O tempo da docência no ensino médio a partir de narrativas biográficas de professores

Teaching time in high school based on teachers' biographical narratives

Luiz Antônio Araújo

Professor da rede pública. Secretaria Estadual da Educação de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.

luiraujo@gmail.com - https://orcid.org/0000-0003-0558-1994

 

Maria Amália Almeida Cunha

Professora doutora na Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.

amalia.fae@gmail.com - https://orcid.org/0000-0003-4676-2388

 

Licinia Maria Correa

Professora doutora na Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.

liciniacorrea1@gmail.com - https://orcid.org/0000-0003-0662-7229

 

Recebido em 04 de junho de 2020

Aprovado em 01 de março de 2021

Publicado em 27 de janeiro de 2022

 

RESUMO

Este artigo analisa, através de um estudo de caso, as experiências e as vivências dos professores no ensino médio e os desafios laborais, temporais e afetivos que lhes são impostos no exercício diário da docência. Para tanto, utiliza como aporte teórico autores como Josso (2004), Hargreaves (1998), Huberman (1985) e Goodson (1985), a fim de fundamentar as percepções dos docentes acerca do seu trabalho. A análise aqui apresentada procura contribuir para os estudos sobre os ciclos e fases na carreira docente, ao enfatizar a importância da experiência vital dos professores sobre a sua prática profissional. Assim, o artigo está dividido em duas seções, além da introdução. A primeira seção destaca algumas sínteses biográficas dos professores, tendo como cenário a docência no ensino médio. A segunda seção discute os ciclos da vida profissional dos professores a partir de suas biografias. Por fim, as conclusões procuram captar o sentido do ser e estar professor do Ensino Médio na rede pública estadual de ensino de Minas Gerais.

Palavras-chave: Biografias educativas; Ciclo de vida profissional dos professores; Docência no ensino médio.

 

ABSTRACT

This article analyzes, through a case study, the experiences and experiences of teachers in high school and the labor, temporal and affective challenges imposed on them in the daily practice of teaching. To do so, it uses as a theoretical contribution authors such as Josso (2004), Hargreaves (1998) and Huberman (1985), in order to base the teachers' perceptions about their work. The analysis presented here seeks to contribute to the studies on the cycles and phases in the teaching career, by emphasizing the importance of the vital experience of teachers on their professional practice. Thus, the article is divided into two sections, in addition to the introduction. The first section highlights some biographical syntheses of the teachers, having as background the teaching in the middle school. The second section discusses the professional life cycles of teachers from their biographies. Finally, the conclusions seek to capture the sense of being and to be a teacher of the High School in the state public school system of Minas Gerais.

Keywords: Educational biographies; Professional life cycle of teachers; Teaching in secondary education.

Introdução

            Este artigo procura traçar, através de um estudo de caso, as experiências e as hesitações do professor do ensino médio, guiando-se pela reconstrução de perfis biográficos, por meio das trajetórias singulares dos docentes. Diante de um cenário com tantas mudanças e contradições, como estes professores vivenciam a sua condição de professor ao longo da carreira?

            Ao percorrer esta vereda, adentramos no universo da docência como caminho a ser desbravado, tal como o sertão descrito por Guimarães Rosa (2005), lugar que investe toda nossa dimensão de mistério e, ao mesmo tempo, não nos permite indiferença ou inércia. Vasculhar o sertão, como fez Riobaldo, é revirar o baú da nossa interioridade, procurando compreender os anseios, os medos, as certezas, as dúvidas, as frustrações, as intempéries e também as alegrias que acompanham o ciclo vital dos professores.

As condições, muitas vezes precárias que desenham o cotidiano do magistério, a falta de atratividade da carreira docente, o descaso do poder público, a lida com os novos sujeitos que povoam as salas de aulas, os momentos em que desistir da profissão ecoa no horizonte, os malditos e entreditos, desentendimentos, desencontros, estão reunidos e organizados como mola e dinâmica que também cadencia nossa reflexão.

Esta dimensão conjuntural, vivida não como sentença, mas como processo, também pode ser entendida pelo drama interno do ser humano, que se coloca diante da escola e da condição docente como o lugar socialmente pré-definido e a escuta atenta daquilo que emerge da singularidade incontrolável do que está por vir.

A escolha pela dinâmica que permite explorar as biografias dos professores do Ensino Médio deriva, de certa forma, da tradição da Escola de Chicago, a qual restaura a metodologia da história oral, elaborando uma “epistemologia importante que permite interpretar os dados biográficos sem excessiva estandardização” (HUBERMAN, 1992, p.33).

Nossa intenção foi tentar perceber as vicissitudes do ser professor pois, ser professor não é somente estar na profissão, mas poder refletir sobre ela também de modo subjetivo. Assim, tal como Huberman (1992, p.35), indagamos: Será que os professores passam pelas mesmas etapas, as mesmas crises, os mesmos acontecimentos-tipos, independente da geração a que pertencem, ou haveria percursos diferentes, de acordo com o momento histórico da carreira?

Para responder a esta pergunta, analisamos as narrativas de seis professores do ensino médio de uma escola pública estadual, através de uma síntese biográfica elaborada a partir do filtro de nossas crenças, representações e percepções de suas histórias.

As vivências e experiências da caminhada dos docentes pesquisados guiaram nossas buscas. Os resultados desta busca refletem, pois, os limites de uma categoria que é fundamental na vida dos professores: o tempo. De acordo com Hargreaves (1998, p.105), para o professor o tempo não é apenas um constrangimento objetivo e opressivo. É também um horizonte, subjetivamente definido, de possibilidade e de limitação do qual este artigo deriva: ele é fruto das condições possíveis de tempo dos professores para narrarem suas experiências, vivências e hesitações.

Recuperar esta condição é importante, como afirma Dubet (1994, p. 19), uma vez que ela permite entender as lógicas combinatórias que formam a experiência social, sobretudo de categorias como a dos professores, que não conseguem viver o tempo necessário para refletir sobre a sua experiência no exercício da profissão, dada a dificuldade de se desrotinizar, de se desinstalar do universo burocrático em que atuam.

Segundo Hargreaves (1998, p. 122), mesmo espaços aparentemente livres do controle, como os corredores e salas de reunião, acabam sendo sucumbidos à lógica colonizadora do tempo (HARGREAVES, 1998, p.122). E para narrar a experiência docente, a categoria tempo se coloca como um elemento incontornável.

