Literatura sufocada: a leitura literária nas versões da Base Nacional Comum Curricular para os anos iniciais do Ensino Fundamental

 

Smothered literature: literary reading in the Common National Curriculum Base for the initial years of Elementary School

 

Marcia Lisbôa Costa de Oliveira

Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Faculdade de Formação de Professores, Departamento de Letras – São Gonçalo, Rio de Janeiro, Brasil

lisboamarcia@hotmail.com - https://orcid.org/0000-0002-0141-4008

 

Marcela Martins de Melo Fraguas

Doutora em Letras - Língua Portuguesa pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

marcelammelo@yahoo.com.br - https://orcid.org/0000-0001-9678-2235

 

Recebido em 3 de junho de 2020

Aprovado em 3 de julho de 2021

Publicado em 21 de junho de 2022

 

 

RESUMO

Este artigo objetiva analisar concepções sobre a escolarização da leitura literária nos anos iniciais do Ensino Fundamental presentes nas quatro versões da Base Nacional Comum Curricular, da primeira Versão, em 2015, ao documento homologado em 2017. Desenvolveu-se uma análise de conteúdo temática (BARDIN, 2006) dos documentos, baseada em três categorias – literatura; formação do leitor literário e ensino/aprendizagem da leitura literária. O levantamento dos conceitos fundamentais nos documentos – Letramento, Letramento Literário, Educação Literária e Formação Literária – revelou disputas teórico-metodológicas que atravessaram sua redação. Observou-se na estrutura das diferentes versões da BNCC oscilações da posição atribuída à formação do leitor literário, que, tendo sido parte do eixo leitura nas duas primeiras versões, tornou-se um eixo na terceira Versão, mas voltou a ser diluída no documento em vigor. Na versão homologada, o aprendizado da leitura é concebido como desenvolvimento de habilidades organizado em demandas cognitivas progressivas. Considera-se que essa perspectiva sufoca diferentes dimensões da literatura discutidas no campo dos estudos literários e impede a fruição estética. Constataram-se, ainda, nesse documento, inconsistências conceituais e contradições que obscurecem a proposta de formação do leitor literário apresentada.

Palavras-chave: Formação do leitor literário; Base Nacional Comum Curricular; Ensino Fundamental.

 

 

ABSTRACT

This article aims to analyze conceptions about the
schooling of literary reading in the early years of elementary school present in the National Common Base Curriculum, from the first version, in 2015, to the document approved in 2017. A thematic content analysis of the documents was developed (BARDIN, 2006), based on three categories - literature; formation of the literary reader and teaching / learning of literary reading. - from which the proposal for educating the literary reader was sought. The inventory of the concepts that are fundamental in the documents - Literacy, Literary Literacy, Literary Education and Literary Formation - revealed theoretical-methodological disputes that crossed their writing. We observed oscillations of the position attributed to the formation of the literary reader in the structure of the different versions of the BNCC. Having been part of the reading axis in the first two versions, it became an axis in the third version, but was again diluted in the final document.  In the approved version, learning to read is conceived as the development of skills and organized in progressive cognitive demands. We consider that this perspective suffocates different dimensions of literature discussed in the field of literary studies and prevents aesthetic enjoyment. In this document, we also found conceptual inconsistencies and contradictions that obscure  its literary reader training proposal.

Keywords: Literary reader education; Common National Curricular Base; Elementary School.

 

 

Introdução

A literatura não permite caminhar, mas permite respirar.

Roland Barthes (2003, p.172)

 

Neste trabalho, analisamos concepções sobre a formação do leitor literário nas quatro versões da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Buscamos discutir tensões, contradições e problemas conceituais que identificamos na leitura comparativa do discurso sobre a leitura literária nos anos iniciais do Ensino Fundamental.

Para tanto, lançamos mão da Análise de Conteúdo (BARDIN, 2006) no exame do corpus, constituído por quatro documentos públicos disponibilizados online, que integraram o processo de construção da BNCC, os quais descreveremos na seção sobre a metodologia do estudo realizado.

Pensando na frase de Roland Barthes que apresentamos em epígrafe, observamos ao longo desse processo um sufocamento da literatura, transformada em objeto de ensino e enclausurada em competências e habilidades a serem desenvolvidas ano a ano pelos estudantes brasileiros. Esse sufocamento consolida-se, a nosso ver, na versão da BNCC homologada pelo Conselho Nacional de Educação, como procuraremos demonstrar ao longo da análise.

 

Metodologia do estudo

 

No quadro 1, exibimos na primeira coluna, em ordem cronológica, as versões da BNCC e, na segunda, as denominações simplificadas que empregaremos neste texto:

Quadro 1 – As quatro versões da BNCC.

Versão / Data

Denominação simplificada

Primeira versão - setembro/2015

Versão 1

Segunda versão - maio/2016

Versão 2

Terceira versão - abril/2017

Versão 3

Quarta versão - dezembro/2017

Versão Homologada

Fonte: as autoras.

 

Optamos por chamar a quarta versão de Versão Homologada, porque entendemos que as alterações realizadas caracterizam um novo documento, de perfil mais conservador, o qual altera aspectos importantes da Versão 3

Dadas as características do corpus e o objetivo do estudo, optamos pela análise categorial do tipo temático, que “funciona por operações de desmembramento do texto em unidades, em categorias segundo reagrupamentos analógicos” (BARDIN, 2006, p. 153). Na pré-análise do corpus, levantamos a posição ocupada pela formação do leitor literário no desenho curricular do componente Língua Portuguesa para os anos iniciais do Ensino Fundamental, que consolidamos no quadro a seguir:

 

 

Quadro 2 – O lugar da leitura literária

Versão

Da BNCC

Posição da leitura literária no desenho do componente curricular Língua Portuguesa

Anos Iniciais do Ensino Fundamental

Versão 1

Eixo Leitura

Campo das práticas artístico-literárias

Versão 2

Eixo leitura

Campo literário

Versão 3

Eixo Educação Literária

Versão Homologada

Eixo leitura

Campo artístico-literário

Fonte: as autoras.

