Da simulação computacional ao uso das representações visuais: desenvolvendo práticas epistêmicas em aulas de Química

From Computational Simulation to the use of visual representations: developing epistemic practices in chemistry classes

De la simulación por computadora al uso de representaciones visuales: desarrollo de prácticas epistémicas en clases de Química

 

Edyth Priscilla Campos Silva, UFMG

Mestranda em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.

edythpriscilla@gmail.com - https://orcid.org/0000-0002-6678-8537

 

Fernando César Silva, UFMG

Professor doutor na Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.

fcsquimico@yahoo.com.br - https://orcid.org/0000-0002-8593-3090

 

Recebido em 17 de agosto de 2020

Aprovado em 14 de outubro de 2020

Publicado em 27 de janeiro de 2022

 

RESUMO

Considerando a construção do conhecimento científico a partir da proposição, comunicação e avaliação de ideias, buscou-se, no contexto de uma sala de aula, investigar se o uso de representações visuais, considerando-o como uma prática epistêmica, pode ser oportunizado por meio de uma simulação computacional. A sequência didática foi aplicada em uma turma de 3° ano do Ensino Médio de uma escola pública de Minas Gerais. Os dados foram gerados a partir dos registros escritos produzidos pelos estudantes durante a sequência, visto que as práticas epistêmicas também são intertextuais. A análise dos dados foi realizada por meio da Análise Textual Discursiva, revelando que a simulação computacional, por meio de uma abordagem investigativa proposta pelo professor, permitiu o uso das representações visuais, além de outras práticas epistêmicas, como elaborar hipótese, construir dados, concluir, explicar e generalizar. A dinamicidade do simulador favoreceu o contato dos estudantes com diferentes representações visuais, o que pode ter permitido o seu uso. A oportunização dessa prática epistêmica é importante no Ensino de Química, pois as representações visuais usadas nessa ciência são componentes dos argumentos mobilizados na defesa das ideias. O planejamento de aulas visando a oportunização dessa prática, por meio de um simulador, e a abordagem investigativa do professor podem contribuir para que o uso das representações visuais surja como necessário no processo de investigação, daí ser considerado como uma prática epistêmica, e não como uma ilustração para atender uma formalização da Química.

Palavras-chave: Educação em Química; Ensino de Ciências por Investigação; Construção do conhecimento.

 

ABSTRACT

Considering the construction of scientific knowledge from the proposition, communication and evaluation of ideas, we intended, in the context of a classroom, to investigate whether the use of visual representations, considering it as an epistemic practice, can be made possible through a computational simulation. The didactic sequence was applied to a 3rd year High School class at a public school in Minas Gerais. The data were generated from written records produced by students during the sequence, because epistemic practices are intertextual. Data analysis was performed using Textual Discourse Analysis, revealing that computer simulation, through an investigative approach proposed by the teacher, allowed the use of visual representations, in addition to other epistemic practices, such as elaborating hypothesis, building data, concluding, explaining and generalizing. The dynamics of the simulator favored students' contact with different visual representations, which may have allowed its use. The opportunity of this epistemic practice is important in the Chemistry Education, since the visual representations used in this science are components of the arguments mobilized in the defense of ideas. The planning of classes aiming at the opportunity of this practice, through a simulator, and the investigative approach of the teacher can contribute to the use of visual representations to arise as necessary from the investigation process; hence it is considered as an epistemic practice, and not as an illustration complies with a formalization of Chemistry.

Keywords: Chemistry Education; Inquiry-Based in Science Teaching; Knowledge construction.

 

RESUMEN

Considerando la construcción del conocimiento científico a partir de la proposición, comunicación y evaluación de ideas, se buscó en el contexto de un aula, para investigar si el uso de representaciones visuales, considerarlo como una práctica epistémica, puede hacerse posible a través de una simulación por computadora. La secuencia didáctica se aplicó a una clase de secundaria de tercer año en una escuela pública en Minas Gerais. Los datos se generaron a partir de los registros escritos producidos por los estudiantes durante la secuencia, ya que las prácticas epistémicas también pueden son intertextuales. El análisis de datos se realizó mediante el análisis textual discursivo, que revela que la simulación por computadora, a través de un enfoque de investigación propuesto por profesor, permitió el uso de representaciones visuales, además de otras prácticas epistémicas, como elaborar hipótesis, construir datos, concluir, explicar y generalizar. La dinámica del simulador favoreció el contacto de los estudiantes con diferentes representaciones visuales, lo que puede haber permitido su uso. La oportunidad de esta práctica epistémica es importante en la Enseñanza de la Química, ya que las representaciones visuales utilizadas en esta ciencia son componentes de los argumentos movilizados en la defensa de las ideas. La planificación de clases destinadas a la oportunidad de esta práctica, a través de un simulador, y el enfoque de investigación del profesor pueden contribuir al uso de representaciones visuales que surgen como sea necesario del proceso de investigación, por lo tanto, se considera como una práctica epistémica y no como una ilustración para cumplir con una formalización de la Química.

Palabras clave: Educación en Química; Enseñanza de las Ciencias por Investigación; Construcción del conocimiento.

Introdução

            Compartilhando das ideias de Sasseron e Carvalho (2011), defendemos a concepção de Ensino de Ciências como um processo de “enculturação científica”, na qual o ensino é visto como um processo de inserção dos estudantes na cultura científica. A partir dessa perspectiva, propomos investigar se o uso de representações visuais, considerando-o como uma prática epistêmica, pode ser oportunizado por meio de uma simulação computacional.  Ribeiro e Greca (2003) discorrem que dentre as diferentes estratégias didáticas, as simulações computacionais têm tido destaque, pois propicia ao estudante “explorar fenômenos, processos e ideias abstratas, bem como o desenvolvimento da capacidade de representação em seus distintos níveis e auxilia na competência representativa” (p. 544), entendida como a capacidade de compreender e usar as representações visuais. No entanto, a simulação por si só não garante o uso dessas representações como uma prática epistêmica, pois depende, principalmente, da condução feita pelo professor.

A abordagem investigativa pode promover um ambiente em que os professores possam acessar práticas científicas, e assim possibilitar aos estudantes uma aproximação da cultura científica de modo gradativo. Dessa forma, as semelhanças da investigação científica com as bases do Ensino por Investigação, permitem o desenvolvimento de práticas epistêmicas no âmbito escolar (Sasseron; Duschl, 2016). Sendo assim, o uso das representações visuais pode ser oportunizado por meio de uma simulação computacional a partir de uma abordagem investigativa do professor? Quais outras práticas epistêmicas também podem ser oportunizadas?

