A relação entre o campo de possibilidades e o projeto de vida de jovens em situação de conflito escolar
The relationship between the field of possibilities and the project of life of young people in situation of conflict at school
Eunice Maria Nazarethe Nonato
Professora doutora na Universidade Vale do Rio Doce. Governador Valadares, Minas Gerais, Brasil.
eunicenazarethe@hotmail.com - http://orcid.org/0000-0003-3583-3777
Edmarcius Carvalho Novaes
Professor na Universidade Vale do Rio Doce. Governador Valadares, Minas Gerais, Brasil.
edmarcius@hotmail.com - https://orcid.org/0000-0002-1901-0167
Ana Cristina Marques Lemos
Doutoranda na Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, Santa Catarina, Brasil.
tinalemosgv@outlook.com - http://orcid.org/0000-0002-0565-0315
Lorena Silva Vitório
Universidade Vale do Rio Doce. Governador Valadares, Minas Gerais, Brasil.
lorena_svitorio@hotmail.com - https://orcid.org/0000-0003-4615-7284
Aline Santos Pessotti de Oliveira
Universidade Vale do Rio Doce. Governador Valadares, Minas Gerais, Brasil.
a.pessotti48@gmail.com - http://orcid.org/0000-0001-5846-659X
Recebido em 16 de junho de 2020
Aprovado em 18 de outubro de 2021
Publicado em 24 de fevereiro de 2022
RESUMO
O artigo suscita a discussão sobre a relação da juventude e seu projeto de vida, oriunda de uma oficina nominada ‘Escola de Liderança’, realizada com jovens que se encontravam em situação de conflito escolar e que, de algum modo, manifestavam liderança entre seus pares. Através de um questionário aplicado para refletirem sobre o futuro a partir do tempo atual, e com os dados sociodemográficos encontrados nas fichas de matrícula destes jovens, tornou-se possível problematizar qual seria a relação entre o campo de possibilidades existentes com o projeto de vida destes jovens em conflito escolar. Trata-se de um estudo interdisciplinar, qualitativo, descritivo, exploratório e bibliográfico. Constata-se que o contexto social e o campo de possibilidades desses jovens traçam seus projetos de vida, muitos baseados em desejos e objetos representativos de ostentação, luxo e poder – os quais podem ser acessados sobretudo pela via da criminalidade, uma vez as atuais condições sociais existentes e que se encontram vinculados.
Palavras-chave: Juventudes; Conflito Escolar; Campo de Possibilidades; Projeto de Vida.
ABSTRACT
The article raises the discussion about the relationship between youth and their life project, coming from a workshop named 'Leadership' School, performed with young people who were in a situation of conflict at school and that, in some way, demonstrating leadership among their peers. By means of a questionnaire applied to reflect on the future from the current time, and with the sociodemographic data found in the connectors of registration of these young people, it became possible to problematize what would be the relationship between the field of possibilities with the project of life of these young people in conflict at school. It is an interdisciplinary study, qualitative, descriptive, exploratory and bibliographic. It is noted that the social context and the field of possibilities of these young people lay their life projects, many based on desires and objects representative of ostentation, luxury and power - which can be accessed mainly through crime, once the current social conditions exist and that they are bound.
Keywords: Youth; Conflict at School; Field of Possibilities; Project of Life.
Introdução
O presente artigo trata da relação existente entre o campo de possibilidades com o projeto de vida de alguns jovens em situação de conflito escolar. Tal produção é decorrente de um projeto de pesquisa e extensão universitária, desenvolvido desde o ano de 2018 pelo Núcleo X, da Universidade Y (SIGLA), situada na cidade mineira de Governador Valadares.
No que diz respeito ao projeto de pesquisa e extensão universitária (Parecer 1.401.868), segue-se o que está previsto na Resolução CNS/MS 466/2012 e suas normativas a respeito da ética em pesquisa com seres humanos e que resguarda os direitos dos participantes, assim como o que está previsto na Lei que resguarda os direitos das crianças e adolescentes (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, Lei n.º 8.069/1990).
Os projetos investigativos desenvolvidos anteriormente estavam relacionados às percepções de jovens em cumprimento de medida socioeducativa de privação de liberdade naquele município. Em seu decorrer, durante os anos de 2014 a 2018, foi possível perceber que muitos jovens que se encontravam acautelados em decorrência do cometimento de atos infracionais, também possuíam histórico de envolvimento em conflitos no contexto escolar. No entanto, destacava-se a manifestação de um perfil de liderança entre seus pares.
Nesse sentido, enxergamos como oportunidade estudar também a relação com o saber de jovens que frequentam a escola regular e que nela vivenciam relações conflituosas. É a partir deste novo projeto que as reflexões do presente artigo se ancoram. Assim, os sujeitos desta pesquisa são jovens matriculados em uma Escola Estadual em Governador Valadares, que tinham registros de conflitos em livros de ocorrência.
Entretanto, com fins de evitar o reforço de estigmas acerca desses alunos, utilizamos como estratégia a criação de uma oficina que denominamos ‘Escola de Liderança’, dirigindo aos jovens um olhar positivo para esta característica que apontava para práticas de liderança, que na maioria dos casos já lhes era peculiar.
