Educação e Agroecologia: apontamentos sobre a experiência de formação humana no curso do SERTA.

Education and Agroecology: notes about human formation experience in the SERTA course.

 

Rodrigo José de Góis Queiroz 

Universidade Federal de Pernambuco, Recife, Pernambuco, Brasil.

joserodrigois@yahoo.com.br - orcid.org/0000-0002-7433-4615

 

Recebido em 04 de agosto de 2020

Aprovado em 14 de outubro de 2020

Publicado em 30 de dezembro de 2021

 

RESUMO

Este artigo apresenta os elementos sobre a teoria e a prática da proposta educacional do curso de técnico em agroecologia do Serviço de Tecnologia Alternativa – SERTA. No primeiro momento, destacam-se alguns elementos da metodologia de ensino do SERTA, no qual se procura um aprofundamento no que diz respeito a influência das propostas de educação popular, especialmente a pedagogia de Paulo Freire. No segundo momento, é apresentada nossa prática do estágio supervisionado, reconhecida como um momento de troca de saberes e aprendizado no tocante as técnicas de agroecologia, bem como de aproximação da luta social no campo. O objetivo do artigo é trazer à tona a filosofia e a metodologia educacional do SERTA e sua proposta de articulação com os movimentos sociais do campo no Nordeste do Brasil. Para tanto, destacamos a importância que o curso dá aos saberes dos camponeses na constituição da agroecologia, culminando numa educação voltada para a formação humana. Em termos metodológicos, tratamos nossa experiência de formação no curso como um momento rico para reflexões em torno da educação popular.

Palavras-chave: Educação popular; Agroecologia; Formação Humana.

 

ABSTRACT

This article presents the elements about the theory and practice of the educational proposal of the technical course in agroecology of the Alternative Technology Service - SERTA. In the first moment, some elements of SERTA's teaching methodology are highlighted, in which an attempt is made to deepen the influence of popular education proposals, especially Paulo Freire's pedagogy. In the second moment, our supervised internship practice is presented, which was a moment of exchange of knowledge and learning regarding agroecology techniques and approximation of social struggle in the field. The purpose of the article is to bring up the educational philosophy and methodology of SERTA and its proposal for articulation with rural social movements in Northeast Brazil. Therefore, we highlight the importance that the course gives to the knowledge of the peasants in the constitution of agroecology, culminating in an education focused on human formation. In methodological terms, we treat our training experience in the course as a rich moment for reflections on popular education.

Keywords: Popular education, Agroecology, Human formation.

Introdução

Este artigo apresenta a proposta de educação agroecológica do SERTA suscitando ampliar os debates sobre as perspectivas de educação popular em correlação com as questões relativas à crise ambiental contemporânea. A pedagogia do SERTA parte da premissa de Paulo Freire de que o conhecimento deve ser contextualizado com a vida dos educandos, trabalhando os conteúdos relativos à agroecologia através de práticas pedagógicas reflexivas, no qual tanto os educadores como os educandos se relacionam em um processo de troca de saberes.

O curso parte de uma crítica profunda da crise ambiental contemporânea, possibilitada pelas mudanças de paradigma da sociedade, que prioriza a urbanização e a produção econômica industrial, que, por sua vez, vem se reverberando na criação de novas necessidades de consumo. A partir dos ensinamentos do curso identificamos a importância do resgate de alguns elementos associados a relação entre o homem e a natureza, como a valorização dos saberes camponês, indígena e quilombola no trato com à terra, bem como a necessidade de substituição do tempo do relógio pelo tempo natural do plantar e colher, em que passamos a observar a influência da dinâmica da lua nos sistemas naturais.

Enquanto professor de Geografia, a procura pelo curso se deu na busca de uma formação complementar sobre a questão ambiental, especialmente sobre a produção agroecológica de alimentos sem o uso de agrotóxicos e defensivos químicos. Os ensinamentos levaram a compreender, de forma profunda, a complexidade da relação entre a sociedade e a natureza. Nesse sentido, a metodologia educacional do curso é diferenciada, pois, apresenta a importância da prática como fundamento para assimilação dos conteúdos teóricos.  Assim, o estágio supervisionado e grande parte do tempo em comunidade se deu em articulação com o movimento social parceiro do SERTA no acampamento Açucena 3 no município de União dos Palmares/AL.

Em nossa prática, além das tecnologias alternativas da agroecologia, aprendemos sobre a luta dos camponeses pelo acesso à terra. Nesse sentido, identificamos a experiência do estágio supervisionado como possibilidade de troca de saberes com os camponeses sem-terra, quando observamos de uma forma bem próxima à luta pela terra e a morosidade do Estado quanto à distribuição das mesmas. Em nossa experiência, a aproximação com os movimentos sociais durante o estágio foi de grande importância tendo em vista a relação entre teoria e prática, se apresentando como um momento muito rico de aprendizagem significativa e formação humana.

Relações entre Educação popular e a proposta pedagógica do SERTA.

O curso de agroecologia do Serviço de Tecnologia Alternativa – SERTA está amplamente amparado nas premissas da educação popular, tendo ligação com setores da teologia da libertação da igreja católica. Um dos seus fundadores, Abdalaziz de Moura (2015), apresenta toda a fundamentação prática, filosófica e educacional do curso, ressaltando a importância da parceria com movimentos sociais. A fundação do SERTA está ligada ao Centro de Capacitação e Acompanhamento aos Projetos Alternativos da Seca – CECAPAS, órgão da conferência dos Bispos do Nordeste II. De acordo com Moura (2015), entre os anos de 1987 e 1989, vários técnicos em agropecuária recém formados fizeram estágio nesse órgão, se aproximando de famílias de agricultores de Pernambuco e Paraíba.[1]

No ano de 1989 foi fundado o SERTA no Estado de Pernambuco, como um movimento pela valorização da agricultura, do meio ambiente, das tecnologias alternativas e pela participação dos agricultores nas decisões sobre o campo, buscando articular movimentos sociais e as pastorais da igreja. De acordo com Moura (2015), a metodologia do SERTA parte de uma crítica do paradigma da educação tradicional, reconhecendo o limite da ciência, mas utilizando a mesma como uma ferramenta para a prática. Em suas palavras: “Quando usamos a ciência usamos com o coração, com a emoção [...] privilegiamos a pessoa, a sua história, as suas descobertas, o seu contexto” (MOURA, 2015, p.114).