Nas fendas do controle temporal, encontramos nas experiências de vida como projeto de conhecimento e os ateliês biográficos de projetos apresentadas por Marie-Christine Josso (2004) e Christine Delory-Momberger (2006), maneiras de burlar a opressão do tempo sobre a vida dos professores.

Ao explorar as histórias de vida dos docentes por meio de narrativas subjetivas da condição de ser professor, tomamos “(...) a narrativa de um percurso intelectual e de práticas de conhecimento que põem em evidência os registros da expressão dos desafios de conhecimento ao longo de uma vida” (JOSSO, 2004, p. 43), de modo que a visão do professor sobre sua relação docente se modela a partir de circunstâncias anteriores ao magistério, como também de circunstâncias presentes e aquelas projetadas para o futuro.

Revirando o baú da docência

Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo mundo (...). Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa. O senhor concedendo, eu digo: para pensar longe sou cão mestre – o senhor solte em minha frente uma ideia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amem!” (ROSA, 2005, p. 31).

 

Como revirar o baú da interioridade dos professores, sem desconsiderar os constrangimentos do tempo que a vida e a profissão lhes impõem? Sabendo dessas limitações, organizamos alguns encontros coletivos na escola tomada como estudo de caso, doravante denominada por nós neste artigo de Escola João Guimarães Rosa. Assim, a importância do coletivo se desdobra no engrandecimento subjetivo do professor que se permite olhar para si e se escutar tendo o outro como espelho. Aqui o espelho simboliza o exercício da prática da alteridade.

A organização de alguns encontros na escola teve como objetivo construir uma espécie de biografia educativa, entendida aqui como uma ferramenta de compreensão de si e do outro, que se manifesta no contexto da prática profissional, através do exercício diário da docência, marcado por situações transitórias e variáveis, onde o elemento humano, sentimentos, valores, atitudes e contradições, são determinantes[1].

Para se construir a biografia educativa, passamos por duas fases de pesquisa compreendidas deste modo: a) em um primeiro momento, realizamos uma abordagem mais diagnóstica, que procurou traçar o perfil geral dos professores da escola pesquisada; b) em um segundo momento, considerado mais subjetivo, buscamos refinar os dados coligidos na primeira fase, de modo a elaborar perfis biográficos dos professores. Desta forma, buscou-se, durante o processo de construção e reconstrução das histórias individuais, delinear um conjunto de reflexões mediados pelas narrativas de cada participante, fazendo emergir desta experiência um projeto pessoal/profissional.

Esta segunda fase (narrativas biográficas), pode ser descrita como uma releitura do dispositivo conhecido por Ateliê Biográfico de Projeto, da autora Christine Delory-Momberger (2006). Em um texto considerado referência para estes estudos, a autora descreve e analisa o Ateliê Biográfico de Projeto como uma ferramenta teórico-metodológica inscrita em uma dinâmica prospectiva que liga três dimensões da temporalidade (passado, presente e futuro), em que a história de vida emerge como objeto de exploração e de socialização que passa por processos de escrita de si (autobiografia) e pela compreensão do outro (heterobiografia) (DELORY-MOMBERGER, 2006, p.117).

Metodologicamente, os pressupostos teóricos que inspiram as histórias de vida são as narrativas da experiência subjetiva e a dimensão de projeto constitutivo da história de vida e do processo de formação. Assim, a construção de ateliês biográficos busca reunir, durante os encontros, as histórias subjetivas de cada docente em uma dinâmica de construção de experiência de si e para si, onde as experiências de vida se intercalam e se complementam.

A decisão pela aplicação dos Ateliês Biográficos a partir de uma releitura do dispositivo de Delory-Momberger (2006), deveu-se à constatação da falta de tempo dos professores para a realização de todas as etapas previstas (a autora descreve seis etapas contidas no processo, em um trabalho progressivo de reconstrução de uma história projetiva do sujeito (DELORY-MOMBERGER, 2019, p.281). Como sempre tivemos que lutar, nesta pesquisa, contra a hostilidade do tempo na vida dos professores, optamos por fazer pequenos ajustes no dispositivo do Ateliê, reconfigurando-o de acordo com a nossa realidade empírica sem, no entanto, prescindir dos princípios que o organizam.

Antes de dar início às etapas do dispositivo, realizamos um encontro com os professores que aceitaram seguir conosco na chamada ‘segunda fase’ da pesquisa, qual seja, a etapa das narrativas biográficas. Neste dia, apresentamos a proposta de trabalhar coletivamente as biografias, através de entrevistas individuais e coletivas, sendo então este encontro marcado pelo chamado contrato biográfico, quer dizer, o momento da explicitação das regras, das tratativas da dinâmica da pesquisa, das negociações coletivas, bem como da descrição das etapas.

Nossos ateliês foram marcados por quatro encontros, além da apresentação da proposta de formação. Os ateliês foram realizados com seis professores, sempre aos sábados, em uma das salas da escola pesquisada, com cinco professores e uma professora. Os encontros vespertinos dos ateliês duravam em média três a quatro horas por sessão. Desta sorte, este estudo de caso diz respeito às narrativas e entrevistas realizadas com seis professores do Ensino Médio da Escola João Guimarães Rosa, redundando em um projeto de formação pessoal/profissional.

O primeiro encontro foi marcado quinze dias após estabelecermos o contrato biográfico. Em uma roda de conversa com os seis professores, apresentamos-lhes temas geradores inspirados no livro Experiências de Vida e Formação, de Marie Christine Josso (2004), explorando os lugares da memória e as recordações de uma vida, como por exemplo, o que é significativo em minha vida, o que há de especial para ser contado ou terei mesmo uma história?

Este momento esteve marcado pela oralidade entre os participantes. Os registros escritos foram realizados apenas pelo chamado escriba, ou seja, um dos pesquisadores da investigação então em curso.

O segundo momento foi marcado pela socialização dos registros entre os participantes da pesquisa, momento em que novas recordações foram suscitadas a partir da leitura dos registros do primeiro encontro. Nesta ocasião, vieram à tona as primeiras tomadas de consciência dos sujeitos que participaram da pesquisa/projeto de Ateliê Biográfico e, com ela, o início do trabalho de escrita individual, ou da primeira narrativa autobiográfica, em um rascunho de aproximadamente duas páginas, considerado o esqueleto da biografia posterior.

