PNME, e o encerramento deste, sem discussão e orientação à comunidade escolar sobre o rumo da educação e dos programas, revelam a ascensão de uma “nova" política articulada para a educação brasileira, que se materializa e ganha força com a retirada de direitos, com a retomada do autoritarismo e de estímulo à política de atrelamento da educação brasileira aos interesses do grande capital financeiro, a qual busca a todo momento a destruição do que é público e da educação no Brasil, indo na contramão das metas traçadas para a educação nacional constantes do PNE/2014, fruto de árduas lutas dos educadores brasileiros.
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