Atualmente, o SERTA é uma instituição premiada no tocante as suas metodologias inovadoras no processo educativo, participando do movimento de inovação na educação. Uma característica fundamental da metodologia educacional do SERTA diz respeito a valorização dos estudantes como sujeitos protagonistas na construção do conhecimento, compreendendo que o processo educativo se dá com o estudante e não para o estudante, superando a concepção tradicional do processo educativo que enxerga os estudantes como tabula rasa. Deste modo, a proposta desenvolvida por Moura (2015) é denominada Proposta Educacional de Apoio ao Desenvolvimento Sustentável – PEADS, tendo como uma de suas características principais a valorização das experiências humanas dos estudantes como saberes.

A proposta do PEADS também apresenta uma preocupação com a formação de professores no que diz respeito a uma metodologia de ensino que consiga articular os princípios científicos com a realidade vivida pelos estudantes. Nas palavras de Moura (2015, p.258): “É chegado o momento dos professores e estudantes se perguntarem se as formas de ensino dialogam com a prática [...] pelas necessidades, pelos conhecimentos necessários à vida das pessoas do lugar”. Essa possibilidade de construção do conhecimento em conjunto com os estudantes passa pelo desenvolvimento de dinâmicas e técnicas através de uma didática que favoreça a construção do conhecimento de forma criativa.

Para Moura (2015), nos rastros da proposta de educação popular, a realidade dos estudantes é enriquecedora para aprendizagem, propondo a necessidade de pesquisa sobre a realidade prática de sua casa, do seu sítio, da sua comunidade, do seu movimento social, fazendo um contraponto com a perspectiva científica, contribuindo com a passagem do particular ao geral, do concreto ao abstrato, em outras palavras: “o aluno vai pesquisar a realidade vivida e traz de volta para a classe” (MOURA, 2015, p.184). De acordo com o autor, para realizar essa articulação entre o conhecimento vivido e científico, se faz necessário um esforço pessoal por parte do estudante na busca de assumir posturas conscientes perante o mundo.

Nesse sentido, a influência de Paulo Freire aparece com grande vigor na proposta pedagógica, salientando a importância do ato de ler o mundo numa perspectiva contextualizada com a realidade vivida. Contudo, o autor ressalta a importância de uma perspectiva dialética na educação: “Para o SERTA, não se trata só desses fenômenos aparentes, visíveis aos olhos de qualquer observador, e sim de algo mais profundo, essencial, intangível” (MOURA, 2015, p.111). O autor cita a inspiração do SERTA na proposta de educação popular de Paulo Freire, que entre os anos 1950 e início dos anos 1960 trabalhou junto ao movimento de cultura popular em Pernambuco e se ampliou para o Nordeste.

Nesse período, as forças populares do Nordeste, associadas com a Igreja Católica, fortaleceram os movimentos de educação pela base, levantando críticas ao conceito tradicional de educação formal que reproduzia as estruturas de dominação. Assim, surge a pedagogia de Paulo Freire em conjunto com o movimento de cultura popular, também se aproximando da insurgência das ligas camponesas e de sua crítica da formação territorial brasileira baseada na concentração de terras nas mãos das elites. Tal movimento era visto como subversivo, pois priorizava uma educação dialógica em conjunto com os oprimidos, os pobres das cidades, bem como os camponeses em luta pela terra, que naquele momento apareciam como agentes políticos desvinculados das estruturas de opressão histórica da sociedade brasileira.

Dessa experiência, são tirados os ricos aprendizados que frutificam o movimento brasileiro de educação popular, baseados na necessidade de participação livre e crítica dos educandos. Com isso, na busca de superação da estrutura opressora de uma educação verbosa, que tem o professor orador no centro da sala de aula, surge a proposta dos círculos de cultura. Os círculos de cultura são reconhecidos como espaço de troca de saberes entre os educadores e educandos, buscando a tomada de consciência da situação vivida pelo próprio educando, o colocando numa postura de autorreflexão através de uma educação dialógica.[2]

No seu livro “Educação como prática da liberdade”, Freire (2019) apresenta reiteradamente sua proposta de educação popular, que busca uma aproximação com a parcela oprimida da sociedade, no intuito de contribuir com as possibilidades de autorreflexão das contradições vividas na sociedade brasileira no período de transição política dos anos 1950 -1960. Para ele, o processo educativo deveria buscar contribuir para que os oprimidos se inserissem na sociedade brasileira como sujeitos e não apenas como espectadores do movimento da história e da cultura. Em suas palavras, o processo educativo deve ressaltar “o papel ativo do homem em sua e com sua realidade” (FREIRE, 2019, p. 142), contribuindo com as possibilidades dos oprimidos se enxergarem como fazedores desse mundo da cultura.

Nesse contexto, Freire (2019) apresenta a proposta de uma educação contextualizada, alegando que não era possível o educador discutir o seu tema específico separado do tecido geral do novo clima cultural. O autor deixa claro a importância da experiência vivida no processo educacional, no qual o educando: “criando e recriando, integrando-se às condições de seu contexto, respondendo a seus desafios, [...] lança-se [...] num domínio que lhe é exclusivo – o da história e o da cultura”(FREIRE, 2019, p.58). No caminho inverso, a modernidade capitalista procura esmagar o homem num profundo sentimento de impotência, sendo necessária uma permanente atitude crítica para apreender temas e tarefas de sua época. Nas palavras de Freire (2019, p. 62): “Sua humanização ou desumanização, sua afirmação como sujeito ou sua minimização como objeto dependem, em grande parte, de sua captação ou não desses temas.”