Alguns temas geradores foram trabalhados antes da escrita, como: estou espantado comigo mesmo, não sabia que tinha tantas coisas para contar; contei muitas coisas nas quais não tinha pensado durante minha preparação; comecei seguindo as notas que havia feito, depois “soltei-me”; eu não imaginava que tudo aquilo pudesse ainda provocar tantas emoções. 

O terceiro encontro buscou garantir as condições de refletir sobre a prática, permitindo ao professor contar, como o fez Riobaldo, sua história que está́ entrelaçada a muitas outras histórias. Esta situação foi marcada pela reflexão da partilha, realizada em duplas.

Cada dupla trocou com seu par o esboço da narrativa realizado no segundo encontro, após o intervalo de um mês, discutindo com seu colega o registro e reescrevendo seu esboço de narrativa para entregar ao escriba, que faria então uma interpretação das narrativas. Alguns temas geradores observados por Josso (2004), são externalizados e compartilhados: “[...] em princípio tinha medo, mas escutavam-me com tanta abertura que acabei por perdê-lo; finalmente contei muito mais coisas do que havia preparado; eu não me dava conta de que tinha feito e vivido tantas coisas na minha vida; não me dava conta de que tinha tantas coisas pra dizer.”

Os encontros coletivos realizados foram pensados como uma possibilidade de formação continuada, resultante da construção de biografias educativas, as quais caminham na contramão de uma relação instrumental e normativa da formação docente. A partir da partilha das nossas narrativas, pudemos lançar um olhar sobre os professores da educação básica e reconhecer neles sujeitos produtores de conhecimento e de seus próprios saberes. Segundo Tardif (1991), as propostas de formação que tratam o professor da educação básica como transmissor de conhecimentos, insistem numa relação problemática entre os professores da educação básica e os seus saberes. Nos espaços formativos, dentre eles a universidade, corremos o perigo de reproduzir o discurso da exotopia, isto é, negar aos profissionais do ensino a capacidade de produzir saberes autônomos e específicos ao seu trabalho.

No quarto e último encontro, o escriba apresenta suas interpretações às narrativas construídas individual e coletivamente e, com a anuência dos professores, suas narrativas recebem o nome de biografias educativas, as quais são trabalhadas por nós neste artigo, na íntegra.

Desta sorte, acreditamos que este trabalho hermenêutico convertido tanto na produção das narrativas quanto na sua interpretação, revelam um conjunto de experiências vividas ao longo da vida e recomposto a partir de um sentido atribuído e reconhecido por uma singularidade. Neste horizonte, segundo Delory-Momberger (2006), é o ato de narrar a nossa história que nos constitui portadores de uma história do qual somos o personagem principal: nós não fazemos a narrativa de nossa vida porque nós temos uma história; nós temos uma história porque nós fazemos a narrativa da nossa vida (DELORY-MOMBERGER, 2006, p.362).

Inspirados em Grande Sertão Veredas (Rosa, 2005), compreendemos as narrativas dos professores tal qual o sertão, cercado de mistério, armadilhas e perigos traiçoeiros, de riqueza e miséria, de esperança e desafios constantes, de saudade e recordações, do medo e da necessidade de ir adiante. Entre encontros e desencontros cada um faz sua travessia e trava suas lutas diárias, desvendando segredos limitados pelas condições fáticas que nem sempre se suportam no cálculo racional, vamos nos descobrindo humano e professor.

Entre encontros e hesitações, o recorte biográfico dos professores

Final de ano letivo, a pressa dos professores é acelerada pela iminência do recesso de fim de ano que introduz as tão esperadas férias trabalhistas. Assemelha-se a um apagar das luzes, assim, impessoal mesmo, porque ninguém deseja ser o sujeito dessa oração. E ainda assim, nessa manhã de euforia docente – lembrando em muito a ansiedade dos discentes, quando se aproxima o horário de saída das aulas – seis professores, expressando visivelmente a face da responsabilidade e respeito com este trabalho de pesquisa, encaminharam-se mais de uma vez até uma das salas do 2º ano, em um dos prédios que compõe o considerável complexo que é a escola, para narrar suas experiências docentes.

Parte-se aqui do argumento que o desenvolvimento de uma carreira é um processo, não um acontecimento. Todavia, para alguns, este processo pode parecer linear, enquanto para outros, pode ser vivido como um caminho cheio de escolhos, com patamares, regressões, becos sem saída, momentos de arranque, descontinuidades (HUBERMAN, 1992, p.38).

Pensando que este processo é composto de vários significados e fases, como a descoberta, a sobrevivência, a estabilização, a diversificação, as lamentações, o desinvestimento, entre outros, procuramos construir, a partir das narrativas dos professores, retratos biográficos do ciclo profissional destes professores que certamente expressam subjetividades ricas e complexas, como estas que se seguem.

Catarina: Eu sou uma ilha na escola

Estatura mediana, cabelos curtos, cinquenta e quatro anos, olhar atento, percepção crítica da sua condição docente e sensível às contradições da escola pública, disponível, de posições bem definidas, disposição para o trabalho, fala despachada e incansável na busca por melhores condições de trabalho docente, é sem dúvida uma das lideranças da Escola João Guimarães Rosa, onde leciona há onze anos e pertence ao quadro efetivo da escola.

Sua experiência nos primeiros anos, nessa escola, foi no ensino fundamental; já o seu contato docente com o Ensino Médio, nesse espaço, ocorreu quando, em 2013, lecionou uma disciplina específica do extinto programa Reinventando o Ensino Médio (REM)[2]. Em 2016, adequando-se ao quadro de horários das Redes Públicas em que trabalha, abriu mão do ensino fundamental na escola pesquisada, no turno da tarde, e optou por lecionar para turmas de Ensino Médio, no turno da manhã. Além da Guimarães Rosa, também leciona em uma escola da rede municipal de ensino de Belo Horizonte onde a oferta é exclusivamente no ensino fundamental.

