Concepções do ensino da Educação Física na Educação Infantil a partir do olhar de estagiários
Conceptions of the Physical Education teaching in Early Childhood Education on interns’ view
Pedro de Oliveira Milagres
Mestrando da Universidade Federal de Viçosa. Viçosa, Minas Gerais, Brasil.
pedromilagres.ef@outlook.com - orcid.org/0000-0002-2178-5279
Natália Franciele Lessa
Licenciada pela Universidade Federal de Viçosa. Viçosa, Minas Gerais, Brasil.
natalia.lessa@ufv.br - orcid.org/0000-0003-1871-4290
Soraya Dayanna Guimarães Santos
Docente da Universidade Federal de Viçosa. Viçosa, Minas Gerais, Brasil.
soraya.dayanna@ufv.br - orcid.org/0000-0003-2623-4430
Recebido em 11 de maio de 2020
Aprovado em 24 de setembro de 2020
Publicado em 30 de dezembro de 2021
RESUMO
O artigo teve como objetivo discutir a concepção de ensino da Educação Física na Educação Infantil a partir do olhar de estagiários da Licenciatura. Participaram dessa pesquisa quatro estagiários matriculados na disciplina de Estágio Supervisionado do curso de Licenciatura Educação Física de uma Universidade da zona da mata mineira. O instrumento metodológico para a produção dos dados foi a entrevista semiestruturada, e a técnica para o trato dos dados foi a Análise de Conteúdo. Identificou-se que, dentre os entrevistados, dois conceberam o papel do ensino do componente curricular sob a perspectiva biologizante, um se ancorou na Pedagogia Histórico-Crítica e um último acreditava na combinação das duas anteriores. Concluiu-se que apenas a fala de um estagiário corroborava com os estudos contemporâneos do ensino na Educação Infantil e da Educação Física Escolar e que, para alterar este quadro, é fundamental que os cursos de Licenciatura da área invistam em projetos de ensino e extensão que voltem os olhares aos aspectos da cultura e da sociologia, bem como, considerem as crianças como seres históricos e sociais.
Palavras-chave: Educação Física; Educação Infantil; Concepção de Ensino.
ABSTRACT
This article aims to discuss the interns’ conceptions of licentiate about of the Physical Education teaching in Early Childhood Education. The sample was consisted for four interns matriculated on topic Supervised Internship in major Physical Education in state of Minas Gerais, on Zona da Mata region. Its methodological tool for data production was semi-structured, and the framework for analysis technical was the Content Analysis. It identifies than two interns conceived the Physical Education teaching in biologizing perspective, one based on Historical-critical pedagogy and the last intern match the biologizing perspective with the historical-critical pedagogy for the teaching. Conclude than only one intern approached of the contemporary studies of the Early Childhood Education and Physical Education in Schools, he thought the Physical Education on level based in history-critical pedagogy. For to change this frame founded, the majors need qualify the formation with teaching and extension in education projects cultural and sociological in childhood.
Keywords: Physical Education; Early Childhood Education; Teaching Conceptions.
Introdução
As concepções de infância e da Educação Infantil no Brasil, podem ser consideradas uma realidade ainda não tão consolidadas. Elementos históricos acerca do caráter assistencialista para a educação nesta faixa etária, são adjuntos da modernidade que, em maior ou menor nível, se sustentam no nosso imaginário. No entanto, esta visão pode ser identificada enquanto “tradicional” graças às tensões para a renovação da educação na infância.
Dudeck (2014) enfatiza a Constituição Federal de 1988 como um marco na empreitada de constituir um caráter mais educativo e menos assistencialista na Educação Infantil. Para a autora, após a promulgação da Constituição, movimentos como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) de 1990, a Política Nacional de Educação Infantil publicada em 1994, a reformulação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) em 1996 e a elaboração do Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI) em 1998, tencionaram a nova maneira de pensar o aprendizado na infância, a função da Educação Infantil e as novas propostas pedagógicas para o nível de ensino.
Levando em conta este olhar histórico, o processo de construção das identidades específicas ao nível de ensino ainda se encontra em consolidação. Barbosa (2010), ao mapear 370 propostas pedagógicas municipais, identificou diferentes formas de se pensar a Educação Infantil, as quais podem ser agrupadas em: (a) visões assistencialistas de cuidado, controle e ocupação do tempo livre; (b) o prolongamento do Ensino Fundamental, com vistas de preparar a criança para a complexificação do currículo; e (c) a proposta de exercício do aprendizado a partir dos desafios e experiências condizentes com o contexto infantil, feitas por diferentes tipos de linguagem.
Partindo dessas constatações, podemos pensar em uma consolidação da Educação Infantil que se encontra em processo. Por certo, tais mudanças impactam não apenas os professores regentes[1] de turma, mas também a formação e atuação na área da Educação Física, que é garantida por lei nesta etapa de ensino (BRASIL, 1996). Neste sentido, estudos expressivos buscam fomentar bases sólidas para refletir na atuação dos professores especialistas[2], levando em consideração as especificidades da Educação Infantil (SAYÃO, 1996, 1999; AYOUB, 2001; ROCHA, 2011).
Sayão (1999) nos mostra que, tradicionalmente, não se dá considerável atenção à formação nos cursos de Educação Física para a atuação naquele nível de ensino, e um resultado disso são as práticas vazias de conteúdo e fragmentadas do currículo da Educação Infantil. A preocupação se resume, na maioria das vezes, em elaborar programas de atividades corporais para o desenvolvimento motor ou diversão das crianças (AYOUB, 2001).