Na literatura há diversos estudos sobre representações visuais, nomeadas de diferentes formas, sobre as quais discorreremos ao longo deste estudo. A partir de nossa revisão bibliográfica, não encontramos na literatura trabalhos que buscaram compreender a relação entre o uso de representações visuais aliada a simulação computacional em aulas de Química no Ensino Médio, considerando-o como uma prática epistêmica. Ao aprofundarmos nosso estudo sobre o uso de representações visuais como prática epistêmica, apoiamos nas ideias de Perini (2005) por considerá-las como componentes dos argumentos usados para a defesa de ideias da ciência, e Kelly e Chen (1999) por afirmarem que a elaboração de um argumento, baseado nas inscrições produzidas pelos estudantes, passa a ser mais importante do que o simples uso de uma fórmula. Entendemos que o conceito de representações visuais usado por Perini (2005) se estende para além de fórmulas mínimas e/ou elementares, fórmulas estruturais e equações químicas, envolvendo também os gráficos, micrografias etc. Kelly e Chen (1999) utilizam o termo inscrições que também é mais abrangente. Neste artigo, quando usamos o termo representações visuais estamos referindo às fórmulas mínimas e/ou elementares, fórmulas estruturais e equações químicas, numa perspectiva que vai além do conhecimento proposicional da disciplina de Química, mas numa tentativa de se aproximar dos processos científicos, conforme defendido por Kelly e Chen (1999).

Referencial Teórico

Uma sequência didática, baseada em uma abordagem investigativa, abrange atividades planejadas de forma a fazer com que os estudantes expressem seus conhecimentos prévios, e a partir deles, construam os novos. Propõe-se um problema a fim de que eles tenham a oportunidade de trazer ideias para solucioná-lo. O problema proposto deve ser do contexto social do estudante, como também ser instigante o bastante para que eles sintam vontade de resolvê-lo. Para que os estudantes testem suas hipóteses sobre a resolução do problema, são disponibilizadas alguns recursos, por exemplo, textos, experimentos, simulações, imagens etc (Carvalho, 2013). É interessante que esta etapa seja feita em grupo, pois o “estabelecimento de um espaço de interações discursivas autenticamente relacionadas à disciplina de ciências permite que os estudantes façam parte de investigações” (Sasseron; Duschl, 2016, p. 58). Após a resolução do problema, o professor propõe uma discussão entre ele e os estudantes, e entre estudantes e estudantes, a fim de que eles digam como chegaram à resolução do problema, como isso aconteceu etc. É neste momento de explicação, por parte dos estudantes, que eles procuram por um conceito para explicar o fenômeno estudado, e também é nesta etapa que os estudantes podem ampliar seu vocabulário científico. Além disso, o estudante pode sistematizar individualmente o que aprendeu, por meio de um desenho, uma produção textual, gráficos etc (Carvalho, 2013).

A investigação favorece diversas ações dos estudantes que colaboram para a construção do conhecimento científico. Quando essas “ações tipicamente executadas por membros de um grupo, baseados em propósitos e expectativas comuns, com valores culturais, ferramentas e significados compartilhados”, são definidas por Kelly (2008, p. 99, tradução nossa) como práticas sociais. Quando essas são para a justificação, avaliação e legitimação do conhecimento, elas são chamadas de práticas epistêmicas (Kelly, 2008). Kelly e Licona (2018) afirmam que as práticas epistêmicas são: i) contextuais, pois estão localizadas em uma determinada comunidade com normas culturais próprias; ii) intertextuais, pois podem ser comunicadas, não somente pela linguagem falada, mas por meio da escrita, dos símbolos etc, e iii) consequenciais, pois são determinadas em instâncias de poder, ou seja, que tipos de asserções serão usadas para legitimar o conhecimento. Dessa forma, as diferentes áreas do conhecimento podem ter práticas epistêmicas comuns, mas também próprias de cada área. Na Química, o uso de fórmulas mínimas, moleculares, estruturais e equações químicas são frequentemente utilizadas para a construção do conhecimento.

Essas fórmulas e equações químicas têm sido definidas de diferentes formas, por exemplo, nível simbólico (Johnstone, 1993), visualizações ou estrutural (Talanquer, 2011; 2018), representação estrutural química (Giordan; Silva-Neto; Aizawa, 2015), dentre outras. Neste trabalho, utilizaremos o termo representações visuais, baseando-se nas ideias de Gilbert e Justi (2016). Embora a simulação computacional no contexto do Ensino de Ciências, seja considerada por esses autores como representação visual, ela vai além, pois promove o contato dos estudantes com outras formas de visualizar e interagir com o conceito ou fenômeno a ser estudado, como, as fórmulas moleculares, estruturas e equações químicas etc. Além disso, Ribeiro e Greca (2002) afirmam que as simulações podem oferecer aos estudantes a interação com os níveis submicroscópico e simbólico.

Para Gilbert e Justi (2016), esse processo de criação das representações no Ensino de Ciências, tanto internamente quanto externamente, se realiza em três níveis: i) no nível macroscópico que está relacionado ao fenômeno percebido diretamente (Gilbert; Justi, 2016) e indiretamente, por meio de instrumentos (Talanquer, 2011), por exemplo, a solução de ácido clorídrico e o valor de pH obtido a partir de um pHmetro, respectivamente; ii) no nível submicroscópico que está relacionado a “uma representação daquelas entidades que se acredita estarem subjacentes às propriedades que estão sendo exibidas” (Gilbert; Justi, 2016, p. 121, tradução nossa), por exemplo, moléculas ou íons em solução, e iii) no nível simbólico que está relacionado às abstrações usadas para representar parcialmente o nível submicroscópico (Talanquer, 2011; Gilbert; Justi, 2016), podemos citar como exemplo, as equações químicas (Gilbert; Justi, 2016).

Em geral, nas aulas de Química, o nível simbólico tem sido enfatizado em relação aos demais. No entanto, as dificuldades em pensar abstratamente podem permanecer durante toda a vida escolar dos estudantes, e até mesmo, para aqueles que continuam os estudos em Química (Taskin; BERNHOLT, 2014). Um dos fatores associados a essa dificuldade dos estudantes, pode estar relacionada ao fato de que essas representações visuais são vistas como necessárias apenas para uma ilustração da Química (SILVA et al., 2021). Dessa forma, promover um ambiente em que eles possam participar de processos investigativos, pode ser interessante, pois favorece a autonomia de cada um. Com o auxílio e orientação do professor, eles participarão da produção de evidências, da comunicação das ideias e da compreensão de relações que a ciência tem com a sociedade (Kelly; Duschl, 2002). Isso não significa uma concepção de Ensino de Ciências para a formação de cientistas, mas uma aproximação da cultura escolar cotidiana à cultura científica, na qual os estudantes desenvolverão práticas epistêmicas no contexto escolar.

