As mudanças na concepção de narrativa na História acadêmica e didática  

The changes in narrative conception in the writing of academic history e didatic

 

 

Nayara Silva de Carie

Universidade Federal Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil

carienayara78@gmail.com - https://orcid.org/0000-0001-9805-3917

 

Recebido em 04 de junho de 2020

Aprovado em 11 de junho de 2020

Publicado em 21 de novembro de 2022

 

RESUMO

O presente artigo tem o objetivo de analisar, a partir de um levantamento bibliográfico, as mudanças na ideia de narrativa ocorridas no âmbito das três gerações da Escola dos Annales. Está organizado em quatro partes, incluindo considerações finais e referências. Parte-se da discussão sobre como a narrativa foi compreendida pelas três gerações dos Annales; apresenta os limites desta concepção e, em seguida, discute-se como a narrativa tem sido compreendida atualmente, apresentando suas potencialidades discursivas e epistemológicas para o fazer historiográfico e didático. Ressalta-se que as críticas dos Annales à narrativa não foram direcionadas somente a um tipo de História, mas também ao tipo narrativo como inadequado à representação escrita da História acadêmica. Essa concepção se revela simplista, uma vez que a narrativa, além de não se limitar a um tipo textual que descreve uma sucessão de acontecimentos, constitui-se num tipo discursivo que permite articular diversas temporalidades. E constitui-se, ainda, numa complexa forma de pensamento que permite dar sentido e significado ao vivido. Essa abordagem abre possibilidades de investigação sobre a escrita da História didática, o processo de ensino e aprendizagem da disciplina, bem como o papel da narrativa como forma de conhecimento na vida cotidiana.

 

Palavras-chave: Narrativa; Epistemologia da História; Didática da História.

 

 

 

 

ABSTRACT

This article aims to analyze, from a bibliographic survey, the changes in the idea of narrative, within the scope of the three generations of the Annales School. It is organized into four parts, including final considerations and references. In the first part, we discuss how the narrative was understood by the first and second generation of the Annales. In the second part, we analyze the conception of narrative adopted by the third generation and in the third part, the limits of the conception of narrative produced by the School are presented. In the fourth part, the notion of narrative discourse and narrative thinking is presented as possibilities for expanding the understanding of narrative and its relations with the writing of history nowadays. It is concluded that the Annales' criticisms of the narrative were not directed only to one type of History, but also to the narrative type as inadequate to the written representation of academic history. However, this understanding of narrative is simplistic, since the narrative is not limited to a textual type that presents a succession of events, but that in addition to allowing articulations between various temporalities, it is a complex way of thinking that allows to give meaning and meaning to the lived.

 

Keywords: Narrative; History epistemology; Didactic of history

 

A narrativa na perspectiva da primeira e da segunda geração dos Annales 

Segundo Burke (2010, p. 36), nos anos de 1910 e 1920, na França, Lucien Febvre e Marc Bloch faziam parte de um grupo de historiadores que criticavam o modo como a História acadêmica era produzida: pautada pela narração de acontecimentos políticos inseridos na curta duração, centrada nos heróis nacionais e utilizando documentos oficiais como fontes. Em 1928, Lucien Febre e Marc Bloc criaram uma revista intitulada Annales d’Histoire Économique et Sociale. Esta focalizou o estudo da organização social e econômica, lançando mão de uma abordagem interdisciplinar e, ao longo da década de 1930, tornou-se representante de uma nova corrente historiográfica que ficou conhecida como Escola dos Annales ou Nova História Francesa. Tinha como objetivo investigar aspectos da vida humana que não fossem somente os políticos, outros sujeitos além dos chefes de Estado, e documentos diferentes dos estatais. O tempo também passou a ser compreendido a partir de outras dimensões, não sendo considerado apenas o da curta duração do evento ou do acontecimento, ganhando destaque o tempo de longa duração, das estruturas. Os acontecimentos passaram a ser vistos imersos em estruturas que sobreviviam à curta duração e, portanto, não poderiam ser compreendidos a partir da observação de um pequeno espaço temporal. A compreensão do acontecimento emaranhado em distintas durações permitiu a focalização de outras dimensões da vida humana, como, por exemplo, a dimensão psicológica, que culminou no desenvolvimento do estudo das mentalidades. Nesse contexto, a narrativa passa a ser vista como um tipo textual que não permite a articulação entre as distintas durações e as análises produzidas pela historiografia. Segundo Burke (2010, p. 143), o conjunto das ideias desenvolvidas na Revista dos Annales podem ser resumidas em três eixos:

● a ampliação de objetos e questões, uma vez que a História se voltou para todas as atividades humanas e não apenas para as atividades relacionadas à política;

● o estabelecimento de relações com outras disciplinas, tais como a Geografia, a Psicologia, a Economia, a Antropologia, a Linguística e, especialmente, a Sociologia;

● a substituição da simples narrativa de acontecimentos por uma História-problema.

Burke (2010) divide o movimento dos Annales em três fases: na primeira, que vai de 1920 a 1945, a revista era dirigida por Marc Bloch e criticava a História tradicional, considerada uma História de eventos políticos. Argumentava-se em favor de uma abordagem nova e interdisciplinar da História, sendo priorizados estudos centrados nas crenças, representações e práticas cotidianas, para os quais foi fundamental a aproximação da História com outras Ciências, como a Geografia, a Linguística, a Estatística e a Economia.