Destarte, a partir dos registros escolares, selecionamos além dos alunos em situação de conflito escolar, estudantes com comportamento exemplar, que também exercem postura de liderança positiva na escola, totalizando, desse modo, o número de 30 jovens. O propósito com esta composição mesclada foi tentar neutralizar eventuais estereótipos que buscassem repousar sobre a personalidade ou merecimento dos alunos selecionados.
O primeiro módulo das oficinas foi realizado em agosto de 2018, oportunidade em que foram trabalhadas algumas definições de liderança, os modos pelos quais ela se manifesta e meios de exercê-la, de maneira positiva.
Apesar dessa mescla entre alunos com comportamentos extremamente diversos, neste artigo, trabalhamos especificamente com os dados referentes àqueles jovens selecionados por sua condição de conflito no contexto escolar (um total de 22 participantes), a fim de identificarmos a relação de seus campos de possibilidades com os projetos de vida que traçaram, se assim eventualmente o fizeram.
Nesse escopo, consideramos a seguinte problemática: como se estabelece a relação do campo de possibilidades com o projeto de vida dos jovens em conflito escolar?
Ao longo de nossa experiência, percebemos que existe uma latente necessidade em compreender se os jovens pesquisados por nós possuem uma projeção de vida, e a partir de quais perspectivas ela se baseia. Assim, para investigarmos essa questão, estabelecemos como objetivo geral relacionar o campo de possiblidades desses jovens com o projeto de vida que eles traçam para si.
Consideramos neste estudo como hipótese, a existência de uma estreita ligação entre o campo de possibilidades desses jovens com o projeto de vida que traçaram para si, uma vez que o perfil dos alunos pesquisados revela um contexto explícito de marginalização e vulnerabilidades.
Nesse sentido, abordamos a temática por meio de estudos interdisciplinares, qualitativo, descritivo, exploratório e bibliográfico, com referenciais em Leccardi (2005), Damon (2009), Martins (1997) e Haesbaert (1997 e 2005). Para traçar o perfil desses jovens, realizamos oficinas, roda de conversas, aplicação do balanço do saber, socialização dos resultados do estudo, além da análise das fichas de matrículas dos alunos e livros de registros escolares. Para coleta dos dados refletidos neste artigo utilizamos registros feitos pelos alunos durante as oficinas e as observações da equipe de pesquisadores em diários de bordo.
Este trabalho foi dividido em cinco tópicos, além desta introdução. Primeiro, analisaremos o perfil e o contexto do jovem em conflito escolar. No segundo, conceituaremos o que chamamos de ‘campo de possibilidades’, por ser conceito central neste estudo. Por sua vez, no terceiro, trabalharemos a definição de projeto de vida e realizaremos a correlação das respostas dos jovens. No quarto, discutiremos as temáticas das minorias, exclusão e inclusão social, e relações de poder no território da escola. Por fim, no quinto, apresentaremos as considerações finais.
Análise do perfil e contexto do jovem em conflito escolar
Antes de iniciarmos nossa análise do perfil e contexto do jovem em situação de conflito escolar, é necessário conceituarmos o que vem a ser este conflito. Constatamos no estudo que a maioria dos conflitos se vinculava a relação do aluno com o professor, em segundo lugar com os colegas. De acordo com uma entrevista feita por Marangon e Bencini (2006) ao sociólogo francês Charlot, o conflito ocorre quando não há uma compreensão entre o diálogo do professor e o aluno. Para ele, "há duas línguas diferentes sendo faladas na escola: a dos professores e a dos alunos." (CHARLOT, 2006, p. 1).
Essa ausência de entendimento pode causar para o professor a visão de que o estudante é incapaz de compreender o conteúdo, ao passo que para o aluno há uma perspectiva de que o professor não é capaz de lecionar a matéria. Certo é que os conflitos decorrem em grande maioria da falta de diálogo e da dificuldade da escola em lidar tanto com a igualdade e as diferenças, valorizando-os como princípios educativos importantes:
Torna-se necessário que a igualdade e as diferenças sejam valorizadas, empoderadas e estimuladas a comunicarem-se democraticamente, despertando o interesse dos indivíduos, sujeitos do processo escolar, no sentido de compreender que não é possível resolver as diferenças e muitos menos padronizar a igualdade como acontece nas práticas monoculturais (SANTOS & QUEIROZ, 2021, p. 1).
Por consequência, à medida que o aluno cria essa visão de um professor inimigo, podem surgir gatilhos que a qualquer instante podem culminar em conflitos, tanto entre eles e os professores e funcionários, quanto entre eles e colegas. Assim, nosso desafio seria tentar trabalhar a questão dos conflitos a partir dos envolvidos. Realizamos primeiro encontros com os professores, refletindo com eles sobre a questão social na qual os jovens estão imersos e a proposta de Charlot (2006) para um direcionamento do olhar positivo sobre o jovem de modo que ele esteja mobilizado para o saber, sem suprimir a possibilidade de uma convivência que envolva debates, embates e conflitos, pois
(...) sendo a escola um lócus onde se encontram sujeitos oriundos das mais variadas esferas sociais, é esperado que nem sempre essa convivência construa-se de forma pacífica, mas que envolta em debates, embates e conflitos, os quais podem ser mediados por práticas dialógicas que estimulem o reconhecimento dos diferentes atores educacionais em suas diferenças (SANTOS & QUEIROZ, 2021, p. 4).