Aprofundando a discussão, Freire (2019) reafirma a importância do próprio sujeito educando captar criticamente o movimento da realidade através da autorreflexão, pois na medida em que as contradições se aprofundavam no que diz respeito ao processo político de transição da sociedade brasileira na janela democrática do final dos anos 1940 até o início dos anos 1960, surgia a possibilidade de atitudes optativas, que só seriam autênticas uma vez que os sujeitos tivessem a possibilidade de captar criticamente o desafio. Contudo, o autor deixa claro que o homem brasileiro estava despreparado para a captação crítica do desafio, sendo necessário “Uma educação que lhe propiciasse a reflexão sobre seu próprio poder de refletir [...]” (FREIRE, 2019, p.80). O autor deixa claro a necessidade:

 

De uma educação que levasse o homem a uma nova postura diante dos problemas de seu tempo e de seu espaço. A intimidade com eles. A da pesquisa em vez da mera, perigosa e enfadonha repetição de trechos e de afirmações desconectadas das suas condições mesmas de vida. (FREIRE, 2019, p.122)

 

Para este pedagogo, a consciência crítica tem como característica principal a sua integração com a realidade, possibilitando uma reflexão transformadora da mesma através da pesquisa sobre sua realidade. No seu livro “Pedagogia da Autonomia”, Freire (2014, p. 24) afirma: “A reflexão crítica sobre a prática se torna uma exigência da relação Teoria/Prática sem a qual a teoria pode ir virando blá-blá-blá e a prática, ativismo”. Para ele, se faz necessário a superação do processo educativo no qual o educando é tratado como objeto e o sujeito seria o educador, pois: “ [...] nas condições de verdadeira aprendizagem os educandos vão se transformando em reais sujeitos da construção e reconstrução do saber ensinado, ao lado do educador, igualmente sujeito do processo.” (FREIRE, 2014, p.28).

Com isso, surge a necessidade de uma educação problematizadora da realidade vivida pelos educandos, na medida em que a negação das suas experiências e saberes é o que dificulta ou inibe sua curiosidade. Esta proposta educacional de Paulo Freire busca a superação do entendimento dos educandos como seres vazios a quem os professores vão depositar os conhecimentos. Em suas palavras: “[...] a educação problematizadora coloca, desde logo, a exigência da superação da contradição educador-educando. Sem esta, não é possível a relação dialógica [...]” (FREIRE, 2015, pp.94-95).  Nesse sentido, a educação problematizadora impulsiona a reflexão por parte de educadores e educandos, num constante desvelamento da realidade. E diz mais: “Quanto mais se problematizam os educandos, como seres no mundo e com o mundo, tanto mais se sentirão desafiados” (FREIRE, 2015, p.98).

Destarte, Paulo Freire (2015) argumenta que a educação como prática da liberdade implica a negação do homem abstrato, isolado, desligado do mundo, propondo uma reflexão sobre as relações do homem com o mundo, bem como sobre as possibilidades de produção cultural da realidade pelos próprios educandos como sujeitos sociais. Por outro lado, Freire (2014) não nega a necessidade da ciência e/ou da teoria, destacando a importância de que ensinar exige rigorosidade metódica. Esse rigor metódico, para o autor, não tem nada a ver com o discurso bancário de transferência do conhecimento, pois enfatiza, através do diálogo, que o ato de apreender as contradições do mundo não se esgota em um tratamento superficial dos problemas, buscando justamente as interfaces entre teoria e prática.

Em sua proposta, Freire (2019) argumenta que através de uma educação dialógica e ativa se abrem possibilidades para uma interpretação profunda dos problemas por parte dos educandos. Ele diferencia dois tipos de consciência, uma ingênua e outra crítica. A consciência ingênua, que se caracteriza pela simplicidade na interpretação dos problemas, surgia de forma automática associada as transformações econômicas ao qual o Brasil vinha passando nos anos 1950 e início dos 1960. Por outro lado, o surgimento de uma consciência crítica estava muito associado ao trabalho educativo em busca dos nexos entre as experiências práticas vividas e a teoria, propiciando uma interpretação profunda dos problemas.

Atualmente, a importância do pensamento de Paulo Freire vem ganhando vigor em propostas como educação ambiental e educação do campo, dentre outras. Levando em consideração o contexto do surgimento movimento de educação popular em articulação com as lutas dos sujeitos oprimidos no Nordeste na década de 1950 e início de 1960, vem se intensificando o diálogo sobre essa proposta no seio dos movimentos sociais. Para Carvalho (2012, p.154): “O que essas novas educações têm em comum é o fato de tratarem as questões emergentes da vida social [...], convocando diferentes saberes e áreas do conhecimento para compreendê-las.”

O campo da educação ambiental crítica tem suas raízes nos ideais emancipadores da educação popular, compreendendo o processo educativo para a formação de sujeitos sociais emancipados como sujeitos ecológicos. Para tanto, de acordo com Carvalho (2012), se faz necessário superar a limitação dos espaços formais de educação, buscando articulações com os movimentos sociais no caminho de melhorar as condições ambientais de existência das comunidades e dos grupos, valorizando as práticas culturais locais em seus saberes de manejo do ambiente natural. Em suas palavras: “A preocupação com os problemas ambientais locais ajuda a criar esse novo espaço de relações que, sem excluir a escola, a expande e constitui a comunidade como um novo ator nessa dinâmica.” (CARVALHO, 2012, p.160).

Uma proposta educativa central em nosso debate, que apresenta forte inspiração em Paulo Freire, é a de educação do campo do Movimento de trabalhadores rurais Sem–Terra – MST. Compreendendo a importância da proposta de uma educação contextualizada, o MST constrói o processo educacional através dos círculos de cultura, no qual as palavras geradoras e os temas geradores surgem a partir do assentamento, fazendo mediações pedagógicas para os educandos construírem sua visão crítica sobre o mundo. Nas palavras de Bezerra Neto (1999, p. 101): “O MST entende que as pessoas aprenderão a partir de temas geradores que devem surgir da realidade vivida pela criança, adolescente ou adulto, objetivando um processo de interação entre as disciplinas e as séries a serem estudadas.”

A partir da reflexão sobre sua realidade vivida, os Sem-Terra adquirem a capacidade de tomar uma postura crítica diante do real, superando a visão mistificadora da realidade imposta pelos opressores através de sua educação bancária. Para Caldart (2004), a educação do campo do MST é vista como um processo de formação humana preocupada com as novas gerações de camponeses, valorizando o trabalho com a terra no caminho da segurança alimentar. Para a autora, o MST trabalha como um sujeito pedagógico, “como uma coletividade em movimento, que é educativa e que atua intencionalmente no processo de formação das pessoas que a constituem” (CALDART, 2004, p. 315).

Nesse processo, a agroecologia é fundamental, pois, de acordo com Caldart (2016, p. 2): “Hoje a agroecologia representa a base científica da construção de uma lógica de agricultura que confronta a agricultura industrial capitalista, que é o modelo ainda hegemônico, embora já integre a crise geral do capitalismo.” Assim, o MST tem valorizado uma educação do campo voltada para a agroecologia compreendendo suas potencialidades em termos de uma produtividade ecologicamente equilibrada, em que os alimentos são fonte de saúde. De acordo com a autora, a educação agroecológica faz parte de um projeto de construção de novas relações sociais de produção alicerçadas na perspectiva da soberania alimentar, destacando que: “Os camponeses são os sujeitos construtores da agricultura agroecológica” (CALDART, 2016, p.4).