A segunda fase vai de 1945 a 1968, período em que a revista foi dirigida por Fernand Braudel e, segundo Burke (2010), período em que o movimento mais se assemelha a uma escola, sendo enfatizados os conceitos de estrutura, de superestrutura e de longa duração. Uma das principais características da História produzida nesse período baseava-se na concepção de que o evento político, o acontecimento é apenas a ponta do iceberg e que, para compreendê-lo, é necessário compreender toda a estrutura na qual está inserido. Entendiam que fazer uma História dos acontecimentos significava fazer uma História superficial dos fatos. Nesse sentido, ainda que o evento fosse enquadrado no campo da política, não deveria ser analisado somente segundo essa perspectiva, uma vez que o mundo humano não é compartimentado, mas constituído de um emaranhado de relações em que diversos aspectos sociais, econômicos e psicológicos se entrecruzam. Propõe-se, então, uma visão estrutural da História, que se configura a partir de vários tempos, tais como o tempo de longa duração (organizações econômicas e sociais) e o tempo de curta duração (acontecimentos). Desse modo, o tempo de curta duração estaria contido no tempo de longa duração, sendo necessário analisar o evento nesse entrecruzamento temporal para que fosse possível alcançar uma melhor compreensão.

Contudo, segundo Burke (2010, p. 52), Braudel tinha a preocupação de situar indivíduos e eventos em seu contexto, mas o fazia de um modo em que os indivíduos e as suas ações se tornavam quase sem importância diante das estruturas sociais e econômicas. Essa perspectiva acabou por atribuir à História de curta duração um papel menos importante na construção da História acadêmica. E a História produzida com essas características foi denominada de história narrativa, tendência criticada pelos Annales. Para Burke (2010), as discussões sobre História política, História dos eventos e História narrativa ficaram muito relacionadas porque o modo de fazer história do qual os Annales queriam se diferenciar, utilizava a narrativa para tratar de eventos políticos, numa perspectiva evolucionista, que outorgava para si a perspectiva de verdade única. Além desses aspectos, consideravam a narrativa um tipo textual pouco analítico, inadequado para abarcar as intrincadas relações entre as diversas dimensões temporais nas quais se inscrevem os acontecimentos.

Buscando expressar toda a complexidade temporal promovida pelas relações entre acontecimento, estrutura e os diversos aspectos da vida humana era necessário pensar numa composição textual que abarcasse essa complexidade. Assim, a História deveria ser escrita utilizando tipos textuais mais analíticos e argumentativos. Embora as críticas mais difundidas no campo se referissem ao modelo de História que era produzido pela Escola Metódica, não se limitavam a ele, uma vez que havia também críticas à inadequação do tipo textual narrativo à escrita da História.

As críticas ao tipo textual narrativo estão relacionadas a diversos fatores. Em primeiro lugar, o discurso científico, ao hierarquizar os tipos textuais, atribui uma posição inferior ao tipo narrativo. Segundo Brockmeier e Harré (2003), no discurso científico, o tipo narrativo passa a ser considerado como simplista, por ser o tipo predominante nas conversações cotidianas. As Ciências Humanas e Sociais que se consolidavam nas universidades no século XX, a exemplo da Física e da Matemática, precisavam de uma linguagem que se diferenciasse daquela utilizada na comunicação cotidiana. Os Annales, mantendo o compromisso com a História científica e em consonância com o que se compreendia sobre os modos de expressão legítimos do discurso científico, precisavam de uma forma de escrita que se distanciasse da linguagem utilizada no cotidiano, ou seja, da narrativa.

Em segundo lugar, havia a necessidade de experienciar formas de escrita que representassem as novas ideias sobre o fazer historiográfico, o que pressupunha a valorização do tempo de longa duração e o trabalho de problematização, leitura e análise de fontes pelo historiador. Todas essas ações demandavam uma representação escrita da História que permitisse articular várias dimensões temporais, sendo necessário, para isso, tipos textuais considerados mais complexos, como a argumentação.

E em terceiro lugar, havia uma relação entre as narrativas históricas e literárias do século XIX que era preciso ser rompida. Essa relação devia-se tanto ao fato de muitos autores terem escrito romances relacionados à História que alcançaram grande sucesso no século XIX, como Ivanhoé, de Walter Scott, Os três mosqueteiros, de Alexandre Dumas e Guerra e paz, de León Tolstói, quanto ao fato de se considerar que História e Literatura utilizavam a narrativa como tipo textual predominante. Ao lado disso, havia a questão de que a Literatura estava relacionada à ficção e a História, que se constituía como ciência, galgando espaços nas universidades como disciplina acadêmica, não podia utilizar elementos que a identificassem com as narrativas literárias de ficção.

 

A narrativa na terceira geração dos Annales

 

Todavia, no final da década de 1960, segundo Burke (2010), a terceira fase dos Annales apresentou uma reação à História das estruturas. Se destacaram as presenças de importantes historiadores, tais como Le Roy Ladurie, Jacques LeGoff e Georges Duby. Nessa fase, surge uma reação contrária à abordagem quantitativa, ao domínio da História estrutural e social como vinha sendo produzida na segunda fase dos Annales. Acontecimentos, tais como aqueles ocorridos em maio de 68, que tiveram início na França com as greves estudantis que se espalharam por universidades e escolas de ensino secundário de Paris, às quais aderiram dois terços de trabalhadores das fábricas parisienses, vieram contestar a concepção da menor importância atribuída aos acontecimentos. As greves estudantis, compreendidas como acontecimentos breves, explosivos, que se espalharam pela França e pelo restante da Europa, modificaram, profundamente, as relações entre raças, sexos e gerações. Nesse contexto, como continuar sobrepujando a estrutura aos acontecimentos? Como não voltar os olhos aos sujeitos e suas intenções? Segundo Burke (1991, p. 561), naquele momento, “os acontecimentos pareciam vingar-se de quem tanto os menosprezava.”