Para superar esse contexto é fundamental que a formação inicial favoreça a integração do especialista aos demais profissionais atuantes no nível de ensino, convergindo práticas às necessidades educacionais das crianças. Sayão (1999), nesse sentido, compreende que a integração deve ser fruto do trabalho de planejamento conjunto sobre as práticas pedagógicas.
Não deve haver lugar na Educação Infantil para práticas pedagógicas fragmentárias, e nem a permissão para que o ensino seja reduzido à dimensão cognitiva. Portanto, é necessário que os professores especialistas e regentes invistam no trabalho conjunto, bem como, que a escola estimule as relações de confiança entre os profissionais e a consciência do trabalho conjunto (SAYÃO, 1999).
Em virtude do panorama apresentado, o objetivo do artigo foi discutir a concepção de ensino da Educação Física na Educação Infantil a partir do olhar de estagiários da Licenciatura.
Procedimentos metodológicos
Esta pesquisa de caráter qualitativo demarca a possibilidade de imersão na esfera da subjetividade dos pesquisados, assim como, a leitura dos seus símbolos e da intersubjetividade em suas relações com o conhecimento (MINAYO, 2017). É importante frisar que, apesar de o foco se centrar nos sujeitos e nas suas concepções, estes estão interligados a uma rede de outros indivíduos que os influenciam, de forma a se constituírem, mesmo que indiretamente, participantes da pesquisa.
Este estudo teve como alvo quatro estagiários regularmente matriculados na disciplina de Estágio Supervisionado II, do 6º período do Curso de Licenciatura em Educação Física, de uma Universidade do interior de Minas Gerais, na região da Zona da Mata. Dois participantes eram do sexo masculino e duas do sexo feminino, com idades entre 20 e 29 anos. Todos os nomes apresentados no corpo do texto são fictícios com o propósito de garantir o anonimato e respeito aos princípios éticos da pesquisa. Assim, foram adotados os nomes “Alan”, “Celso”, “Isadora” e “Evelyn”.
A pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética do CEP/UFV, sob o número do parecer 3.705.610. O estudo teve início no contato com a direção de um Centro Educacional do interior de Minas Gerais e com os estudantes que estavam regularmente matriculados na disciplina de Estágio Supervisionado II, do Curso de Licenciatura em Educação Física da Universidade, tendo sido fornecidas as devidas informações quanto aos objetivos da pesquisa, ao desenho metodológico, à garantia de anonimato, aos riscos e aos benefícios do estudo, dentre outros aspectos. Prestados todos os esclarecimentos, a direção autorizou a realização da pesquisa. Foi solicitada a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido aos quatro estagiários que optaram em participar do estudo, de forma voluntária, viabilizando o início da produção de dados.
Para alcançar o objetivo, optou-se pela utilização da técnica de entrevista para a produção dos dados. Conforme Sionek, Assis e Freitas (2020), essa técnica não se reduz a uma mera coleta de dados, mas sim, os produzem a partir da interrelação entre entrevistador-entrevistado. Essa ideia implica, portanto, que a qualidade dos dados depende do alinhamento do roteiro com os objetivos da pesquisa e o método, do treinamento do entrevistador e do acolhimento do entrevistado. Seguindo esta lógica, tanto a construção do roteiro quanto os ensaios prévios para a entrevista foram feitos de forma coletiva (entre os pesquisadores), afim do melhor preparo do entrevistador e dos instrumentos.
Devido à imprevisibilidade das respostas e o reconhecimento de que os dados se constroem a partir da relação entre o pesquisador e o pesquisado, optamos pelo modelo de entrevista semiestruturada. Segundo Ludke e André (2013), neste modelo de entrevista não há a imposição rígida de um roteiro de questões, sendo que a entrevista caminha por uma sequência previamente estruturada, permitindo ao pesquisador explorar mais a fundo questões não contempladas.
Assim sendo, esta estrutura permitiu que o entrevistador realizasse maior imersão nas respostas e que o entrevistado tivesse mais liberdade para responder. O roteiro utilizado continha 13 perguntas abertas que possibilitaram obter informações dos estagiários acerca de suas experiências com crianças, dos posicionamentos quanto ao ensino da Educação Física na Educação Infantil, dos usos de ferramentas pedagógicas e dos entendimentos sobre os acontecimentos em aula.
A aplicação ocorreu no decorrer da primeira semana de intervenções, sendo anterior ao seu início[3]. Todas as entrevistas foram realizadas individualmente e gravadas continuamente do início ao fim. Estavam presentes durante a realização apenas um pesquisador e um estagiário, a fim de amenizar constrangimentos deste segundo. Neste momento, foi resguardado o direito do/a estagiário/a de interromper ou finalizar a entrevista a qualquer momento, se assim desejasse.
As entrevistas se iniciaram com base no mesmo roteiro previamente estruturado, de 13 questões, e à medida que as questões eram conduzidas, novas perguntas foram sendo inseridas a fim de explorar mais as respostas fornecidas (LUDKE; ANDRÉ, 2013).
Foram feitas as transcrições literais das entrevistas e a devolução aos estagiários que, após leitura, autorizaram a utilização dos dados.
Para o tratamento destes, foi utilizada a técnica de Análise de Conteúdo (AC) proposta por Bardin (2011). Por meio dessa, foi possível identificar as características e o conteúdo transmitidos nas mensagens, o que permitiu construir o debate com a literatura. Para isso, foi preciso seguir com rigorosidade as três fases da AC: pré-análise; exploração do material, e; exploração dos resultados.