Logo após iniciamos o trabalho com os jovens ‘Escola de Liderança’. Para a realização do primeiro módulo de nossas oficinas, procuramos caracterizar os sujeitos, identificando o gênero, a etnia e o bairro dos alunos pesquisados. A análise nos possibilitou identificar que a maioria dos jovens envolvidos em situação conflituosa no contexto da escola pesquisada é do gênero masculino (16 estudantes), tendo apenas 6 (seis) do gênero feminino. O número de meninos quase triplica em relação às meninas, o que nos incita a indagar se haveria uma relação de gênero no comportamento destes jovens.
No entanto, para esta reflexão seria necessária uma discussão mais aprofundada para não gerar falsos resultados acerca da dominação masculina no território da escola. Como tal tarefa desviaria a equipe da questão investigada, decidimos que a temática relacionada à construção de gênero na escola e o conflito escolar seria objeto de estudos posteriores. Assim, a questão de gênero emerge como elemento importante para planejamento e encaminhamentos das próximas ações da pesquisa e intervenção, conforme também constatado por outras pesquisas realizadas por OLIVEIRA; OLIVEIRA e LEMOS (2018)
Em se tratando dos bairros em que os jovens sujeitos do estudo residem, são os mais diversos. Encontramos, a partir das fichas disponibilizadas, alunos que moram tanto em bairros centrais quanto periféricos de Governador Valadares, no entanto, a maioria reside na periferia: Centro (1); Nova Vila Bretas (1); Santa Terezinha (2), Santa Rita (1), Vila Mariana (2), Lourdes (2), São José (1), Vila Bretas (2), Altinópolis (7), São Paulo (1) e Turmalina (2).
Destes bairros sete entre os onze mencionados são distantes da escola campo onde foi realizado o estudo, o que nos leva a constatar que a maioria desses alunos percorre um trajeto muito longo todos os dias para frequentarem as aulas. Ademais, são bairros periféricos não apenas por sua localidade, mas também por sua precariedade e pela presença marcante do narcotráfico em suas configurações físicas e sociais.
Logo, ressalta-se a questão de, não saber quais podem ser as razões que mobilizam estes jovens a se deslocarem todos os dias, de lugares tão distantes, presume-se que talvez haja uma demanda sobre suas perspectivas do mundo, da cidade ou até de si mesmos ou que tenham algum impedimento para estudar no próprio bairro. Contudo, essa investigação foge da proposta da pesquisa e poderá ser alvo a ser investigado futuramente.
Sobre a etnia desses jovens, a maioria denominou-se parda (14), seguidas por branca (7) e negra (1). Essa predominância de jovens pardos na escola emerge discussões nas relações estabelecidas entre classe social, etnia e o sucesso escolar. As questões étnicas influenciam na relação com o saber e a escola, e precisam ser discutidas, já que existem estudos sobre as dificuldades que os negros perpassam em suas trajetórias estudantis na Educação Básica. (OLIVEIRA; OLIVEIRA e LEMOS, 2018)
Em suma, os dados coletados por meio das fichas de matrícula dos alunos em conflito escolar, apontam um perfil de estudante do gênero masculino, pardo, que mora em bairros periféricos, violentos e distantes da escola. Esse perfil nos indicou que apesar de os alunos que selecionamos para trabalhar na Escola de Liderança possuírem um perfil diversificado, são aqueles que protagonizam o conflito escolar, possuindo campos de possibilidades muito similares, que se conectam com seus projetos e modos de ser no mundo.
O campo de possibilidades dos jovens pesquisados
Ao pensarmos no conceito de campo de possibilidades, o fazemos a partir da perspectiva de que dentro de cada contexto de um sujeito, há muitas possibilidades. Não há uma definição específica sobre este conceito, todavia, Pereira (2015), a partir de Bourdieu, traz-nos um modo de compreendermos o que é o campo de possibilidades. Para a autora, dentro da teoria do sociólogo, o campo pode ser percebido enquanto um microssistema social com regras e leis específicas, cujas pessoas que convivem ali, buscam manter ou alcançar determinadas posições. Para tanto, tais posições são alcançadas de acordo com os capitais, sejam eles cultural ou social.
Bourdieu (2010) considera capital social aquele conhecimento que adquirimos do mundo; uma carga cultural que é adquirida desde o nosso nascimento, e influência no nosso modo de agir, relacionar ou familiarizar com determinadas práticas culturais. Por sua vez, compreende o capital cultural como as relações que estabelecemos, que podem facilitar o nosso acesso à alguns campos, e ainda, nosso crescimento nesse espaço. É preciso pensar o campo enquanto espaço relacional e social, percebendo o fenômeno em constante movimento (PEREIRA, 2015). O capital cultural é percebido
(...) primeiramente, como uma hipótese indispensável para dar conta da desigualdade de desempenho escolar de crianças provenientes das diferentes classes sociais, relacionando o ‘sucesso escolar’ [...] à distribuição do capital cultural entre as classes e frações de classe (BOURDIEU, 2010, p. 73)
Considerando a citação, compreendemos que o conflito escolar muitas vezes se coloca dentro de um prisma de razões como as diferenças por classe social, etnia, gênero, questões familiares, intra e/ou extra escola. Compreendemos que a família deve ser vista como o principal alicerce para o jovem. Entretanto, percebemos durante a realização de nossas oficinas, que as famílias da maioria dos jovens com os quais estávamos interagindo, não oferecia a eles o apoio necessário para se tornarem sujeitos sociais capazes de se relacionarem bem consigo e com as outras pessoas, nem era para eles boas referências. Percebemos assim, que a minoria entre eles, cresceram em uma família na qual havia rede de apoio e confiança.