 

Mapeamos os seguintes conceitos-chave nas sucessivas versões: Letramento(s), Letramento Literário, Formação Literária e Educação Literária. Construímos, então, três categorias de análise que estruturam, segundo nossa hipótese de trabalho, o tratamento da escolarização da leitura literária. Sistematizamos os dados gerados na exploração do corpus no quadro a seguir:

Quadro 3 – Categorias para análise do conteúdo sobre formação do leitor literário na BNCC

Versões

da BNCC

Inserção da leitura literária no componente  LP

Literatura

Formação do leitor literário

Ensino/aprendizagem da leitura literária

Versão 1

Eixo leitura

Campo das práticas artístico-literárias.

Literatura como dimensão diferenciada do uso social da escrita.

Associada à subjetividade e à identidade.

Literatura como expressão.

Formação literária baseada no Letramento Literário.

Domínio da leitura literária = desenvolvimento progressivo de estratégias e habilidades associadas ao  aumento gradativo do grau de complexidade dos textos a partir de apropriação gradativa.

Versão 2

Eixo leitura

Campo literário

Literatura como produção que favorece a fruição estética.

Literatura como representação da diversidade cultural e linguística.

Associada ao imaginário, à dimensão lúdica, ao encantamento.

 

Ensino de leitura a partir da noção de gênero.

Leitura literária como prática social voltada para a  fruição estética.

Aprendizagem  de estratégias e habilidades  de leitura de diferentes gêneros literários.

Progressão baseada em  aumento da extensão, da ampliação do vocabulário e da complexificação da estrutura das frases dos textos lidos.

 

Versão 3

Eixo Educação Literária.

Unidades temáticas: leitura voltada à apreciação de textos literários orais e
escritos.

 

Texto singular cuja intencionalidade

 é artística.

Literatura associada à fruição estética, ao prazer, à ampliação da visão de mundo.

Educação literária como formação do leitor literário que tem como meta a apreciação de textos literários, orais e escritos.

 

Desenvolvimento da apreciação de textos literários.

Progressão baseada no grau de literariedade dos textos.

Unidades temáticas: Categorias do discurso literário; Reconstrução do sentido do texto literário; Experiências estéticas; O texto literário no contexto sociocultural; Interesse pela leitura literária.

 

Versão Homologada

Eixo leitura

Campo artístico-literário

“textos literários e artísticos, representativos da diversidade cultural

e linguística, que favoreçam experiências estéticas.” p. 96

 

Formação do leitor literário como um dos objetos do conhecimento do Campo Estético Literário.

Aumento progressivo da demanda cognitiva das atividades de leitura. 

Fonte: as autoras.

 

Versão 1 – Uma perspectiva autônoma do Letramento Literário

 

Na Versão 1, o componente curricular Língua Portuguesa foi organizado em cinco eixos: apropriação do sistema de escrita alfabético/ortográfico e das tecnologias da escrita, oralidade, leitura, escrita e análise linguística.

O eixo leitura contempla seis dimensões relacionadas, respectivamente, à compreensão dos textos e de seus contextos de produção, ao desenvolvimento de habilidades e estratégias de leitura, à ampliação do vocabulário, ao reconhecimento dos planos enunciativos e da polifonia e às reflexões acerca da temática dos textos.

A nosso ver, a concepção de Letramento Literário incorporada pela Versão 1 é centrada em uma perspectiva canônica e em uma visão unívoca da literatura, conforme o seguinte excerto:

Esse tipo de letramento é entendido como processo de apropriação da literatura como linguagem que oferece uma experiência estética, bem como a ampliação gradativa das referências culturais compartilhadas nas comunidades de leitores que se constituem na escola (BRASIL, 2015, p. 38).

O entendimento do texto literário como uma linguagem diferenciada se reflete na organização da Versão 1, que divide as práticas de linguagem em seis campos de atuação: práticas da vida cotidiana, práticas artístico-literárias; práticas político-cidadãs; práticas investigativas; práticas culturais das tecnologias de informação e comunicação e práticas do mundo do trabalho. Essa divisão revela como os redatores do documento percebem um distanciamento entre a literatura e a vida cotidiana, assim como entre esta e a participação político-cidadã, que se reflete na neutralização dos aspectos desestabilizadores do literário.

No que tange à categoria formação do leitor literário, observamos que na Versão 1 a perspectiva do que veio a ser chamado de Letramento Literário é dominante, embora esse termo apareça apenas uma vez, na página 37 do documento, e seja evocado nas construções perifrásticas “letramento que se faz por meio de textos literários” (BRASIL, 2015, p. 38).

Com relação aos usos do termo letramento, que é empregado ora no singular, ora no plural, constatamos que ele se faz presente ao longo do documento, sendo usado também com adjetivações, tais como letramento inicial (associado à alfabetização, p. 10), novos letramentos (relacionado às culturas juvenis e às novas tecnologias, p. 32), letramento científico (relacionado ao ensino de ciências, p. 149), letramento escolar (usado como sinônimo de escolarização, p. 154) e letramento geográfico (relacionado ao ensino de geografia, p. 267).

Nas menções ao termo, seja no singular ou no plural, com ou sem adjetivação, que encontramos na introdução à Versão 1, bem como ao longo do texto, predomina uma perspectiva relacionada à aprendizagem formal de conteúdos escolares e o conceito é usado como sinônimo de processo de ensino-aprendizagem e/ou de formação. Essa perspectiva nos parece clara nas passagens que transcrevemos a seguir:

Nos anos finais do Ensino Fundamental [...] há a inserção de novos componentes curriculares, a cargo de diversos professores, o que requer que sejam compartilhados os compromissos com o processo de letramento em suas dimensões artísticas, científicas, humanísticas, literárias e matemáticas [...] (BRASIL, 2015, p. 9).

Desde o letramento inicial até as etapas conclusivas da educação básica há aspectos da formação que envolvem todas as áreas do conhecimento, como o desenvolvimento da sociabilidade, da curiosidade, de atitudes éticas, de qualificação para compreender e empregar inúmeras tecnologias, para elaborar visões de mundo e de sociedade (BRASIL, 2015, p.10).