Na pré-análise, após a transcrição das entrevistas, foi feita a leitura flutuante dos materiais com destaque dos trechos relevantes, as considerações inicias e a formulação de hipóteses. Os destaques do texto respeitaram os critérios de exaustividade, representatividade, homogeneidade, pertinência e exclusividade, apontados pela autora (BARDIN, 2011).
Na fase seguinte, exploração do material, foi feita a codificação dos recortes do texto, constituindo o agrupamento das informações em unidades de registro, as quais foram, posteriormente, categorizadas. Utilizou-se como esquema a aglutinação das categorias iniciais, intermediárias e finais, por tematização e proximidade. Desta, resultaram três categorias finais em cada entrevista, sendo úteis na última fase.
Por fim, na exploração dos resultados, fez-se a justaposição das categorias comuns (contendo o conteúdo da mensagem de cada estagiário), destacando pontos de aproximação e distanciamento, os quais foram interpretados a partir dos referenciais teóricos.
A partir destas explanações, será apresentada a discussão de duas categorias resultantes da AC, intituladas: a) Construção do conhecimento no Contexto Infantil; b) Abordagens de Educação Física na Educação Infantil.
Resultados e discussão
Como se sabe, a Educação Física é assegurada legalmente pela LDBEN. Em seu Art. 26, parágrafo 3º, é instituída a especificidade do componente curricular na Educação Infantil (BRASIL, 1996). Entretanto, Ayoub (2001) nos mostra que este espaço de ensino de linguagem específica ocupado pela Educação Física se torna um verdadeiro campo de disputas entre os professores regentes de turma e especialistas, em torno dos papéis de cada profissional.
A configuração que se põe na presença do componente Educação Física é complexa. Aos professores regentes não se dão suportes suficientes na formação para assumir o componente, resultando na insegurança no trabalho (PEREIRA; NISTA-PICCOLO; SANTOS, 2009) ou a falta de conhecimento (IZA; MELLO, 2009). Por outro lado, na atuação do especialista recorre o desafio de superar a fragmentação da criança e do conhecimento, apontadas por Ayoub (2001, 2005) e Rocha (2011), que se explicita quando as práticas de Educação Física se reduzem ao mero aspecto motor.
Se faz necessário, desta forma, discutir como os professores em formação de Educação Física observam a complexidade da infância e as suas práticas enquanto professor na Educação Infantil. Assim, apresentamos os quatro estagiários entrevistados, caracterizados no Quadro 1.
Quadro 1 – Caracterização dos estagiários e relato de suas experiências prévias.
Estagiário |
Idade (anos) |
Experiência no contexto educacional |
Experiência com crianças |
Alan |
20 |
Integrante há um (1) ano do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (Pibid) no ensino fundamental (segundo ciclo) e médio de Escolas públicas |
Experiências em edições de Colônias de Férias da prefeitura |
Celso |
29 |
Não possuía |
Foi professor de Karatê em uma academia. Seu trabalho era direcionado tanto para crianças, quanto para adultos. |
Isadora |
24 |
Não possuía |
Não possuía |
Evelyn |
24 |
Não possuía |
Uma única experiência de ensino para crianças em uma disciplina “Prática de Ensino” |
Fonte: Informações fornecidas pelos estagiários de forma oral. (2019)
Por se tratar do primeiro estágio supervisionado[4] em que se efetiva a aplicação in loco dos conhecimentos destes professores em formação, apenas Alan possuía experiências prévias de ensino dentro do ambiente escolar. Considerando as experiências com crianças, apenas Alan e Celso possuíam experiências duradouras, enquanto Evelyn possuía uma única experiência pontual. Isadora não relatou qualquer tipo de experiências, seja no contexto escolar ou com crianças.
Tomando a aplicação das entrevistas antes do período de intervenções, tornou-se possível valorizar as experiências prévias e o processo de formação teórico-metodológico que, até o momento, moldavam as concepções dos estagiários. Portanto, ao analisar a concepção de ensino da Educação Física no olhar dos estagiários, os elementos apontados não estarão dissociados.
A partir da entrevista e da categorização, foram selecionadas duas categorias para análise, intituladas: a) Construção do conhecimento no Contexto Infantil; b) Abordagens de Educação Física na Educação Infantil.
Construção do conhecimento no Contexto Infantil
O trabalho pedagógico da Educação Infantil é, equivocadamente, reduzido por diversas vezes à função de cuidado. Essa associação leva à desvalorização dos profissionais que nela atuam e ao esvaziamento do sentido pedagógico das práticas. Ayoub (2001) mostra que, no início deste século, predominava o “mito” de que para atuar no nível de ensino, bastava ser uma mulher delicada e gostar de criança.
Nesse sentido, autores como Iza e Mello (2009) e Sampaio (2016) passam a reivindicar que os profissionais fossem melhor preparados para o ato de educar, reconhecendo neste processo a expansão do conhecimento das crianças. A compreensão da construção desse conhecimento incide diretamente na qualificação das práticas do professor, uma vez que cabe a ele atuar como mediador na expansão das experiências da criança no mundo, promovendo sua educação (IZA; MELLO, 2009).