Em uma das oficinas na qual trabalhamos com os jovens uma dinâmica conhecida como ‘Corrida da Vida’, a atividade consistia em todos eles se posicionarem a partir de uma linha de largada. À medida em que fazíamos afirmações como “Eu sempre tive o apoio da minha família”, “Eu cresci com meu pai em casa”; “Eu nunca fiz uso de drogas”, os jovens deveriam dar um passo à frente se a assertiva fosse verdadeira, ou permanecerem em seus lugares se a afirmação não se aplicasse à sua realidade de vida. Desse modo, só alcançariam a linha de chegada aqueles que, de certa maneira, gozaram de uma vida com mais privilégios.
Ao fim da dinâmica da qual todos participaram, apenas 2 jovens dos 25 participantes alcançaram a linha de chegada, sendo uma jovem aluna da escola e outra que compunha a própria equipe do projeto. A dinâmica possibilitou perceber que o fato da maioria dos jovens terem ficado para trás, aponta para uma realidade social difícil indicando para a maioria deles a falta de condições e apoio familiar na construção de projetos de vida.
O objetivo central da atividade era destacar que apesar de suas intempéries, aqueles jovens são seres de possibilidades que poderiam sim buscar outras perspectivas e expectativas de vida, procurando dar a si uma chance de autodeterminação e confiança. Ainda assim, escutamos de alguns comentários como “com essas perguntas nunca vou sair do lugar”. Presenciamos zoações entre eles próprios, quando todos permaneciam no mesmo espaço, indicando que possuem compreensão do drástico cenário que vivem.
De acordo com Nonato e Villas (2014), ao longo do curso de vida do jovem, ele constituirá sua trajetória a partir dos limites que são estabelecidos no espaço e no tempo, em função do seu contexto e historicidade. Desse modo, ele se reconstituirá e se reconhecerá de acordo com os limites. As autoras sugerem que:
o campo de possibilidades contradiz a ideia de que a conquista dos projetos de futuro depende somente do esforço pessoal ou da vontade própria do indivíduo, pois nos faz perceber em que “limites” sociais, culturais e políticos os jovens se movem na construção do seu presente e futuro. (NONATO; VILLAS, 2014, p.18)
Os projetos de vida dependerão do campo de possibilidade dos jovens que estão inseridos, e nesse sentido, direcionarão seus olhares, escolhas e até mesmo, seus caminhos, com base em seu contexto. Desse modo, o campo de possibilidades compreende as possíveis oportunidades de serem almejadas e realizadas no contexto sociocultural no qual os sujeitos estão inseridos.
Por isto, “o campo de possibilidades delimita ou potencializa um projeto de futuro, pois diz respeito às possibilidades reais que os jovens têm para construírem seus projetos” (NONATO e VILLAS, 2014, p. 21). Assim sendo, consideramos importante apresentarmos novas perspectivas aos jovens, para perceberem que não somente poderão direcionar seus caminhos dentro do contexto atual, como também para ampliarem suas formas de ver o mundo.
O projeto de vida de jovens em conflito escolar
Ao término do primeiro módulo das oficinas na Escola de Liderança, foi aplicado aos sujeitos da nossa pesquisa um formulário denominado ‘Pensando o futuro a partir do hoje’. A proposta era levar os alunos à reflexão acerca de seus projetos de vida, a partir das alternativas que conseguiam enxergar no presente.
Naquela ocasião, utilizamos com os alunos a expressão “projeto de futuro”, por entendermos que tornaria a atividade mais inteligível, didaticamente. Por outro lado, utilizamos nesse texto a categoria “projeto de vida”, uma vez que não se faz projetos para o passado, de modo que soa redundante a expressão “projeto de futuro”. Conforme entende Leccardi (2005, p. 36) “o futuro é o espaço para a construção de um projeto de vida e, ao mesmo tempo, para a definição de si: projetando que coisa se fará no futuro, projeta-se também, paralelamente, quem se será”.
É por esta razão que se justifica a abordagem da relação entre o campo de possibilidades desses alunos e seu projeto de vida, eis que é a partir da análise dessas possibilidades que o jovem será capaz de traçar planos e projetos para si. Isto porque, consoante afirma Leccardi (2005):
(...) o tempo de vida juvenil, graças à relação positiva com o presente, construída em torno do devir que ela prefigura, pode ser representado como um tempo de espera ativa, uma fase que deve consentir uma transição por sua vez positiva para a idade adulta (LECCARDI, 2005, p. 35).
Damon (2009) considera que o projeto de vida é aquilo que o sujeito imagina que o levará ao sentimento de satisfação pessoal por estar integrado à sociedade, e que fará a diferença não apenas para si mesmo, mas para outras pessoas, gerando então felicidade – que seria o comprometimento com algo que esse indivíduo considera envolvente, desafiador e atraente.
Observamos pelos questionários aplicados que os alunos fizeram diversas elaborações sobre seus projetos de vida. O grande número de respostas genéricas nos leva a crer que a maioria daqueles jovens jamais havia sido levada à reflexão acerca do futuro e o que deveriam fazer para alcançar seus objetivos. Foi exatamente analisando essas respostas foi possível identificar a relação desses projetos de vida com seus campos de possibilidades desses jovens.