Essas críticas resultaram num conjunto de mudanças, dentre as quais pode-se citar:

● o interesse por toda a atividade humana;

● a ampliação de temáticas – interesse pela visão das pessoas comuns;

● a ampliação ainda maior da noção de fonte;

● a análise de movimentos sociais coletivos e individuais;

● a importância do trabalho interdisciplinar;

● os pontos de vista diferentes sobre os acontecimentos;

● a ressignificação da narrativa;

● a ressignificação do papel dos acontecimentos.

A terceira geração dos Annales também focalizava aspectos culturais e psicológicos como centrais, mas com algumas diferenças em relação à primeira geração. Nesta perspectiva, ganha destaque a Antropologia e um crescente interesse em temáticas como sentimentos, emoções, valores e padrões de comportamento.

Nesse contexto, se desenvolvia a História das Mentalidades, que suscitava outras perguntas, problemas, sujeitos, objetos e fontes. Para essa corrente, era importante saber o que pensavam os sujeitos, sendo necessário ampliar ainda mais a noção de fonte histórica. Stone (1991, p. 26) afirmou que essas mudanças na historiografia demandaram formas diferentes de análise, cujo modelo foi tomado da Antropologia, como a “descrição densa” proposta por Geertz (1989). O texto, fruto desses novos objetos e procedimentos de análise, evidenciou o seu caráter narrativo, ao realçar os sujeitos. Para isso, Stone (1991) aponta cinco diferenças entre a narrativa realizada pela terceira geração e as narrativas históricas da Escola Metódica:

a) o interesse é pela vida das pessoas comuns, dos pobres, dos excluídos e não dos grandes políticos ou heróis nacionais;

b) a análise é tão importante quanto as descrições;

c) novas fontes são utilizadas e não somente documentos de Estado;

d) há uma preocupação com a mentalidade e a Psicologia;

e) o evento volta ao centro das análises. Partia-se dos acontecimentos de curta duração para compreender o funcionamento de uma cultura ou de uma sociedade no passado.

O contexto da década de 1960 não alterou somente o campo da História. Na Sociologia, as análises microssociológicas também ganharam destaque. Para se estudar os conflitos sociais que, até então, eram, majoritariamente, analisados pela perspectiva macrossociológica, com base na classe social que o indivíduo ocupava na estrutura do sistema econômico, foram abordados outros elementos, tais como os pertencimentos étnicos, religiosos, políticos, de gênero e comunitários. As Ciências Sociais, com o objetivo de investigar o micro, o sujeito, voltaram-se para a narrativa, tanto as narrativas produzidas pelos sujeitos sobre sua própria vivência, quanto para o potencial da narrativa como forma de expressão escrita. Alain Touraine (1998), sociólogo francês, destaca uma “volta do ator social”, reconfigurando a ação dos agentes face às estruturas. Para Touraine (1998, p. 37), o ator social é alguém que “engajado em relações concretas, profissionais, econômicas, mas, também, igualmente ligado à nacionalidade ou ao gênero, procura aumentar a sua autonomia, controlar o tempo e as suas condições de trabalho ou de existência”. Dito de outro modo, na década de 1970, a terceira geração dos Annales lançou um novo olhar para o acontecimento, para o papel do indivíduo e as suas relações com contextos mais amplos. Esse processo foi modificando as relações entre História e narrativa.

 

Para Ricoeur (2010, p.168), até a década de 1960, os Annales não enfrentaram a questão da narrativa de frente, uma vez que, para ele, a segunda geração dos Annales se opôs a discutir amplamente a concepção de acontecimento e os impactos destes nas mudanças sociais, bem como não discutiu de maneira aprofundada as relações entre a narrativa e a História. A noção de acontecimento desenvolvida por Braudel (1984, p. 14) era a “de oscilações breves, rápidas, nervosas”. Para ele, sob os acontecimentos se desenrolava uma História social, dos grupos, de ritmo lento. A longa duração seria o tempo da economia, das instituições políticas, das mentalidades e, de ritmo ainda mais lento, seria a História do tempo geográfico. Segundo Ricoeur (2010, p. 173), “a ideia de que o indivíduo e o acontecimento devem ser ultrapassados é o ponto forte da escola.”

De acordo com Ricoeur (2010. p. 359), Braudel contesta a ideia de que o indivíduo ou grupos de indivíduos são os responsáveis pelas mudanças históricas e que as ações desses indivíduos, consideradas explosivas, súbitas e breves, seriam as responsáveis pelas transformações sociais. A rejeição ao acontecimento e ao indivíduo como elementos centrais da mudança social se relaciona à aproximação que ocorreu entre a História e a Sociologia, que se constituiu numa mudança de eixo de investigação, passando da política para o social. Para Braudel, uma História dos indivíduos e dos acontecimentos seria uma História factual, uma descrição sucessiva de fatos, tal como as guerras, os tratados, etc., tendo na narrativa a forma de organizar esses acontecimentos. Desse modo, História política, factual e narrativa se tornaram sinônimas.

