Sala de aula invertida: Emancipação de mestres e aprendizes à luz das ideias de Freire e Ranciére

Flipped classroom: Emancipation of masters and learned in the light of the ideas of Freire and Ranciére

 

Luiz Maurício Bentim da Rocha Menezes

Professor doutor no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Triângulo Mineiro (IFTM)

lmbrmenezes@yahoo.com.br - http://orcid.org/0000-0003-4925-9876

 

Selma Maria de Oliveira

Mestranda Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Triângulo Mineiro (IFTM)

selma.maria09@gmail.com – https://orcid.org/0000-0003-4829-4856

 

Recebido em 29 de maio de 2020

Aprovado em 11 de agosto de 2021

Publicado em 24 de fevereiro de 2022

 

RESUMO

Os autores Jacques Rancière e Paulo Freire em suas obras asseveravam sobre a importância da educação como uma prática de liberdade, sem hierarquização, que conduza os alunos para uma emancipação intelectual. Nossa reflexão é sobre a presença destes ideais na adoção da metodologia da Sala de Aula Invertida para respondermos de que forma o uso dessa estratégia contempla os preceitos destes pensadores, na perspectiva da emancipação, da igualdade das inteligências de alunos e professores. O objetivo geral do estudo é refletir criticamente sobre como a Sala de Aula Invertida contribui para a emancipação de alunos e professores à luz das ideias de Freire e Rancière, bem como identificar os pilares que dão sustentação à metodologia de inversão da aprendizagem e extrapolar a concepção tradicional do ofício de ser professor como um mero explicador. Infere-se que o objeto escolhido para estudo poderá abalizar a adoção desta nova metodologia, contribuindo para práticas pedagógicas que colaborem para a construção de uma educação emancipadora, igualitária, pautada em valores éticos e alicerces sólidos que permitam ao indivíduo não só estar no mundo, mas ser parte integrante dele, problematizando, reconhecendo-se e intervindo. A pesquisa tem uma abordagem qualitativa e procedimento bibliográfico, compondo uma tessitura de reflexões e considerações para confirmação ou não da hipótese inicial. Sua relevância centra-se na possibilidade de identificar na Sala de Aula Invertida, além de uma estratégia do uso da tecnologia a favor da aprendizagem, também um potencial para o exercício emancipatório de professores e alunos, na prática da igualdade das inteligências. Neste viés, será destacado o poder do diálogo, a relevância da dúvida e da curiosidade como pontes para o conhecimento, apontando que as convicções de Freire e Rancière são possíveis de concretização e estão presentes no desenvolvimento desta estratégia tão contemporânea. 

Palavras-Chave: Sala de aula invertida. Paulo Freire. Ranciére.

 

ABSTRACT

The authors Jacques Rancière and Paulo Freire in their works asserted the importance of education as a practice of freedom, without hierarchy, that leads students towards an intellectual emancipation. Our reflection is about the presence of these ideals in the adoption of the Inverted Classroom methodology to answer how the use of this strategy contemplates the precepts of these thinkers, in the perspective of emancipation, the equality of the intelligences of students and teachers. The general objective of the study is to reflect critically on how the Inverted Classroom contributes to the emancipation of students and teachers in the light of the ideas of Freire and Rancière, as well as to identify the pillars that support the methodology of inversion of learning and to extrapolate the conception tradition of being a teacher as a mere explainer. It is inferred that the object chosen for study may support the adoption of this new methodology, contributing to pedagogical practices that contribute to the construction of an emancipatory, egalitarian education, based on ethical values ​​and solid foundations that allow the individual not only to be in the world, but be an integral part of it, problematizing, recognizing and intervening. The research has a qualitative approach and bibliographic procedure, composing a fabric of reflections and considerations to confirm or not the initial hypothesis. Its relevance centers on the possibility of identifying in the Inverted Classroom, in addition to a strategy for the use of technology in favor of learning, also a potential for the emancipatory exercise of teachers and students, in the practice of equality of intelligences. In this vein, the power of dialogue, the relevance of doubt and curiosity as bridges to knowledge will be highlighted, pointing out that Freire and Rancière's convictions are possible to materialize and are present in the development of this very contemporary strategy.

Keywords: Flipped Classroom. Paulo Freire. Ranciére.

Introdução

Vivemos a era da conexão e digitalidade, a relação de tempo e espaço toma uma proporção outrora não imaginada pela nossa sociedade. Pensar a educação nestes novos tempos faz-se necessário, tendo em vista que a evolução tecnológica não é garantia para um ensino de qualidade que leve os sujeitos aprendizes à construção da autonomia. Neste viés é que se insere as Metodologias Ativas que buscam, por meio de estratégias diferenciadas, desenvolver habilidades e competências que colaborem para a formação humana integrada, por meio da efetividade da aprendizagem.

Como o próprio nome já sugere Metodologias Ativas – MA pressupõem uma multiplicidade de caminhos, diversidade de ferramentas, técnicas e atividades pelas quais o sujeito aprende fazendo, colocando-se na posição de protagonista. No contexto da educação, MA define um conjunto de ações lógicas objetivando desenvolver nos alunos a capacidade de aprender novas competências, ocupando a centralidade do fazer pedagógico.

Segundo Cotta et al. (2012, p. 788), as metodologias ativas no processo de ensino e aprendizagem são estratégias pedagógicas com prática criticorreflexiva que permitem uma leitura e intervenção sobre a realidade. Essa metodologia favorece a interação entre alunos e professores e seus pares, valorizando a construção coletiva do conhecimento, a intervenção sobre a realidade e os múltiplos saberes, portanto, fomenta a aprendizagem significativa que ocorre quando

 

o aluno interage com o assunto em estudo – ouvindo, falando, perguntando, discutindo, fazendo e ensinando – sendo estimulado a construir o conhecimento ao invés de recebê-lo de forma passiva do professor. Em um ambiente de aprendizagem ativa, o professor atua como orientador, supervisor, facilitador do processo de aprendizagem, e não apenas como fonte única de informação e conhecimento (BARBOSA; MOURA, 2013, p.55).

 

A dinamicidade de como a informação circula em nossa sociedade não pode ser ignorada por educadores, pois faz parte das formas atuais de aprender e ensinar. Na proposta pedagógica apoiada nas Metodologias Ativas, os professores medeiam às atividades a fim de conduzir os estudantes para uma formação crítica, proporcionando situações do que será encontrado no cotidiano, visando antecipar e intervir a situações e problemas reais. Nesta perspectiva, “ativa”, pode ser entendida como significativa, que conduz o aluno a pensar constantemente, no que está fazendo, com acesso a diferentes fontes de informações que poderão auxiliá-lo.