A análise desta categoria visa, portanto, identificar por quais vias os estagiários pensam a construção do conhecimento das crianças no contexto educacional. Dos quatro entrevistados, três (Evelyn, Celso, Alan) apresentaram falas nesta subcategoria, sendo que dois deles identificaram o aprendizado infantil por “estratégias visuais” (Evelyn, Celso), enquanto um (Alan) apontou o aprendizado pelo processo de “descoberta e experimentação do meio”.
Nas falas de Evelyn e Celso foi apontado que o conhecimento no contexto infantil pode ser construído por estratégias visuais. Enquanto a primeira acreditava que a Educação Física deva incorporar estratégias ligadas à assimilação do conteúdo e do contexto das atividades, o segundo defendia estratégias visuais em um sentido utilitário, para facilitar a execução de movimentos.
Para Evelyn, a utilização de cores chamativas e de imagens aproximam a característica de curiosidade das crianças e, com isso, elas tenham vontade de participarem das aulas de Educação Física. Ao ser questionada sobre o uso de recursos e estratégias pedagógicas, Evelyn afirmou também que:
Como neste ano de ensino eles são bem novos, essa turma minha de 4 anos [de idade, aproximadamente], então eu acho que você sempre tem que partir de algo mais abstrato, algo vamos dizer assim, vou contar umas historinhas para eles começarem a entender, para depois trazer para o contexto concreto. Porque eu acho que eles fazem mais associações assim. Se você fala direto, o concreto, às vezes eles não entendem. Se você conta a história que eles já ouviram, algo assim, que aí consegue trazer para a realidade (ESTAGIÁRIA EVELYN).
A estagiária sugeriu que eixo central do ensino deveria ser a comunicação entre professor e aluno, investida em práticas pedagógicas específicas à infância. Um recurso eficaz para esta comunicação, apontado pela estagiária, seria a contação de histórias.
Para Sampaio (2016):
A prática de contação de histórias, no contexto escolar, quando planejada pelo professor, permite que a criança exerça o papel de ouvinte e, a partir dos materiais de leitura ofertados a ela, crie a necessidade e a curiosidade pelo livro e por outras histórias [...].
Quando se conta uma história, voz e corpo caminham juntos, manifestando intenções e provocando emoções e sensações. Mais que memorizar a história, o professor lê, para se preparar, estuda os elementos do texto, as personagens, os momentos de conflito – que merecem maior entonação de voz – e os movimentos corporais (p. 62-63).
A contação de histórias é vista pela autora supracitada não só como um meio de captar a atenção da criança, mas também como um importante recurso para potencializar o aprendizado, ressaltando, contudo, que a prática deve mobilizar um conjunto de expressões para formar uma leitura atrativa e eficaz. Ao se tornar atraente, a história irá transcender as experiências dos pequenos, instigando-os à prática da imaginação (SAMPAIO, 2016).
Vigotski (2009) afirma que a imaginação é a base de toda a capacidade criadora dos sujeitos e, por sua vez, da cultura. A infância, mediada pelo processo de inserção no mundo, se torna uma fase fundamental na formação de sujeitos ativos e protagonistas, capazes de compreender seu papel na transformação cultural. Quando Evelyn afirmou que a criança associa a história à realidade, refere-se ao fato de que ela é levada a combinar informações, imaginar e transcender à mera assimilação, formando novos aprendizados.
Celso, diferente de Evelyn, pensava a formação do aprendizado na Educação Física de forma restrita à ótica do movimento e imagem corporal. Baseado em suas experiências no ensino de Karatê, o estagiário afirmou não existir diferença aparente no processo de aprendizado na infância. Em consequência a isso, considera que as atividades em uma aula não precisam se diferenciar de uma criança para um adulto, cabendo ao professor apenas adaptar as atividades à fase de desenvolvimento. Essa fala contraria as reivindicações de Sayão (1999), Dudeck (2014) e Sampaio (2016), quando as autoras defendem que o professor na Educação Infantil precisa não só compreender o processo de desenvolvimento, mas também as práticas de cuidado e de educação específicas ao nível de ensino.
Considerando o processo de aprendizagem da faixa etária, Celso afirmou que a construção das aulas deve partir do desenvolvimento cognitivo e da percepção psicológica das crianças, demonstrando uma compreensão do aprendizado pautado no aperfeiçoamento biológico-afetivo. Seu pensamento se ancorava na ideia de que o homem é psicomotor, e de que o aprendizado pré-escolar deve saciar a consciência corporal, ajudar a criança a se localizar no espaço e prevenir as inadaptações futuras (FERRONATTO, 2006).
A construção do conhecimento das crianças, para Celso, pode se dar por meio da demonstração das atividades e pelo destaque dos alunos com performance satisfatória, para que sejam seguidos como exemplo. Dessa forma, cabe às crianças repetir os movimentos previamente definidos para uma atividade, sendo este tipo de aprendizado nomeado pelo estagiário como “aprendizagem por imitação”. Essa forma de aprendizado compactua diretamente com o desenvolvimento psicomotor, na qual a criança irá projetar a imagem externa sobre si, a fim de compreender seu esquema corporal.
Para Sacchi e Metzner (2019), é fundamental que o ensino pautado na aprendizagem psicomotora dê bases para o bom desenvolvimento da criança rumo à vida adulta nos aspectos físico, mental, afetivo-emocional e sociocultural. A interação com o espaço e o outro irá lhe permitir se diferenciar, progressivamente, do espaço que a rodeia. Portanto, as estratégias apontadas por Celso corroboram com o aprendizado psicomotor, especialmente nos exercícios perceptomotores, uma vez que a prática da percepção visual e do movimento levará as crianças ao maior domínio sobre seu corpo no espaço (FERRONATTO, 2006).