Ainda que a maioria das críticas à História narrativa estivesse direcionada à História política, que destacava o indivíduo e o acontecimento, havia também a crítica à narrativa como tipo textual limitado e inferior, que não comportava a análise e a reflexão mais aprofundadas, configurando-se numa descritiva sucessão de fatos.

Ricoeur (2010, p. 339-372) analisou a obra O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na época de Felipe II, que se constitui num exemplo de como Braudel (1984) concebia a História, o triunfo da longa duração e da História analítica, das estruturas, e não narrativa. Diferentemente de Braudel, Ricoeur (2010, p. 158) considera que toda História pertence ao tipo narrativo e utiliza a expressão “eclipse da narrativa” para tratar da questão na História. A narrativa como tipo textual, sempre esteve presente na apresentação dos trabalhos dos historiadores, mas como algo obscurecido, não dito, não abordado. Ricouer (2010) afirma que mesmo na obra, O Mediterrâneo, Braudel (1984) não consegue se livrar da narrativa, fazendo do mar, o grande personagem principal. O livro é dividido em três partes: na primeira, o autor trata do tempo longo, quase sem transformações, o tempo cósmico, a História do meio; na segunda, ele trata da conjuntura, da economia dos estados e das civilizações; e na terceira parte, aborda a História dos acontecimentos, de curta duração, o reinado de Felipe II, rei da Espanha.

Para Ricouer (2010), Braudel (1984), em sua obra historiográfica, crítica à História narrativa, ao tentar construir uma linguagem adequada à complexidade proporcionada pela análise das estruturas, produziu, num efeito didático, uma separação entre os tempos. Diferentemente de Tolstói que, ao produzir uma narrativa literária, teria construído a intriga1 de uma forma complexa, relacionando passado, presente e futuro. Segundo D’onofrio (1990), o final do século XIX e o início do século XX já haviam mostrado na Literatura vários exemplos de narrativas muito complexas, como aquelas desenvolvidas por Dostoiévski, Thomas Mam, Marcel Proust, Tolstói, Virgínia Wolff, James Joyce, William Falkner, Machado de Assis, entre outros. Nessas narrativas, a ordem cronológica passado, presente e futuro é desmantelada e esses tempos são fundidos. Proust, ao escrever o romance Em busca do tempo perdido, trabalha com diferentes temporalidades: a cronológica, a psicológica, a sucessão, a simultaneidade, tecendo complexas relações entre presente e passado. Ainda, segundo D’Onofrio (1990), a grande contribuição de Proust para a narrativa literária foi a descoberta do tempo psicológico, pelo qual ações e sentimentos não estão sujeitos ao plano da sucessividade, mas ao da simultaneidade.

 

Pela técnica das associações em cadeia, o passado, que estava esquecido e, portanto, “perdido”, é recuperado pela consciência na sua integridade. A mente pensante, no momento em que recorda o passado, o torna presente, dando-lhe nova existência (D’ONOFRIO, 1990, p. 32).

 

 

 

Ricouer (2010) conclui que a diversidade temporal trazida pelos Annales foi uma grande contribuição dessa Escola, mas ela não renunciou de fato à narrativa e ao acontecimento. Em relação ao acontecimento, apenas o inseriu em várias durações temporais – “a arte de Braudel, aqui, está em estruturar a sua História dos acontecimentos.” (RICOEUR, 2010, p. 352).

Segundo Ricoeur (2010), ainda que a narrativa em si não tenha sido problematizada epistemologicamente pelos Annales, ao longo de todo o debate ficou subentendido que a narrativa era uma forma muito elementar de discurso para dar conta das explicações históricas e das múltiplas temporalidades. A narrativa seria incapaz de articular curta, média e longa duração. O modelo nomológico, vindo da Física, da Química e da Matemática, que investigava a natureza das explicações científicas, foi estendido às demais ciências e se constituía numa teoria sobre o que deveria ser considerado como uma explicação científica. Esse modelo foi desenvolvido pelo filósofo Carl Gustav Hempel juntamente com Paul Oppenheim, e, em 1948, publicaram a obra Studies in the logic of explanation, em que desenvolveram a sua teoria sobre explicações científicas. O modelo nomológico afirma que explicar um acontecimento é mostrar que, a partir de certas leis, mais a realização de condições iniciais, a sua ocorrência seria inevitável ou muito provável. Nas Ciências Sociais e na História, esse modelo sofreu várias críticas, uma vez que os acontecimentos históricos não se repetem e não se pode recriar as condições iniciais para provar ou refutar a sua influência no desenrolar dos acontecimentos.

Pelo que se sabe, não são conhecidas leis que nos permitam prever com certeza o comportamento humano. Segundo Ricoeur (2010, p. 237), “para os defensores do modelo nomológico, a narrativa era um modo de articulação elementar e pobre demais para o que se pretendia explicar.” Esta concepção de narrativa parece também ter sido adotada pelos Annales.