Na introdução ao componente curricular Língua Portuguesa na Versão 1, encontramos uma perspectiva de educação escolar relacionada ao desenvolvimento da “autonomia, responsabilidade, criticidade e criatividade” (BRASIL, 2015, p. 36) para a participação em práticas sociais, concepção que marca a abordagem do ensino/aprendizagem da leitura literária nessa versão.

A Versão 1 incorpora uma visão da aprendizagem que se caracteriza como uma sequência de etapas, organizadas progressivamente, do simples ao complexo, o que se reflete na indicação da organização de atividades de leitura, como podemos observar no trecho abaixo:

A progressão dos conhecimentos relacionados ao eixo leitura é estabelecida, considerando-se a participação dos/as estudantes em eventos de leitura compartilhada, exercitando-se a compreensão por meio da escuta e da experiência de leitura silenciosa, de leitura de textos integrais e autênticos em todas as etapas da Educação Básica, bem como a compreensão da construção tipológica dos gêneros (o narrar, o argumentar, o expor, o instruir, o relatar). Considera-se, ainda, o grau de complexidade dos textos, que requer estratégias de leitura diferenciadas (BRASIL, 2015, p. 37).

Ainda no eixo leitura, o documento fala da Formação Literária associada ao Letramento Literário como um processo contínuo que se desenvolve na escola, embora reconheça os aspectos subjetivos inerentes à leitura literária, enfatiza aspectos que poderíamos chamar, grosso modo, de cognitivos:

É importante ressaltar que o processo de letramento que se faz por meio de textos literários compreende uma dimensão diferenciada dos usos da escrita, sendo necessário um trabalho especial para assegurar seu efetivo domínio. Pela literatura, constituem-se subjetividades, expressam-se sentimentos, desejos, emoções de um modo particular, com uso diversificado de recursos expressivos e estéticos. Nesse processo, a formação de leitores literários envolve reflexão sobre a linguagem, o que implica o reconhecimento de procedimentos de elaboração textual e certa consciência das escolhas estéticas envolvidas na construção dos textos (BRASIL, 2015, p. 38).

Essa ideia de formação literária como um aprendizado escolarizado se coloca ao largo dos debates sobre a leitura literária que se constituíram desde os anos oitenta do século vinte no Brasil, ecoando discussões mais antigas que já vinham se desenrolando em diversos outros países.

O entendimento do Letramento Literário como um processo de apropriação sinaliza que o que está sendo chamado de literatura não faz parte das referências culturais dos estudantes, assim, infere-se que o contato dos estudantes com a literatura está restrito à experiência escolar. Essa é uma concepção etnocêntrica do literário que se identifica a uma perspectiva dominante e escolarizada.

No tocante à definição do lugar do literário na escola a partir da experiência estética, dependendo da forma como essa expressão for entendida, parece fundar-se em uma concepção bastante problemática de formação do gosto. A esse respeito, parece-nos importante retomar a seguinte reflexão de Vincent Jouve:

À primeira vista, seria lógico pensar que os estudos literários devem se concentrar sobre aquilo que constitui a especificidade da literatura: a dimensão estética dos textos. Nessa hipótese, o papel do professor seria formar o gosto, ensinar a apreciar o que faz a “beleza” das obras literárias. Mas um objetivo desses é realizável? [...]

Ensinar normativamente o prazer estético é não apenas impossível (e, por sinal, eticamente discutível), como também inútil (JOUVE, 2012, p. 133-134).

Jouve argumenta que o sentimento do belo dispensa mediação e que a orientação do gosto acaba por afastar o interesse da obra em si, já que se posiciona fora da relação entre o sujeito e a obra. Uma educação do gosto literário, portanto, seria inócua. Por outro lado, ele destaca que ao ensino deve interessar a abordagem das obras literárias como objetos de língua que exprimem “uma cultura, um pensamento, uma relação com o mundo”, em suma, “o que uma obra exprime sobre o humano” (JOUVE, 2012, p. 135 e 137).

O ensino da apreciação da beleza em obras literárias, que Jouve aponta como irrealizável, é preconizado na primeira e na terceira versões da BNCC, bem como na Versão Homologada.

A partir dessas considerações, pensamos que nos anos iniciais do Ensino Fundamental é importantíssimo que as crianças tenham acesso aos mais variados textos e que possam experienciar leituras literárias todos os dias, com liberdade para fazerem suas escolhas e para expressarem seus pontos de vista e seus sentimentos. Nesse sentido, discordamos da ideia de Formação Literária, concebida no documento, em termos de desenvolvimento de competências, por tratar a literatura como um conteúdo escolarizável/escolarizado. Essa perspectiva perpassa a expressão Letramento Literário, como se pode perceber na explicação a seguir:

Depois, o processo do letramento literário passa necessariamente pela construção de uma comunidade de leitores, isto é, um espaço de compartilhamento de leituras no qual há circulação de textos e respeito pelo interesse e pelo grau de dificuldade que o aluno possa ter em relação à leitura das obras. Também precisa ter como objetivo a ampliação do repertório literário, cabendo ao professor acolher no espaço escolar as mais diversas manifestações culturais, reconhecendo que a literatura se faz presente não apenas nos textos escritos, mas também em outros tantos suportes e meios. Finalmente, tal objetivo é atingido quando se oferecem atividades sistematizadas e contínuas direcionadas para o desenvolvimento da competência literária, cumprindo-se, assim, o papel da escola de formar o leitor literário. (COSSON, 2014, p. 184-185, grifos nossos)

A Versão 1 apresenta sete objetivos gerais para o componente curricular Língua Portuguesa na Educação Básica, dos quais dois estão mais diretamente relacionados à leitura literária. Um mais voltado para o desenvolvimento de estratégias e habilidades de leitura e o outro para a valorização da diversidade cultural a partir da leitura literária (BRASIL, 2015, p. 41).

Nesses objetivos gerais,destacamos dois aspectos: a ausência de referência à subjetividade e à potência estética e crítica da produção literária e a menção à apreciação como uma aprendizagem a ser alcançada.

 É perceptível uma flutuação acerca do que se consideram objetivos de aprendizagem, já que a formulação destes tende a apresentar ações a serem realizadas e não aprendizagens a serem desenvolvidas, como podemos observar, por exemplo, no quadro apresentado nas páginas 42 e 43 (BRASIL, 2015).