Graduou-se em 1985 e até se definir como professora em 1988 - quando foi lecionar num canteiro de obras na cidade de Nova Ponte (MG) -, trabalhou como funcionária pública municipal na Administração Regional Centro-Sul. Ao retornar, pediu exoneração do cargo, como também abriu mão do magistério do qual ficou ausente por dez anos. Não se sentia competente para lecionar. Somente no ano de 2000, casada, sem emprego e com um filho de seis anos de idade, inscreveu-se para o processo de designações na Rede Estadual. Encontrou-se na Rede Pública onde atuou como professora contratada por seis anos, até ser aprovada em concursos públicos: na Rede Municipal em 2005 e na Rede Estadual em 2006. Reconhece que estivera no lugar “errado” durante os anos que atuou na Rede Privada: “[...] Olha, eu acho que aprendi a ser professora devagar, sabe?”

Catarina é crítica da Rede Estadual, mas reconhece que a pós-graduação cursada lhe fora oportunizada pela Secretaria de Estado da Educação com licença remunerada por dois anos. Lamenta que mesmo tendo pesquisado especificamente esse contexto escolar, não é aproveitada na Escola Guimarães Rosa: “[...] ninguém quer saber o que você trouxe. Eu fui financiada pelo Estado, ninguém na escola viu o que eu escrevi, ninguém perguntou, ninguém quer saber.” “Eu sou uma ilha na escola, tá?”, afirma em tom de desapontamento.

Josafá: Você é velho pra estudar

Aposentado aos quarenta e três anos de idade, depois de trinta anos de efetivo trabalho na indústria, Josafá decidiu voltar a estudar aos cinquenta anos. Trajetória de vida difícil pela falta de uma formação escolar comprometida pela necessidade de trabalhar para o sustento. Oriundo de uma família muito pobre, morou no Vale do Jatobá, no primeiro conjunto habitacional da Região, onde teve como referencial uma escola pública que atendia àquela comunidade.

Foi matriculado numa escola apenas aos dez anos de idade e a continuidade de estudos teve que ser interrompida para trabalhar como faxineiro e office-boy nos Diários e Emissoras Associados, onde faz questão de dizer que aprendeu muito, pela oportunidade de convivência com jornalistas.

A escola sempre esteve presente em sua vida. Foi o grande referencial para a comunidade do conjunto de casas populares de baixa renda onde morou, pelas ações mobilizadas em favor da melhoria das condições do bairro, numa parceria com os pais dos alunos. Mas ressalta que o trabalho também o aproximou da escolarização.

Em 1971 foi trabalhar como faxineiro da Companhia Belgo Mineira e a empresa oferecia cursos supletivos a seus funcionários. Josafá, que até os vinte e um anos possuía apenas a chamada formação primária, completou o Ensino Fundamental e o Ensino Médio trabalhando. Pondera que a falta de escolas na cidade de Belo Horizonte foi também fator que o manteve excluído do processo de escolarização. Lembra que no final dos anos de 1970, a cidade de Belo Horizonte oferecia poucas escolas e menciona como possibilidades apenas as escolas Cristiano Otoni, o Imaco, o Pedro II e o Estadual Central.

Sua oportunidade de continuidade de estudos aconteceu no campo do trabalho, pela necessidade de a empresa qualificar seus empregados. Os cursos supletivos que fez foram oferecidos pela multinacional Belgo Mineira, mas ainda assim, julgando o estudo insuficiente, Josafá fez o ensino médio regular em uma escola particular.

Em 1982, para assumir o cargo de supervisor de vendas, na esteira de uma progressão horizontal no universo fabril, a Belgo Mineira ofereceu um curso técnico em Mecânica que ele fez completo, a seu pedido, pois sentia que precisava de cuidados em sua formação, embora outros colegas de trabalho tenham realizado o curso sem necessidade de sua integralidade.

Alimentando o sonho de fazer uma faculdade, realizou esse desejo em 2006, formando-se no curso de Geografia em uma instituição privada, onde conheceu, de fato, o que seria uma licenciatura nessa área.

A vontade de fazer essa faculdade foi incentivada por amigos e pela própria família, mas um de seus irmãos achou muito engraçada aquela ideia, afinal, “[...] você está velho para isso. “Irmão mais velho 8 anos, hoje parece ter o dobro de minha idade”, rindo, disse Josafá.

História de vida marcada por grandes dificuldades econômicas e familiares, o professor foi criado pela mãe numa família de cinco filhos que viveu a ausência da figura paterna por 7 anos, preso pela Justiça do Estado.

Marcelino: O futuro a Deus pertence

Marcelino tem sete anos de profissão, exercidos na rede pública de educação, no período de 30 anos de vida. Apaixonado por esporte, sonhou em ser atleta de futebol – apenas sonho de menino – como afirmou. Formou-se aos 23 anos na Fundação Helena Antipoff. E a graduação já era uma etapa formativa comum na vida de sua família.

A opção pela área da educação lhe pareceu a mais afim, movido pelos dois anos de estágio que fez em escolas da Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte, que atendia a crianças especiais. Assim, decidiu pela licenciatura em Educação Física depois de tentar vaga em pedagogia.

Marcelino é professor dedicado na escola e os colegas presentes nessa roda de conversa deram depoimento em reconhecimento ao trabalho que, sobretudo, realizou no ano de 2016. Trabalha em dois cargos – um efetivo e outro designado – e faz extensão de jornada, obrigado pelo baixo salário pago por um único cargo. É casado também com uma profissional da área de Educação Física.

Expôs sua insegurança quanto aos rumos de sua carreira, embora esteja investindo na continuação de estudos, preparando-se para o processo seletivo de um curso de pós-graduação stricto sensu, um grande desejo que vem manifestando há algum tempo.

Perguntado sobre os rumos da educação pública no Brasil e os impactos das novas reformulações propostas pelo Governo Federal, Marcelino pensa que o futuro a Deus pertence, numa expressão de insegurança quanto à capacidade de organização e de luta do professorado enquanto categoria trabalhista, não obstante tenha afirmado que só a mobilização tem o poder de garantir direitos e melhoria no campo da educação.

Embora jovem, ainda nos anos iniciais de uma profissão cujo reconhecimento é conferido basicamente no campo das obrigações, Marcelino contabilizou dezessete escolas no seu pequeno currículo profissional. Logo no primeiro ano de formado buscou e conseguiu o primeiro contrato como professor designado pelo Estado e de lá para cá não parou mais. 