O ambiente proposto para que os estudantes se engajassem em processos investigativos foi incentivado por meio da mediação de uma simulação computacional. A simulação foi selecionada de modo que os estudantes teriam acesso a um laboratório virtual, elaborando e testando hipóteses, coletando dados e usando representações visuais para a construção do conceito científico abordado. Greca, Seoane e Arriassecq (2014) defendem que as simulações no Ensino de Ciências são ferramentas importantes para proporcionar aos estudantes a compreensão conceitual dos fenômenos. No entanto, esses autores ressaltam que algumas questões sobre o uso de simulações precisam ser discutidas no campo da educação científica, dentre as quais citamos a seguir

 

[as simulações] [...] provaram ser muito mais do que uma fantástica ferramenta de cálculo, mas uma nova forma de produção científica. [Dessa forma] [...], devemos incluir simulações no ensino de ciências, mas não, como parece acontecer, acriticamente e apenas como uma ferramenta. [...] Então, da mesma maneira que teorias e habilidades científicas associadas ao desenvolvimento científico forem propostas como elementos indispensáveis ​​para a formação geral dos estudantes, deveremos incluir simulações não apenas como uma ferramenta para motivar os alunos e facilitar seu aprendizado, mas com uma abordagem [que visa a aproximação às práticas científicas]” (Greca; Seoane; Arriassecq, 2014, p. 917; tradução nossa).

           

O uso da simulação no Ensino de Ciências, visando a aproximação às práticas científicas, só pode ocorrer mediante a condução do professor durante esse processo. Concordamos com McDonald e Kelly (2007) que a tecnologia é importante para os processos educacionais, mas é “o professor [que] precisa explicitar o processo de criação de significado, organizar e liderar a discussão em torno de atividades para apoiar a construção do conhecimento científico” (p. 175; tradução nossa).

Todas as ações que os estudantes desenvolvem, de diferentes modos, para a proposição, comunicação e avaliação do conhecimento, são práticas epistêmicas. Dessa forma, ressaltamos que diversas práticas epistêmicas podem ser desenvolvidas pelos estudantes a partir das simulações computacionais e a orientação direcionada do professor. Aproximando as ideias de Greca, Seoane e Arriassecq (2014), Silva (2015) e Perini (2005), podemos elencar algumas práticas epistêmicas que podem ser mais favorecidas a partir do uso das simulações computacionais, conforme indicado no Quadro 1.

 

Quadro 1: Relação das possibilidades que as simulações podem oferecer para o desenvolvimento de algumas práticas epistêmicas.

As simulações podem

oferecer possibilidades

dos estudantes …

Práticas

Epistêmicas

Quando o estudante atua …

 

Compreenderem os vários fenômenos e processos naturais por meio da construção e avaliação de diferentes hipóteses, obtendo feedback rápido, o que os envolve no processo de resolução de problemas.

Elaboração

de hipóteses

Propondo uma explicação relacionada ao problema colocado.

 

Planejamento

de investigação

Traçando estratégias para a investigação do problema a partir da hipótese elaborada.

 

Construção

de previsões

Prevendo resultados baseados na hipótese elaborada.

 

Construção

de dados

Coletando e registrando os dados para teste das hipóteses.

Manipularem variáveis, observarem resultados e analisarem tabelas, gráficos e equações para identificar e descrever os dados. No caso de fenômenos mais complexos, as simulações permitem que eles os simplifiquem por meio do isolamento e manipulação de uma variável de cada vez, o que ajuda a entender as relações causais.

Descrição do

sistema,

objeto ou fenômeno

Abordando um sistema, objeto ou fenômeno, em termos de características, dentre outros aspectos de seus constituintes.

Exemplificação

Apresentando um modelo teórico ilustrado pelos dados específicos.

 

Avaliação da

consistência dos dados

Ponderando a validade dos dados obtidos.

 

Uso de dados

para avaliar teoria

Apresentando dados para avaliar os enunciados teóricos.

 

Uso das representações visuais

Utilizando inscrições para representar ideias e compor os argumentos para a defesa dessas ideias.

Trabalhar com múltiplas representações, ao mesmo tempo e na mesma tela, permitindo a integração de várias formas de representação. Relacionadas a essa característica representacional, as simulações permitem a “observação” de processos em nível submicroscópico, como na Química, permitindo o desenvolvimento do pensamento em nível molecular e, ao mesmo tempo, o estabelecimento de relações com observações macroscópicas.

Argumentação

Usando evidências para suportar uma conclusão que está em xeque, provisória. Ou ainda quando o estudante utiliza recursos linguísticos diversos (como por exemplo, as representações visuais) para persuadir o leitor.

 

Explicação

Estabelecendo relação causal entre fenômeno observado e conceitos teóricos e/ou condições de execução da simulação para dar sentido a esse fenômeno.

 

Conclusão

Finalizando o problema proposto.

 

Generalização

Elaborando descrições ou explicações que são independentes de um contexto específico.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fonte: Adaptado de Greca, Seoane e Arriassecq (2014, p. 911); Silva (2015, p. 62) e Perini (2005).

 

As ideias apontadas no Quadro 1 podem ser aplicadas quando as simulações computacionais desempenham a função de: i) um laboratório virtual que significa simular experimentos executados em laboratórios escolares reais e, ii) simulação de um fenômeno que significa modelar um sistema ou processo (Greca; Seoane; Arriassecq, 2014).

Para o desenvolvimento das práticas epistêmicas pelos estudantes, há necessidade de interação. Em um sentido bem amplo, interação entre os estudantes, entre professor e estudantes, e interatividade com todos os recursos e materiais fornecidos, bem como, os conhecimentos prévios que os estudantes trazem para a sala de aula (Kelly; Licona, 2018). Dessa forma, não pretendemos listar as práticas epistêmicas que possam ser oportunizadas, mas estabelecer relações entre elas, principalmente, o uso das representações visuais e a simulação computacional, buscando aproximar os estudantes das práticas científicas.

Percurso metodológico

Este trabalho faz parte de uma investigação mais ampla sobre as representações visuais no Ensino de Química. O projeto foi submetido à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) e aprovado com o Certificado de Apresentação e Apreciação Ética (CAAE) sob número 84000418.5.0000.5149. Neste artigo foi mantido sigilo total dos participantes, professor e escola, conforme estabelecido na aprovação do projeto pelo CONEP.