Assim, diversas técnicas de Metodologias Ativas vêm sendo discutidas, tais como: aprendizagem baseada em problemas, aprendizagem baseada em projetos, aprendizagem em equipe, sala de aula invertida (flipped classroom), jogos ou uso de simulações (gamificação), estudo de caso, aprendizagem por pares (peer instruction), entre outros. Especialmente neste estudo, buscamos evidenciar na abordagem das Metodologias Ativas, a Sala de Aula Invertida - SAI, à luz das acepções propaladas por Paulo Freire e Rancière; referenciar a contribuição dessa técnica para a emancipação dos sujeitos e da igualdade das inteligências, no que concerne aos papéis de alunos e professores. O estudo reconhece na tecnologia uma aliada à educação, apontando alternativas para a construção da excelência pedagógica através de um caminho para adequar o processo de ensino-aprendizagem ao perfil da sociedade moderna, sobre isso Jordão diz:

 

As tecnologias digitais são, sem dúvida, recursos muito próximos dos alunos, pois a rapidez de acesso às informações, a forma de acesso randômico, repleto de conexões, com incontáveis possibilidades de caminhos a se percorrer, como é o caso da internet, por exemplo, estão muito mais próximos da forma como o aluno pensa e aprende. Portanto, utilizar tais recursos tecnológicos a favor da educação torna-se o desafio do professor, que precisa se apropriar de tais recursos e integrá-los ao seu cotidiano de sala de aula (JORDÃO, 2009, p.10).

 

Os autores, Paulo Freire nas obras Conscientização, Educação como Prática de Liberdade e Pedagogia da Autonomia, e Jacques Rancière, na obra O Mestre Ignorante, preconizam o ideal para todo processo de escolarização: a educação como ação de emancipação e igualdade. Enquanto o primeiro autor discursa sobre a importância da significação dos conteúdos e da problematização da realidade para analisar, entender e intervir, uma vez que só o homem consciente produz a verdadeira educação através de uma prática libertadora; o segundo autor discorre que a emancipação supõe um funcionamento igual, universal das inteligências, entendendo-se por embrutecedor o método que provoca o sentimento de incapacidade no pensamento daquele que busca aprender. As asseverações presentes na leitura das obras destes escritores podem ser observáveis na aplicação da Sala de Aula Invertida.

Da observação desta técnica, depreende-se que o professor/mestre é aquele que organiza o caminho para que o aluno possa aprender. Por meio de instigações e problematizações o novo vai sendo desvelado, não há o saber mais ou o saber menos, a relação discente e docente se dá de forma horizontal, mantendo uma linearidade, sobre isso declara Rancière:

 

É assim que o mestre ignorante pode instruir tanto aquele que sabe quanto o ignorante verificando se ele está pesquisando continuamente. Quem busca, sempre encontra. Não encontra necessariamente aquilo que buscava menos ainda aquilo que é preciso encontrar. Mas encontra alguma coisa nova, a relacionar à coisa que já conhece [...]. O essencial é essa contínua vigilância, essa atenção que jamais se relaxa sem que venha a se instalar a desrazão – em que excele tanto aquele que sabe quanto o ignorante. O mestre é aquele que mantém o que busca em seu caminho, onde está sozinho a procurar e o faz incessantemente. (RANCIÉRE, 2010, p. 56-57)

 

Os conceitos sobre emancipação e igualdade de inteligência de Freire e Rancière são convenientes quando analisamos a metodologia da Sala de Aula Invertida como uma estratégia que permite a conversa sem barreiras entre alunos e professores, onde os primeiros são convocados a previamente estudar o conteúdo, apoiado por alguma tecnologia que os coloquem em contato com o tema e a problematização levantada pelo seu mestre. Os segundos, os professores, cabem o caminho de mediador, de planejar o percurso para que o aluno possa alcançar o conhecimento. Nessa metodologia, alunos e professores são sujeitos iguais, pois não há saber mais ou saber menos, a esse respeito Freire afirma:

 

E neste sentido que ensinar não é transferir conhecimentos, conteúdos nem forrar são ação pela qual um sujeito criador dá forma, estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado. Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto, um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender. (FREIRE, 2002 p. 11)

 

O conceito de Sala de Aula Invertida começou a ser desenvolvido na década de 90 com os autores Eric Mazur, em “Peer instruction: User’s manual” e Gregor Novak em “Just-in-time Teachin, todavia, sua popularização surgiu do termo “Flipped classroom”, a partir da experiência de Aaron Sams e Jonathan Bergmann, autores estadunidenses que começaram a disponibilizar previamente o material a ser estudado aos alunos que por algum motivo não podiam assistir às aulas. O procedimento adotado por Sams e Bergmann mostrou-se exitoso não somente para aqueles que se ausentavam das aulas, mas também para os demais alunos que se engajaram no processo de busca do conhecimento, estudando em casa a teoria que o professor havia sugerido e em sala de aula realizava reflexões práticas sobre o tema. 

Daí a explicação para a terminologia Sala Invertida: oferecer ao educando o acesso à teoria/conteúdo fora da sala de aula e, posteriormente, com a turma realizar atividades de ordem prática para a consolidação do conhecimento, por meio da realização de atividades como resolução de problemas, desenvolvimento de projetos, discussão em grupos, experiências em laboratórios, dentre outras ações. A estratégia tem como princípio uma educação personalizada, em que estudantes aprendem no espaço e tempo de sua escolha, podendo rever o conteúdo quantas vezes lhe for conveniente, aproveitando desta forma o tempo de aula com o objetivo de potencializar o aprendizado.

Entende-se por meio da leitura das obras “Conscientização, Educação como Prática de Liberdade e Pedagogia da Autonomia” de Paulo Freire, e na obra “O Mestre Ignorante” de Jacques Rancière que os procedimentos de ensino são tão importantes quanto os próprios conteúdos de aprendizagem. Assim a Sala de Aula Invertida configura-se como uma estratégia que coaduna com a pedagogia libertadora defendida por Freire e com a educação igualitária apoiada por Rancière. Ambos os autores defendem o papel da educação como um ato de conscientização e emancipação do indivíduo, rompendo com o conceito de que o professor é aquele que ensina por ser o detentor da verdade e introduzem a ideia de que ao mestre cabe à tarefa de capitanear o processo de ensinar, desafiando o aprendiz a trilhar ativamente o caminho da construção do seu conhecimento.