Hoje atua em duas escolas, e para seu deslocamento utiliza uma motocicleta. É professor efetivo na escola João Guimarães Rosa e complementa sua remuneração com uma extensão de jornada.

Reinaldo: Eu pertenço a isso aqui. E eu nem sabia

Professor Reinaldo é o mais antigo na casa, transitando em todos os três turnos, lecionando Matemática para alunos do Ensino Fundamental e do Ensino Médio. De riso muito aberto, voz alta contrastando com a figura de estatura mediana, esguia, sempre bem barbeado e penteado, Reinaldo é um professor reconhecido por várias gerações de alunos da escola João Guimarães Rosa.

Professor cujo encontro com alunos nas imediações da escola é comum por morar nas proximidades e se deslocar para a casa a pé (o que considera um privilégio); seu trajeto é realizado duas vezes ao dia, por ser detentor de dois cargos efetivos na mesma escola, no turno da manhã e no turno da tarde. Não raro, é abordado pelos alunos nesse percurso de forma amável, brincalhona, numa percepção de se tratar de um professor expansivo.

Passos rápidos, bem cadenciados, postura ereta e caminhar seguro e determinado, Reinaldo deixa transparecer muito de sua formação militar não apenas nessa postura andante, mas na fala determinada, objetiva e volumosa. Essa segunda característica é notada sobretudo na sala dos professores e nas salas de aula.

Nessa roda de discussão, a presença desse professor foi de suma importância, pois com ele é que veio parte de um histórico ainda desconhecido dos demais professores, pelo tempo de exercício na escola. Seu histórico de formação, desde a academia, também revelou a pessoa que rege o ensino de uma ciência dura, na aspereza do contexto dessa escola.

Filho de uma professora, teve sua formação média num canteiro de obras, em Tucuruí, interior do Pará, durante a construção de uma usina hidrelétrica, para onde foi acompanhando a mãe, transferida para trabalhar. Lá, formou-se em Edificações.

Ao retornar para Belo Horizonte, prestou vestibulares para cursar Engenharia, sem sucesso. Decidiu tentar o curso de Matemática e já no segundo período se deu conta de que fizera a opção certa e disse a si mesmo que “aqui é que ... eu pertenço a isso aqui”.

O professor Reinaldo trabalhou no Exército por dezesseis anos e desde que se formou professor conciliou as duas atividades, trabalhando por doze anos como professor designado pela Secretaria de Estado de Educação.

Sua extensa jornada de trabalho o afastava da família a ponto de não ser reconhecido pelo próprio filho, ainda criança de colo. Contou que sofreu um grande impacto quando seu filho chorou assustado ao ser colocado em seu colo.

Foi quando a esposa explicou o choro da criança: estranhamento. Foi o momento que exigiu que ele tomasse a decisão que tomou, ou seja, trabalhar numa atividade que não o afastasse da família. Prestou concurso para professor efetivo no Estado, com o apoio da família.

Embora fosse mais bem remunerado pelo Exército, o Magistério já era exercido concomitantemente pelo prazer de lecionar, e a isso, somou-se também a disponibilidade de tempo que só o Magistério lhe oferecia.

Ricardo: A primeira atração que eu senti pela educação foi ser chamado por professor...

Ricardo disse que nunca pensou em ser professor. Ele se formou, primeiramente, em Engenharia Civil. Um encontro na Secretaria de Estado de Educação mudou o rumo de sua vida. Prestava serviço para o Estado, reformando escolas, e se encontrou com uma diretora de escola que ali estava para requisitar professores de Física.

Acompanhou-a até sua escola para lhe apresentar o espaço que carecia de reforma. Ele fez o projeto, que foi aprovado pela Secretaria e, ao mesmo tempo, a diretora lhe fez mais uma outra proposta: que lá ficasse para a reforma e que lecionasse Física. E lá ele ficou exercendo as duas funções: engenheiro e professor, mesmo sem licenciatura porque a credencial de um Certificado de Avaliação de Título (CAT) viabilizava sua atividade docente. E assim, ele ficou nessa escola por quatro anos.

Ricardo disse que o tratamento de Professor o emocionou muito. Ele tinha o costume de ser tratado por doutor, mas professor foi um tratamento marcante.

Outro ponto significativo na mudança de trajetória profissional, que foi se processando em sua vida, diz respeito à observação do comprometimento que a diretora demonstrava ter pela escola. Ricardo falou da capacidade admirável da diretora em administrar a obra por ele projetada.

Lecionar matérias de Ciências Exatas, Ricardo disse que foi fácil. E se considera um professor conteudista. Assim, seguiu um processo de designação legal ao longo dos anos e, mais tarde, quando saiu da escola, onde lecionou Física e Matemática em quatro anos, trabalhou no SESI, também sem licenciatura, onde conseguiu por ação judicial receber uma indenização de 100.000 reais, após dois anos de trabalho, por questões trabalhistas. Conta que comprou um carro zero com parte da indenização, e continuou se dividindo entre a Engenharia e a Educação, até se decidir pela última.

A partir daí, em 2002, foi fazer o curso de licenciatura em Física. Foi contratado para lecionar na Escola Estadual Governador Milton Campos (Estadual Central) porque, no seu ponto de vista, é o local onde os alunos são mais “mansos”. Ele foi efetivado, através da Lei 100[3], mas fez concurso, posteriormente.

Ricardo disse que veio para o Magistério numa época em que o presidente da República era o Fernando Henrique Cardoso (segundo mandato), período em que o engenheiro ganhava menos do que um professor. Ele amava a Engenharia, mas fez a opção pelo magistério ao ser aprovado em concurso na rede pública, para o cargo de professor de Física.

Já tem 60 anos de idade e acha que não sai da Educação. Gostaria de viver só da Educação, gostaria de ter um atrativo financeiro que lhe desse condições mais tranquilas de criar um ou dois filhos. Gostaria de viver só dessa profissão, mas não é essa a realidade. Para ele, falta nessa profissão o respaldo financeiro. Trocando em miúdos, a valorização daquele que escolheu ser professor.

Ramiro: não tenho vontade de me aposentar

A fala firme e franca, postura disciplinada, caracterizam Ramiro como um professor organizado e exigente. De temperamento forte, algumas vezes se envolve em embates com alunos. Tem fama de disciplinador. Não obstante, é sensível, preocupado e respeitoso com os alunos e professores, com os desafios da escola.