No âmbito da educação agroecológica o pressuposto dialógico da troca de saberes entre os diversos sujeitos do conhecimento é levado ao limite. Para Caldart (2016), a agroecologia é tributária da contextualização vivida dos conhecimentos, em que os saberes dos camponeses são de suma importância na relação com os conhecimentos científicos. Ou seja, para a autora: “[...] é preciso formar os camponeses como pesquisadores dos seus agroecossistemas, o que exige apropriação da ciência e processual desalienação do trabalho [...]” (CALDART, 2016, p. 5). Nesse sentido, a autora ressalta o imbricamento da ciência agroecológica com as escolas de educação do campo, tendo em vista que ambas valorizam a vida, diferente do agronegócio, que é voltado para a sociedade da mercadoria.

Desta feita, sobre os avanços da educação rural brasileira, Moura (2003) argumenta que desde a última década do século XX a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura - CONTAG e os movimentos sociais têm se articulado com a União Nacional das Escolas Famílias Agrícolas – UNEFAB e com a Associação Regional das Casas Famílias Rurais – ARCAFAR, proporcionando experiências sólidas de Educação Rural no Brasil, através da pedagogia da alternância. Contudo, tais propostas se diferenciam da perspectiva educacional do curso técnico em agroecologia do SERTA, que desde o início de sua trajetória buscou uma articulação entre os elementos da educação popular, especialmente na proposta de Paulo Freire, no caminho de uma ressignificação da educação formal.

De acordo com Moura (2015), a proposta do SERTA parte de uma crítica da educação formal no que diz respeito as crenças e valores urbanos capitalistas que buscavam estigmatizar os camponeses. Nas palavras do autor: “A escola não construía a identidade do filho do agricultor com autoestima. Estigmatizavam a origem do pai como se fosse castigo e fatalidade” (MOURA, 2015, p.35). A proposta do SERTA, pelo contrário, busca relacionar os saberes escolares, técnicos e acadêmicos com os saberes populares que os pais e as mães dos educandos dominam. Para Moura (2003, p. 28), a proposta do SERTA busca que: “a Escola Formal exerça um papel em relação ao desenvolvimento sustentável, local, integrado, diferente do que, tradicionalmente, exerceu em relação ao meio rural.”

Assim, levando em conta que a trajetória dos seus criadores tem raízes no campo da educação popular, a proposta do SERTA buscou articular os valores da educação popular na construção de uma educação do campo formal:

 

O SERTA, nascido e desenvolvido dentro da educação popular, fez a síntese entre essa e a Educação Formal. No curso técnico, desenvolve o sistema de Educação Popular, interagindo com os elementos formais, como a certificação, a avaliação com notas, o diário de classe, o diploma, currículo por disciplina e área de conhecimento, as chamadas com presença e falta, professores formados na academia, prestação de contas junto à Secretaria Estadual de Educação. (MOURA, 2015, p.86).

 

No plano formal, o curso é dividido em 4 módulos, com o total de 18 meses, sendo desenvolvido em regime de alternância, com atividades presenciais, de tempo comunidade e estágio supervisionado. Ao longo do curso, são 795 horas/aulas presenciais na Unidade de Ensino do SERTA, em que os estudantes passam uma semana do mês alojados em processo de imersão. As outras três semanas do mês são para atividades de Tempo Comunidade, dialogadas com os professores, totalizando 405 horas/aulas e 200 horas de estágio curricular supervisionado a ser realizado nas semanas do tempo comunidade. O total de horas do Curso é de 1.400.

Durante as atividades presenciais, os educandos participam de aulas práticas e teóricas, da elaboração de tecnologias alternativas bem como de projetos de intercâmbio pedagógico. A convivência em grupo durante as semanas de imersão é muito valorizada, através de atividades como a organização dos espaços pedagógicos (sala de aula, biblioteca, laboratórios vivos, restaurante, entre outros), realização de mutirões, atividades culturais, bem como de esporte e lazer. Já no tempo comunidade, os estudantes exercitam as práticas que aprenderam no curso, desenvolvem as tecnologias aprendidas em seus espaços de vida e trabalho, fazendo leituras, produção de textos, aplicação de pesquisas, mobilizações sociais e culturais, articulações institucionais e realização de seminários.[3]

No tocante aos elementos da educação popular, Moura (2015, p.155) afirma: “O que faz a educação popular é o projeto de sociedade que está implícito ou explicito nela. Popular é por que tem proposta de sociedade”. O curso do SERTA apresenta inspiração popular no que diz respeito a proposta de ação concreta em favor do meio ambiente, dos recursos naturais (solo, água, vegetação, animais), em favor das pessoas, construindo parcerias com os movimentos sociais em luta no campo para a transformação das situações vividas. Em suas palavras: “a parceria não é algo que tanto faz ter, como não. Ela constitui a educação popular, ela constitui os movimentos sociais.”(MOURA, 2015, p.208).[4] Ademais, a experiência de formação no curso do SERTA, levando em consideração a intensa troca de saberes com os movimentos sociais, encaminha para um processo de humanização (FREIRE, 2019).

Unidade entre teoria e prática na experiência do Estágio supervisionado

Este artigo busca expor a articulação entre as perspectivas teóricas e a atividades práticas de estágio realizadas durante o curso de técnico em agroecologia no SERTA. Tais atividades tendo se concentrado principalmente no Acampamento Açucena 3 da usina falida Laginha no município de União dos Palmares, contribuíram com a consolidação dos aprendizados teóricos realizados durante o próprio curso no SERTA. Assim, destacamos o conhecimento e aprendizagem adquirida durante a experiência de estágio, bem como as dificuldades encontradas no transcorrer do processo. Trata-se de um artigo que busca comprovar o processo de aprendizagem, reforçando a importância da metodologia do SERTA que privilegia a relação entre teoria e prática.