Nesse sentido, destacamos a seguir um poema escrito por um dos participantes da ‘Escola de Liderança’, retratando a crua realidade em que está inserido, e que compõe seu próprio campo de possibilidades:
FAVELA
Nascido na favela
Sei bem o que é o tráfico
Jovens sem estudos
Mas com destino traçados.
Crianças dizem não à escola
Mães mão dão importância
Vendo o dinheiro fácil
Neles cresce a ganância.
Ganância de ter dinheiro
E acham que isso é poder
Por isso formam na boca
Pra pó e maconha vender.
Eles pensam ser importantes
Com uma arma na mão
Mas eles sabem no fundo
Que isso é tudo ilusão.
O deslumbramento acaba
Com suas famílias em aflição
Pois no final de um tiroteio
Seus corpos ficam no chão.
E aquele bandido foda
Que só andava de carrão
Agora mudou de veículo
E anda de rabecão.
A.S.S.
A referência feita pelo aluno ao tráfico e ao poder e dinheiro que ele proporciona neste poema foi expressiva também nas respostas dos alunos nos questionários aplicados. Nota-se que a definição de sucesso e satisfação pessoal desses jovens passam diretamente pela concepção de riqueza, luxúria e status no meio quem considerando a realidade socioeconômica que possuem, somente podem ser vislumbradas por meio do envolvimento com o mundo do tráfico de drogas.
Respostas como “Quero estar em uma casa cheia de mulher, e com mais de 1 bilhão na conta”; “Cheio de $dinheiro e o melhor pra usar[1] e a mais linda ‘dolado’ (sic)”; “60 anos quero ‘tar’ rico””; “Vou ficar velho gordo aposentado com muito dinheiro e muitas mulheres do lado” denotam a vontade de se verem inseridos socialmente – ao contrário do que vivem em sua atual condição, conforme traçado por Damon (2009).
Perguntados também sobre o que deveriam fazer para alcançar esses objetivos em cada etapa de vida, destacamos a resposta de um dos alunos, que respondeu todas as perguntas com artigos correspondentes a ilícitos penais, como roubo, tráfico de drogas e furto, da seguinte maneira:
Como você deverá estar aos 45 anos para que tenha condições de chegar bem aos 60 anos?”
No artigo 157[2]
Como você deverá estar aos 30 anos para que tenha condições de chegar bem aos 45 anos?
No artigo 33[3]
Daqui a 5 anos você terá X anos. Então, como você deverá estar nessa idade para que tenha condições de chegar bem aos 30?
Artigo 155[4]
E então, o que você pode fazer pelo seu futuro, hoje?
Trabalhando ‘certin’ (sic) sem fazer ninguém de escada e o crime!!!
O impacto dessas respostas foi tamanho que nos reforçou a ideia de inexistência de meritocracia e à validação da teoria de Leccardi (2005), de que as conquistas de jovens não dependem apenas de sua vontade e esforço pessoal, uma vez que o campo de possibilidades de cada aluno é que em grande medida traça seus limites sociais, culturais e políticos que os mobilizarão em direção ao seu futuro.
É importante destacar que essas possibilidades e alternativas serão também variáveis se considerarmos a raça, a classe social e gênero. Assim, há também respostas que apontaram os estudos como meio de alcançar os sonhos e objetivos para o futuro. Por sua vez, houve quem mencionasse apenas o “trabalho duro” como alternativa para conseguir o indicado como projeto.
Além de ser considerado suporte e apoio para que alcancem seus objetivos, as famílias também são vistas como aquelas que receberão a gratidão desses jovens quando eles alcançarem suas metas.
“Como você se imagina aos 60 anos?”
“Eu me imagino aposentado com uma condição financeira melhor para ajudar minha família”
G., 16 anos
“Como você se imagina aos 60 anos?”
“Me imagino já tendo conhecido vários lugares, com um bom emprego, ainda trabalhando, tendo minha casa, meu carro, e com saúde. E com minha mae ao meu lado.
D., 17 anos
Outrossim, a própria constituição de família é apontada por diversas vezes, ela mesma, como um objetivo a ser alcançado no futuro:
“Como você se imagina aos 60 anos?”
“Quero tá aposentado com minha família”
W., 17 anos
“Como você deverá estar aos 45 anos para que tenha condições de chegar bem aos 60 anos?”
“Ser feliz, ter minha ‘propia’ família e o meu ‘propio’ lar”
K., 16 anos
Daqui a 5 anos você terá X anos. Então, como você deverá estar nessa idade para que tenha condições de chegar bem aos 30?”
“25 anos com uma família feliz”
P., sem idade informada
Analisando essas respostas, ao contrário do que se diz acerca da desvalorização da família, nota-se que esses jovens contemplam posição de referência da família e a tem ao mesmo tempo como motivação e objetivo em seus projetos de vida[5]. Ressaltamos que na dinâmica ‘Corrida da Vida’ apenas três dos alunos afirmaram ter tido a presença paterna durante seu crescimento.
Assim, temos que o projeto de vida dos jovens é desenhado a partir de onde estão inseridos, de quem são naquele momento da vida, daqueles por quem são cuidados ou não, de onde estudam e do que observam. Todos esses fatores, conforme já mencionado, formam o campo de possibilidades de cada indivíduo, que pode modificar, delimitar ou potencializar seu projeto de vida. É evidente portanto, a relação existente entre o contexto dos alunos pesquisados e os projetos de vida por eles apontados através das respostas aos questionários.