Nutre uma preocupação com a formação humana dos discentes e valoriza a presença das famílias na vida escolar dos alunos. De orientação espírita, busca unidade do grupo docente e sempre pondera a favor da organização e das regras disciplinares.

Ramiro nos relata um percurso de vida que emociona. Ainda jovem, iniciou o curso de Engenharia Eletrônica e de Telecomunicações na antiga Universidade Católica de Minas Gerais, quando já era funcionário de carreira do Banco do Brasil. Abandonou a graduação em função das propostas de avanços na carreira propostas pelo Banco. No entanto, depois de quinze anos de efetivo trabalho, decidiu cursar matemática por volta do ano de 1993.

Pediu demissão do Banco no ano de 1995 e teve a iniciativa de ir pessoalmente a uma escola pública perto de sua casa e se ofereceu para trabalhar, começando a ministrar aulas no mesmo dia. Depois de três meses, vivendo e sentindo as dificuldades da rotina de uma sala de aula, buscou orientação, fazendo um curso de Educação Matemática.

Ramiro conta que como contratado pela Prefeitura de Betim, trabalhando manhã e noite, depois do curso de educação matemática foi aprimorando sua forma de se relacionar em sala de aula. No ano de 2001, fez concurso para duas disciplinas: matemática e física, sendo aprovado em ambas e ingressando no Estado com lotação na escola João Guimarães Rosa e em outra escola da Rede.

O professor se mostra muito voltado às questões que envolvem seu trabalho como docente e se coloca como um membro ativo nas questões pedagógicas que permeiam o universo escolar. Em nossa conversa, trouxe assuntos mais amplos como a importância da relação da família com a vida escolar do jovem, a necessidade de uma adequação curricular, sua visão da educação básica como um todo, não apenas sobre o Ensino Médio, o trabalho da coordenação pedagógica e a necessidade de um trabalho coletivo, entendido como multidisciplinar.

Sua fala seguiu pelo viés da emoção e mais do que relatar, o professor Ramiro foi fazendo revelações, provocando reflexões e instigando a possibilidade de um diálogo com as falas dos demais professores que colaboraram com essa pesquisa.

Pertencer e não pertencer a este lugar

Para todos os professores colaboradores da pesquisa, o local de trabalho possui um significado muito latente. Os registros coligidos entre os professores não deixam dúvidas de que a sensação de não pertencimento a um lugar é muito forte, devido às próprias condições que caracterizam a profissão. Todos os professores passaram por um longo período como designados[4] em várias escolas, antes de alcançar a estabilidade permitida somente com o ingresso na carreira através de concurso público. Reinaldo foi professor designado por doze anos, Ricardo por onze anos e Marcelino por seis anos. Isso significa um acúmulo de experiência docente em escolas diferentes, comunidades diferentes, vivências diversas.

A professora Catarina foi designada por seis anos, atuando em dez escolas diferentes, distribuídas entre as áreas jurisdicionais das Superintendências Regionais de Ensino (SRE), Metropolitana A e B.

Se a longa espera por um vínculo acarreta um sentimento de desafiliação (CASTEL, 1997), por outro lado, é a relação construída no dia a dia da sala de aula que permite viver um processo contrário, de afiliação. Todavia, este sentimento oscila ao longo da carreira.

 

Eu era muito mais amigo dos alunos do que sou hoje em dia. Aí, teve um período de minha vida que esse frio na barriga (medo de errar), já tinha sumido e tal (...) já me permitia errar (...) hoje em dia eu já me permito isso com mais tranquilidade, mas nessa época que me permiti errar com mais tranquilidade, eu me afastei muito do aluno. Me afastei muito mesmo, a ponto de não conversar, de não saber o nome, de não saber nada. E agora, mais no topo aqui da carreira, eu me permito mais coisas e também permito mais coisas. Eu aceito melhor o erro do aluno. Coisa que eu não aceitava tão bem (...) e ao mesmo tempo eu já estou no meio do caminho agora: eu converso com o aluno, mas não sou tão aberto quanto era no início da carreira, mas também não sou tão fechado quanto fui no meio da carreira. (Depoimento de Reinaldo, 2016).

 

De acordo com Huberman (1992), este período é vivido como uma espécie de pôr-se em questão, quando os professores baixam o nível de investimento na carreira e tendem a buscar um distanciamento maior em relação aos alunos. No entanto, nem todos os professores vivem do mesmo modo a sua condição etária e de magistério. Catarina, por exemplo, fala de seu retorno à escola após dois anos no Mestrado profissional e conta sobre seu impacto ao reencontrar alunos do oitavo ano, agora no 2º. ano do ensino Médio:

 

Eu falo que esse ano foi um ano de “estágio” no “Guimarães Rosa” pra mim. Vários colegas que eu já conheço há muito tempo. É, eu acho que eu já trabalhei, com exceção da Otacília, todos os outros professores que são efetivos lá de manhã já foram meus colegas. Agora, o lugar é outro. Os meninos, os alunos, são outros, muitos já foram meus alunos no fundamental, mas hoje eles são, eles são outros, eles não são os mesmos. Mas algum reconhecimento na escola eu tive: “Ah, é a Catarina!”. Aí, eles já sabiam até mais ou menos a minha forma de trabalhar, de lidar no dia a dia. Mas o grande impacto é a sala dos professores. Eu não acho que o impacto nosso seja pelos alunos do Aglomerado. Não, eu já falei, os alunos serão sempre esses. Porque a gente trabalha, né, com o Aglomerado da Serra. Então a Serra é que vem até nós, o Aglomerado vem até nós. E quem já fez um trabalho de pesquisa dentro do Aglomerado vai entender muito bem aquelas culturas que têm lá dentro. Então, a gente entende esse aluno que tá vindo, a gente conhece, né, entende, conhece esse aluno que a gente tem. Então, assim, o impacto pra mim é a sala dos professores. Mas, assim, é um impacto que de certa forma eu já esperava. Porque eu fui pisando em ovos. “Como eu vou trabalhar a Língua Portuguesa?”. Aí, a primeira coisa, eu tentei reconhecer os colegas de português. E não há partilha. Eles não compartilham, né? (Depoimento de Catarina, 2016).