Em termos de estágio, o curso do SERTA propicia um aprofundamento do aprendizado, realizando uma superação da pedagogia tradicional na qual a sala de aula seria o ápice, para uma articulação entre a prática e a teoria na construção do conhecimento. Assim, os conhecimentos teóricos em torno da agroecologia são colocados em prática no estágio. O curso possui uma parceria de longa data com os movimentos sociais do campo, o que facilitou a proposta de estágio no interior de um acampamento em luta pela terra. É importante ressaltar que no interior do curso de agroecologia são abertas duas turmas, uma delas apenas para estudantes oriundos de assentamentos rurais dos movimentos sociais parceiros e outra para os demais estudantes.

Sendo assim, pudemos aprender na prática sobre as lutas do campo, desde a necessidade de distribuição de terra, até mesmo no uso da enxada, bem como o novo horizonte apresentado pela agroecologia no que diz respeito a uma produção de alimentos orgânicos. O estágio propiciou o aprendizado da agroecologia como um saber fazer experienciado, pois o SERTA tem uma metodologia adequada para extrair a melhor qualidade possível do estágio, evidenciando a necessidade de sensibilidade e o conhecimento íntimo para com o meio. Com isso, através do caráter de vivência propiciado pelo estágio, foi possível uma aproximação das trajetórias dos sujeitos na luta pela terra.[5]

Desta feita, saímos muito animados com os aprendizados adquiridos durante o curso no SERTA, tendo em vista a possibilidade de um novo horizonte apresentado pela agroecologia e permacultura. Dentre os aprendizados práticos, estão aqueles relativos à possibilidade da autonomia camponesa através da soberania alimentar; da prática de construção dos sistemas agroflorestais, bem como da importância dos saberes vividos dos camponeses, indígenas e quilombolas no tocante a agroecologia. Em nosso estágio também se destacou os aprendizados relativos ao processo moroso de negociação por parte do Estado com os movimentos sociais no que diz respeito a distribuição das terras ocupadas. Trata-se de terras de uma usina falida que já estão desapropriadas pelo órgão responsável do Estado, como verificamos em entrevista com a coordenadora da ocupação.

 

Figura1 - Entrada Acampamento Açucena 3

Fonte: elaboração própria, Data: 24/03/2018

 

Figura 2 - Acampamento Açucena 3


Fonte: elaboração própria, Data: 25/03/2018

 

Atestamos que a proposta educacional do SERTA traz perspectivas para um novo modo de vida em relação com a natureza, destacando a necessidade e a viabilidade de imitar os processos naturais, eliminando as etapas de degradação do ambiente natural na construção do sistema agroflorestal. Na prática, o SERTA apresenta a possibilidade de uma autonomia e autossuficiência perante o modo de produção vigente, através das tecnologias alternativas e da proposta de produção alimentar em regime agroflorestal. Como destaca Bookchin (2017), a autogestão, como uma forma de produção e gestão autônomas, sempre esteve associada ao desenvolvimento de técnicas para produção autossuficiente. Nesse sentido, as tecnologias alternativas se apresentam como um resgate dos saberes tradicionais, no que diz respeito às práticas de autogestão e soberania alimentar.

No âmbito do curso do SERTA, o professor Mendes(2012) ressalta a importância da permacultura como uma técnica associada à agroecologia, que proporciona a organização do designer espacial em busca da autogestão da pequena propriedade e autossuficiência do sistema agroflorestal, procurando minimizar ao máximo todas as entradas de energias externas, no caminho da construção da segurança hídrica, alimentar, energética e de nutrientes.[6] No plano teórico, o curso do SERTA parte de uma crítica da produção de monoculturas pelo agronegócio, na busca de valorização das práticas de soberania alimentar.

Assim, diante das tendências globais de crise ambiental, o conceito de soberania alimentar tem ganhado muita atenção, especialmente “[...] na aplicação da ciência agroecológica moderna alimentada por sistemas de conhecimento indígena” (ALTIERI, 2010, p.23). A agroecologia busca melhorar a qualidade do solo para produzir plantas fortes e sadias, aplicando técnicas de consorciação de culturas em consonância com os saberes práticos dos camponeses, indígenas e quilombolas. Para Altieri (2010), a agroecologia aponta deliberadamente aos pobres, com forte articulação com os movimentos sociais.

Ademais, no interior da agroecologia, a perspectiva da troca de saberes ganha muita força, pois os camponeses carregam consigo os saberes relativos à produção de uma agrodiversidade livre de organismos geneticamente modificados. Conforme argumenta Altieri (2010), as pesquisas científicas sobre as culturas agrícolas mundiais têm identificado a figura do camponês como protetor da diversidade genética de cultivos. Em suas palavras: “Na maioria dos casos, os agricultores mantêm a diversidade como um seguro para enfrentar a mudança ambiental ou as necessidades sociais e econômicas futuras” (ALTIERI, 2010, p.26). Assim, para o autor, em uma perspectiva dialógica de trabalho em conjunto e troca de saberes, o papel da ciência agroecológica é proteger as áreas de agricultura camponesa livre dos organismos geneticamente modificados, mantendo-os como refúgio da diversidade genética.

Desta feita, os movimentos sociais do campo no Brasil têm feito um excelente trabalho de valorização das sementes crioulas no que diz respeito a conservação e multiplicação das mesmas, trazendo à tona a memória e os saberes em torno da diversidade da agricultura camponesa. Nesse caminho, o curso do SERTA apresenta a importância do movimento de valorização dos saberes camponeses e propõe a troca de saberes como caminho de construção da agroecologia. Ressaltamos que as atividades de assistência técnica e extensão rural - ATER do SERTA tem contribuído significativamente na construção do banco de sementes crioulas nas próprias comunidades rurais, sempre no interior do processo de troca de saberes.

Em termos práticos, em outubro de 2016, no âmbito do projeto sementes do semiárido, desenvolvido pelo Centro Sabiá, em parceria com o SERTA e a caritas de Garanhuns, com apoio do governo federal, foi construído o banco de sementes crioulas da comunidade Cabaceira, no município de Canhotinho-PE. No documentário ATER para transição agroecológica, que foi organizado pelo SERTA, são apresentadas informações sobre a construção do banco de sementes, ressaltando a valorização dos saberes camponeses e sua busca pela soberania alimentar no resgate e segurança das sementes crioulas livres de agrotóxicos.[7]

Através das atividades práticas do estágio passamos a compreender de perto as diversas temporalidades de organização dos camponeses, especialmente a diferença entre aqueles assentados e acampados. Estes últimos são os trabalhadores ainda em luta pela terra, muitos das favelas das cidades[8], diferente dos primeiros que já adquiriram o direito legal sobre a terra. Desta feita, em nossa experiência de estágio foi observado que os acampados, devido sua inexperiência, praticavam o uso da queimada como uma forma de limpar o terreno, que é uma técnica considerada rudimentar. No SERTA, por sua vez, aprendemos sobre a importância da matéria orgânica no enriquecimento do solo e da produção de uma cobertura morta, que tem a finalidade de proteger o solo do calor excessivo, acumular água e nutrientes. Esse material orgânico que não foi queimado é uma matéria-prima para a preparação do composto, que vai fertilizar o solo.