O objetivo geral do estudo é refletir criticamente sobre como a Sala de Aula Invertida contribui para a emancipação de alunos e professores, à luz das ideias de Freire e Rancière. A pesquisa aqui desenvolvida pretende analisar o papel emancipador da aplicação da metodologia da Sala de Aula Invertida de acordo com as acepções das ideias contidas nas obras de Paulo Freire e Jacques Rancière, bem como reconhecer os pilares que dão sustentação à metodologia de inversão da aprendizagem rompendo com a concepção tradicional do ofício de professor como um mero explicador/transmissor da matéria. Na aplicação desta estratégia, evidenciam-se a construção da autonomia dos educandos e o princípio da igualdade das inteligências, princípios norteadores das obras destes pensadores.

Em seu estudo, Oliveira (s/d, p. 34) afirma que a pesquisa só acontece se temos algo ímpar a responder, demonstrando por meio do objeto de pesquisa uma face nova, ainda não desvendada que nos instigue à curiosidade e motive-nos a investigar. Desta forma, acreditamos que o objeto escolhido para estudo poderá evidenciar na Sala de Aula Invertida uma metodologia contemporânea, os ideais de educação presentes em Freire e Rancière quando sequer eram imaginadas as tecnologias da informação e comunicação. Sem referenciar as possibilidades tecnológicas como estratégias para ensinar e aprender, os autores já defendiam a construção de uma educação pautada em valores éticos e alicerces sólidos de respeito ao homem. Para estes pensadores, ao indivíduo é permitido não só estar no mundo, mas ser parte integrante dele, problematizando, reconhecendo-se e intervindo. Assim, a tecnologia, os métodos e o próprio homem configuram-se como instrumentos para análise da realidade. Conforme a definição de Lucini trata-se de contemplar o objeto que reivindica o método (s/d, p.22).

A pesquisa tem abordagem qualitativa com enfoque bibliográfico, cujas análises compõem um universo heterogêneo de métodos e técnicas (GATTI, 2002, p. 27). A esse respeito, o método empreendido baseia-se no levantamento de literatura relevante ao tema do objeto estudado, compondo uma tessitura de reflexões e considerações. Baseando-se nos autores citados para a análise das noções de emancipação e igualdade, pretende-se responder ao questionamento de como a Sala de Aula Invertida contribui para a emancipação de alunos e professores.

De acordo com Gil (2002), esse tipo de pesquisa é desenvolvido com base em material já elaborado, principalmente em livros e artigos científicos, permitindo ao investigador contemplar uma diversidade sobre a apreciação do mesmo fenômeno. Quanto aos meios de investigação a pesquisa bibliográfica é o estudo sistematizado desenvolvido com base em material publicado em livros, revistas, jornais, redes eletrônicas (VERGARA, 2005, p.48).

A importância do estudo justifica-se na possibilidade de identificar na Sala de Aula Invertida um potencial para a formação de alunos e professores autônomos que acreditam na igualdade das inteligências, no poder do diálogo, na relevância da dúvida e da curiosidade como pontes para o conhecimento, apontando que as convicções de Paulo Freire e Jacques Rancière são possíveis de concretização e estão presentes no desenvolvimento desta estratégia tão contemporânea. Neste panorama de relações em rede, de seres conectados e mercado profissional competitivo, faz-se necessário uma educação com estratégias diversificadas e criativas que provoquem mudanças para a construção de uma sociedade que saiba intervir na realidade.

A sala de aula invertida

O uso da tecnologia na educação é um novo domínio para a pedagogia que em seu próprio conceito traz a ideia de pluralidade, de inter-relação e de intercâmbio crítico entre saberes e conceitos desenvolvidos por diferentes pensadores. Um olhar para o público-alvo da educação refletirá a sociedade atual, plural e conectada e, nesse contexto, deparamo-nos com a árdua tarefa de ensinar. Os parâmetros curriculares nacionais – PCNs trazem que

 

As novas tecnologias da comunicação e da informação permeiam o cotidiano independente do espaço físico e criam necessidades de vida e convivência que precisam ser analisadas no espaço escolar. A televisão, o rádio, as informáticas, entre outras, fizeram com que os homens se aproximassem por imagens e sons de mundos antes inimagináveis/ Os sistemas tecnológicos, na sociedade contemporânea, fazem parte do mundo produtivo e da prática social de todos os cidadãos, exercendo um poder de onipresença, uma vez que criam formas de organização e transformação de processos e procedimentos. (BRASIL, 2000, p.11-12)

 

No tempo em que as políticas educacionais impõem mudanças curriculares na educação básica, os profissionais que atuam neste nível de ensino são conclamados ao engajamento em práticas pedagógicas capazes de qualificar os conteúdos, dando sentido e significação aos objetos de aprendizagem estudados pelos alunos. A adoção da metodologia da Sala de Aula Invertida aponta ser uma alternativa e não simplesmente, mais um modismo, para melhorar a qualidade do ensino-aprendizagem nas instituições educativas. Assim, no uso desta metodologia, percebemos o potencial emancipador falado por Paulo Freire ao propiciar ao estudante conhecer, aprender e a fazer, intervindo na realidade; e de igualdade das inteligências para mestres e aprendizes, defendida por Jacotot na obra de Jacques Rancière, através da vontade e desejo de aprender do aluno, ou mesmo pelas contingências da situação, dando liberdade para quem aprende buscar o seu próprio conhecimento.

Retomando os conceitos, a Sala de Aula Invertida surgiu do termo inglês “Flipped classroom”, a partir da experiência de Aaron Sams e Jonathan Bergmann (2016) traduzida para o português como Sala de Aula Invertida. Trata-se de um modelo de ensino baseado numa abordagem pedagógica sob a perspectiva da aprendizagem invertida, na qual a aula expositiva passa do seu caráter de apresentação grupal, num único espaço e para todos ao mesmo tempo, para a dimensão individual, onde através do uso da tecnologia ou de outro recurso, o conteúdo é disponibilizado previamente ao aluno que poderá acessá-lo em espaço e tempo distintos.

Nesta perspectiva, o espaço de sala de aula é transformado em um ambiente de aprendizagem dinâmico e interativo, no qual o professor é o facilitador que guia os estudantes na aplicação dos conceitos, tornando a vontade de aprender por iniciativa própria, dando significado as coisas, essa racionalidade, guiada pela vontade criando a verdade ou conhecimento. “Não é uma verdade incontestável que ele nos apresenta, é uma suposição, uma aventura de seu espírito que ele está narrando, a partir dos fatos que observou” (RANCIÈRE, 2010, p. 114).