Na pesquisa relatada neste artigo, buscamos investigar se o uso de representações visuais, considerando-o como uma prática epistêmica, pode ser oportunizado por meio de uma simulação computacional, o que nos leva a uma pesquisa de natureza interventiva. Essas pesquisas têm sido muito utilizadas no campo da Educação em Ciências, podendo ser caracterizadas pela articulação da investigação e produção de conhecimento a partir de situações de ensino. Dentro dessa classificação, este trabalho se enquadra na modalidade denominada pesquisas de aplicação, que são “investigações […] definidas integralmente pelos pesquisadores […]” (Teixeira; Megid-Neto, 2017, p. 1068).

O interesse pelas práticas epistêmicas, mais especificamente, o uso das representações visuais, relaciona-se aos processos de ensino e aprendizagem a partir dos registros escritos produzidos pelos estudantes ao longo de uma sequência didática, aplicada para uma turma de terceiro ano do Ensino Médio de uma escola estadual.

A escola da região metropolitana de Belo Horizonte/MG, foi escolhida por dois motivos: i) possuir um laboratório de informática e ii) pelo fato de a pesquisadora ter participado de atividades do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), juntamente com uma das professoras. A professora é licenciada em Química e mestre em Engenharia, possuindo 20 anos de experiência como docente. Em geral, os estudantes da escola são de classe média baixa e oriundos de outros bairros da região. A turma foi escolhida pela sequência do conteúdo programático planejado e pela disponibilidade da pesquisadora para participar das aulas.

A sequência didática (Quadro 2) foi planejada a partir das ideias de Carvalho (2013), por discutir as etapas de uma abordagem investigativa e elaborada para estudantes do terceiro ano do Ensino Médio. O conteúdo abordado foi a definição de Arrhenius de ácidos e bases, bem como o conceito de força dessas substâncias (MINAS GERAIS, 2007), utilizando como recurso uma simulação computacional do projeto PhEt (Simulações Interativas da Universidade de Colorado Boulder). As simulações PhEt são gratuitas e estão voltadas para as disciplinas de matemática e ciências, podendo ser usadas na versão online e offline.

 

Quadro 2: Descrição das atividades realizadas pelos estudantes em cada aula de 50 minutos de duração.

Aulas

Etapas

Atividades

1a e 2a

Conhecendo as ideias dos estudantes

Os estudantes, individualmente, realizaram uma atividade inicial, contendo quatro questões. A primeira questão apresentava o título da reportagem “Artista brasileiro cria quadrinhos ácidos para fazer reflexões sobre a sociedade”, visto que o objetivo era conhecer o que o termo “ácido” pode significar em contextos diferentes do científico. As questões que se seguiram relacionavam às definições de ácido e base na Química, por exemplo, “Você conhece outros materiais que temos e usamos no cotidiano que são considerados básicos? E quais outros materiais que você conhece que são ácidos? Você sabe explicar o porquê desses materiais serem considerados ácidos ou básicos?”.

Propondo um

Problema

Os estudantes, em duplas, leram a reportagem “BreakingBad II – Eliminação de corpos no banho de ácido”, escrita por Jonathan Hare para a coluna “Química na tela” do site “Education in Chemistry”, para a proposição do problema. O problema proposto, “O ácido fluorídrico (HF) é um ácido considerado fraco, apesar da sua capacidade de corrosão. Se Jesse usasse uma solução de ácido fluorídrico mais concentrada, aumentaria sua força?”, buscava instigar os estudantes sobre a força de ácidos e sua relação com a concentração.

Levantando as

Hipóteses

Mantendo as mesmas duplas para a leitura da reportagem, os estudantes levantaram hipóteses para o problema.

3a e 4a

Testando as hipóteses

A turma foi dividida em dois grupos, sendo que um grupo ficou em sala junto com a professora fazendo outra atividade, e o outro foi para o laboratório de informática com a pesquisadora. Em seguida, os grupos foram trocados. A pesquisadora entregou um roteiro e acompanhou a exploração da simulação pelas duplas de estudantes. A simulação computacional PhET Soluções Ácido e Base foi escolhida por permitir: i) a discussão da definição de Arrhenius, ii) conhecer a concentração e pH das soluções ácidas e básicas, iii) diferenciar ácidos e bases fortes e fracas, iv) simular o uso de instrumentos de laboratório (medidor de pH, condutividade, papel indicador) e v) apresentar diversas representações visuais.

5a

Sistematizando

coletivamente o conhecimento

A aula foi iniciada por meio de questões como: i) Qual é a solução para o problema? e ii) É possível que Jesse aumentasse a força do ácido ou da base por meio da concentração? Ao ouvir as repostas dos estudantes, outras questões eram colocadas: i) Como vocês chegaram a essa conclusão? e ii) Quais as evidências encontradas na simulação que comprovam suas conclusões? Em seguida, com a simulação projetada, as discussões realizadas até a quarta aula foram sistematizadas pela simulação, enfatizando: i) a definição de ácidos e bases segundo Arrhenius, ii) força de ácidos e bases, iii) ionização e dissociação de ácidos e bases.

6a

Sistematizando individualmente o conhecimento

Para finalizar a sequência, os estudantes, individualmente, leram uma reportagem sobre a erupção do vulcão Kilauea no Hawaí, que acarretou danos ambientais e ofereceu riscos à saúde da população local. Em seguida, foi solicitado que os estudantes produzissem um texto explicando cientificamente o trecho contido na reportagem “[...] essa perigosa combinação pode formar nuvens que chegam a 1.093 graus Celsius e que reagem com a água do mar”. Foi recomendado também o uso de representações visuais no texto produzido.

Fonte: Elaborado pelos autores (2018).

 

Ao olhar para as práticas epistêmicas, podemos compreender a relação da natureza do conhecimento químico com questões de ordem didática e pedagógica. “As práticas epistêmicas das comunidades disciplinares podem esclarecer maneiras pelas quais o conhecimento é construído e abrir múltiplos caminhos para entender os fenômenos […]” (Kelly, 2018, p. 245; tradução nossa). Com base na citação de Kelly (2018), esse olhar deve ser feito por meio das ações cotidianas situadas, que definem práticas disciplinares e indicam as maneiras pelas quais o conhecimento disciplinar é construído (Kelly; Chen; Prothero, 2000).