Sobre minorias, exclusão social e relações de poder no território escolar
“Não conheço ninguém com 60 anos com um carro e uma moto na garagem”. (J. 17 anos).
Conforme já pontuamos, os jovens pesquisados eram predominantemente do gênero masculino, se autodeclarava ‘pardos’, moradores de bairros periféricos, e de baixa renda.
Minorias são grupos sociais, raciais, étnicos, religiosos, entre outros que, por alguma razão são considerados “ideologicamente menos poderosos” (ACSELRAD, 2006). Séguin (2002), por sua vez, relaciona juridicamente as minorias à grupos minoritários, que para ela são aqueles que sofrem intolerância e discriminação. Os jovens pesquisados estão inseridos no que podemos considerar grupos minoritários, em virtude tanto da questão étnico-racial declarada, quanto da classe social desfavorecida que compõem.
Não somente devemos ter em vista a perspectiva supracitada desses jovens, como também devemos olhá-lo sob uma lente da psicologia, e mais especificamente, na perspectiva que Mailhiot (1973), baseado da teoria de Kurt Lewin, escreveu sobre minorias e maiorias psicológicas. Em uma perspectiva bem distinta da visão demográfica, a maioria psicológica é vista como:
Um grupo que dispõe de estruturas, de um estatuto e de direitos que lhe permitam auto-determinar-se no plano do seu destino coletivo, independentemente do número ou da porcentagem de seus membros. Assim, minorias demográficas podem constituir maiorias psicológicas. (MAILHIOT, 1973, p.30)
Desse modo, todo grupo humano que se perceba apossado de direitos plenos, são vistos como maiores. Em contrapartida, as minorias psicológicas são grupos que se percebem como dependentes da boa vontade de um outro grupo.
Este grupo, mais ou menos conscientemente, percebe-se como menor, isto é, como não possuindo direitos totais ou um estatuto completo que lhe permitam optar ou orientar-se nos sentidos mais favoráveis a seu futuro. (MAILHIOT, 1973, p.30)
Pode-se dizer, portanto, que partir do momento que esse grupo se sente, se percebe e se conhece em estado de tutela em detrimento às maiorias, essa distinção passa a exercer influência direta na percepção desses indivíduos sobre suas possibilidades no futuro como diferentes daqueles sujeitos que compõem o grupo dominante.
Tendo em vista que dentro de cada grupo pode haver estratificações, fazemos uma leitura de que no interior desses grupos, uma parte desses membros podem constituir ou atribuir privilégios exclusivos. Isso nos faz pensar sobre a visão de mundo dos jovens que foi tão destacada ao longo deste artigo.
Apesar de estarem a margem de uma sociedade, eles buscam se destacar dentro do contexto onde vivem, e por isso, o que pode representar poder e status para eles seria a própria criminalidade, pois o que virá a partir dessa entrada é o dinheiro, e outros anseios materiais que possuem. Este é um modo pelo qual eles conseguem apropriar-se do espaço, serem vistos e reconhecidos.
Kurt Lewin, sob o olhar de Mailhiot (1973), sugere que a existência da minoria se dá pela tolerância que a maioria possui. Isso não se dá por conta de determinados comportamos julgados como aceitáveis ou não, mas por razões para além do exposto, extrínsecos a isso. A maioria é interessada em privar os demais de todos os direitos e privilégios.
Mas é sobretudo em período de tensão e de perigo coletivo que a maioria tende a exercer represálias sobre contra as minorias, cedendo à necessidade de descarregar sobre um bode expiatório as ondas de agressividade, desencadeadas por frustrações e privações que lhe são impostas durante estes períodos críticos. (MAILHIOT, 1973, p.31)
Desse modo, pergunta-se: qual será o futuro das minorias? Essa é uma discussão bem ampla, mas pode-se dizer que o futuro para estes jovens se relaciona com a busca pela sobrevivência. Para Lewin, existem algumas soluções. Há minorias que buscam a igualdade de direitos e privilégios frente à maioria, quando se integram a ela. Em contrapartida, há aqueles que asseguram a sobrevivência apenas ao emanciparem-se da maioria, uma vez que pensam que só assim poderão conservar sua cultura, seu espaço, identidade e destino. Para o teórico, o grupo minoritário que acredita que por meio da integração conseguirá conservar sua identidade, está enganada, pois tão logo elas serão assimiladas (MAILHIOT, 1973).
Assim, é relevante sopesar, sem pretender reforçar estigmas, a relação do campo de possibilidades e do projeto de vida desses jovens com o narcotráfico. Existe, com efeito, estrita ligação entre a prática de crimes por jovens e a ineficiência do Estado em proporcionar seus direitos fundamentais mais básicos: saúde, educação, moradia, lazer, alimentação, dentre outros.