A utilização da Sala de Aula Invertida sustenta-se nos ambientes flexíveis de aprendizagem, em que o aluno aprende onde e como quiser; na cultura de aprendizado, na qual os estudantes constroem o conhecimento junto com o professor mediador do conhecimento. Aqui o “educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa”. (FREIRE, 2018, p. 64).

Outros dois pilares para a execução dessa estratégia são o conteúdo intencional que consiste no planejamento da matéria, nas situações de mobilização que conduzirão os alunos à execução de uma atividade prática e na formação de professores profissionais que conduzirão o aprendizado dentro e fora da sala de aula, que saibam lidar com críticas, sugestões e sejam motivadores para a construção do conhecimento pelos alunos.

Notadamente, pode-se perceber que nessa metodologia o aluno ganha um papel de protagonista da aprendizagem, conforme Freire (2018), o conhecimento da realidade é indispensável ao desenvolvimento da consciência de si e, consequentemente, ao aumento do conhecimento do mundo. O ato de conhecer não se dá apenas na dicotomia entre objetividade e subjetividade, mas também na relação entre estes elementos na sua ação.

É isso que a Sala de Aula Invertida propõe: a conjugação de todos estes elementos, rompendo os limites impostos pelas paredes das salas de aula, buscando a autonomia como forma de consolidar o conhecimento, numa ação dialógica e proativa do educando. A realidade em que o sujeito está imerso não pode estar desvinculada de seu processo de conhecimento, pois partindo de uma filosofia de igualdade baseada na relação dialógica entre os indivíduos que podem estar em contextos diferentes, conforme discorre Rancière.

Acreditando nessa possibilidade e trabalhando seriamente em si mesmo para sair de algumas crenças educacionais limitantes como as acepções pessoais de que “não sou capaz de aprender sem a presença do professor ou sem estar na escola”, “não consigo compreender assuntos complexos sem explicações extras”, existem pessoas que são “inteligentes e outras que são burras” ou ainda, no pensamento que o acesso ao conhecimento requer linearidade e acúmulo de informações. Sobre isso, Rancière discorre:

 

A emancipação intelectual é a comprovação da igualdade das inteligências. Esta não significa igual valor de todas as manifestações da inteligência, mas igualdade em si da inteligência em todas as suas manifestações. Não há dois tipos de inteligência separados por um abismo. O animal humano aprende todas as coisas como aprendeu a língua materna, como aprendeu a aventurar-se na floresta das coisas e dos signos que o cercam, a fim de assumir um lugar entre os seres humanos: observando e comparando uma coisa com outra, um signo com um fato, um signo com outro signo. (RANCIÈRE, 2010, p. 14-15).

 

Em sua obra, O Mestre Ignorante, Rancière trata do caso de um educador chamado Jacotot que viveu no período iluminista francês e teria desenvolvido um método próprio de ensino que mais tarde veio a se chamar método emancipador da educação. Segundo Jacotot, qualquer um pode vir a aprender o que quiser, mesmo sem um mestre sapiente, pois todos os humanos têm a mesma capacidade intelectual e só precisam de sua própria vontade para aprender. Nesse ponto, ele irá separar o que chama de embrutecimento, que é o método tradicional, e emancipação, que é o seu método inovador. O ensino universal criado pelo professor Jacotot prioriza uma aprendizagem sem a explicação de um professor, seu princípio estabelece relações e conexões com conhecimentos anteriores, através dos princípios de seleção progressão e incompletude.

Assim, a Sala de Aula Invertida, tal como o método de Jacotot, é a concretização de um novo paradigma na educação, sua efetividade só se concretiza na existência de um professor com prática pedagógica invertida, em contraposição ao mestre embrutecedor/explicador, na inversão da sala de aula o mestre ignorante é o mestre emancipador. Se o educador não souber ativar seus alunos, mobilizando-os para a busca de soluções, sua aula será apenas expositiva, uma demonstração de conteúdos usando os suportes tecnológicos.

O mais importante é inverter o processo de aprendizagem, tal como aponta Rancière, ao mestre cabe a incumbência de fazer o aprendiz buscar o caminho do conhecimento por meio de provocações, ou problematizações que o conduzam à ação, retirando-o da zona de conforto e lançando-o no processo de construção da aprendizagem. Por conseguinte, o conhecimento descoberto por seus próprios méritos conduz à libertação daquilo que ignorava, quanto mais o indivíduo descobre, mais ele se emancipa, tornando-se independente, sendo capaz de refletir e agir sobre a realidade. Este é o caminho que tanto a metodologia da Inversão da Sala de Aula quanto os princípios apregoados por Rancière oportunizam ao aprendente: sair da condição de passividade e lançar-se no caminho da descoberta.      

Os métodos tradicionais, que privilegiavam a transmissão de informações pelos professores, faziam sentido quando o acesso à informação era difícil. Com a Internet e a divulgação aberta de muitos cursos e materiais, podemos aprender em qualquer lugar, a qualquer hora e com muitas pessoas diferentes. Isso é complexo, necessário e um pouco assustador porque não temos modelos prévios bem-sucedidos para aprender de forma flexível numa sociedade altamente conectada. (ALMEIDA, 2012).

Com o uso criativo e inovador das tecnologias podemos obter o registro e dar visibilidade ao processo de aprendizagem de cada um e de todos os envolvidos. Podemos mapear os progressos, apontar as dificuldades e até prever alguns caminhos para os que têm dificuldades específicas por meio da utilização de plataformas adaptativas. Não há como não reconhecer que as tecnologias facilitam como nunca, múltiplas formas de comunicação horizontal, em redes, coletivamente ou individualizada. A organização através da adoção da Sala de Aula Invertida permite a combinação dos ambientes mais formais com os informais, numa perspectiva inteligente e integrada, conciliando a necessária organização dos processos com a flexibilidade de poder adaptá-los a cada aluno e ao grupo.