Distinguindo-se de Evelyn e Celso, Alan demonstrou compreender a construção do aprendizado pela “descoberta e experimentação” e, para isso, partiu da premissa de que na faixa etária em questão as crianças possuem a imaginação “fértil”. Ao ser questionado sobre o uso de recursos e estratégias pedagógicas, Alan apontou:
Eu acho que o próprio recurso audiovisual ajuda muito, a imagem, a historicidade ajuda muito na imersão dos alunos ali, trabalha com a imaginação deles, a instigação, e isso agrega muito para eles porque é uma fase em que a imaginação deles está muito assim [...] fértil. Tem uma fase do desenvolvimento, eu não vou lembrar o que Piaget fala, que é uma fase que eles emergem muito na questão da imaginação, e tem muita facilidade de se inserir neste meio [...] (ESTAGIÁRIO ALAN).
O uso da sensibilidade e da interação da criança com o mundo é fundamental para o Alan. É perceptível que há algum nível de fundamentação teórica consciente na fala do estagiário ao tentar aproximar suas afirmações às de Piaget, que é um dos referenciais para a Psicologia da aprendizagem. Quando sugere o papel da imaginação na fase de desenvolvimento pré-operatória, descrito por Piaget (1989), o estagiário emerge na noção de papel simbólico estabelecido pela criança na interação com o mundo.
Para o autor, com o aparecimento da linguagem na fase pré-operatória (crianças de dois a sete anos), o desenvolvimento mental se funda a partir da troca das representações, da interiorização do que é dito e signos, e da interiorização das ações. É possibilitado, desta forma, a reconstrução das imagens e das “experiências mentais” (PIAGET, 1989).
Assim, quando Alan afirmou a necessidade de oportunizar a construção do aprendizado pelas experimentações no ensino escolar, é possibilitado às crianças o maior exercício da imaginação, o reconhecimento do mundo concreto e a consequente ampliação das linguagens verbais e não-verbais. À função pedagógica do professor é atribuída em um lugar de destaque, uma vez que caberá ao profissional oportunizar as situações de aprendizado e mediar a interação das crianças com o mundo.
Um ponto que aproxima as falas de Evelyn e Alan, é a presença da ludicidade nas aulas de Educação Física na Educação Infantil, sendo na primeira mais implícita, e no segundo mais explícita. Evelyn, ao construir sua lógica de aprendizado na infância, enfatizou em diversos momentos a necessidade de um encantamento afetivo das crianças nas aulas, como forma de “elevar o conhecimento”. Ela afirmou que: “se eu levo coisas que é mais o contexto deles, então eles vão gostar mais da aula, vão sentir mais atraídos pela aula, então vão querer participar mais”.
Por mais que em nenhum momento a entrevistada tenha mencionado o termo “ludicidade”, a forma como construiu a relação entre professor-alunos dá elementos para deduzir esse posicionamento. A inferência respalda na ideia de Batista e Moura (2019, p. 3048), ao afirmarem que a ludicidade “deve ser entendida como uma atitude do professor e dos alunos” que coincide com o aprendizado prazeroso. Assim, ao instigar o prazer das crianças e construir as aulas partindo de elementos do cotidiano, a estagiária carrega, implicitamente, a ideia de ludicidade como uma estratégia para o envolvimento efetivo das crianças na construção da aula.
Por sua vez, Alan afirmou que “a cultura corporal da criança, ainda mais nessa faixa etária, que é a infantil, seria o momento que proporciona mais experiência e aprendizado para criança com o brincar, o aprender através da ludicidade”. A ludicidade, em sua fala, aparece como elemento intrínseco ao aprendizado na infância. Alan passou a atribuir todo um sentido e significado pedagógico à presença do ensino lúdico nas aulas de Educação Física na Educação Infantil.
Batista e Moura (2019) identificaram na literatura acadêmica, que os defensores da ludicidade a afirmam como importante ferramenta no processo de aprendizagem. Sob o olhar desses autores, assim como de Dudeck (2014), as concepções de Evelyn e Alan podem ser consideradas ricas de significado ao valorizar o componente da ludicidade na construção do aprendizado das crianças. Ainda, é importante ressaltar que Ayoub (2001, p. 59), uma das mais expressivas pesquisadoras na área, reivindica o olhar da Educação Física para uma “educação verdadeiramente humana, na qual haja espaço para o diálogo, para o lúdico, para a vida”.
Portanto, é possível identificar que, mesmo com aproximações e distanciamentos, os estagiários concebem determinadas características do aprendizado no contexto infantil e, imbuídos por estes pensamentos, passam a formular concepções acerca da presença da Educação Física na Educação infantil.
Concepções de ensino da Educação Física na Educação Infantil: entre o biológico e o cultural
A garantia da Educação Física enquanto componente curricular da Educação Infantil, é acompanhada por ferrenhos debates desde sua inserção pela LDBEN. Ayoub (2005) nos mostra que, enquanto alguns estudiosos defendem a presença do profissional especialista devido à precária formação na Pedagogia sobre temas ligados à Educação Física, outros recusam sua presença justificando a preocupação em modelo escolarizante, já na Educação Infantil. Todavia, essa discussão não se restringe ao ambiente acadêmico, uma vez que Ehrenberg (2014) também identificou o embate acerca da responsabilização da Cultura Corporal no chão da escola.