Ricoeur (2010) rebate a crítica de que a narrativa não comporta relacionar diferentes temporalidades, ao afirmar que, mesmo na narrativa tradicional, o simples fato de que, na História, o vivido ocorreu num tempo diferente do tempo em que foi narrado, já institui, no mínimo, duas temporalidades. Prosseguindo com a oposição à crítica de que a narrativa é insuficiente para dar explicações, o autor argumenta que a própria ação já constitui, em si, numa pré-narrativa, uma vez que a linguagem já dá elementos para compreender a ação. Os enunciados já trazem consigo um conteúdo, um entendimento que permite, implicitamente, um juízo de valor. Sem abordar a parte analítica da própria narração, pode-se dizer que narrar já é explicar. O indivíduo que narra está imerso em uma sociedade que possui crenças, valores, linguagem e formas de ver o mundo que lhe permitem dar significado à ação no ato de narrar, antes mesmo de a ação ser submetida a um processo formal de análise. Toda ação traz consigo uma prefiguração e é isso que permite que a ação seja narrada. Disso decorre que, se a ação pode ser narrada, é porque ela está articulada a um conjunto de signos, regras e normas de uma cultura e de uma sociedade. Nesse sentido, “compreender uma História é compreender ao mesmo tempo a linguagem do fazer e a tradição cultural da qual procede a tipologia das intrigas.” (RICOEUR, 2010, p.100).

Argumentando em favor de que a narrativa consegue articular diversas temporalidades, Ricoeur (2010, p. 93) desenvolve uma tese sobre a complementaridade entre tempo e narrativa. Para o autor, por meio da intriga, a narrativa estabeleceria relação entre os tempos do vivido, do acontecimento e os tempos de longa e média duração, constituindo-se num terceiro tempo, o tempo histórico. A sua tese central é que “o tempo se torna tempo humano na medida em que está articulado de modo narrativo, e a narrativa alcança sua significação plena quando se torna uma condição da existência temporal.”

Nesse sentido, a narrativa é vista como um tipo textual capaz de representar a complexidade de tempos, espaços e dimensões da vida humana, contrariando as concepções de narrativa que a consideravam uma forma de escrita aquém da complexidade das análises pretendidas pela História.

 

A narrativa para além do tipo textual: o discurso narrativo

 

Apontando para uma ampliação da noção de narrativa assim como os estudos de Ricouer (2010), os trabalhos desenvolvidos por Charaudeau (2009), pesquisador da Linguagem, discutem o discurso narrativo e afirmam que este tem a função de descobrir um mundo construído no desenrolar de uma sucessão de ações que se influenciam mutuamente e se transformam num encadeamento progressivo. Esse encadeamento tem um princípio e um fim e é constituído por vários elementos, dentre os quais se podem identificar narrador, personagens, suas ações e intencionalidades, tempo, espaço, cenário, além de apresentar uma mudança entre o estado de coisas inicial e final. Para o autor, o discurso narrativo tem por objetivo contar, e para ele:

 

contar é uma atividade posterior à existência de uma realidade que se apresenta como passada (mesmo quando é pura invenção), e, ao mesmo tempo, essa atividade tem a propriedade de fazer surgir, em seu conjunto, um universo, o universo contado, que predomina sobre a outra realidade, a qual passa a existir somente através desse universo (CHARAUDEAU, 2009, p. 156).

 

O autor alerta sobre a confusão que normalmente se faz entre discurso narrativo e tipo ou modo narrativo. Segundo Charaudeau (2009), toda narrativa está contida num discurso narrativo que engloba o tipo narrativo, mas não se limita a ele, podendo conter outros tipos textuais, tais como o descritivo e o argumentativo. Pode-se, portanto, organizar uma narrativa com uma predominância de tipos textuais descritivos e argumentativos, mas tendo o texto, o objetivo de contar sobre algo que já se passou com personagens, num determinado tempo e espaço, com mudanças nos estados de coisas inicial e final.

Corroborando as afirmações de Charaudeau (2009), Eco (2008 p. 88-89) afirma ser possível existirem estruturas narrativas, mesmo em textos não narrativos. O autor exemplifica a sua afirmação a partir do seguinte diálogo:

“Paulo: – Onde está Pedro?

Maria: – Lá fora.

Paulo: – Ah! Pensei que ainda estava dormindo.”

No supracitado texto, o autor mostra que, a partir do diálogo, se pode, facilmente, extrapolar uma História que narra como (1) no mundo dos conhecimentos de Paulo e de Maria existe um certo Pedro; (2) Paulo, em um tempo inicial (t1), acredita que Pedro continua dormindo em casa; ao passo que Maria, em um tempo (t2), afirma saber que Pedro saiu; (3) Maria informa Paulo acerca de Pedro; (4) Paulo abandona a sua crença de que Pedro estava dormindo, embora confesse ter acreditado, inicialmente, que Pedro estava dormindo em t1.

 

A narrativa como forma de pensamento: a virada narrativa

 

Os trabalhos de Brockmeier e Harré (2003) ampliam ainda mais a noção de narrativa, compreendendo-a como uma forma de pensamento. Segundo os autores, o aumento do interesse pela narrativa deve-se a uma nova abordagem teórica da Filosofia da Ciência, denomina “virada narrativa”, que se relaciona à crise no paradigma Moderno de ciência. Este, dentre outras características, separa sujeito e objeto, parte do princípio de que o investigador é neutro e não interfere no objeto, buscando  regularidades capazes de prever comportamentos ou fenômenos.

Segundo Brockmeier e Harré (2003), os trabalhos da “virada narrativa” se diferenciam de outras abordagens por se oporem a duas características que eram atribuídas à narrativa: a primeira consiste na ideia de que onde existe uma narrativa há uma História esperando para ser contada, tal como ocorreu, sem nenhum trabalho de construção analítica; e a segunda, de que a narrativa assim produzida se relaciona a uma única e verdadeira representação da realidade humana. Toda essa discussão que redimensiona a narrativa histórica não ocorre somente na História, mas pertence a um movimento que reelabora a concepção de narrativa e de tipo narrativo no discurso científico. Segundo Mattos (2010), a narrativa, a partir da década de 1980, tem sido mais estudada pelas Ciências Sociais como um todo: na Psicologia, Antropologia, Linguística, Educação, Sociologia, Filosofia, etc. Segundo a autora, várias são as razões apontadas para esse interesse, dentre as quais ressalta o fato de que diversas áreas assumiram perspectivas mais qualitativas em suas pesquisas.