Notamos que o objetivo LILP1FOA06 reproduz um dos objetivos gerais que citamos anteriormente, porém, talvez seguindo a lógica da sequenciação linear, omite o aspecto que nos parece mais fundamental, que é a valorização de “diferentes identidades sociais” (Cf. Quadro 2). Isso indica como a noção de linearidade da aprendizagem é problemática, sendo difícil delimitar o que se aprende com os textos lidos em cada momento de vida.

Observamos que os verbos empregados nos objetivos elencados no Quadro 3 denotam ações concretas e não aprendizagens ou habilidades, com exceção do objetivo LILP1FOA013, que, de fato, apresenta uma habilidade de leitura bastante importante para a leitura fluente, a antecipação. Os demais verbos, a nosso ver, indicam ações a serem realizadas pelos estudantes a partir de propostas pedagógicas. Essas ações podem contribuir para o desenvolvimento de habilidades de leitura, mas não constituem habilidades propriamente ditas.

Em nossa análise, identificamos na Versão 1 a hegemonia de uma concepção autônoma de letramento (STREET, 2014), em que o desenvolvimento de habilidades parece prescindir da contextualização dos textos, das interações e das vivências socioculturais dos sujeitos.

 

Versão 2: Letramentos sociais e diversidade

 

O traço sociocultural e o interesse nas relações entre linguagem, educação e sociedade atravessam a Versão 2, o que fica bem claro na apresentação da estrutura do componente curricular Língua Portuguesa:

Na BNCC, a organização das práticas de linguagem (leitura, escrita, oralidade) por campos de atuação aponta para a importância da contextualização do conhecimento escolar, para a ideia de que essas práticas derivam de situações da vida social e, ao mesmo tempo, precisam ser situadas em contextos significativos para os/as estudantes. A escolha de alguns campos específicos, no conjunto maior de práticas de letramento, deu-se por se entender que eles contemplam dimensões formativas importantes de uso da escrita na escola para a garantia dos direitos de aprendizagem que fundamentam a BNCC, anunciados na Introdução deste documento [...] (BRASIL, 2016, p.90, grifos nossos).

Os termos destacados evidenciam a abordagem assumida, que se afasta da visão autônoma do letramento como capacidade de ler e (às vezes) escrever, entendendo a leitura como decodificação e a escrita como codificação da linguagem código em uma forma visual, e distancia-se, portanto, da perspectiva que entende a interpretação como um processo que se passa apenas na mente.

A adesão a essa perspectiva significou uma mudança decisiva em relação à visão autônoma, monolítica e escolarizante, que observamos ter sido incorporada pela Versão 1. Naquela Versão preliminar, afirmava-se a necessidade de letrar literariamente os estudantes, proposição em que o letramento era tomado como fenômeno externo ao sujeito e ao grupo social. Já a Versão 2 assume um viés mais sociocultural e inclusivo, no qual a diversidade está muito mais presente.

A perspectiva inclusiva destaca-se sobremaneira na reorganização do Componente Curricular Língua Portuguesa, que passa a contemplar as pessoas que se comunicam por meio da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), ao inserir a sinalização paralelamente à oralidade, como um de seus eixos organizadores. Assim, temos quatro eixos – Leitura, Escrita, Oralidade/Sinalização, Conhecimentos sobre a língua e a norma padrão – cada um dos quais contempla quatro campos de atuação: vida cotidiana, político-cidadão, literário e investigativo.

Na apresentação do eixo leitura, fica clara a mudança na concepção de literatura, constatada na seguinte afirmação: “o eixo leitura compreende as práticas de linguagem que decorrem do encontro do leitor com o texto escrito e de sua interpretação, sendo exemplos as leituras para fruição estética de obras literárias [...]” (BRASIL, 2016, pp. 188-189, grifos nossos).

Associando essa perspectiva ao trabalho com o texto literário, vemos que, na descrição do campo literário, a pluralidade é contemplada, na medida em que este é definido como:

campo de atuação que diz respeito à participação em situações de leitura/escuta, produção oral/sinalizada/escrita, na criação e fruição de produções literárias, representativas da diversidade cultural e linguística, que favoreçam experiências estéticas (BRASIL, 2016, p. 91).

A ideia de criar possibilidades para experiências estéticas é coerente com o modelo ideológico de letramento, que, ao nosso ver, perpassa o documento, uma vez que abre espaços para a diversidade dos sujeitos e de suas percepções do mundo.

Nesse documento, a concepção de literatura está associada à subjetividade e à expressão de sentimentos, desejos, emoções, uma perspectiva que nos parece orientar de forma mais adequada o trabalho com a leitura literária nos anos iniciais, em lugar da preocupação excessiva com a competência literária.

As escolhas literárias, para cada ano da escolaridade, pressupõem um sujeito em formação, seja ele criança, adolescente ou jovem, possuidor de repertórios literários, e membro de uma coletividade que compartilha bens culturais com endereçamentos específicos, conforme a idade. Embora não se possam determinar cortes objetivos relacionados a preferências, estilos e temas, a BNCC evidencia, para cada etapa, um leque de gêneros literários adequados aos leitores em formação (BRASIL, 2016, p. 96, grifos nossos).

Aqui a literatura é percebida como parte dos repertórios compartilhados por leitores que estão em formação, e, não sendo formados exclusivamente pela escola, participam de coletividades cujas culturas são reconhecidas. Trata-se, portanto, de uma visão muito mais plural da leitura literária.

A análise da categoria formação do Leitor Literário demonstrou que, embora subsistam duas menções ao termo Letramento Literário, que, como vimos, dominava a versão anterior, temos na Versão 2 uma perspectiva contextualizada desse processo. Isso porque, desde a apresentação do componente curricular Língua Portuguesa, o termo letramento aparece em destaque, com um sentido muito mais ampliado do que aquele que havíamos discutido na primeira Versão:

O letramento, pensado na sua condição plural, envolve práticas culturais diferenciadas, conforme os contextos em que elas ocorrem. Dessa forma, o letramento escolar dialoga com um conjunto diversificado de práticas de leitura, de escrita e de oralidade (BRASIL, 2016, p. 89).