O que observamos é que esses alunos se enquadrariam facilmente na sólida concepção de exclusão social. Entretanto, há de se ressaltar que mesmo “excluídos”, são capazes de apontar alternativas e objetivos para projetos de vida que, para esses jovens, trariam satisfação pessoal a partir de sua própria ideia de sucesso. Aplica-se, nesse caso, a afirmação de Martins (1997, p. 14) de que “não existe exclusão”, mas
(...) existe contradição, existem vítimas de processos sociais, políticos e econômicos excludentes; existe o conflito pelo qual a vítima dos processos excludentes proclama seu inconformismo, seu mal-estar, sua revolta, sua esperança, sua força reivindicativa e sua reivindicação corrosiva (MARTINS, 1997, p. 14)
Para o autor, as novas modalidades de exclusão e desigualdade que surgiram na modernidade, proporcionaram também novas e cruéis formas de inclusão, ainda que indecentes, precárias, instáveis e marginais (MARTINS, 1997). Significa dizer que ao mesmo tempo em que se encontram excluídos dos grupos dominadores em uma visão macro, esses jovens pesquisados constituem, dentro de seu próprio grupo minoritário, relações de poder em que podem ser considerados dominadores ou dominados, a partir de uma visão micro.
Nesse sentido, o tráfico de drogas representa um instrumento de poder, considerando que aqueles que o detém também possuem o poder naquele território, em tese, excluído. Nas palavras de Faria e Barros (2011, p. 1):
Assim, o tráfico de drogas, apesar de sua ilegalidade, torna-se uma opção entre poucas alternativas. As possibilidades de escolhas vão se restringindo à medida que os sujeitos não são preparados para o mercado de trabalho legal, cada vez mais competitivo e excludente. Desde cedo, participam de uma sociabilidade que idolatra, teme e protege o traficante de droga. São expostos a um meio social que aspira ao sucesso financeiro e ao consumismo que eles representam e, assim, admiram aqueles que conseguem atingi-lo, mesmo que de forma ilegal. Sem fazer frente às exigências do mercado neoliberal, e, assim sem condições de galgar o sucesso por ele determinado, vislumbram, nas atividades ilícitas do tráfico de drogas, uma alternativa de driblar o sistema excludente e, ao mesmo tempo, nele serem incluídos mesmo que marginalmente. (FARIA; BARROS, 2011, p. 1)
É essa inclusão, ainda que precária, que atrai os jovens para o tráfico como projeto de vida: o fascínio por uma vida de conforto, de acesso material a coisas com as quais jamais tiveram contato, e o poder de controle sobre uma comunidade que nutre sentimentos ambivalentes sobre estes.
Aplica-se in casu ainda a noção do geógrafo Haesbaert (2005) sobre exclusão social, que também considera a existência de formas alternativas, porém precárias, de inclusão:
Ninguém está efetivamente “excluído” da sociedade vigente, pelo simples fato de que a “exclusão” é produto dela e que, de um ponto de vista geográfico, ninguém pode estar completamente excluído do território; há outras formas de inclusão que não aquela imposta pela lógica (capitalista) dominante, o que admite tanto formas precárias de inclusão (como domina na globalização neoliberal ou do capitalismo flexível) quanto novas formas de resistência e organização social (HAESBAERT, 2005, p. 143).
É nesse sentido também que o autor apresenta o conceito de “aglomerados de exclusão”, para traduzir a dimensão geográfica dos processos mais extremos de exclusão social nos meios urbanos. Segundo ele:
O termo “aglomerado” serve tanto para definir “conjuntos, agrupamentos” em geral – de onde provém concepções como as de “aglomeração humana” ou “urbana”, quanto para significar “amontoamento”, um tipo de agrupamento em que os elementos estão “ajuntados confusamente”. Esta é, aproximadamente, a noção aqui proposta para aglomerados de exclusão, espécie de “amontoados” humanos, instáveis, inseguros e geralmente imprevisíveis na sua dinâmica de exclusão” (HAESBAERT, 1997, p. 148).
Dessa forma, podemos considerar que os “aglomerados de exclusão” são espaços férteis para todo tipo de atividade com fins de sobrevivência de quem ali se encontra inserido. Isso facilita a inclusão precária da população desses lugares em decorrência da ausência de alternativas mais lucrativas e da mão de obra barata e descartável desses sujeitos.
Os aglomerados de exclusão são imprescindíveis para a expansão da criminalidade e marginalidade. Nos bairros populares, como aqueles em que residem os alunos pesquisados, é evidente a presença da violência associada ao tráfico de drogas.
Os jovens que são recrutados pelo narcotráfico ascendem rapidamente no que diz respeito à condição financeira, adquirindo rendimentos que jamais seriam possíveis a eles no mercado formal de trabalho. Nesse sentido, essa inclusão precária é vista por esses jovens como a única alternativa de alcançarem essa integração junto à sociedade do consumo. Esse contexto influencia diretamente o comportamento e as relações de poder no próprio território escolar.
Pereira (2012) entende a escola como território por se tratar de um espaço de convivência entre os mais diversos atores, ideologias e relações de poder. O território escolar consiste, portanto, em um conjunto de relações que constroem as experiências cotidianas dos atores que ali estão inseridos:
[...] o território, categoria espacial que resulta das relações de poder, de encontro-desencontro de atores, de superposição de escalas de atuação, de influência ideológica, de administração e gestão. Neste sentido, a escola deve ser compreendida como encontro solidário de atores, culturas e matrizes de crenças. É necessário então entender o uso da categoria territorial mais além de sua introdução como conteúdo escolar. [...] Possuir o espaço escolar é também um direito quando se assume que, como subterfúgio, todos e todas terminam construindo nele sua experiência cotidiana. (PEREIRA, 2012, p. 182).