Freire (2002) afirma que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção, quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender. Nesse diálogo, somos todos mestres e aprendizes, por meio do trabalho e da pesquisa, vamos compondo o nosso conhecimento acerca do mundo, não para nele simplesmente existir, mas para compreendê-lo e intervir, à vista disso Freire diz:

 

Como educador preciso de ir "lendo” cada vez melhor a leitura do mundo que os grupos populares com quem trabalho faz de seu contexto imediato e do maior de que o seu é parte. O que quero dizer é o seguinte: não posso de maneira alguma, nas minhas relações político-pedagógicas com os grupos populares, desconsiderar seu saber de experiência feito. Sua explicação do mundo de que faz parte a compreensão de sua própria presença no mundo. E isso tudo vem explicitado ou sugerido ou escondido no que chamo “leitura do mundo” que precede sempre a “leitura da palavra”. (FREIRE, 2002, p.32).

 

A realização da Sala de Aula Invertida permite ao aluno, previamente, ter acesso à teoria/conteúdo fora da sala de aula e, posteriormente, com a turma realizar atividades de ordem prática que consolidem o conhecimento, realizando atividades como resolução de problemas, desenvolvimento de projetos, discussão em grupos, experiências em laboratórios, dentre outras ações. Tem como princípio uma educação personalizada, em que estudantes aprendem no espaço e tempo de sua escolha, podendo rever o conteúdo quantas vezes lhe for conveniente. O conhecimento é abordado pela mediação do professor, conforme Ranciére, intitulado mestre, que tem como função principal conduzir os estudantes à própria ciência, instigando-os a usar a inteligência. Mais que isso, os discentes tornam-se corresponsáveis pelo processo educacional. Além de usar a tecnologia a favor da aprendizagem, a Sala de Aula Invertida apresenta uma mudança de paradigma em que alunos e professores assumem posições desafiadoras assumindo um novo perfil, sobre isso Paulo Freire discorre:

 

Estimular a pergunta, a reflexão crítica sobre a própria pergunta, o que se pretende com esta ou com aquela pergunta em lugar da passividade em face das explicações discursivas do professor, espécies de resposta a perguntas que não foram feitas. [...]. O fundamental é que professor e alunos saibam que a postura deles, do professor e dos alunos, é dialógica, aberta, curiosa, indagadora e não apassivada, enquanto fala ou enquanto ouve. O que importa é que professor e alunos se assumam epistemologicamente curiosos (FREIRE, 2002, p. 33).

 

De acordo com Miskulin (1999), esse processo de renovação sugere uma reorganização dos conteúdos trabalhados, uma transformação de metodologias pedagógicas, redefinição de teorias de ensino, um novo papel da instituição em relação à sociedade e, portanto, uma nova postura do docente já que ressignifica o seu papel dos atores envolvidos no processo de ensino e aprendizagem, onde há uma ruptura com a lógica tradicional da aula explicativa e expositiva para uma dinâmica de interação pautada no aprender a aprender, a conhecer, a fazer e a ser (DELORS, 2003). Pode-se ensinar o que se ignora desde que se emancipe o aluno; isso é, que se force o aluno a usar sua própria inteligência (RANCIÈRE, 2010, p.114).

Os pilares da Sala de Aula Invertida sob a perspectiva de Freire e Rancière

Para que a Sala de Aula Invertida seja efetivada, é necessário que sua prática esteja apoiada em pressupostos que expressem ambientes flexíveis de aprendizagem que colaborem para o aluno aprender no melhor local e horário para ele, apontando para a liberdade de escolha do tempo e espaço. O trabalho do professor na execução desta estratégia é agir sobre a vontade, sendo um orientador do caminho a percorrer, canalizando e potencializando as vontades como um mestre emancipado, tal como dizem Freire e Rancière.

A cultura do aprendizado configura como outra característica dessa metodologia que cria entre discentes e docentes a identidade de seres inacabados e, portanto, sempre aptos a aprender. Neste cenário, o professor colabora com o aluno, por meio da mediação, ao acesso ao conhecimento, podendo-se perceber a igualdade das inteligências proposta pelo personagem Jacotot, na obra de Ranciére. Não há saber mais ou menos, partem do pressuposto de que todos os indivíduos possuem uma inteligência igual, portanto todos podem conquistar o conhecimento sobre o tema que tiver interesse em aprender.

Outro pressuposto, apoia-se no conteúdo intencional que é produzido ou planejado pelo professor junto à execução de uma atividade prática que valide a aprendizagem autônoma, é expresso no planejamento que o professor elabora com foco nos objetivos e metas.

Como sustentação dos outros pressupostos, para que tudo isso seja possível, é necessário a formação de professores profissionais, que conduzam o aprendizado dentro e fora de aula, docentes abertos à crítica e a sugestões, principalmente, que sejam um motivador do sujeito aprendiz.

O pilar, ambiente flexível de aprendizagem, permite a adoção de uma variedade de modelos de ensino, onde a organização do espaço foge do modelo tradicional dos alunos enfileirados, a organização tem em vista as múltiplas intencionalidades do ensino. Os educadores podem rearranjar os espaços para acomodar melhor a turma em face à promoção de grupos de estudos, discussões, socialização de descobertas e até mesmo para suscitar novas dúvidas. A simulação e a aproximação com a realidade fazem o educando sentir-se pertencente no mundo, gerando uma identidade empreendedora, da mesma forma Freire verbaliza que:

 

A partir das relações do homem com a realidade, resultantes de estar com ela e de estar nela, pelos atos de criação, recriação e decisão, vão ele dinamizando o seu mundo. Vai dominando a realidade. Vai humanizando-a. Vai acrescentando a ela algo de que ele mesmo é o fazedor. [...]. E, na medida em que cria, recria e decide, vão se conformando as épocas históricas. É também criando, recriando e decidindo que o homem deve participar destas épocas. (FREIRE, 2014, p. 43).

 

Além disso, ao inverter a classe, os educadores tornam-se mais flexíveis em relação às expectativas e prazos dos alunos, não há uma rigidez do processo, pois o mais importante é o resultado final. O que precisa ser significativo é que o ambiente favoreça a construção da aprendizagem, promova o diálogo e o entendimento por meio de algumas reflexões tais como: Estabeleço uma agenda que favoreça a interação e a reflexão entre os estudantes? Faço os ajustes, na medida em que necessário? Ofereço aos estudantes diferentes oportunidades de aprender o conteúdo? Reconheço quais ambientes são mais adequados à realização de determinada atividade, etc.

Estes questionamentos, dentre outros, tornam menos rígido o local de onde, como e quando melhor se aprende, coloca o aluno como o centro da ação educativa, respeitando as suas peculiaridades e singularidades. Um ponto que merece destaque é que em uma Sala de Aula Invertida as competências do professor são aproveitadas de formas diferentes, dentro e fora do ambiente escolar. Rancière considera que para aprender basta que se tenha vontade, deste modo a inteligência nada mais é que servidora da vontade do indivíduo, ela está igualmente em todos, mestres ou alunos, simplesmente por serem homens. Esse predicado é o que nos une e torna-nos iguais.