Uma proposta central no processo educacional de formação do técnico em agroecologia do SERTA é o conceito de sistema agroflorestal – SAF, compreendida como uma técnica de produção alimentar voltada para a realização de um uso da terra que se aproxime da dinâmica das comunidades tradicionais, vislumbrando até mesmo uma auto-organização do sistema natural, procurando o cuidado com a terra bem como o cuidado com as pessoas, através de uma produção alimentar orgânica. De acordo com Mollison e Holmgren (1983), para a produção do SAF, temos a necessidade de diversificar a produção alimentar consorciando diferentes culturas, impossibilitando a existência de competição entre as mesmas no tocante ao consumo de água, espaço físico, luz solar e nutrientes.

 Para a produção do sistema agroflorestal no âmbito da pequena propriedade, é importante o cuidado com a produção do solo, tendo em vista que a troca entre a energia e a matéria deve ser harmonizada. As redes vivas criam e recriam sua entrada e saída de matéria e energia no sistema agroflorestal de uma forma auto-organizada. De acordo com Mendes (2012), o segredo da fertilidade da agrofloresta é a matéria orgânica, com a biomassa produzida pelas folhas que vão ao solo seja por meio da poda ou até mesmo aquelas que caem, formando uma camada de matéria orgânica no solo, bem como através das composteiras para produção de um solo rico em nutrientes.

O sistema agroflorestal tem como premissa a busca por imitar a natureza. No primeiro momento da produção de uma agrofloresta se faz necessário um trabalho de planejamento, com cuidados relacionados especialmente com a irrigação. Já no segundo momento, é fundamental deixar o sistema agroflorestal trabalhar por si só em funções como: adubação; irrigação; semeio; cobertura morta; reprodução; criação; controle de pragas; podas; diversidade; aração, etc. Para que este aperfeiçoamento aconteça não são necessárias a intervenção do homem.

Durante as aulas práticas na semana de imersão, trabalhamos na construção do sistema agroflorestal com uma grande variedade de espécies de vários tamanhos, plantando espécies com longevidades diferentes, aproveitando todos os resíduos deixados pelos cultivos e plantas nativas. Teoricamente, o curso de SERTA apresenta uma crítica profunda à produção de monoculturas, alertando que nessa perspectiva se planta um único produto e depois tem-se que comprar uma diversidade de outros para se alimentar, ficando à mercê das leis do mercado e perdendo sua autonomia alimentar.

Um ponto muito discutido no curso do SERTA diz respeito ao designer espacial da pequena propriedade no princípio de conexão em ZONAS. O professor Mendes (2012) argumenta que existem muitos exemplos de pequena propriedade que apresentam uma diversidade de elementos e espaços, mas, em muitos casos, foram projetados e montados de uma forma sem conexão. Sem o planejamento dos espaços de forma conectada, o gasto de energia para manter estes espaços produtivos e em funcionamento é consideravelmente grande, aumentando com isto os custos de produção de algumas atividades. O aproveitamento dos resíduos e das sobras pode até acontecer, mas de forma incipiente. O zoneamento é a estratégia utilizada pela permacultura para facilitar, combinar, conectar e respeitar o meio ambiente.

 O aumento das conexões torna-se a principal base da organização e da arrumação dos espaços dentro da pequena propriedade. Para Mendes (2012), é fundamental conhecer a paisagem do sítio em diversas dimensões através de uma análise do sistema, para saber, dentre as zonas, qual a área é mais propicia para a agrofloresta. Assim, se faz importante algumas questões: qual área recebe mais sol e em qual horário? Qual área recebe menos sol? Qual área alaga, provocando possíveis inundações? Qual o lado dos ventos dominantes, direção do vento? Para isso, é preciso analisar o relevo e o declive.

Nas aulas práticas, o professor Mendes (2012) alerta sobre a necessidade de proteger as plantações da exposição ao vento, que podem acarretar uma baixa produção. Daí surge a importância do cata-vento, em que podemos obter a direção do vento. Outra dica importante, diz respeito a necessidade de conhecer as áreas mais húmidas, aproveitando a humidade para as plantas, diferenciando das áreas mais secas, já que outras plantas ou até mesmo outras zonas se adequam mais ao seco. Nas palavras de Mendes (2012, p.130): “Um dos grandes problemas atuais e do futuro é a água. Sua captação, armazenamento, distribuição e qualidade deve ser preocupação de todos”. Logo, zonear é saber utilizar os espaços de forma energeticamente correta e ambientalmente equilibrada.

Um aprendizado que ocorreu no estágio se deu em relação ao período do plantio, tendo em vista a necessidade de entrar no ritmo da natureza. Existe o momento certo para plantar. Nas palavras de Paungger e Poppe (2003), a força da lua e seus efeitos sobre os seres humanos, animais e plantas podem ser comprovados pela experiência. O trabalho na produção da roça, remexendo à terra, semeando, plantando, requer uma ligação com o calendário lunar. Para os autores: “O momento certo para tais tarefas tem muita importância para o processo de crescimento e amadurecimento das plantas e sua resistência contra ervas daninhas e outras pragas” (PAUNGGER e POPPE, 2003, p.84).

O professor Roberto Mendes (2012) destaca a importância da integração com o tempo da natureza, enfatizando a necessidade de esquecer um pouco as tecnologias supérfluas e voltar a não medir o tempo pelo relógio e sim pelo amanhecer e anoitecer, procurando se guiar pela safra de caju e da manga. No que diz respeito a minha experiência, por se tratar de um agroecologista iniciante, o estágio se apresenta como um processo de grande importância no que diz respeito ao aprendizado no manejo da terra, bem como na integração com o tempo lunar para encontrar o momento certo de plantar.