O que se percebe nesses trabalhos relacionados à “virada narrativa” é uma noção ampliada que, além de considerar o tipo narrativo como integrante de uma narrativa, mas sem limitar-se a ele, também o considera uma forma de pensamento. Segundo Bruner (2001, p. 44), “a narrativa é uma das formas mais utilizadas para darmos sentido ao mundo em que vivemos, constitui-se num modo de pensamento e como um veículo de produção de significado.” Assim, ela permite organizar o fluxo de acontecimentos de modo que deixe de ser uma sequência de eventos e se transforme numa experiência que faça sentido. Segundo o autor, a narrativa está presente em todas as culturas, ainda que organizada sob diferentes gêneros. A ciência ocidental, na tentativa de se distanciar dessa forma de pensamento, compreensão e expressão, relegou-a a um lugar inferior.

Bruner (2001, p.116) dialoga com os trabalhos de Ricouer (2010) sobre Tempo e Narrativa ao afirmar que a narrativa é um modo de pensamento, “uma estrutura para a organização de nosso conhecimento”, e defende que o pensamento narrativo faz parte da ciência, ainda que esta tenha tentado negá-lo durante muito tempo. Segundo o autor, o processo de fazer ciência é narrativo. Para demonstrar esse argumento, ele dá o exemplo de como o físico Niels Bohr chegou à ideia de complementaridade na Física, segundo a qual não se pode determinar posição e velocidade de uma mesma partícula ao mesmo tempo, motivo pelo qual essas duas variantes não podem fazer parte da mesma equação. Segundo o autor, a ideia havia ocorrido a Bohr quando o seu filho lhe confessou que havia roubado um enfeite de uma loja. Bohr sentiu-se feliz pelo fato de o filho ter confessado, mas triste porque o seu filho havia cometido uma infração. Diante do acontecido, o cientista ficou surpreso por não conseguir pensar no filho à luz do amor e da justiça. Foi associando esse dilema moral ao problema de como determinar, ao mesmo tempo, a posição de uma partícula e a sua velocidade, que o físico formulou a sua teoria de que não é possível medir posição e velocidade de uma partícula ao mesmo tempo. Foi por meio da narrativa que Bohr conseguiu relacionar acontecimentos, dar sentido às suas experiências e, diante dos seus conhecimentos e das ideias que lhe ocupavam a mente, construir uma narrativa da qual emergiu a sua teoria.

Para Bruner (2001, p.11) a narrativa é

 

como um modo de pensamento e uma expressão da visão de mundo de uma cultura. É por meio de nossas próprias narrativas que construímos, principalmente, uma versão de nós mesmos no mundo, e é por meio de sua narrativa que uma cultura fornece modelos de identidade e agência de membros.

 

Para além de um tipo textual e de uma forma de linguagem, Bruner (2001) desenvolve a ideia da narrativa como forma de pensamento. A narrativa compreendida como modo de pensamento e como maneira de dar sentido à vida e conhecer o mundo que nos cerca, talvez explique o que observa Barthes (2001, p. 103-104), ao afirmar que a narrativa se inicia com a própria História da humanidade, estando presente em todos os tempos, lugares e sociedades. Não há, portanto, nenhum povo sem narrativa, porque todas as sociedades necessitam construir sentido e significado às suas vivências no tempo.

 

A ampliação da noção de narrativa na Didática da História

 

Os trabalhos de Rüsen (2012) sobre a Didática da História vão na mesma direção dos estudos da Linguagem, da Filosofia da História e da Filosofia da Ciência no sentido de se compreender a narrativa de maneira mais ampliada. O autor discute o componente narrativo do conhecimento histórico a partir da Teoria e da Epistemologia da História. Ele recoloca a Didática da História no campo historiográfico, como ciência da aprendizagem histórica, e a considera como participante do processo de construção do conhecimento. Desse modo, se antes a disciplina tinha como função transportar os discursos produzidos no campo acadêmico para a escola, agora tem sua função redefinida e passa a participar academicamente da produção dos discursos. Para Rüsen (2012), a Didática da História se situa nessa relação direta com a ciência da História, na medida em que é concebida como ciência do aprendizado histórico e não como ciência da transmissão desse conhecimento produzido pela ciência histórica.

Segundo Rüsen (2006, p. 8), os historiadores do século XIX, ao se esforçarem em transformar a História em ciência, passaram a valorizar mais a Metodologia da História como um campo de instrução e análise de métodos e técnicas para a pesquisa histórica, em detrimento da Didática como o centro das reflexões sobre a própria profissão, que além dos métodos, das técnicas e da produção, abarcava também os diversos modos como os trabalhos eram apropriados por diferentes sujeitos em diferentes espaços sociais. Para o autor, essa “cientifização da História” levou a uma limitação de perspectiva sobre os propósitos e finalidades da mesma, excluindo da reflexão histórica as dimensões do pensamento histórico relacionadas com a vida prática. Desse modo, a “cientifização” da História teria afastado do campo a discussão a respeito da constituição narrativa do pensamento, da representação histórica e da História na “vida prática”.