Para identificar as práticas epistêmicas, foram coletados dados a partir dos registros escritos dos estudantes, divididos em duplas ou individualmente, e do diário de campo da pesquisadora. Esses instrumentos de produção/coleta de dados foram escolhidos por três motivos, os quais estão citados a seguir. Primeiro, Kelly, Chen e Prothero (2000) afirmam que a construção, o uso e a representação do conhecimento são obtidos a partir de processos discursivos, que podem ser orais e escritos. Nesta pesquisa não desconsideramos o discurso oral, porém priorizamos a parte escrita. Isso se deve ao fato de que há poucos estudos empíricos sobre práticas epistêmicas que analisam o discurso escrito dos estudantes, o que sinalamos como nosso segundo motivo. E por último, nosso terceiro motivo, consiste na utilização das representações visuais, como prática epistêmica; principalmente na Química, ela pode ser capturada pelo discurso escrito, considerando a perspectiva adotada por Perini (2005), de que as representações visuais não servem apenas para ilustrar, mas são componentes dos argumentos usados para a construção do conhecimento.

Todos os dados foram analisados por meio da Análise Textual Discursiva (ATD), que consiste em um método qualitativo de análise de textos, que “pode ser compreendido como um processo auto-organizado de construção de novos significados em relação a determinados objetos de estudo” (Moraes; Galiazzi, 2011, p. 45). O corpus de análise corresponde aos registros escritos pelos estudantes em duplas durante a simulação e, individualmente, durante a produção de um texto na última aula da sequência investigada (Quadro 2).

O processo de análise foi iniciado com a codificação do material analisado, facilitando a localização dos fragmentos utilizados para fundamentar a análise. Em seguida, os textos foram desconstruídos por meio da “unitarização do corpus”, que consiste na retirada das unidades de sentido (Ramos; Ribeiro; Galiazzi, 2015), que indicam os constituintes do fenômeno estudado. Nesta pesquisa, elas se referem às ações que poderiam indicar proposição, comunicação, avaliação e legitimação do conhecimento.

Após a identificação das unidades de sentido, iniciamos o processo de categorização, as quais foram estabelecidas previamente por meio da tese de Silva (2015 p. 62). A autora identificou algumas práticas epistêmicas mobilizadas pelos estudantes em uma aula experimental, tais como: citar, elaborar hipóteses, construir dados, considerar diferentes fontes de dados, concluir, narrar, argumentar, opinar, fazer previsão, explicar, generalizar e usar linguagem representacional. Dessa forma, nossas categorias correspondem às práticas epistêmicas identificadas por Silva (2015; p. 62).

Silva (2015) nomeia uma prática epistêmica como “usar linguagem representacional”. Optamos pelo termo “usar representações visuais” (Gilbert; Justi, 2016) para não tratarmos os termos “linguagem representacional” e “representações visuais” como equivalentes. Para a inserção das unidades de sentido nessa categoria, as representações deveriam ser percebidas como necessárias para compor os argumentos usados para a defesa de ideias. Portanto, quando o texto escrito pelo estudante era perfeitamente compreensível sem a representação visual, o seu uso não fora considerado como prática epistêmica.

Como essas categorias foram estabelecidas previamente, buscou-se construir as atividades para a sequência didática, fomentando oportunizar as práticas epistêmicas indicadas por Silva (2015). Ramos, Ribeiro e Galiazzi (2015), considerando categorias estabelecidas previamente, afirmam que o referencial teórico deve ser muito bem definido, ou seja, quem analisa com categorias previamente estabelecidas deve estar ciente do que pode encontrar nos registros escritos ou, por exemplo, construir as atividades com o objetivo de aparecer as categorias que deseja. Depois das categorias finais estabelecidas, que são as práticas epistêmicas identificadas, iniciou-se o processo de construção dos metatextos. Eles constituem a interpretação e a explicação do pesquisador para o corpus analisado, considerando a contribuição de referenciais teóricos pertinentes à análise. Os metatextos foram construídos trazendo também fragmentos na íntegra do que os estudantes escreveram para sustentar a identificação da prática epistêmica.

Discussão dos resultados

A atividade inicial foi aplicada a fim de identificar os conhecimentos prévios dos estudantes a respeito de ácidos e bases, visto que a professora já tinha realizado algumas discussões sobre eles no ano anterior. Segundo Carvalho (2013), baseado nesse conhecimento anterior que o professor ao proporcionar um ambiente de aprendizagem, auxiliará a construção de novos conhecimentos. Além disso, essas questões iniciais podem contribuir para instigar os estudantes a respeito do problema a ser levantado nas aulas posteriores.

Normalmente, a ideia dos estudantes sobre ácidos e bases está relacionada a algo ruim e destruidor (Oliveira, 2008). Dessa forma, em uma das questões aplicadas na atividade inicial, buscamos apresentar uma aplicação importante das bases, por meio da produção de sabão. Nessa questão, caberia o uso das representações visuais para indicar o grupamento funcional como uma das formas de caracterizar a base. Isso porque a dissociação da base em água produz íons positivo e negativo, Na+ e -OH, sendo esse último íon, de acordo com Arrhenius, necessário para que a base reaja com o ácido, conforme a equação a seguir: H+(aq) + HO-(aq) → H2O(l). Muitos estudantes não responderam essa questão, e poucos que registraram sua resposta, citando apenas a definição de Arrhenius para o ácido ou a base, não explicaram porque o grupamento -OH caracterizaria o hidróxido de sódio como uma base.

Ao explorar, com os estudantes, a questão anterior e as demais relacionadas aos outros contextos para o uso dos termos ácido e básico, a professora verificou se o problema a ser levantado seria de interesse dos estudantes e os envolveria na procura de soluções, permitindo-os expor seus conhecimentos anteriormente adquiridos (Carvalho, 2013). Ainda citando essa autora, o problema precisa ser planejado para estar contido na cultura dos estudantes, isto é, deve motivá-los a procurarem soluções. Essa busca deve dar oportunidade para que os estudantes usem dos seus conhecimentos anteriores (espontâneos ou já estruturados) sobre o assunto. Além disso, o problema não pode ser tão simples de ser resolvido, pois os estudantes poderiam usar a internet e encontrar facilmente a resposta. Então, para isso, os professores podem propor um problema no qual os estudantes se engajem na sua resolução, envolvendo-se na coleta de dados, proposição de soluções, compartilhamento e análise de resultados etc. (Kelly; Cunningham; Ricketts, 2016). Os estudantes foram agrupados em duplas escolhidas por eles mesmos para leitura e discussão da reportagem (Quadro 2, p. 6).