Uma das principais dificuldades no estágio, por ser realizado num acampamento ainda na luta pela terra, foi a impossibilidade de acesso à água. Com isso, não tivemos a oportunidade de aplicar diretamente no estágio os aprendizados relativos à produção de uma agrofloresta, pois na etapa inicial se faz necessário um projeto de irrigação intenso. Por outro lado, vale salientar que trabalhamos com a produção de agrofloresta no próprio campus do SERTA nos períodos de imersão, quando colocamos a mão na massa na produção de alimentos que são consumidos pelos próprios estudantes. Em diversas oportunidades também trabalhamos com a produção agroflorestal em visitas à assentamentos de reforma agrária dos próprios estudantes do SERTA.

Na experiência de estágio supervisionado, a despeito das dificuldades, foi separada uma porção de terra no acampamento para plantação. Em nossa experiência procuramos diversificar a produção de alimentos com a plantação de macaxeira, feijão, abobora, milho, amendoim, maxixe, fava, sempre observando os períodos de chuva para não perder nossa produção. A produção da cobertura morta e composteira na experiência do acampamento foi fundamental na produção alimentar. O período de estágio e tempo comunidade se estendeu desde o mês de fevereiro de 2017 até julho de 2018. Durante esse processo, estive presente nas reuniões, manifestações, fortalecendo uma grande experiência de formação humana, tendo em vista a aproximação com os sujeitos políticos sem-terra, vivenciando suas lutas.[9]

 

Figura 3 - Roça no Acampamento Açucena 3


Fonte elaboração própria, Data: 24/03/2018

 

Figura 4 – Colheita no Acampamento Açucena 3

Fonte: elaboração própria, Data: 07/07/2018

 

Pela demanda do movimento social, foi organizada uma roda de diálogo no acampamento sobre a importância da composteira e o fim das queimadas, ministrada pelos estudantes do SERTA. Foi destacado que as queimadas matam os micro-organismos tão importantes para a reprodução do solo, bem como eliminam os nutrientes, fazendo com que o solo se torne mais pobre. Durante o diálogo também foi exposto uma crítica contundente ao uso de fertilizantes químicos, os chamados agrotóxicos. Nas palavras de Mendes (2012, p.170): “Para minimizar o uso destes insumos antinaturais deve-se identificar e utilizar toda esta força biológica que muitos parceiros naturais possuem, para nos ajudar a manter o sistema cultivado.”

Nesse diálogo foi exposto os princípios da composteira, que se trata da produção de adubo orgânico através do aproveitamento da matéria orgânica que seria queimada, com vistas à vivificação do solo. Ao mesmo tempo, também foi lançada a proposta de produção do NPK natural através da composteira, um adubo orgânico. O fertilizante NPK significa a junção de Nitrogênio, Fósforo (phosphorus) e potássio (kalium), que são reconhecidos como elementos básicos na alimentação da planta. Cada elemento favorece uma parte da planta: o nitrogênio favorece a produção de folhas (e por este motivo, é importante numa horta); o fósforo favorece a produção de grãos e frutas (importante para a roça, especialmente de feijão); e o potássio favorece o talo e a raiz (importante para a cenoura e hortaliças de raiz em geral, o coqueiro e a bananeira).

De acordo com Hanzi (2003), podemos produzir o NPK orgânico. As fontes naturais de nitrogênio são: folhas verdes; mamona: folhas e casca; esterco, especialmente de animais que comem folhas verdes; urina; leguminosas que se associem a bactérias que fixam o nitrogênio: guandu- mucunapreta – feijão de porco- sombreiro mexicano, etc. Já as fontes naturais de fósforo: ossos de todos os tipos, tomando cuidado para não usar de animais doentes; esterco de aves que comem grãos, menos esterco de granja, pois é contaminado com antibióticos; palmeiras em geral; cactos em geral, incluindo a palma e o mandacaru embaúba. De acordo com a autora, foi comprovado que mesmo sem aportes externos de fósforo, em solos tratados com matéria orgânica o teor deste elemento aumenta. Já as Fontes naturais de potássio são: madeira em geral: troncos, galhos maravalha; cinzas; folhas e caule de bananeira; todas as partes do coqueiro da bahia; folhas de confrei; urina humana.

Com isso, ressaltam-se os grandes aprendizados durante o estágio supervisionado no interior da luta pela terra no acampamento Açucena 3. De nossa parte, acreditamos que a proposta metodológica do SERTA de encurtar a distância entre a teoria e prática se faz de grande importância para a formação do profissional técnico em agroecologia. Na minha experiência, o curso vem agregar na formação anterior de professor de Geografia, contribuindo com reflexões muito frutíferas sobre os processos de educação popular, troca de experiências com os movimentos sociais, bem como uma proposta de leitura dos conflitos ambientais do mundo contemporâneo em uma perspectiva engajada.

Considerações finais

Neste artigo, destacam-se as aproximações da proposta pedagógica do SERTA com a educação popular, especialmente as reflexões de Paulo Freire quanto a uma educação como prática de liberdade. Tal proposta não permite uma separação entre a teoria e a prática no processo de aprendizagem. Assim, foi apresentado elementos da experiência de estágio supervisionado e tempo comunidade que ocorreu no acampamento Açucena 3, em que conseguimos comprovar a eficácia da metodologia do SERTA quanto as possibilidades de uma aprendizagem significativa no curso de agroecologia.

Enquanto professor de Geografia, posso afirmar que a aprendizagem no interior do curso de agroecologia do SERTA foi de grande valia para minha formação docente e humana. Esta disciplina busca compreender as transformações do uso da natureza no transcurso da história da humanidade como um processo de produção e reprodução do espaço da vida, ressaltando que atualmente vivemos um momento histórico de urbanização e industrialização, no qual o campo ambiental não escapa ileso. Nesse sentido, a experiência de formação em técnico em agroecologia pelo SERTA vem agregar novas possibilidades de apreender a problemática ambiental através de uma visão complexa de meio ambiente em que a natureza integra uma rede de relações.

Apresentou-se como de fundamental importância o processo de articulação entre o SERTA e os movimentos sociais nos processos educacionais, contribuindo com a possibilidade de uma aproximação com a prática agroecológica no âmbito do estágio obrigatório, enfatizando a dimensão de reflexão sobre a prática. A pesquisa no curso técnico em agroecologia faz parte do processo de teoria e prática, possibilitando a reflexão sobre os problemas encontrados na hora da prática de forma construtiva. A pedagogia do SERTA apresenta uma crítica da proposta educacional tradicional, construindo uma escola diferenciada através das possibilidades que surgem nas fissuras.