Nessa concepção, percebemos a influência dos Novos Estudos do Letramento, que discutem os aspectos socioculturais implicados nos usos da escrita por diferentes grupos sociais, os quais se materializam em eventos de letramento socialmente situados, ao mesmo tempo que buscam compreender as concepções que informam esses usos, investigando as práticas. Para Brian Street, a articulação entre os conceitos de eventos e práticas de letramento no âmbito de um modelo ideológico permitiria que se desenvolvessem “currículos de um modo mais socialmente consciente e explícito” (STREET, 2014, p. 147).

A definição de letramento adotada na Versão 2, convergente com essa proposta, é explicitada em uma nota de rodapé, apresentada na página 176, e corresponde à conceituação assumida no Glossário de Termos Curriculares, publicado pelo Bureau Internacional de educação da UNESCO (2016),  que entende o letramento como um conjunto de capacidades situadas e incorpora os letramentos emergentes no cenário digital. No documento, portanto, entende-se que lemos e escrevemos textos de certos tipos, de determinadas maneiras, ou em certos níveis e que nossas práticas de letramento são integradas com as práticas mais amplas que envolvem a conversa, interação, valores e crenças. Assim, o letramento é visto como um conjunto plural de práticas sociais que envolvem a escrita (GEE, 2012).

Na Versão 2, o ensino/aprendizagem da leitura literária é concebido em termos de aprendizagem de estratégias e habilidades de leitura de diferentes gêneros literários, em uma progressão baseada na complexidade do vocabulário e da estrutura das frases dos textos lidos.

No que concerne aos objetivos de aprendizagem definidos para os anos iniciais, problematizamos os referentes aos dois primeiros anos de escolarização, no que concerne ao campo literário. Podemos observar a reformulação da concepção de objetivos, já que nessa versão se apresentam, de fato, aprendizagens a serem desenvolvidas, compatíveis com o nível de escolaridade e a idade dos estudantes. Observamos que os objetivos de aprendizagem e desenvolvimento de Língua Portuguesa para os anos iniciais do Ensino Fundamental – Eixo Leitura – Campo Literário – primeiro e segundo anos, apresentados no quadro da página 194 (BRASIL, 2016), estão muito mais relacionados ao estímulo à leitura literária a partir do gosto e da oferta de uma diversidade de textos, além disso, em sua formulação apresentam uma perspectiva teórico-metodológica acerca de seu ensino-aprendizagem em que se percebem diferentes dimensões do processo. 

Constatamos que a pluralidade que identificamos na Versão 2 foi sutilmente apagada na terceira Versão da BNCC, na qual surge o termo Educação Literária.

 

Versão 3 – Educação Literária, apreciação e literariedade

 

A estrutura da Versão 3 é substancialmente diferente das anteriores. O componente curricular Língua Portuguesa ganha um quinto eixo, denominado Educação Literária e elimina-se a divisão em campos de atuação. Isso dá à formação do leitor literário nos anos iniciais do Ensino Fundamental um destaque que não existia em documentos curriculares que precederam a BNCC, nem nas versões 1 e 2 desse documento. No entanto, o conceito de Educação Literária, hegemônico nessa versão, é bastante problemático, por isso, para fundamentar nossa análise, faremos uma breve digressão sobre as origens da Educação Literária moderna, que nos permitirá entender implicações ideológicas do emprego desse termo.

No livro Culture and Government: The Emergency of Literary Education, Willian Hunter (1988) analisa o surgimento da educação literária na Inglaterra, no bojo das transformações ocorridas entre o fim do século XVIII e o início do século XX. Para ele, nesse contexto, a leitura e a crítica literária perdem a função de prática ético-estética de uma casta minoritária e se tornam um braço emergente do aparato educacional governamental. Os traços que Hunter identifica na incorporação da educação literária ao currículo escolar são o estímulo à autoexpressão, ao ensino em massa da literatura inglesa e à assunção do papel de leitor exemplar pelo professor, que lê como um crítico literário. Hunter discute a inserção da educação literária na disciplina Inglês, no âmbito da transformação do modelo escolar para as classes trabalhadoras.

Segundo Hunter (1998), a educação literária moderna pode ser caracterizada como uso da literatura em uma pedagogia centrada nos alunos em que o professor atua como supervisor.  Para ele, a educação literária assumiu um papel importante na formação do tipo de pessoas que o ambiente social passou a demandar naquela ocasião, por meio da supervisão moral:

O objetivo aqui não era principalmente a aquisição de habilidade e conhecimento, mas a formação da consciência na relação especial de identificação e correção estabelecidas entre professor e aluno e agora mediado pelo texto literário (HUNTER, 1988, p. 136¹).

Por isso, explicita que a educação literária, disciplina ética da literatura, “representa o exercício de poder diretamente ético e estético” (Idem, p. 269, grifo do autor) no governo das populações².

No Brasil, o livro Educação literária como metáfora social, de autoria da professora Cyana Leahy-Dios, publicado em 2000 pela EDUFF e republicado em 2004 pela Editora Martins Fontes, parece ser a principal referência para o uso do termo. A autora analisa na obra os modelos de ensino de literatura dominantes no Brasil e na Inglaterra. Para ela, a proposta pedagógico-literária praticada em cada sociedade está vinculada ao modelo político-filosófico nela predominante. Leahy-Dios aponta que no Brasil há o privilégio de um modelo positivista e na Inglaterra domina o modelo liberal-humanista. No primeiro, tem-se a ênfase em informações acerca de fatos e datas, enquanto o segundo busca transmitir os valores da elite.

Um aspecto a destacar é que a obra se volta para o Ensino Médio e não contempla a leitura literária nos anos iniciais do Ensino Fundamental, portanto a extensão de suas ideias a este segmento pode não ser apropriada, tendo em vista as diferenças entre esses níveis de ensino.