A Sala de Aula Invertida pressupõe um funcionamento igual, universal das inteligências, isto é, um método de aprendizado que parte da própria capacidade intelectual do aluno, desde que ele tenha vontade para assim fazê-lo. A vontade é um fator determinante para que ele possa obter progresso em aprender aquilo que é do seu interesse, sendo traduzido pelo termo potência, na interpretação de Rancière. Não temos todos os mesmos interesses e, justamente, por termos interesses distintos somos capazes de aprimorar conhecimentos diferentes uns dos outros. Esse é um dos motivos pelo qual Rancière demonstra contrário a um mesmo currículo escolar para uma heterogeneidade de pessoas.

A aprendizagem invertida opera a partir do pressuposto de que o acesso ao conteúdo ocorre principalmente fora da sala de aula e deve ser uma tarefa compartilhada com os alunos, ao invés de um trabalho exclusivo do professor, parte do pressuposto de que todos têm a possibilidade de aprender, o que nos diferencia uns dos outros são os nossos ritmos dentro do tempo, no qual cada um segue no seu passo próprio.

A cultura de aprendizado configura-se como o segundo pilar para a efetivação da sala de aula invertida, aqui o professor não é mais a única fonte de informação ou mero transmissor/reprodutor do conteúdo. Isto posto, Freire assevera:

 

A educação crítica considera os homens como seres em devir, como seres inacabados, incompletos em uma realidade igualmente inacabada e juntamente com ela. Por oposição a outros animais, que são inacabados, mas não históricos, os homens sabem-se incompletos. Os homens têm consciência de que são incompletos, e assim, nesse estar inacabados e na consciência que disso têm, encontram-se as raízes mesmas da educação como fenômeno puramente humano. O caráter inacabado dos homens e o caráter evolutivo da realidade exigem que a educação seja 'uma atividade contínua. (FREIRE, 2018, p. 41).

 

Na formação de hábitos de sempre buscar o conhecimento, reconhecendo que não são as respostas que movem o mundo, mas as perguntas, alunos e professores são continuamente desafiados a aprofundar, a saber mais, saindo do estágio do conformismo e inércia para a postura de iniciativa e diligência frente ao que se quer aprender. O aprendizado deve estar centrado no estudante e na sua relação com os pares, assim o trabalho em sala de aula deve favorecer atividades que aprofundem e deem significado ao que está sendo ensinado, pois coloca o estudante como corresponsável de seu aprendizado, deixando o professor de ser o centro da atenção no processo. Nessa nova postura o educador desempenha o papel de articulador do conhecimento, exercendo a função de facilitador de atividades relevantes que suscitem à dúvida e promovam a curiosidade discente, segundo Freire:

 

Há uma pluralidade nas relações do homem com o mundo, na medida em que responde à ampla variedade dos seus desafios. Em que não se esgota num tipo padronizado de resposta. A sua pluralidade não é só em face dos diferentes desafios que partem do seu contexto, mas em face de um mesmo desafio. No jogo constante de suas respostas, altera-se no próprio ato de responder. Organiza-se. Escolhe a melhor resposta. Testa-se. Age. (FREIRE, 2014, p. 40).

 

O terceiro pilar, intitulado como conteúdo intencional, demonstra que o educador deve ter intencionalidade naquilo que faz e propõe, tendo claro quais as metas que deseja alcançar e quais os objetivos de aprendizagem esperados. Determina o que deverá ser ensinado e aprendido e quais os recursos necessários para que isto aconteça. Segundo Freire:

 

Quanto mais progride a problematização, mais penetram os sujeitos na essência do objeto problematizado e mais capazes são de “desvelar” esta essência. Na medida em que a “desvelam”, se aprofunda sua consciência nascente, conduzindo assim à conscientização da situação pelas classes pobres.  Sua autoinserção crítica na realidade, ou melhor, sua conscientização, faz com que sua apatia se transforme num estado utópico de denúncia e anúncio, um projeto viável (FREIRE, 2018, p. 45).

 

Na obtenção de êxito na concretização deste pilar, o planejamento é fundamental, bem como contextualizar o que está sendo aprendido, partir de uma situação do cotidiano dos alunos para questões mais complexas com nível de dificuldade mais elaborado. As atividades precisam ser instigantes e terem um fio condutor que propiciem ao aluno aprender de forma autônoma. Os momentos dentro da sala de aula também são de suma importância, pois é o período em que há a socialização das descobertas ou a mostra prática daquilo que se aprendeu. Podem-se perceber estes conceitos que reforçam o valor do professor para a autoafirmação do educando nas acepções de Rancière quando nos diz:

 

O que pode, essencialmente, um emancipado é ser emancipador: fornecer, não a chave do saber, mas a consciência daquilo que pode uma inteligência, quando ela se considera como igual a qualquer outra e considera qualquer outra como igual a sua. A emancipação é a consciência dessa igualdade, dessa reciprocidade que, somente ela, permite que a inteligência se atualize pela verificação. O que embrutece o povo não é a falta de instrução, mas a crença na inferioridade de sua inteligência. (RANCIÈRE, 2010 p. 50)

 

Rancière demonstra a maneira pela qual o seu método pode vir a se perpetuar, já que todo aquele que se emancipa pode emancipar outro e assim progressivamente. Dessa forma, o método não precisa de mestres sapientes para ser efetivo; basta encontrar as chaves emancipadoras do processo. Professores do modelo de educação invertida preocupam-se continuamente sobre como eles podem ajudar os alunos a desenvolver o entendimento de conceitos, como também na sua capacidade de atuar com eles em parceria, sem hierarquização do conhecimento.

Os docentes determinam o que deve ser explorado em sala de aula e quais materiais devem ser explorados pelos alunos no momento de estudo autônomo. Os professores utilizam os conteúdos intencionais para aproveitar o tempo em sala de aula, adotando estratégias para otimizar o tempo e potencializar a aprendizagem discente. Assim, o conteúdo deixa de ser apenas algo dos livros e cadernos, passando a ser algo que o aluno identifica como parte integrante, próximo à sua realidade, capaz de aplicação prática na sua vida, de alguma forma. Os professores têm um papel relevante, pois não basta inverter a sala para que ocorra a inversão da aprendizagem, é uma tarefa instigante, porém profícua. Freire destaca que o papel do professor é

 

estimular a pergunta, a reflexão crítica sobre a própria pergunta, o que se pretende com esta ou com aquela pergunta em lugar da passividade em face das explicações discursivas do professor, espécies de resposta a perguntas que não foram feitas [...]. O fundamental é que professor e alunos saibam que a postura deles, do professor e dos alunos, é dialógica, aberta, curiosa, indagadora e não apassivada, enquanto fala ou enquanto ouve. (FREIRE, 2002, p. 33).