Ademais, com o aprendizado proporcionado pelo curso, pude aprofundar as reflexões em torno da questão ambiental contemporânea. Tal problemática passa pela compreensão e crítica do entendimento da natureza como um recurso para acumulação de capital, que tem proporcionado um distanciamento cada vez maior do homem em relação à natureza. Em grande medida a sociedade contemporânea é movida pela ideologia do consumo, se tornando refém da criação de novas necessidades supérfluas. Por outro lado, presenciamos que uma prática pedagógica de aproximação com a agroecologia através das vivências, pode contribuir na formação humana em um sentido profundo, no caminho de uma práxis ecológica.

Referências

ALTIERI, Miguel. Agroecologia, agricultura camponesa e soberania alimentar.  Revista NERA, Presidente Prudente/SP, UNESP, Ano 13, n. 16, pp.-22-32, Jan/Jun, 2010. Disponível em: https://revista.fct.unesp.br/index.php/nera/article/view/1362/1347 Acesso em 20 de Nov. 2017.

 

BEZERRA NETO, L. Sem – Terra aprende e ensina: estudo sobre as práticas educativas do movimento dos trabalhadores rurais. São Paulo, Ed. Autores Associados, 1999.

 

BOOKCHIN, Murray. Autogestão e tecnologias alternativas. Biblioteca do Comum, Este texto foi publicado originalmente em Portugal na revista "A Idéia", junho de 1985. Acesso em 16 de setembro de 2019. Disponível em: http://www.bibliotecadocomum.org/items/show/27

 

BOFF, Leonardo. A opção terra: a solução para a Terra não cai do céu. Rio de Janeiro: Record, 2009.

 

CALDART, R. S. Pedagogia do Movimento Sem Terra. 3ª Ed. São Paulo, Expressão Popular, 2004.

 

CALDART, R. S. Escolas do campo e Agroecologia: uma agenda de trabalho com a vida e pela vida! In: Grupo de Pesquisa e Estudos em Formação Humana, Educação e Movimentos Sociais (GEFHEMP), Francisco Beltrão/PR, UNIOESTE, 2016. Disponível em: https://www.unioeste.br/portal/arq/files/GEFHEMP/01_-_Escolas_do_Campo_e_Agroecologia.pdf Acesso em 22 de Fev. 2018.

 

CARVALHO, Isabel Cristina de Moura. Educação ambiental: a formação do sujeito ecológico. São Paulo: Cortez, 2011.

 

FREIRE. Paulo. Pedagogia da autonomia. 48 ed. Rio de Janeira: Paz e Terra, 2014.

 

FREIRE. Paulo. Pedagogia do oprimido. 59 ed. Rio de Janeira: Paz e Terra, 2015.

 

FREIRE. Paulo. Educação como prática de liberdade. 45 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2019.

 

HANZI, Marsha. O sítio abundante: Co-criando com a Natureza - Permacultura. 2ed. Edições Alecim,  Lauro de Freitas, BA, 2003.

 

MENDES, Roberto. A permacultura aplicada na agricultura familiar. 1 ed. Caruaru, PE: Permacultura pedagógica, 2012.

 

MOLLISON, Bill; HOLMGREN, David. Permacultura um: uma agricultura permanente nas comunidades em geral. Editora Groundm 1983.

 

MOURA, Abdalaziz. Uma filosofia da educação do campo que faz a diferença para o campo. 1 ed. Via design publicações. Recife, 2015.

 

MOURA, Abdalaziz. Princípios e Fundamentos da Proposta Educacional de Apoio ao Desenvolvimento Sustentável – Peads. 2ed. Ed. SERTA, 2003.

 

PAUNGGER, Johanna; POPPE, Thomas. O momento certo. São Paulo, Madras Editora Ltda, 2003.

 

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Notas



[1] A teologia da libertação apresenta grandes questionamentos sobre a forma predatória de consumo da natureza sob o capitalismo. De acordo com Boff (2009), é impossível manter a lógica de acumulação, de crescimento ilimitado e linear e ao mesmo tempo evitar a quebra dos sistemas ecológicos.

[2] Para Freire (2015), o método dialógico propõe uma relação horizontal de A com B: “A educação autêntica, repitamos, não se faz de A para B ou de A sobre B, mas de A com B, mediatizados pelo mundo.”p.116.

[3] Ver sobre o plano de curso técnico em agroecologia. Disponível em: < http://www.serta.org.br/cursos/> acessado em 14/07/2020

[4] De acordo com Moura (2015), no âmbito das parcerias existe uma troca de experiências, em que os movimentos sociais aproveitam para ter um acúmulo de conteúdos com a ajuda que recebem, ao passo que o educando também aprende.

[5] Para Moura (2015), o processo educativo é composto pela unidade teoria e prática, no qual o estágio se apresenta como hora da experiência, bem como momento de reflexão e produção da teoria.

[6] Durante o curso, a permacultura é trabalhada como um dos principais tópicos de discussão, com quatro disciplinas divididas no interior dos quatro módulos, todas ministradas pelo professor Roberto Mendes. No primeiro módulo, temos a disciplina introdução a permacultura. No segundo módulo, temos a disciplina agroecologia e permacultura I. No terceiro módulo, temos a disciplina nutrição e adubação orgânica. No quarto módulo, temos a disciplina agroecologia e permacultura II.

[7] Ver documentário produzido pelo SERTA: ‘ATER PARA TRANSIÇÃO AGROECOLÓGICA’. disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=sBQ_3mPerBw > acessado em 14/07/2020.

[8] No âmbito das atividades de pesquisa demandadas pela disciplina de ‘autogestão da produção’, verificamos através de diálogos e entrevistas que no acampamento açucena 3 grande parte dos trabalhadores da ocupação eram moradores de favelas da cidade Maceió/AL, em busca de uma estabilidade com o acesso a terra na luta pela reforma agrária.

[9] A comprovação da realização das atividades de estágio supervisionado foi propiciada pela articulação entre o curso do SERTA e o movimento social parceiro do SERTA. Em termos de periodicidade, visitávamos o acampamento todo fim de semana, em alguns momentos de quinze em quinze dias. Todas as atividades realizadas na roça foram atestadas pela coordenadora do acampamento através da assinatura de um documento que foi entregue a coordenação de estágio supervisionado do SERTA.