O fato é que a atuação benéfica do professor especialista ou sua contribuição para a fragmentação da criança, está intimamente relacionada ao processo de formação de professores. Logo, buscamos captar dos estagiários suas concepções acerca do ensino de Educação Física na Educação Infantil no intuito de identificar em quais abordagens pedagógicas eles se ancoravam e qual o lugar da criança nesse processo.
De modo geral, na fala dos estagiários surgiram expressões como “cidadão crítico”, “abordagens críticas”, “habilidades motoras”, “aspectos cognitivos e motores”, “cultura corporal, “experiência corporal”, “reforçar o conhecimento” e “desenvolvimento físico, psicológico e social”. Como é possível perceber, há grande dissonância entre as expressões que aparecem, e isso mostra o caráter não uniforme quando se pensa no papel da Educação Física naquele nível de ensino.
A representação de Evelyn reflete esta pulverização de abordagens distintas. O conteúdo das mensagens transmitidas na entrevista revelou uma sustentação do ensino de Educação Física calcado no campo da história-cultural, mas que, simultaneamente, expressava a necessidade de um desenvolvimento psicomotor dos alunos. Ao ser questionada sobre o papel da Educação Física na Educação Infantil, ela afirmou que:
Então, vai muito do pensamento crítico, né? Das leis, das diretrizes, da BNCC e tal, de tentar desde o início começar a formação de um cidadão crítico, mas também não deixando de lado a questão motora da criança, porque nessa fase é muito importante você trabalhar as habilidades motoras para que futuramente seja mais fácil trabalhar com qualquer outra coisa relacionada ao esporte (ESTAGIÁRIA EVELYN).
A estagiária traz a noção de que a criticidade advém de uma obrigatoriedade dos documentos balizadores, e cita a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Neira (2018) nos mostra uma incoerência nessa lógica, ao passo que a nova BNCC rejeita as produções da Educação Física Escolar contemporânea e busca fortalecer a dimensão técnica das práticas corporais, além de se isentar da tematização de marcadores culturais étnico-raciais, de classe, gênero, religião, dentre outros, que permeiam os conflitos no ensino das práticas.
Para embasar a visão de um ensino crítico na Educação Física, Evelyn buscou citar, posteriormente, Kunz (2004) e Castellani Filho et al (2009), que fundamentaram abordagens na Educação Física ligadas à Pedagogia Histórico-Crítica. Ao evocar os autores, a estagiária suscita proposições de projetos políticos ligados a uma educação sociocultural das crianças, sendo que em Kunz (2004) a Educação Física tem como intuito promover competências objetivas (autonomia), sociais e comunicativas, enquanto em Castellani Filho et al (2009), busca-se propiciar às crianças o conhecimento crítico, autônomo e político pela cultura corporal.
Além da equívoca dimensão crítica, que não condiz com a elaboração do documento, a estagiária expressou que o desenvolvimento motor sob a perspectiva psicossocial e a criticidade, são elementos que devem caracterizar a Educação Física no referido nível de ensino. Esta associação não demonstra consistência, uma vez que as teorias críticas advindas da pedagogia Histórico-Crítica buscam fornecer a apropriação da cultura humana historicamente sistematizada por vias da interação com o mundo (SOUZA, 2019), enquanto a Psicomotricidade visa formar sujeitos dentro do seu pleno desenvolvimento integral (físico, mental, afetivo-emocional e sociocultural), em conformidade com os ideais biológicos e sociais (SACCHI; METZNER, 2019).
Uma explicação plausível para estes conflitos no imaginário de Evelyn pode estar nas produções contemporâneas no campo da Educação Física Escolar, no que diz respeito à construção dos currículos. Por mais que no pensamento tradicional ainda se atribua à Educação Física Escolar a responsabilidade pelo aperfeiçoamento do movimento e da capacidade motora dos alunos, Rocha et al (2015) identificam que 91% das produções atuais no campo se ancoram em teorias críticas e pós-críticas. Os dados apresentados revelam um campo contemporâneo em disputa entre diferentes perspectivas de função do componente curricular e da intencionalidade dos professores, permeando os cursos de formação, o corpo de professores e os debates em aula.
Na fala de Evelyn, as diferentes perspectivas de Educação Física ancoradas nas teorias tradicionais (perspectivas biologizantes) e no campo crítico e pós-crítico (perspectivas culturais e sociais) são convertidos pela estagiária em um ponto comum, que identificamos como um ecletismo teórico-metodológico.
Celso e Isadora, por outro lado, se ancoraram exclusivamente nas perspectivas biologizantes para defender as intervenções da Educação Física na Educação Infantil.
Para Celso, o componente deve atender a formação integral, contribuindo para as diferentes dimensões no desenvolvimento infantil. Para isso, suas proposições se apoiavam na Psicomotricidade, ao afirmar que a Educação Física deve atender aos aspectos cognitivos (ao integrar os conteúdos trabalhados em sala pela professora regente de turma), além dos motores e psicossociais. Ele afirmou que a Educação Física precisa:
Contribuir sobre as crianças em específico, o estímulo de desenvolvimento cognitivo, percepção psicológica. Tudo que é desenvolvido nessa faixa, eu acho que como elas tem um valor muito maior que elas [...]. Nessa fase elas aprendem muito, então eu acho que a Educação Física tende a contribuir muito nessa questão, no desenvolvimento físico, psicológico, social, que é muito importante nessa faixa etária que está sendo uma fase de descobertas. Acabaram de sair da casa da família e estão indo para um conteúdo, tendo essa vivência com as pessoas novas e isso tende a contribuir muito e quando você consegue desenvolver a parte motora, física, psicológica, social com essas crianças, eu acho que a Educação Física é uma coisa que mais consegue contribuir para essa faixa etária das crianças (ESTAGIÁRIO CELSO).