Na Versão 3 da BNCC, a concepção de literatura se articula em torno do conceito de literariedade, conceito formalista que trata de uma propriedade universal do literário manifesta no particular de cada obra literária. Trata-se de um conceito bastante discutido, já que em cada época estabelecem-se critérios a partir dos quais se reconhecem como literárias determinadas obras. Assim, a definição do literário a partir da literariedade é sempre relativa. Além disso, pode-se mesmo dizer que, sendo tão relativa, a literariedade como característica do literário nem mesmo poderia ser afirmada. Como nos lembra Antoine Compagnon  (2009), um risco de adotar esse conceito é a consolidação de cânones. Um exemplo disso é que, sendo a perspectiva formalista baseada nas obras de sua época, a concepção de literariedade contribuiu para referendar o estranhamento (ou desfamiliarização) como definidor do literário. Por isso, ele questiona:

Seria, pois, toda a literatura o que a literariedade dos formalistas caracterizou, ou somente um certo tipo de literatura; a literatura por excelência, de seu ponto de vista, isto é, a poesia, e ainda não toda a poesia, mas somente a poesia moderna, de vanguarda, obscura, desfamiliarizante?  (COMPAGNON, 2001, p. 43).

Essa concepção de literatura se reflete na concepção de formação do leitor literário proposta na Versão 3, cuja organização se daria em graus crescentes de literariedade.

No entanto, consideramos que a função da escola com relação à leitura literária deveria ser muito mais ligada ao acesso e à disponibilidade de uma ampla variedade de textos, mesmo porque não é possível afirmar que os textos que supostamente alcançariam um grau máximo de literariedade seriam aqueles que fariam e seriam apreciados por todas as crianças e por todos jovens brasileiros, como parece preconizar o documento.

A Educação Literária, tal como apresentada, teria como propósito o contato com textos que se caracterizariam por apresentarem linguagem singular e intencionalidade artística, como se afirma neste trecho:

[...] no eixo Educação literária predomina a formação para conhecer e apreciar textos literários orais e escritos, de autores de língua portuguesa e de traduções de autores de clássicos da literatura internacional. Não se trata, pois, no eixo Educação literária, de ensinar literatura, mas de promover o contato com a literatura para a formação do leitor literário, capaz de apreender e apreciar o que há de singular em um texto cuja intencionalidade não é imediatamente prática, mas artística (BRASIL, 2017, p.65, grifos nossos).

 Identificamos outro traço importante da categoria formação do leitor literário na Versão 3, que é a ênfase na apreciação de textos literários.  Sendo a apreciação um movimento subjetivo, questionamos a ideia de que a função da escola seja formar leitores que atribuam valor e apreço a textos literários. Se observarmos o campo semântico do verbo apreciar, veremos que ele inclui gosto, desejo, aprovação, prazer, julgamento, conhecimento, e até sabor (HOUAISS, 2009). Dessa forma, questionamos: é possível ensinar a apreciar?

O ensino/aprendizagem da leitura literária tem como meta o desenvolvimento da capacidade de apreciar textos literários e, para tanto, propõe a organização curricular a partir da literariedade crescente dos textos em paralelo à fruição estética. Nos anos iniciais, são indicadas cinco unidades temáticas: categorias do discurso literário; reconstrução do sentido do texto literário; experiências estéticas; o texto literário no contexto sociocultural e interesse pela leitura literária. A partir das três primeiras unidades temáticas, estabelecem-se objetos do conhecimento comuns do primeiro ao quinto ano. Destacamos para análise o quadro referente ao eixo Educação Literária para o primeiro ano (BRASIL, 2017, p. 74).

Constatamos que a terminologia empregada no eixo Educação Literária corresponde a conceitos teóricos que não foram transpostos adequadamente, pois não há correspondência entre o sentido que apresentam nos estudos literários e as habilidades definidas na elaboração curricular. Essa passagem apresenta, ainda, várias inadequações e contradições, como, por exemplo, a redução das experiências estéticas a processos de criação,  com a apresentação de habilidades mais ligadas à reprodução. O mesmo problema ocorre na temática sobre a inserção do texto literário no contexto sociocultural, que diz respeito ao objeto do conhecimento ligado às dimensões estéticas.

Na última linha do quadro, vemos que a sequência unidade temática/objeto do conhecimento/habilidades é formulada com base nos termos interesse/apreciação/atenção e interesse/seleção, todos de valor subjetivo e inadequados ao vocabulário curricular. Esses equívocos são sintomas da forma como a literatura é tratada no documento.

 

Versão Homologada – fusão e sufocamento

 

Na Versão Homologada da BNCC, ocorre o apagamento do eixo curricular Educação Literária. Assim, a formação do leitor literário insere-se no eixo leitura, que enfatiza o desenvolvimento de habilidades cognitivas, e no campo artístico-literário, que propõe a fruição estética – tensão que marca o discurso sobre a formação do leitor literário no documento.

A concepção de literatura presente na Versão Homologada destaca o potencial transformador e humanizador da literatura, entretanto reforça “o desenvolvimento do senso estético para fruição” como uma especificidade a ser adquirida na escola.³

Envolver-se em práticas de leitura literária que possibilitem o
desenvolvimento do senso estético para fruição, valorizando a literatura e outras manifestações artístico-culturais como formas de acesso às dimensões lúdicas, de imaginário e encantamento, reconhecendo o potencial transformador e humanizador da experiência com a literatura (BRASIL,2017, p. 87).

Os termos Letramento Literário e Educação Literária dão lugar ao termo Leitura Literária. Na Versão Homologada, a leitura de um livro literário equivale a assistir a um filme, e as duas práticas são pretexto para a elaboração de um produto, diretamente relacionado às mídias digitais:

Depois de ler um livro de literatura ou assistir a um filme, pode-se postar comentários em redes sociais específicas, seguir diretores, autores, escritores, acompanhar de perto seu trabalho; podemos produzir playlists, vlogs, vídeos-minuto, escrever fanfics, produzir e-zines, nos tornar um booktuber, dentre outras muitas possibilidades (BRASIL, 2017, p. 68,grifos nossos).

Permanece também a ideia de letramento como prática escolarizada, conhecimento a ser progressivamente, em níveis diferenciados de complexidade, adquirido na escola.