No problema proposto havia três ideias centrais a serem discutidas: i) conceito de ácido, ii) força dos ácidos e iii) corrosão; consequentemente, na simulação esses pontos também seriam discutidos sobre bases. É comum os estudantes relacionarem as substâncias ácidas àquelas que corroem (Oliveira, 2008). Isso pode ser evidenciado pela hipótese elaborada conforme transcrição a seguir, codificada como D8 (estudantes da dupla 8). “Sim, porque conteria mais ácido assim aumentaria sua corrosão”. Os estudantes acreditaram que a força do ácido aumentaria se a solução fosse mais concentrada e ainda relacionaram a força com a capacidade de corrosão. Mesmo para os estudantes que a hipótese elaborada foi de negação, a relação entre corrosão e força também estava presente: “Não, pois de acordo com os experimentos quanto maior a dissolução maior a liberação iônica. Logo acreditamos, quanto maior a dissolução, maior a capacidade de corrosão” (D6). Percebemos que os estudantes trouxeram a definição de Arrhenius para explicar sua hipótese, pois ao usarem “liberação iônica” podem ter associado à ideia de formação de íons em solução aquosa. No entanto, a relação com a capacidade de corrosão ainda foi feita; apesar desse tema já ter sido discutido com os estudantes, as concepções ainda permaneceram. Mesmo que a maioria das hipóteses elaboradas pelos estudantes indicasse “não” para a problematização inicial (que é a reposta cientificamente adequada), a justificativa nos mostra que os estudantes possuem concepções alternativas sobre o tema. Eles possuem um misto de ideias científicas com cotidianas que acaba tornando a resposta cientificamente incoerente. Durante as atividades, a professora promovia discussões para que os estudantes construíssem uma nova ideia próxima a científica sobre o tema.

Na página principal da simulação há duas abas: a primeira, “Introdução”, inclui quatro soluções, ácido forte, ácido fraco, base forte e base fraca e água, sendo representada por algumas moléculas, medidas de pH e condutividade. Na segunda, intitulada “Minha Solução”, o estudante pode alterar a concentração inicial da solução e a força do ácido ou da base. Ele também pode medir o pH em todas as situações escolhidas. Em ambas as abas foram apresentadas as equações de dissolução e ionização das substâncias e gráficos de concentração. No entanto, a professora enfatizou, inicialmente, a definição de Arrhenius para ácidos e bases e suas respectivas forças. Para a exploração da simulação, foi dado aos estudantes um roteiro, que fomentasse o manuseio dos comandos de tal forma que favorecesse a construção dos dados para comprovar, ou não, as hipóteses levantadas. Inicialmente, os estudantes construíram dados relacionados à força de ácidos e bases, conforme indicado pelas transcrições a seguir. “Já no ácido forte já é formado mais partículas de A- e H3O+. Em base forte o MOH se quebra formando mais partículas de M+ e OH-” (D12) e “No gráfico é possível notar a ausência de MOH, ou seja(sic) todas foram dissolvidas” (D00). Esses dados registrados se relacionam com ácidos e bases fortes que reagem liberando íons na água. Na tela da simulação estão representadas as equações químicas gerais para ácidos e bases fortes, bem como para ácidos e bases fracas. A dupla de estudantes, codificada como D6, registrou o dado sobre a força de uma base fraca, a partir da observação das quantidades expressas da base e da água na tela de simulação, conforme indicado a seguir: “Na base fraca apresenta muita água e poucos íons, também apresenta pouca dissociação ao reagir com a água”. Neste caso, os estudantes associaram a força da base fraca às quantidades das espécies, percebendo que a quantidade de água será maior, quando comparada à base forte, por não participarem da reação de ionização com a base, pois apenas algumas moléculas da base ionizam.

A simulação da condutividade elétrica das soluções de ácidos e bases fortes e fracos, também contribuiu para a construção dos dados e foi muito explorada pelos estudantes. Eles registraram dados que indicavam que a luz ficava mais forte quando a solução era de um ácido ou base forte, pois essas substâncias liberavam mais íons em solução, conforme indicado a seguir: “No ácido fraco a luz acende mais fraca. Na base forte a luz acendeu mais forte. Na base fraca a luz tem pouca intensidade” (D16). A medida de pH também foi bem explorada pelos estudantes na simulação, indicando que o pH não era medida de força de um ácido, mas da concentração desse ácido. Eles observaram, pela simulação, que variando a concentração do ácido, variava-se o pH, conforme transcrito a seguir “pH mede a concentração” (D07). As múltiplas representações visuais indicadas na simulação contribuíram para que os estudantes registrassem dados importantes para a resolução do problema. Isso porque mobilizaram os conceitos de dissociação e ionização dessas substâncias em água, relacionando as representações visuais aos conceitos associados.

Os estudantes concluíram que o aumento de concentração de ácido fluorídrico não implicou em aumento da força desse ácido, conforme as transcrições a seguir. “Não, pois o problema é o ácido ser fraco. Quanto maior a concentração de um ácido fraco maior a espécie do ácido [os estudantes se referem a espécie não ionizada do ácido], e o que torna o ácido forte é a ionização [a quantidade de espécies que se ionizam]” (D10), “Não, pois o aumento da concentração não irá aumentar a força do ácido, pois o reagente aumentará junto com a solução [a quantidade de todas as espécies aumentarão na mesma proporção, o que não significa aumento somente dos íons gerados], então o ácido permanecerá com a mesma intensidade” (D09) e “A concentração do ácido não influencia na sua força, pois há um equilíbrio da solução. Exemplo: um ácido fraco continuará sendo fraco. Mesmo se a concentração dele aumentar, a quantidade de água será a mesma [a quantidade de solvente comparada às outras espécies praticamente não se altera] e apenas as substâncias contidas no recipiente [ácido fluorídrico e íons hidrônio e fluoreto] é que aumentarão constantemente” (D01). Os estudantes finalizaram o problema (Silva, 2015), entendendo que a força está relacionada à capacidade de ionização do ácido, pois se o ácido fluorídrico é fraco, a sua ionização ocorre em menor extensão. Ao finalizarem o problema, os estudantes não usaram representações visuais, mas as simulações possibilitaram o contato “com múltiplas representações, ao mesmo tempo, e na mesma tela, permitindo a integração de várias formas de representação usadas na ciência” (Greca; Seoane; Arriassecq, 2014; p. 911; tradução nossa), por exemplo, as equações químicas e os gráficos.