 

 

Por sua vez, Ramiro é um bom exemplo de que mesmo um professor com muitos anos de docência consegue manter o entusiasmo pela profissão, quando poderia estar se lamentando do caminho escolhido, como acontece com boa parte dos professores com mais de vinte anos de docência.

 

O grande problema que eu acho sério na família é quando um pai e uma mãe rotulam um filho, ‘eu quero que você seja doutor’, seja aquilo. Pra mim todas as profissões são boas, desde que você se autodescubra. E o professor, na aula discursiva, ele começa visualizar o que ele tem ali em sala de aula, o que aquele aluno poderá fazer da sua vida. E fácil? não. Mas, tem que ter uma certa paciência e deixar o aluno à vontade (...) (Depoimento de Ramiro, 2016).

 

Catarina ficou indignada quando professores fizeram piada sobre um Conselho de Classe realizado na companhia de ratos (sic) no turno da noite. O descuido com o espaço físico é vivido quase como uma metáfora para aferir o quanto vale um professor.

Você chega numa casa, o anfitrião vai te receber bem. Você vai respeitar e vai procurar saber como está aquele lar... Você não vai mexer em nada ali, se você não tiver licença do anfitrião. Ele não vai te cobrar isso, mas você já entra numa casa pensando assim. Que possamos fazer isso na escola também assim! Ao chegar na escola vamos ver como ela funciona. (...) E o anfitrião gosta de receber tão bem em sua casa. E, como a escola é uma família maior, tem que haver alguém responsável por essa interlocução. E aí eu coloco o quê? Supervisão, Direção. A Direção, tudo bem, porque às vezes ela tem que resolver problemas lá fora, mas os alunos, todos, têm de conhecer supervisão, Direção e saber nomes. E passar a ter um contato, pelo menos uma vez por mês, dar um passeio na sala de aula... É como se fosse o quintal de nossa casa, porque o aluno, ele gosta muito desse contato. O aluno, ele pode te estranhar dentro da sala de aula, mas a gente percebe quando vai à comunidade, como ele respeita a gente e como é bonito sentir esse respeito que o aluno tem pela gente. (Depoimento de Ramiro).

 

Entretanto, como afirma outro professor, não é a remuneração que o fará trabalhar melhor:

(...) é importante sim o professor ser bem remunerado, mas não é isso que vai fazer com que eu trabalhe bem. Eu poderia trabalhar melhor? Poderia. Mas desde que tivesse melhores condições, você sabe disso, né? A gente quer fazer uma série de trabalhos dentro da escola que eu vou precisar de dinheiro pra isso. Além da verba, do dinheiro, eu vou precisar do bom senso. Eu não consigo entender educação sem o mínimo de bom senso (Depoimento de Catarina).

Eu não falo só professor não. A grande dificuldade do ser humano, volto a repetir, é se auto descobrir e ser apaixonado pelo que faz. Ah, mas o salário é importante. Salário é importante? É! Mas, não é mais importante do que o seu ideal de ser. E eu, me realizo como professor em todos os sentidos, porque eu gosto. E, às vezes, pessoal, às vezes, pode achar que eu estou até chato [...] (Depoimento de Ramiro).

Deixa eu te fazer uma pergunta, de onde vem a frustração? De onde ela vem? Sabe? A gente é que deixa. A gente é que deixa, a gente é que se deixa frustrar. (...) Nós assumimos o que a população diz: ‘professor ganha mal’, e a gente ri porque ganha mal, a gente faz piada com o salário. Eu não gosto de fazer piada com meu salário, não. A gente faz piada com o salário, a gente faz piada das condições de trabalho, a gente faz piada até da formação que a gente faz. Eu acho que a gente assimila muito o que todo mundo está falando. Aí a gente vai assumindo essa frustração. Em vez da gente ver a coisa ali: ‘Ah, é isso mesmo, vida de professor é isso aí? Não posso aceitar isso’, sabe? ‘Vou ter que descobrir um caminho’. Não é revoltar, não é rebelar, não. Mas é tentar pequenos passos. Porque eu acho que eu fui fazendo e eu continuo fazendo isso, pequenos passos. A nossa relação com os colegas é uma relação política. Com quantos colegas de lá a gente sabe até que ponto você pode falar, o que você pode falar com ele, né? Porque a gente não quer se indispor. Eu não quero me indispor pela questão do trabalho, mas o que eu quero é aliar forças. (Depoimento de Catarina, 2016).

 

O investimento na carreira, para muitos professores, deriva mais de um desejo pessoal do que um investimento ligado ao aumento de renda.

Segundo Alves e Pinto (2011), a conquista de uma escola pública de qualidade está atrelada à atratividade de bons profissionais, que certamente engloba a valorização social do professor, também por meio de sua remuneração. A realidade salarial dos professores brasileiros é fruto de muitas reivindicações e mobilizações coletivas. Para os autores, o professor de Ensino Médio com licenciatura na sua área de atuação chega a receber até 50% menos que outros profissionais como advogados e economistas (ALVES e PINTO, 2011, p.615).

As biografias aqui construídas a partir das narrativas dos professores permitem notar traços em comum entre os professores, e revelam algumas tendências que fazem parte da carreira, como a fase do questionamento, que geralmente acontece na metade da atividade profissional; posteriormente, um certo sentimento de serenidade, que geralmente vem junto com a estabilidade, assim como perceber fases de desinvestimento, conservantismo e lamentações, as quais geralmente ocorrem no final da carreira.

Por outro lado, não é possível estudar o ciclo da vida profissional pretendendo extrair dele perfis-tipos, sequências ou fases de um desfecho feliz ou infeliz (HUBERMAN, 1992, p.55). Para o autor, não é possível fazer a tipificação e sim reconhecer ‘tendências’ justamente porque a carreira é um processo e não um acontecimento. E neste processo, alguns professores o vivenciam de maneira mais ou menos linear, ao passo que outros o vivenciam com descontinuidades.

Isto porque, segundo Huberman (1992), o percurso de uma pessoa na carreira nunca será igual a outro, uma vez que cada professor carrega consigo suas características, idiossincrasias e marcas que influenciarão sobre a organização da qual fazem parte e serão igualmente influenciados por ela.