 

Como último pilar, a postura de professores profissionais dá sustentação para a inversão da aprendizagem e configuram como essenciais para o êxito da execução dessa metodologia, pois realçam o papel determinante da pessoa do mestre no contexto da Sala de Aula Invertida. Durante o tempo da aula os docentes continuamente observam seus alunos, dando-lhes feedbacks sobre seu trabalho, desse jeito o acesso ao conteúdo verticalizado tira o controle das mãos do professor sobre os níveis de aprofundamento que cada estudante percorrerá. Professores profissionais devem ser capazes de obter conhecimento a partir dos seus colegas e das próprias experiências. Devem refletir sobre as suas técnicas e aceitar críticas construtivas, além de ser um constante pesquisador, buscando sempre se atualizar. O papel de detentor do conhecimento e da verdade já não lhe cabe mais, na perspectiva que somos todos seres em construção.

O saber transmitido e explicado embrutece, pois sujeita o aluno à dependência de seu esclarecimento e, diferente do imaginado, torna o aluno ser dependente, o que apenas reforça e garante a função do mestre como explicador. Revertida esta lógica, por efeito de um método aplicado à força do acaso de um empirismo desesperado (RANCIÈRE, 2010, p. 18), ao mestre não cabe somente ser um bom explicador de matéria, mas um ótimo mediador que conduza o aluno ao conhecimento por seu próprio percurso. Sobretudo, que não dê as respostas, mas que saiba fazer as perguntas pelas quais o aluno trilhará o aprendizado. 

O professor passa a ser um designer de aprendizagem e tem uma função ainda mais relevante, pois apesar de o educador não ser colocado como o personagem principal, ele continua a ter uma função fundamental para que a sala de aula invertida funcione, continua sendo ele aquele que constrói as pontes para que o aluno possa aventurar-se no caminho do novo.

Considerações Finais

Apesar de não podermos creditar a Paulo Freire e Jacques Rancière a criação da Sala de Aula Invertida, os dois filósofos servem como balizadores para o fortalecimento desta metodologia, na perspectiva da contribuição de ambos em pressupostos intrínsecos nessa estratégia pedagógica. 

Por meio da adoção da Sala de Aula Invertida é possível conduzir os alunos, a partir daquilo que sabem, no conhecimento de mundo falado por Freire, a construírem saberes cada vez mais complexos no caminho da consolidação do conhecimento e, por conseguinte, na eficiência da construção da aprendizagem invertida.

A visão holística também está presente na Sala de Aula Invertida, o aprendizado não fica apenas sobre o que o professor sabe acerca do assunto, o aluno pode se investir de autonomia para a construção do seu aprendizado, procurar mais elementos e materiais, conforme a sua necessidade, assim como ocorre na potência da vontade, propagada por Rancière e na construção da autonomia defendida por Freire. As atividades realizadas em conjunto pelos alunos na sala de aula, após o entendimento prévio, podem resultar no compartilhamento de diferentes visões sobre o conteúdo pesquisado gerando diferentes perspectivas. Deste modo, temos na prática a ocorrência da leitura do mundo precedendo a leitura da palavra, assim como defende Paulo Freire. Os diferentes materiais e dinâmicas podem ampliar o alcance do conteúdo estudado, isto posto, o mundo passa a ser compreendido como uma rede de inter-relações dinâmicas.

A ampliação da visão do estudante contribui para ampliar a maneira como vemos e a relação que temos com o universo, exaltando os potenciais humanos de intuir, se emocionar e criar, da mesma maneira que a habilidade racional, lógica e verbal. Enfim, a Sala de Aula Invertida oportuniza a conexão entre o homem e o conhecimento com todas as suas sutilezas e potencialidades, a serviço da manutenção do equilíbrio em que cada indivíduo é capaz de aprender, construindo o seu conhecimento.

Na autonomia do aprendizado, o aluno, de posse do conhecimento pode ver, rever, onde, quando e quantas vezes forem necessárias, os materiais disponíveis no meio digital, diferente do que ocorre com a aula presencial. O educando tem controle sobre seu material e seu aprendizado, inclusive se ele já souber o que está sendo falado, não precisará ouvir/ver tudo de novo. O aluno faz o seu caminho ao conhecimento, do mesmo modo que o princípio da emancipação defendida por ambos os autores. Nessa perspectiva, o “educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa” (FREIRE, 2002, p. 61-78).

A autonomia do aprendizado dialoga com os conceitos de emancipação e conscientização propalados por Freire, bem como a ideia da igualdade das inteligências defendida por Ranciére, pois não há saber mais ou saber menos, mas saberes diferentes e, a vontade de aprender funciona como uma potência que possibilita a emancipação pelo conhecimento conquistado. Logo, a aprendizagem da assunção do sujeito é incompatível com o treinamento pragmático ou com o elitismo autoritário dos que se pensam donos da verdade e do saber articulado (FREIRE, 2002, p. 42). Aprendizes e mestres dialogam de forma horizontal, sem empoderamentos ou relação de hierarquização, o conhecimento corre de forma fluída, como uma consequência do esforço coletivo entre alunos e professores em prol de objetivos comuns.

Sobre isso, Rancière provoca a reflexão para o equívoco de pensar que a educação é doses de ensino ao chamado ignorante ou não educado. A igualdade, no caso, não se trata de igualdade social ou cultural, mas, sobretudo da igualdade intelectual entre o mestre e o aprendiz. Assim percebe-se que a Sala de Aula Invertida propícia o exercício da igualdade das inteligências já que dá liberdade ao aluno de construir a sua trajetória em busca do conhecimento, acreditando que é possível aprender sem necessariamente estar dentro de uma sala de aula, é um modo democrático, pois inexiste uma hierarquização do saber.