No campo do ensino de História, a escrita didática das narrativas de História não fomentou tanta discussão quanto a escrita da História acadêmica. Mas nem por isso, as discussões em torno das narrativas acadêmicas de História deixaram de influenciar as narrativas didáticas produzidas. Influenciada pela concepção de narrativa produzida pela primeira e segunda geração dos Annales, as narrativas didáticas de História passaram a apresentar uma escrita asséptica, objetiva e científica. No entanto, esse discurso da ciência invisibilizava os sujeitos e os acontecimentos, enfatizava as estruturas políticas e econômicas, contribuindo para o ofuscamento dos processos históricos que se pretendia ensinar, das fontes que foram utilizadas para a construção das narrativas apresentadas sobre o passado. O discurso científico e asséptico defendido na escrita das narrativas didáticas revelava um modo de pensar o sujeito, a sociedade e a História. Ou seja, uma sociedade sem sujeitos, em que as pessoas comuns não apareciam representadas como sujeitos históricos ativos.

Segundo Bentivoglio (2010, p.190), a discussão sobre o componente narrativo na escrita da História não é recente. Na Alemanha no século XIX, por exemplo, autores como Droyssen, Humboldt e Gervinus já discutiam essa questão e afirma que um dos pressupostos de Humboldt era o de que a escrita da História era a principal atividade do historiador e não a pesquisa. Para Bentivoglio (2010) havia diferenças entre o modo de compreender a narrativa como componente do pensamento histórico no século XIX e no século XX. Para os autores alemães do século XIX, a preocupação com a reconstrução do passado por meio da narrativa sempre esteve presente. Eles mantiveram o contato com a Filosofia e com a Literatura, diferentemente da Historiografia Francesa do século XX. Não pensavam as narrativas como elementos retóricos ou literários, mas como parte integrante da epistemologia da História. Reconheceram a dependência entre os historiadores e a narrativa, explorando as possibilidades desta para a escrita da História e seu papel na historiografia. Esses historiadores mantiveram a construção metodológica em paralelo com o debate da dimensão poética ou criativa, reconhecendo que esta exigia cuidados, uma vez que além de seus fundamentos narrativos, a História era uma ciência.

É na tentativa de superar essa cisão entre cientifização da História e vida prática que Rüsen (2011) trabalha com um conceito de narrativa histórica que serve à vida prática, uma vez que permite ao ser humano organizar os fragmentos da vida cotidiana. Esta perspectiva de compreensão da narrativa a considera uma forma de pensamento na qual a ciência está contida como uma forma composicional. Segundo Rüsen (2011, p. 54), “(...) o pensamento é um processo genérico e habitual da vida humana. A ciência é um modo particular de realizar este processo. O homem não pensa porque faz ciência, mas ele faz ciência porque pensa.” E é nesse sentido que a História serve à vida prática e existe para além do campo científico.

O autor afirma que a noção de narrativa histórica, discutida no âmbito da Teoria da História, não é somente uma forma de representação histórica, mas um modo por meio do qual as pessoas lidam com o passado. Isso ocorre por meio de um processo a partir do qual a consciência é constituída como consciência histórica e, ao mesmo tempo, a História se constitui como o conteúdo dessa consciência. Contar histórias exerce uma função na vida prática, ou seja, a de criar significados para as experiências temporais, um fenômeno elementar, que define o homem como espécie, que lhe permite compreender as mudanças no presente para que possa formar perspectivas de ação para o futuro. Desse modo, o sujeito somente aprende História quando desenvolve, por meio da competência narrativa, um sentido para a experiência histórica, de modo que possa orientar a sua existência temporal, sendo capaz de narrar as suas próprias histórias, sejam elas individuais ou coletivas. Um conceito muito importante para o autor é o de consciência histórica. Segundo o autor, consciência histórica pode ser descrita

como a atividade mental de memória histórica, que tem sua representação em uma interpretação da experiência do passado encaminhada de maneira a compreender as atuais condições de vida e a desenvolver perspectivas de futuro na vida prática conforme a experiência. (RÜSEN, 2011, p. 112-113).

 

O modo mental dessa representação é o relato. Este é compreendido não como uma mera descrição, mas como uma forma de conhecimento e de compreensão antropologicamente universais e fundamentais. Essa forma narrativa, que oferece uma interpretação para o passado, tem uma função de orientação para a vida dos sujeitos. Dessa forma, o aspecto comunicativo da memória histórica, ou seja, as narrativas históricas ganham muita importância, uma vez que é por meio das histórias e da percepção delas que os sujeitos articulam sua própria identidade. É a partir dessas narrativas históricas que os sujeitos constroem, formam suas visões de mundo, de sociedade, de si mesmos, além de construírem seus projetos de futuro e parâmetros para agir no mundo.