Celso acreditava que a intervenção pelo componente se justifica nas exigências da faixa etária, ligadas a uma necessidade de desenvolvimento físico, psicológico e social, além da adaptação das crianças ao sistema de ensino. Nesse mesmo sentido, o estagiário apontou como essencial a atuação conjunta do professor especialista junto ao regente de turma, de forma a reforçar os conhecimentos trabalhados em sala, como, por exemplo, em assuntos relacionados a: matas, florestas, índios e animais.
Isadora, por sua vez, se aproximou desta perspectiva biologizante, no entanto, sua preocupação central convergia para o aspecto motor. Nesse sentido, a estagiária se afastou da Psicomotricidade e se aproximou da Abordagem Desenvolvimentista (AD), proposta por Tani et al (1988). Este posicionamento se explicita ao afirmar que:
Eu acredito que [a Educação Infantil] seja uma fase muito crítica no desenvolvimento da criança em vários aspectos, tanto cognitivos quanto motores. Então acho que a Educação Física tem um papel essencial em contribuir para este desenvolvimento, principalmente motor (ESTAGIÁRIA ISADORA).
Para Isadora, assim como afirmado em Tani et al (1988), por mais que haja outras dimensões no desenvolvimento do aluno, como a cognitiva, cabe à Educação Física se responsabilizar pela especificidade do desenvolvimento motor do aluno, que se dá a partir do movimento.
No que diz respeito ao desenvolvimento motor, Tani et al (2008) se alimenta das teorias do Comportamento Motor para sugerir que existem padrões no desenvolvimento humano, e que o professor precisa contemplar o desenvolvimento “ótimo” das potencialidades das crianças.
Dessa forma, tanto Celso quanto Isadora se posicionaram inteiramente dentro das perspectivas biologizantes, o que é alvo de crítica de autoras que defendem o ensino da Educação Física na Educação Infantil centrado na integralidade do conhecimento (SAYÃO, 1996, 1999; AYOUB, 2001, 2005; ROCHA, 2011; ASSIS, 2014).
Para Sayão (1996) e Ayoub (2001), o ensino do componente curricular aqui estudado, centrado nos ditames do desenvolvimento biológico, faz com que os professores especialistas atuem distantes dos professores regentes de turma, o que contribui para um modelo de “escolarização” da primeira infância. Este modelo, para Rocha (2011), retira a credibilidade da Educação Física no nível de ensino, uma vez que reforça o predomínio da visão unilateralista[5] do conhecimento, restando à Educação Física o lugar secundário de desenvolver o físico dos alunos e atuar de suporte ao ensino dos conteúdos necessários.
O ponto de recusa destas abordagens na Educação Infantil, para Assis (2014), está na omissão da singularidade das crianças. Para a autora, é preciso que o processo de ensino se amplie para além das perspectivas biológicas e psicológicas tradicionais, as quais colocam a criança em uma posição passiva.
É nesta perspectiva que Alan se ancorou para pensar o papel da Educação Física para a infância. Considerando a existência das singularidades, o estagiário acreditava que o aprendizado deveria partir das experiências corporais, cabendo ao professor especialista:
Possibilitar à criança ter um contato com a Cultura Corporal do Movimento e através desta desenvolver o conhecimento acerca do movimento em si e exploração de conhecer a si, o seu corpo, e o do seu colega. A cultura corporal da criança, ainda mais nessa faixa etária, que é a infantil, seria o momento que proporciona mais experiência e aprendizado para criança com o brincar, o aprender através da ludicidade (ESTAGIÁRIO ALAN).
Partindo da pedagogia Histórico-Crítica, Alan acreditava ser necessário que o professor especialista, enquanto competente pela Cultura Corporal, possibilitasse o contato da criança com esta produção humana.
Vygotski (1991) nos mostra que a criança possui a Zona de Desenvolvimento Real (ZDR) e a Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP), a serem consideradas no processo escolar de ensino. A primeira corresponde ao repertório imaginário que a criança possui, aquilo que ela já conhece; enquanto a segunda corresponde ao que a criança ainda não conhece, mas que, a partir da interação com os adultos ou outra criança mais experiente, consegue desenvolver. Portanto, no ensino escolar, cabe ao professor promover situações pedagógicas que incidam nesta zona.
Compactuando com as falas de Alan, ao transpor estas teorias ao papel do professor especialista na Educação Física, esse se torna um importante mediador na construção do conhecimento, uma vez que caberá ao especialista identificar a ZDR das crianças com a cultura corporal e, a partir dessa, propor situações que incidam na ZDP, expandindo a linguagem das crianças por meio de movimentos corporais historicamente construídos.
Dessa forma, as experiências corporais, para Alan, se constituíram enquanto meios de aprendizado, e a partir desse, torna-se possível à criança se situar no mundo, conhecer seu corpo e identificar a existência do outro – sendo essa uma das maiores contribuição da Educação Física Escolar para as crianças.