Reflexão e crítica fazem-se presentes tanto na Sala Invertida quanto nos ideais propagados por Freire e Rancière, pois estabelecem um contínuo entre o conhecer, o agir e o produzir entre os integrantes do processo educativo. Os professores podem refletir sobre sua aula, aprimorar o processo de ensino, refletir e atualizar seu conhecimento ao discutir com os alunos. A coerência se faz aonde a mudança na educação vem de um voltar-se aberto e comprometido com a prática, consoante aos preceitos de Paulo Freire e Rancière, na perspectiva de que é possível ensinar sem transmitir o conhecimento, na igualdade entre mestres e alunos.

Nessa abordagem os estudantes são ativos e pensantes ao aplicar seus conhecimentos nas atividades individuais e conjuntas e têm agora o espaço para a dúvida mais consolidado, sendo conduzido com um professor mediador e não apenas avaliador. O mestre ignorante é o professor que ignora o conhecimento de desigualdade, suposto para preparar o caminho e reduzir a desigualdade com a mudança do foco da sua explicação para o entendimento do educando.

Percebe-se na adoção da Sala de Aula Invertida que a educação não é doses de ensino dado aos ignorantes, mas capacidade potencializada em vontade. O conteúdo ganha um escopo transdisciplinar na Sala de Aula Invertida, pois abre a possibilidade de diferentes disciplinas confeccionarem materiais em conjunto e depois realizarem um trabalho com professores de diferentes áreas em um mesmo ambiente, e assim, não reduzir o estudo numa única abordagem. Os temas ganham o contexto da conexão e inter-relação que devem ter dentro da ciência, passando a ter significado para quem aprende.

À luz das premissas presentes nas obras dos autores Paulo Freire e Jacques Rancière, além dos tópicos elencados, ao analisar a Sala de Aula Invertida, percebemos na proposição dessa metodologia inovadora, pautada no uso crítico e reflexivo da tecnologia, as contribuições destes filósofos para a educação na defesa da escolarização como um ato de conscientização dos indivíduos, no papel do professor como um orientador, na importância de valorizar o conhecimento de mundo e, principalmente, no reconhecimento do aluno como personagem principal no processo da construção do conhecimento.

Curiosamente, ambos os autores quando da composição de suas obras, não vivenciaram o apogeu desta era digital, todavia, mostraram através das suas ideias estarem à frente da sua época, trazendo ideais e conceitos tão necessários para a qualidade da educação e formação de uma sociedade mais justa. Se quisermos uma educação que atenda ao perfil da sociedade moderna e ao mesmo tempo seja livre das amarras que causam a opressão e alienação, temos que voltar o olhar e a nossa prática para escolha de metodologias que não sejam um modismo, mas o resultado de uma escolha consciente, abalizada na crença de que a educação deve formar o ser humano integral, livre, crítico e emancipado.

Em um cenário de políticas educacionais marcadas por avanços e retrocessos no qual os programas de governo se sobrepõem aos interesses e necessidades da sociedade. Em uma estrutura curricular muitas vezes engessada, alicerçada em concepções arraigadas. Cientes de que na maioria do chão das escolas, em especial as públicas, falta o básico como material didático, considerar a Sala de Aula Invertida uma pedagogia de emancipação e de igualdade de inteligência pode parecer distante da realidade. Todavia, é justamente neste paradoxo, que as tecnologias da informação e comunicação podem tornar-se ferramentas com grande potencial facilitador do processo de ensino e aprendizagem. Particularmente, a adoção da Sala de Aula Invertida, é muito mais uma mudança na ordem canônica da prática pedagógica que uma estrutura de equipamentos.

As premissas nas quais essa metodologia se sustenta, com destaque aos conceitos das obras de Jacques Rancière e Paulo Freire, evidencia-se que a partir dos recursos que as escolas possuem é possível agilizar e viabilizar a comunicação, mapear processos, compartilhar informações, reduzir distância, aproximar a realidade, prover condições de execução, viabilização de projetos, simular fenômenos e disponibilizar ao estudante acesso a toda e qualquer informação que possa contribuir com a atividade realizada pela centralidade ao aluno que a Sala de Aula Invertida oportuniza.

Referências

ALMEIDA, M. E. B. Integração de currículo e tecnologias: a emergência de web currículo. Anais do XV Endipe – Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino. Belo Horizonte: UFMG, 2012.

 

BARBOSA, Eduardo Fernandes; MOURA, Dácio Guimarães de. Metodologias ativas de aprendizagem na Educação Profissional e Tecnológica. B.Tec. Senac, Rio de Janeiro, v.39, n.2, p.48-67, 2013.

 

BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília: MEC/SEF, p.1-23, 2000.

 

BERGMANN, J.; SAMS, A. Sala de aula invertida – uma metodologia ativa de aprendizagem. 1. ed. Rio de Janeiro. 2016.

 

COTTA, Rosângela Minardi Mitre; SILVA, Luciana Saraiva da; LOPES, Lílian Lelis; GOMES, Karine de Oliveira; COTTA, Fernanda Mitre; LUGARINHO, Regina; MITRE, Sandra Minardi. Construção de portfólios coletivo em currículos tradicionais: uma proposta inovadora de ensino-aprendizagem. Ciência & Saúde Coletiva. v.3, n.17, p.787-796, 2012.

 

DELORS, Jacques. Educação: um tesouro a descobrir. 2ed. São Paulo: Cortez, 2003.

 

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários a prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

 

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Editora Paz e Terra, 2014.

 

FREIRE, Paulo. Conscientização. Cortez Editora, 2018.

 

GATTI, B. A. A construção da pesquisa em educação no Brasil. Brasília: Plano Editora, 2002. Cap. 1, p. 15-39.

 

GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2002.

 

JORDÃO, Fabio. História: a evolução do celular, 2009.

 

LUCINI, M. Fenomenologia hermenêutica: uma experiência metodológica. In BRETAS, Silvana Aparecida; SOBRAL, M. N. (org.) Pesquisa em educação: Interfaces, experiências e orientações.

 

MISKULIN, R. G. S. Concepções teórico-metodológicas sobre a introdução e a utilização de computadores no processo de ensino/aprendizagem da geometria. 1999. 273 f. Tese (Doutorado em Educação Matemática) – Faculdade de Educação, Universidade de Campinas, Campinas, 1999.

 

OLIVEIRA, Y.D. A formulação do problema de pesquisa: considerações sobre uma experiência no âmbito da história da educação. In BRETAS, S. A. e SOBRAL; M. N. (org.) Pesquisa em educação: Interfaces, experiências e orientações. mimeo.

 

RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

 

VERGARA, Sylvia Constant. Projetos e relatórios de pesquisa em administração. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2005.

 

This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International (CC BY-NC 4.0)