Além disso, uma narração da história pessoal e profissional dos professores é, em grande parte, mais uma interpretação do que um relato. E o fato de querer dar sentido ao passado e de o fazer à luz do que se produziu desde então até o presente é o que nos faz aproximarmos ou distanciarmos de certas regularidades e tendências presentes na profissão.

Considerações finais

Refletir acerca da condição docente no Ensino Médio por intermédio das biografias de vida dos professores, possibilitou-nos conhecer parte das experiências e hesitações que marcam suas vidas profissionais e pessoais. A escuta, a descrição e a interpretação dos sujeitos da pesquisa não se separam da busca pela reflexão de nossas próprias indagações pois, de outro modo, “nós não saberíamos viver, mesmo como eremitas, sem pertenças (reais ou simbólicas)” (JOSSO, 2004, p. 95).

Na obra intitulada, Os professores em tempos de mudança, Andy Hargreaves (1998) nos alerta sobre as mudanças que a pós-modernidade suscita nas escolas e na vida dos professores. Ser contemporâneo desse tempo exige de nós atenção para um processo de transformações aceleradas no campo econômico, político, social, cultural e que afetam o trabalho docente. Assim, o autor aponta o funcionamento estrutural das escolas e a dinâmica docente em um novo contexto permeado pelos efeitos de mudanças sócio históricas com as quais estamos fatalmente impelidos a nos confrontar e a refletir, sobretudo no que diz respeito ao lugar que o docente ocupa neste processo inexorável de mudança.

Enfrentar, pois, o problema da condição docente no Ensino Médio requer a inadiável tarefa que permite acertar as contas com a profissão que escolhemos e indagar: Quais são as condições que me tornaram professor? Por que eu me construí como este professor possível? Quem são os professores que resistem na profissão que escolheram?

A dinâmica da biografia e da heterobiografia educativa permite analisar uma dimensão muitas vezes invisível do trabalho docente: os sentimentos mais recônditos, como a culpa, por exemplo: culpa pela falta de tempo, culpa pelo trabalho que nunca acaba. Outros sentimentos que somente a abordagem qualitativa como esta permite perceber: a cultura do individualismo, do isolamento, do privatismo, a que o autor chamou de cultura do ensino (HARGREAVES, 1998, p.185).

As culturas do ensino ajudam a conferir sentido, apoio e identidade aos professores e ao seu trabalho. Fisicamente, os docentes estão frequentemente sós nas suas salas de aula, sem a companhia de outros adultos. Psicologicamente, nunca o estão. Aquilo que fazem, em termos de estilos e estratégias de sala de aula, é afetado fortemente pelas perspectivas e orientações dos colegas com os quais trabalham presentemente ou no passado. Neste sentido, as culturas dos professores, as suas relações com os seus colegas, figuram entre os aspectos mais significativos da sua vida e do seu trabalho. Fornecem um contexto vital para o desenvolvimento do professor e para a forma como este ensina. O que acontece no interior de uma sala de aula não pode ser divorciado das relações que estão forjadas no seu exterior (HARGREAVES, 1998, p. 186).

E foi justamente deslocar do interior para o exterior o que pretendeu este artigo: as afetações, os dilemas, os desafios, as hesitações e as vivências dos professores, através de suas narrativas, guiaram-nos neste rio caudaloso chamado docência, “(...) essa água que não pára, de longas beiras” (ROSA, 2001, p. 48).

Referências

ALVES, Thiago.; PINTO, José Marcelino de Rezende. Remuneração e características do trabalho docente no Brasil: um aporte. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v.41, p. 606-639, 2011.

 

CASTEL, Robert. A dinâmica dos processos de marginalização: da vulnerabilidade à desfiliação. Cadernos CRH, Salvador, n.26/27, p.19-40, jan./dez. 1997.

 

DELORY-MOMBERGER, Christine. Formação e Socialização: os ateliês biográficos de projeto. Educação & Pesquisa, São Paulo, vol. 32, n.02, p.359-371, maio/ago.2006.

 

DELORY-MOMBERGER, Christine. Atelier Biographique de Projet. In: DELORY-MOMBERGER, Christine (dir.). Vocabulaire Des Histoires de Vie et de la Recherche Biographique. Toulouse: érès, 2019.

 

DUBET, François. Sociologia da Experiência. Lisboa: Instituto Piaget, 1994.

 

HARGREAVES, Andy. Os professores em tempos de mudança. Editora MacGraw Hill de Portugal Ltda, 1998.

 

HUBERMAN, Michel. O ciclo de vida profissional dos professores. In: NÓVOA, A. (org.). Vida de Professores. Porto Editora, 1992, p.31-62.

 

JOSSO, Marie Cristine. Experiências de vida e formação. São Paulo: Cortez, 2004.

 

ROSA, João Guimarães. A terceira margem do rio. In: ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias.15a ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p.14-48.

 

ROSA, João Guimarães. Grande Sertão Veredas. São Paulo: Nova Fronteira 2005.

 

TARDIFF, Maurice. Os professores diante do saber: esboço de uma problemática do saber docente. In: TARDIFF, Maurice; LESSARD, Claude; LAHAYE, Louise. Esboço de uma problemática do saber docente. Teoria & Educação, Porto Alegre, n.4, 1991, p.215-233.

 

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Notas



[1] As abordagens e os instrumentos metodológicos utilizados obedeceram aos procedimentos éticos estabelecidos para a pesquisa científica em Ciências Humanas, tendo sido aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Ciências Humanas (PARECER CAEE: 56293316.7.0000.5149). Os nomes dos professores utilizados aqui foram alterados a fim de preservar a identidade dos professores.

[2] Projeto Pedagógico criado pela Secretaria Estadual de Educação em Minas Gerais em 2011, com o objetivo de repensar o currículo do ensino médio das escolas estaduais mineiras. O Programa foi extinto em 2013.

[3] A Lei Complementar nº100, de 2007, garantiu estabilidade funcional para servidores das escolas estaduais sem a necessidade de concurso público. Com o julgamento da ADI 4876, em março de 2014, o Supremo Tribunal Federal (STF), determinou a inconstitucionalidade da referida lei. Assim, muitos servidores continuaram exercendo funções nas escolas por meio de aprovação em concurso público ou através de contratos temporários, mesmo para cargos comissionados.

[4] Designado é quando um professor preenche um cargo a título precário.