Desse modo, vale pontuar que a inclusão precária se dá também no ambiente da escola. Com efeito, a estratégia utilizada pelo projeto identificou que, ainda que sejam, em tese, excluídos socialmente, esses jovens são considerados líderes no território escolar. Isto porque as relações de poder são dinâmicas, e no ambiente escolar podem ser exercidas pelos professores, pelos funcionários, pela diretoria, mas também pelos alunos, entres eles próprios.
Haesbaert (2005) considera que o território pode ser analisado a partir de três vertentes: materialista (concepção naturalista; de base econômica; jurídico-política); idealista (concepção simbólico-cultural), e uma terceira concepção integradora, que admite a ideia de um território multidimensional.
Aplica-se, nessa esteira, a noção de múltiplas relações de poder de Haesbaert (2005), que parte da ideia de uma ideia integrada de espaço e demonstra que em um mesmo território existem relações das mais simbólicas e das mais materiais, formando assim um território “híbrido”:
Fica evidente neste ponto a necessidade de uma visão de território a partir da concepção de espaço como híbrido – híbrido entre sociedade e natureza, entre política, economia e cultura, e entre materialidade e “idealidade”, numa complexa interação espaço tempo (...) Tendo como pano de fundo esta noção “híbrida” (e, portanto, múltipla, nunca indiferenciada) de espaço geográfico, o território pode ser concebido a partir da imbricação de múltiplas relações de poder, do poder mais material das relações econômico-políticas ao poder mais simbólico das relações de ordem mais estritamente cultural (HAESBAERT, 2005, p. 79).
Por fim, Dayrell (1996) também traça reflexões que dialogam com as nossas, acerca da territorialização no contexto escolar, destacando a heterogeneidade desse território e a ressignificação feita pelos alunos nesse espaço:
Dizer que a escola é polissêmica implica levar em conta que seu espaço, seus tempos, suas relações podem estar sendo significados de forma diferenciada, tanto pelos alunos, quanto pelos professores, dependendo da cultura e projeto dos diversos grupos sociais nela existentes. (DAYRELL, 1996, p.9-10).
A escola pública, portanto, se trata de um espaço de diversidade, e deve estar preocupada com as relações de poder relacionadas a identidades, conflitos, dominação e apropriações do espaço feitas por cada sujeito que a integra, inclusive o aluno, uma vez que suas territorialidades, ainda que exógenas quanto à escola, interferem diretamente na convivência e nas redes formadas pelas relações tecidas no contexto escolar, também marcada por relações de poder.
Considerações Finais
Esse trabalho permitiu identificar que há relação existente entre o campo de possibilidade de jovens em conflito escolar com os projetos de vida que traçam para si. Considerando o perfil dos jovens pesquisados, foi possível concluir que o contexto em que estão inseridos socialmente, o bairro em que vivem, a relação com a família, a etnia, gênero e as relações de poder que compõem seus campos de possibilidades, atravessam suas vidas de modo a afetar diretamente sua compreensão do mundo e as escolhas que fazem diante de seus futuros.
O estudo confirmou a hipótese levantada, à medida que corroborou a ligação dos projetos de vida dos jovens com ênfase no dinheiro, no poder e na libertinagem com o cenário protagonizado pelos personagens do narcotráfico nas comunidades em que vivem. Restou evidente, afinal, que o projeto de vida desses entrevistados vislumbra uma dimensão em que se veem finalmente inseridos socialmente como os detentores do poder no território em que vivem, desfrutando do prestígio e ascendência que o tráfico de drogas oferece.
Ademais, foi possível levantar as discussões acerca das minorias no âmbito jurídico e psicológico, sempre considerando sua condição de vulnerabilidade social. Passamos ainda pela teoria de que não existe exclusão social, uma vez que à medida que grupos se veem excluídos, também criam seus próprios meios de inclusão, ainda que precários.
Nesse sentido também, percebemos que se aplica os conceitos de Haesbaert (2005) sobre territorialização precária, aglomerados de exclusão e sua relação com a proliferação com o tráfico de drogas em territórios vulneráveis. Não obstante, vale destacar também o ambiente escolar como território, e as múltiplas relações de poder que ali se formam, tanto entre professores e alunos, quanto entre os próprios alunos, que exercem seu papel de liderança de maneira positiva ou negativa.
Assim, tem-se que o estudo em apreço se apresenta como uma imperiosa reflexão, uma vez que aponta para a necessidade de considerarmos o jovem em conflito escolar como um ser de possibilidades, e compreendermos que sua relação com o mundo depende diretamente das pedras que ele encontra no meio do caminho.
Apesar disso, acreditamos que a escola deve se preocupar em promover situações em que a temática sobre os projetos de vida dos jovens possa ser discutida, principalmente daqueles que se encontram em um contexto de conflito escolar, a fim de semear novas concepções, ampliar o campo de possibilidades, além de instigar a reflexão de que é possível, ainda que árdua, a construção de outros futuros.
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Notas
[1] “O melhor para usar” se refere ao uso da droga da melhor qualidade.
[2] Art. 157 do Código Penal Brasileiro - Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência: Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa.
[3] Art. 157 do Código Penal Brasileiro - Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência: Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa.
[4] Art. 33 da Lei de Drogas (Lei n. 11343/06) - Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.
[5] Art. 155 do Código Penal Brasileiro - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.