Em suma, podemos identificar que existe um distanciamento entre os estagiários ao conceber diferentes concepções sobre o papel da Educação Física na Educação Infantil, sendo que Isadora se ancorava na perspectiva desenvolvimentista, Celso na perspectiva psicológica, Alan nas teorias críticas e Evelyn promovia um certo ecletismo teórico-metodológico, não revelando de forma concisa sua concepção sobre a partir de quais pressupostos a Educação Física contribui para este nível de ensino.
Apesar de as produções contemporâneas na Educação Física serem majoritariamente voltadas ao campo cultural (ROCHA et al, 2015; NEIRA, 2018) e as produções recentes defenderem uma intervenção da Educação Física na Educação Infantil pela Sociologia da Infância e teorias críticas (ASSIS, 2014; MELLO et al, 2014; SOUZA, 2019), o que se percebeu na fala dos estagiários foi a hegemonia das concepções biologizantes, justificando, a partir dessas, o papel da Educação Física no nível de ensino.
Considerações finais
Considera-se, a partir da análise das entrevistas dos professores em formação inicial, que não existe uma homogeneidade na concepção de ensino da Educação Física na Educação Infantil.
Evelyn enfatizou que a criança deve ser considerada no processo de ensino e que o professor precisa tomar o contexto infantil como ponto de partida. No entanto, ao conceber o papel do ensino de Educação Física para o referido nível escolar, apresentou um ecletismo teórico-metodológico entre perspectivas críticas e biologizantes que, em partes, desconsidera o aluno do processo. De forma mais enfática, Alan, único com experiências no contexto escolar, compreendeu que o aprendizado infantil se dá a partir das relações corporais e, assim sendo, cabe à Educação Física possibilitar o cuidado de si e do outro, além do contato com a cultura corporal historicamente construída.
Celso e Isadora, por sua vez, se ancoravam nas teorias biologizantes, as quais desconsideram as singularidades, cabendo ao professor construir suas práticas a partir dos níveis de desenvolvimento das crianças, levando-as a progredir nesta escala. Na visão de Isadora, as contribuições da Educação Física se evidenciam no desenvolvimento motor dos infantis, sem desconsiderar as contribuições na dimensão cognitiva. Já para Celso, o papel da Educação Física se estendia para além do domínio motor, mas também deveria contribuir na dimensão psicológica e social.
Tomando por base a ideia de que a Educação Física está “na” Educação Infantil, o repertório que os professores em formação inicial recrutam para estruturar o ensino das crianças, precisa estar de acordo com as demandas do nível de ensino. Nessa perspectiva, identificamos que Alan foi o único a visualizar com objetividade um modelo de ensino da Educação Física que contribui para a formação cultural e social das crianças, em conformidade com o presente nas discussões contemporâneas da Educação Infantil. Por outro lado, o modelo biologizante apontado por Isadora e Celso (e por Evelyn, em partes), atualmente, é alvo de fortes críticas dos estudiosos contemporâneos de Educação Infantil, os quais atrelam a este modelo de Educação Física uma fragmentação do conhecimento da criança e uma ameaça à “escolarização” no nível de ensino.
Quando correlacionamos a aproximação da literatura às experiências prévias, Alan, que mais se aproximou dos debates contemporâneos, é o único que acumulou experiências de aplicação dos conteúdos no contexto escolar e em práticas com crianças. Por outro lado, Isadora, que relatou não possuir qualquer experiência com o contexto educacional e com crianças, pensava a Educação Física Escolar em um modelo fechado que considera a centralidade do ensino no movimento, tendo a criança uma posição passiva nas aulas.
Portanto, a partir do diálogo com a literatura por meio dos conteúdos das entrevistas, consideramos necessário que os cursos de Educação Física formem licenciados capazes de contribuir para as demandas da Educação Infantil dentro do seu tempo e espaço. Nesse sentido, os professores em formação inicial precisam conhecer o nível de ensino, a função da Educação Física Escolar neste local, a cultura infantil e as demandas específicas, para assim, recrutarem os conhecimentos adequados a serem aplicados, além de alcançarem uma melhor preparação para o trabalho integrado com os demais professores.
Uma via para a melhor formação está em currículos que contemplem disciplinas ligadas à cultura infantil, além do investimento em projetos de extensão que possibilitem o contato dos professores em formação com o ambiente escolar e com o ensino de crianças.
Referências
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Notas
[1] A título de informação, serão intitulados “professores regentes de turma” os/as pedagogos/as responsáveis pelas turmas da Educação Infantil.
[2] A título de informação, serão intitulados “professores especialistas” os professores atuantes na Educação Infantil com formação na área de Educação Física.
[3] Até o momento da entrevista, os estagiários haviam feito uma visita técnica para conhecer a estrutura/funcionamento do Centro Educacional e cumprido quatro observações das aulas (duas semanas) dos professores de Educação Física da escola.
[4] Consideramos o “Estagio Supervisionado II” como o primeiro em que se efetiva a aplicação in loco dos conhecimentos, visto que no “Estagio Supervisionado I” objetiva levar os licenciandos refletir sobre os aspectos que perpassam o contexto escolar. Observamos que no Estagio Supervisionado I os alunos visitam escolas, conhecem os documentos institucionais, acompanham práticas e debatem acerca da formação, no entanto, apenas a partir do Estagio Supervisionado II (Educação Infantil) é que os licenciandos irão aplicar os conteúdos in loco.
[5] Esta visão corresponde a grande valorização dos conhecimentos ligados a alfabetização, como ler, escrever e contar. Além disso, a única linguagem autêntica se torna a verbal, deixando de lado a importância da linguagem corporal no aprendizado (ROCHA, 2011).