Após a sistematização coletiva realizada pela professora, os estudantes, individualmente, tiveram que produzir um texto científico, usando múltiplas representações visuais, a partir de uma reportagem sobre a erupção do vulcão Kilauea (Quadro 1, 6a aula, p. 6). Nos textos produzidos os estudantes narraram o acontecimento descrito na reportagem, conforme indicado pela transcrição do estudante codificado como E8. “A reportagem trata-se de uma erupção vulcânica ocorrente no Havaí, que produz uma fumaça tóxica representando perigo a vida humana.” Percebemos que, além da narrativa o estudante prevê o dano: “perigo para a vida humana”. Alguns estudantes, além de relatar o acontecimento em si, reforçaram a data do acontecimento e já sinalizaram que o ácido é responsável pelos danos causados: “O vulcão do Havaí que entrou em erupção no mês de maio de (2018), está causando sérios problemas com altos fluxos de lava. [...] fluxos estão formando nuvens de gases ácidos chamado de laze que tem como principal composto o ácido clorídrico [...]” (E29). A prática epistêmica de narrar, é muito comum na escrita científica. É por meio dela que o outro é capaz de entender e conhecer o que se passou, por meio das ações ou acontecimentos passados relatados em sequência temporal lógica (Silva, 2015). Os professores precisam trabalhar essa prática, pois desenvolve, nos estudantes, a capacidade de transmitir alguma informação com precisão e de forma compreensiva.

Após os estudantes narrarem sobre a erupção do vulcão, eles explicaram a reação do laze (mistura de gases de ácido clorídrico, vapor e partículas vulcânicas) com a água do mar e o que era formado após essa reação, conforme transcrito a seguir:Já a reação, ocorre, pois a nuvem tem ácido clorídrico, que ao reagir com a água do mar forma H3O+” (E8), “A nuvem se encontra com a água do mar, e as partículas do HCl (ácido clorídrico) se separam ficando assim: H+ e Cl-. A partícula H+ se junta a molécula da água (H2O) e forma a molécula H3O+ que caracteriza um ácido” (E2) e “O ácido clorídrico (HCl) é considerado um ácido forte, é um dos ácidos que se ionizam completamente em uma solução aquosa” (E36). Oliveira (2008) enfatizou que os estudantes ao serem solicitados a conceituar ácidos e bases, geralmente mencionam trechos da definição de Arrhenius sem entender de fato o conceito, “[...] pensam no conceito de ácido como se fossem palavras: conter hidrogênio” (Oliveira, 2008, p. 42). Percebemos que os estudantes, neste momento, usaram representações visuais para caracterizar um ácido, o que não foi observado na atividade inicial. Isso pode evidenciar a importância da simulação para que os estudantes desenvolvam essa prática ao permitir o contato com as múltiplas representações (Greca; Seoane; Arriassecq, 2014). Duas práticas epistêmicas foram associadas, pois os estudantes relacionaram o fenômeno observado aos conceitos (Silva, 2015) e as representações visuais, no caso, a fórmula molecular do íon hidrônio, formado a partir da reação do ácido clorídrico com a água, e este íon caracterizaria o ácido.

Os estudantes também usaram representações visuais semelhantes às apresentadas na simulação, conforme indicado nas figuras a seguir.

 

Figura 1: Representações visuais usadas pelo estudante codificado como E07 para indicar a ionização do ácido forte.


Fonte: Fotografia dos autores (2018).

 

            O estudante compreendeu que, como o ácido presente no laze é um ácido forte, em água, ele ionizaria formando íons. Ele trouxe para as representações exploradas na simulação, por exemplo, a representação dos átomos por esferas. Na representação do estudante, ele enfatizou apenas a presença dos íons na solução, indicando que a ionização do ácido clorídrico é completa, por isso, ele é considerado um ácido forte. No entanto, o estudante se equivocou ao colocar uma quantidade maior do íon representada pela esfera colorida, e o outro representado pelas esferas vazias. Além disso, o estudante omitiu as cargas dos íons.

Houve, porém, um estudante que utilizou as representações visuais a partir de um modelo semelhante ao apresentado na simulação, mas com características próprias (Figura 2).

 

Figura 2: Representações visuais usadas pelo estudante codificado como E14 para indicar a ionização do ácido clorídrico na água do mar.

Fonte: Fotografia dos autores (2018).

 

            Para esse estudante, a representação em forma de esfera não fazia alusão ao modelo atômico de Dalton, cada esfera representando um átomo, mas as formas usadas para a representação, esfera ou não, indicava a espécie, seja o ácido clorídrico, os íons hidrônio e cloreto. A equação química foi escrita corretamente, mas o estudante ainda achou necessário utilizar de outras representações para suportar seus argumentos. Percebemos que a representação que indica a molécula de ácido clorídrico, só aparece quando da sua liberação pelo vulcão. No mar não foram representadas as moléculas de HCl, pois em contato com a água ocorre a ionização, levando a formação dos íons. Assim como o estudante anterior, ele erra ao colocar uma quantidade maior do íon hidrônio – representado pela esfera azul – do que o íon cloreto, representado pelas esferas marrons com dois traços.

As múltiplas representações visuais utilizadas pelos estudantes serviram como componentes dos argumentos utilizados para defenderem suas ideias (Perini, 2005). Além disso, permitiram registrar dados importantes que contribuíram para a finalização do problema relacionado ao ácido fluorídrico e a construção de explicações sobre o encontro do laze com a água do mar. A exploração da simulação associada à aproximação às práticas científicas (Greca; Seoane; Arriassecq, 2014) promoveu o uso da representação visual como uma prática epistêmica (Silva, 2015), bem como, diversas outras práticas.

Considerações finais

Reforçamos que, aprender ciência envolve mais do que transmitir saberes aceitos pela comunidade científica, mas é, também, envolver os estudantes em formas de pensar e explicar o mundo, aproximando-os das práticas dessa comunidade. Nesse sentido, o uso das representações visuais não serve apenas para representar ou comunicar o conhecimento químico, mas é uma prática necessária para a própria construção desse conhecimento. Dessa forma, ficou evidenciado nesta pesquisa, que o uso das representações visuais pode ser importante não apenas no momento da comunicação, mas na produção e avaliação desse conhecimento. No entanto, o desenvolvimento dessa prática não vai ocorrer a partir da transmissão das representações que devam ser usadas, mas por meio de processos que envolvam argumentação e a produção de entendimentos em sala de aula.  

As simulações computacionais proporcionam a apresentação e múltiplas mídias (áudio, vídeo) e representações visuais. No entanto, para que os estudantes usem essas representações, entendendo esse uso como uma prática epistêmica, as simulações devem ser percebidas não como uma ferramenta para contribuir com a destreza dos estudantes frente ao computador.

O uso da simulação deve ser problematizado, contribuindo para que ela seja uma ferramenta de investigação, aproximando os estudantes das práticas científicas. Nesse sentido, a simulação não só oportuniza o uso de representações visuais, considerando-o como uma prática epistêmica, mas permite que diversas práticas epistêmicas sejam oportunizadas. Além de oportunizar diversas práticas epistêmicas, algumas delas fomentam outras, por exemplo, a oportunização do uso de representações visuais fomenta a construção de dados, narrar fomenta explicar, e explicar fomenta o uso de representações visuais.