As diversas práticas letradas em que o aluno já se inseriu na sua vida
social mais ampla, assim como na Educação Infantil, tais como cantar
cantigas e recitar parlendas e quadrinhas, ouvir e recontar contos,
seguir regras de jogos e receitas, jogar games, relatar experiências e
experimentos, serão progressivamente intensificadas e complexificadas, na direção de gêneros secundários com textos mais complexos (BRASIL, 2017, p. 89).

Assim como a arte, a informação e o acesso a outros conhecimentos disponíveis, a literatura é mencionada como um direito a ser exercido pelo sujeito. Tal concepção nos remete a Antonio Candido (2011), que defende a literatura como um bem do qual não se pode prescindir.

Observamos quatro campos de atuação nos anos iniciais: da vida cotidiana, artístico-literário, das práticas de estudo e pesquisa e da vida pública. O distanciamento entre a vida cotidiana e a literatura evidente na Primeira Versão permanece na redação final, visto que os domínios relacionados à leitura literária figuram em um campo específico.

A categoria ensino/aprendizagem da leitura literária expressa uma das contradições da Versão Homologada. Isso pode ser observado, por exemplo, na falta de coerência entre a competência específica número 5, que prevê o contato do educando com diversas manifestações artísticas e culturais, e as habilidades definidas. À escola caberia o desenvolvimento do “senso estético para reconhecer, fruir e respeitar as diversas manifestações artísticas e culturais, das locais às mundiais, inclusive aquelas pertencentes ao patrimônio cultural da humanidade” (BRASIL, 2017, p. 65). Nossa análise da seção evidencia que as habilidades de leitura se direcionam à aprendizagem de conteúdos escolares que não valorizam a riqueza cultural e artística do país e que, além disso, desconsideram as desigualdades sociais e de acesso digital por parte dos estudantes.

No campo vida cotidiana, a prática de leitura está centralizada na apropriação de estratégias importantes à formação de um leitor competente. Destaca-se, portanto, a distinção entre leitor e leitor literário, e, posteriormente, entre leitor literário e leitor literário multissemiótico. A formação do leitor literário sugere uma visão, por vezes, utilitária, incompatível com a ideia de fruição, preconizada pelo documento.

Os objetos de conhecimento e as habilidades previstas pela BNCC permanecem distribuídos em blocos, agrupados por anos de escolaridade. Os quadros que se referem aos anos iniciais são três: do 1º ao 5º ano, 1º e 2º anos e do 3º ao 5º ano. Segundo o documento, tal distribuição não é rígida, podendo uma ou outra habilidade transitar entre os anos escolares, em níveis diferenciados de complexidade. Embora sejam quatro os campos de atuação, não há, na divisão em blocos, uma organização equilibrada entre eles. O primeiro bloco menciona inicialmente todos os campos de atuação, contudo,apresenta, na sequência, objetos de conhecimento e habilidades específicas somente aos campos vida cotidiana e artístico-literário. Nos dois blocos seguintes, faz-se uma distribuição inicial das práticas de uso da língua e de objetos e habilidades que seriam comuns a todos os campos de atuação e uma segunda distribuição por campos de atuação. Tal organização dificulta a leitura, visto que muitas repetições são feitas na passagem de um quadro a outro. Não há, além disso, informações suficientes que auxiliem o entendimento dessa estruturação.

No que se refere ao campo artístico-literário, podemos apontar alguns outros problemas, como, por exemplo, a distinção entre artísticos e literários que faz parecer que a produção literária está fora da arte e a manutenção da inconsistência no que se entende como habilidade e ação. Nesse campo, somente no descritor EF15LP18 - “Relacionar texto com ilustrações e outros recursos gráficos” (BRASIL, 2017, p. 97) - evidenciamos, de fato, uma habilidade importante à formação do leitor competente, não só no que diz respeito à leitura de textos literários.

 Dessa forma, permanece na Versão Homologada a ideia de apreciação como ação a ser desenvolvida a partir da escolarização. Tendo em vista que nos reportamos aos anos iniciais, isso é ainda mais problemático, uma vez que o público que se pretende formar é o infantil. É questionável, além disso, a ideia de que a observação de “efeitos de sentido criados pelo formato do texto na página, distribuição e diagramação das letras, pelas ilustrações e por outros efeitos visuais” (BRASIL, 2017, p. 97) correspondem a ações capazes de moldar a apreciação. Esta é, entretanto, uma habilidade (EF15LP17) prevista para o objeto de conhecimento apreciação estética/estilo. O encantamento pelo texto literário, sobretudo das crianças, relaciona-se ao trabalho do escritor com a linguagem, não se restringindo unicamente aos aspectos extralinguísticos. Causa-nos estranheza, ainda, a diferenciação entre leitor literário e leitor literário multissemiótico, visto que o entendimento de um texto literário ou não deve considerar todos os seus elementos.

Deslocadas de seus objetos de conhecimento, as habilidades, vistas por nós como ações de aproximação entre leitor e texto, assemelham-se mais à concepção de ensino de literatura que, a nosso ver, pode favorecer o despertar do gosto pela leitura literária, por meio da valorização do lúdico, da interação e do estímulo à capacidade de imaginação da criança. Entretanto, na análise do segundo bloco (1º e 2º anos), no que concerne à prática de leitura/escuta, evidenciamos um retorno ao encapsulamento dessas habilidades, transformando o texto literário novamente em objeto escolarizado. 

Nos dois anos iniciais, são objetos do conhecimento: a formação do leitor literário e a apreciação estética/estilo. Não é explicitada nenhuma habilidade específica para o primeiro ano no tocante à formação. Provavelmente, isso se dê ao fato de o foco estar na alfabetização. Desconsidera-se, contudo, que o eixo é leitura/escuta, e que, ainda que não leia com autonomia, o estudante pode ter acesso à literatura pela voz do professor, formando-se, assim, como leitor.

Contraditoriamente, a habilidade EF12LP18 - “apreciar poemas e outros textos versificados, observando rimas, sonoridades, jogos de palavras, reconhecendo seu pertencimento ao mundo imaginário e sua dimensão de encantamento, jogo e fruição” (BRASIL, 2017, p. 111) - é considerada possível aos dois anos de escolaridade.