Para Rüsen (2011, p. 112-113), “a aprendizagem da História é um processo de desenvolvimento da consciência histórica no qual se deve adquirir competências de memória histórica”. Essas competências possibilitam aos seres humanos a organização cronológica coerente entre passado presente e futuro, permitindo-lhes organizar a própria experiência de vida que, por sua vez, será utilizada para apropriar-se e produzir outras histórias. Essa capacidade pode ser sintetizada pelo conceito de “competência narrativa”, que consiste na capacidade de representar o passado de maneira clara e descritiva, por meio da qual o cotidiano se torna algo compreensível e a experiência de vida adquire perspectivas de futuro. A ideia de competência narrativa adquire importância porque permite compreender as narrativas didáticas de História de modo mais complexo, não como veículo de informações, mas como instrumento central para o desenvolvimento e aprimoramento da competência narrativa. Para Mattozzi (1999, p. 35), as narrativas são “ferramentas cognitivas do conhecimento histórico”, fornecendo elementos capazes de auxiliar na compreensão da realidade, de modo a promover uma atuação crítica no mundo. Nesse sentido, as narrativas didáticas de História constituem-se em instrumentos capazes de ativar operadores cognitivos para a compreensão dos processos históricos, tais como aqueles que se referem ao estabelecimento de relações temporais, espaciais, causais, inferenciais, de identificação de evidências, formulação de hipóteses, dentre outros.

Cooper (2006), ao investigar o ensino de História para crianças, afirma que o ensino das narrativas está presente na vida escolar desde muito cedo e assume grande importância em nossas vidas, pois estimula o desenvolvimento cognitivo, pessoal, social e emocional. Segundo a autora, as narrativas literárias ou historiográficas estimulam o senso de identidade sobre quem somos, como nos relacionamos com os outros, bem como as diferenças e semelhanças entre nós e os outros. Permite compreender as ações de outras pessoas, como sentem e pensam e o motivo pelo qual as coisas acontecem, além de favorecer o respeito a diferentes culturas, a consciência da sua própria e a consideração das consequências das próprias ações. Segundo Rüsen (2011, p. 109), a maioria dos especialistas do campo do ensino de História concordam que o livro didático é a ferramenta mais importante no ensino de História. Estes carregam narrativas históricas que contêm representações históricas que circulam na sociedade que as produziram. Contudo, faz-se necessário ressaltar que não é somente pela escola que os estudantes têm acesso às narrativas de História. É importante considerar que, de modo geral, é na escola que se tem acesso a uma História sistematizada e escrita, principalmente, por meio dos livros didáticos. Desse modo, as narrativas dos livros didáticos se constituem não somente em representações de História, mas em importantes mediadores por meio dos quais os alunos aprendem a construir as suas próprias narrativas. Dito de outro modo, um instrumento que ajuda a desenvolver a cognição histórica, por meio da elaboração de narrativas individuais e coletivas que auxiliarão os estudantes a se orientarem temporalmente.

 

Considerações finais

 

A narrativa, na primeira e segunda geração da Escola dos Annales, foi criticada por dois motivos. Primeiramente, por ter sido associada à História metódica, muitas vezes, denominada de narrativa, vinculada aos eventos políticos, de curta duração, que organiza os acontecimentos numa sequência cronológica evolutiva, rumo ao progresso.

Em segundo lugar, foi considerada como um tipo textual simplificado, associado ao senso comum e pouco apropriado para descrever cientificamente os processos históricos e as relações entre a estrutura, a conjuntura e os acontecimentos. Essa perspectiva de compreensão da narrativa relaciona-se ao contexto em que a História se consolidava como um campo científico e, para isso, fazia-se necessário distanciá-la da Literatura, buscando um tipo de composição textual diferente daquele utilizado, principalmente, nos romances históricos, muito difundidos na época.

Na década de 70, a terceira geração dos Annales, voltou o olhar para os sujeitos e para os acontecimentos, estabeleceu relações com a Antropologia, focando na relação entre acontecimentos, sujeitos e suas percepções sobre as próprias histórias. Investigar as narrativas individuais passou a ser fundamental para compreender o mundo que se configurava após maio de 68. Desse modo, a narrativa ganhou centralidade como objeto de investigação e passou a ser compreendida como um modo de pensar, que organiza os acontecimentos que se desenrolam, permitindo aos sujeitos darem sentido e significado a eles. Esse foco nos sujeitos e nos acontecimentos não ocorreu somente na História, mas em diversos campos do conhecimento.

Na década de 80, um conjunto de estudos provenientes de diversos campos, tais como a Psicologia, a Filosofia, a História, a Didática da História, as Ciências Exatas e a Educação, passa a compreender a narrativa não apenas como um tipo textual, um modo discursivo ou de representar as histórias, mas sim, um modo de pensamento que permite aos seres humanos darem sentido e significado aos acontecimentos. Esses estudos deram origem ao que se denomina “virada narrativa”.

A compreensão da narrativa como um modo de pensamento passou a ocupar papel importante em trabalhos de Filosofia da História, que influenciaram a História acadêmica e didática. Dessa forma, torna-se fundamental conhecer os modos como as sociedades constroem as suas narrativas sobre si mesmas, sobre os outros e sobre o mundo em que vivem, uma vez que essas narrativas dão suporte para a compreensão do próprio entorno que, por sua vez, dá suporte às ações dos sujeitos e à elaboração de outras narrativas.

Os trabalhos de diversos campos como a Filosofia da Ciência, a Linguagem e a Filosofia da História vêm abordando a narrativa numa perspectiva ampliada, considerando-a um tipo discursivo que possibilita a articulação de diversos tempos, além de se constituir numa forma de pensamento e de conhecimento que possibilita dar sentido e significado aos acontecimentos. Estes estudos apontam para as potencialidades da narrativa na produção e na escrita da História acadêmica e didática, bem como para os processos de ensino-aprendizagem da disciplina.

 

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Notas

 

[1] O autor conceitua intriga como “o agenciamento de fatos (e, portanto o encadeamento das frases de ação) na ação total constitutiva da História narrada, [...]” (RICOUER, 2010, p. 100).