A partir da simulação computacional, o uso das representações visuais surgiu da necessidade de os estudantes construírem dados para a resolução do problema e para fundamentar as explicações produzidas. Isso ocorre quando, por exemplo, eles trazem uma fórmula molecular de uma espécie para caracterizar um ácido, bem como essa espécie se forma. O uso da fórmula molecular naquele contexto é essencial para a alegação de conhecimento produzido; a retirada dessa fórmula e como ela pôde ser formada implicaria na falta de sentido dessa alegação. Essa prática epistêmica desenvolvida pelos estudantes rompe com a ideia de que as representações visuais servem apenas para ilustrar o que está escrito, ou para atender uma formalização da Química.

 

Referências

Carvalho, Ana Maria Pessoa de. O ensino de ciências e a proposição de sequências de ensino investigativas. In: Carvalho, Ana Maria Pessoa de (Org.). Ensino de Ciências por Investigação: condições para implementação em sala de aula. São Paulo: Cengage Learning, 2013. p.1-20.

 

Gilbert, John K.; Justi, Rosaria. Modelling-based Teaching in Science Education. 1 ed. Dordrecht: Springer, 2016.

 

Giordan, Marcelo; Silva-Neto, Arcelino Bezerra; Aizawa, Alexandre. Relações entre Gestos e Operações Epistêmicas Mediadas pela Representação Estrutural em Aulas de Química e suas Implicações para a Produção de Significados. Química Nova na Escola, v. 37, p. 82-94, jul. 2015.

 

GRECA, Ileana M.; SEOANE, Eugenia; ARRIASSECQ, Irene. Epistemological issues concerning computer simulations in science and their implications for science education. Science & Education, v. 23, n. 4, p. 897-921, 2014.

 

Johnstone, Alex H. The development of chemistry teaching: A changing response to changing demand. Journal of Chemical Education, n. 70, n. 9, p. 701-705, sep. 1993.

 

Kelly, Gregory J.; Chen, Catherine. The sound of music: Constructing science as sociocultural practices through oral and written discourse. Journal of Research in Science Teaching, v. 36, p. 883-915, oct. 1999.

 

Kelly, Gregory J.; Chen, Catherine; Prothero, William. The epistemological framing of a discipline: Writing science in university oceanography. Journal of Research in Science Teaching, v. 37, p. 691-718, aug. 2000.

 

Kelly, Gregory J.; Cunningham, Christine M.; Ricketts, Amy. Emergence of an engineering identity in elementary students. In: American Education Research Association (AERA) Annual Meeting, 2016, Washington D.C., USA, Anais … AERA, 2016. p. 1-29.

 

Kelly, Gregory J.; Duschl, Richard A. Toward a research agenda for epistemological studies in science of education. In: NARST Annual Meeting, 2002, New Orleans, LA, USA, Anais ... NARST, 2002. p. 1-51p.

 

Kelly, Gregory J. Inquiry, Activity, and Epistemic Practice. In: Duschl, Richard A.; Grand, Richard E. (Org.). Teaching Scientific Inquiry: recommendations for Research and Implementation. Rotterdam: Sense Publishers, 2008. p. 99-117.

 

KELLY, Gregory J. Developing Epistemic Aims and Supports for Engaging Students in Scientific Practices. Science & Education, v. 27, p. 245-246, 2018.

 

Kelly, Gregory J.; Licona, Peter. Epistemic Practices and Science Education. In: Matthews, M. (Org.). History, philosophy and science teaching: new research perspectives. Dordrecht: Springer, 2018. p. 159-165.

 

MINAS GERAIS. Secretaria Estadual de Educação de Minas Gerais. Centro de Referência Virtual do Professor. Conteúdo Básico Comum: Química. Belo Horizonte, MG, 2007.

 

Moraes, Roque; Galiazzi, Maria do Carmo. Análise Textual Discursiva. 1 ed. Ijuí: Editora Unijuí, 2011.

 

Oliveira, Aline Machado de. Concepções Alternativas de estudantes do Ensino Médio sobre ácidos e bases: um estudo de caso. Dissertação (Mestrado em Educação em Ciências) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 63p. 2008.

 

Perini, Laura. The truth in pictures. Philosophy of Science, v. 72, n. 1, p. 262-285, jan. 2005.

 

Ramos, Günzel; Ribeiro, Marcus Eduardo Maciel; Galiazzi, Maria do Carmo. Análise Textual Discursiva em processo: investigando a percepção de professores e licenciandos de Química sobre aprendizagem. Campo Abierto, v. 34, n. 2, p. 125-140, dez. 2015.

 

Ribeiro, Angela A.; Greca, Ileana M. Simulações computacionais e ferramentas de modelização em educação química: uma revisão de literatura publicada. Química Nova, v. 26, n. 4, p. 542-549, 2003.

 

Sasseron, Lúcia Helena; Carvalho, Ana Maria Pessoa. Alfabetização científica: uma revisão bibliográfica. Investigações em Ensino de Ciências, v. 16, n. 1, p. 59-77, 2011.

 

Sasseron, Lúcia Helena; Duschl, Richard A. Ensino de Ciências e as Práticas Epistêmicas: o papel do professor e o engajamento dos estudantes. Investigações em Ensino de Ciências, v. 21, n. 2, p. 52-67, 2016.

 

Silva, Maíra Batistoni. Construção de inscrições e seu uso no processo argumentativo em uma atividade investigativa de biologia. Tese (Doutorado – Programa de Pós-Graduação em Educação. Área de concentração: Ensino de Ciências e Matemática) – Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, 253p. 2015.

 

SILVA, Fernando César et al. Relação entre as dificuldades e a percepção que os estudantes do ensino médio possuem sobre a função das representações visuais no ensino de Química. Ciência & Educação (Bauru), v. 27, n. u, e21061, 2021.

 

Talanquer, Vicente. Macro, Submicro, and Symbolic: The many faces of the chemistry “triplet”. International Journal of Science Education, v. 33, n. 2, p. 179-195, 2011.

 

Talanquer, Vicente. Chemical rationales: another triplet for chemical thinking. International Journal of Science Education, n. 40, n. 15, p. 1874-1890, 2018.

 

Taskin, Vahide; Bernholt, Sascha. Students' Understanding of Chemical Formulae: A review of empirical research. International Journal of Science Education, v. 36, n. 1, p. 157-185, 2014.

 

Teixeira, Paulo Marcelo Marini; Megid-Neto, Jorge. Uma proposta de tipologia para pesquisas de natureza interventiva. Ciência & Educação, v. 23, n. 4, p. 1055-1076, 2017.

 

This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International (CC BY-NC 4.0)