Nas práticas de escrita e de análise linguística/semiótica, o sufocamento se torna mais explícito, privilegiando-se a aprendizagem de conteúdos e de atividades escolarizadas, tais como identificação dos elementos do enredo, rimas, bem como a reescritura de textos lidos pelo professor, tarefas que, quando não aniquilam, restringem o potencial de encantamento proporcionado pela leitura literária.

Tal escolarização permanece nos anos subsequentes, conforme observamos no quadro correspondente ao terceiro bloco (3º ao 5º ano). Além das considerações feitas a respeito do primeiro bloco, evidenciadas também no bloco em questão, podemos acrescentar que o que se sugere como habilidades de formação do leitor literário são conteúdos de análise linguística como em EF35LP22, em que o leitor deve observar “o efeito de sentido de verbos de enunciação e, se for o caso, o uso de variedades linguísticas no discurso direto (BRASIL, 2017, p. 133, grifos nossos). Essa habilidade, destinada à formação do leitor literário e multissemiótico, não contempla os recursos visuais além do texto escrito. 

Preocupa-nos também a transposição das habilidades previstas para o chão da sala de aula, como em EF35LP21: “Ler e compreender, de forma autônoma, textos literários de diferentes gêneros e extensões, inclusive aqueles sem ilustrações, estabelecendo preferências por gêneros, temas, autores” (BRASIL, 2017, p. 133). Tal ação é inviável, se considerarmos que, de modo a tornar a dinâmica de leitura uma tarefa possível, os textos lidos são, em sua maioria, escolhidos pelo professor, em diálogo ou não com a turma, e todos leem o mesmo texto. A leitura compartilhada feita em sala de aula não possibilita o estabelecimento de preferências individuais.

As habilidades EF35LP23 e EF35LP24, que se referem à leitura de textos versificados e de textos dramáticos, visa à análise dos aspectos composicionais dos gêneros, ratificando nossas percepções sobre o texto literário tido como conteúdo escolar. O enclausuramento permanece nas práticas de produção de texto, de oralidade e de análise linguística/semiótica.

Constatamos, por fim que, tal como apresentada pela BNCC, o direito à literatura nos anos iniciais do Ensino Fundamental limita-se ao domínio de conteúdos alcançados ao final de cada etapa. Na contramão, a Versão Homologada insiste na ideia de fruição, incoerente com as habilidades previstas pelo próprio documento.

 

Considerações finais

É tempo de se fazer novamente o elogio da literatura, de protegê-la da depreciação da escola e do mundo.

COMPAGNON, 2009, p. 45

 

A visão instrumental da literatura, tratada como um conteúdo escolar, hegemônica na primeira e na terceira versões da BNCC, impele o leitor em formação a usar o literário, a tê-lo como suporte em sua caminhada em direção à Competência Literária. A literatura, sufocada em sua potencialidade, restringe-se, assim, a instrumento ou objeto, prestando-se tão somente ao exercício para o desenvolvimento de habilidades.

O movimento discursivo que percebemos retira a possibilidade de que o leitor experimente plenamente a leitura literária, que funciona nesse contexto como suplência pedagógica (COMPAGNON, 2009, p. 42). Foi contra esse tipo de instrumentalização que Roland Barthes nos alertou, ao invocar a relação entre literatura e vida através da metáfora da respiração.

A Versão 1 da BNCC, que se apresenta à sociedade como um documento preliminar, é marcada por uma concepção escolarizada do literário, no qual a literatura era vista como um conteúdo escolar, que deveria ser sistematizado em graus crescentes de dificuldade, para a formação de leitores competentes através de “um trabalho especial para assegurar seu efetivo domínio” (BRASIL, 2015, p.38). Já a Versão 2 se caracteriza por uma perspectiva mais sociocultural dos conhecimentos. A formação literária é incluída no eixo leitura e contemplada no campo literário. Há menção ao Letramento Literário, mas a perspectiva assumida é mais plural.

A Versão 3 destaca-se por dedicar à formação do leitor literário um espaço específico no currículo de Ensino Fundamental, mas apresenta graves inconsistências conceituais no que tange, sobretudo, à organização do ensino a partir de níveis de literariedade, bem como à ênfase no interesse e na apreciação como objetos de conhecimento. Esse eixo sofre um apagamento na Versão Homologada, em que a Educação Literária passa a figurar como parte do campo artístico-literário. Embora sejam consideradas potencialidades inerentes ao texto literário, tais como ação transformadora e humanizadora, observamos que a leitura de literatura retorna como um objeto de conhecimento a ser adquirido em determinados anos de escolaridade.

Tendo em vista a análise realizada, consideramos que a literatura é sufocada na Base Nacional Comum Curricular, pois seu tratamento como objeto do conhecimento caminha em direção contrária à fruição, ao prazer e, consequentemente, à formação do leitor literário, um dos objetivos da escola, visto que este se constrói na experiência com o texto, sobretudo nos anos iniciais, em que se deve explorar o potencial de imaginação do leitor infantil.

Ao construir um discurso curricular ambíguo, no qual escolarização da formação do leitor torna-se uma mescla entre o tratamento como objeto de ensino e a apreciação, a BNCC tira do leitor iniciante a possibilidade de respirar a literatura.  Para encerrar esta reflexão, retomamos as palavras de Tzvetan Todorov sobre a literatura e nossa vocação como seres humanos, que, a nosso ver, deveria ser enfatizada na BNCC: “Somos feitos do que os outros seres humanos nos dão: primeiro nossos pais, depois aqueles que nos cercam; a literatura abre ao infinito essa possibilidade de interação com os outros e, por isso, nos enriquece infinitamente” (TODOROV, 2018, p. 23-24).

 

Referências

 

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Notas

  1. No original: The object here was not primarily the acquisition of skill and  knowledge, but the formation of conscience in the special relation of identification and correction set up between teacher and student and now mediated by the literary text.

 

  1.  No original: It represents a directly ethical and a esthetic exercise of power

 

  1.  Ver competência número nove de Língua Portuguesa para o Ensino Fundamental.

 

 

 

 

 

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