Educação, linguagem e teatro no âmbito da formação universitária: dos lugares teóricos e práticos da cri[ação] pedagógica e artística
Education, language and theater in the context of university education: the theoretical and practical places of pedagogical and artistic creation
Cristiane do Rocio Wosniak
Professora Doutora da Universidade Federal do Paraná e Universidade Estadual do Paraná, Curitiba, Paraná, Brasil.
cristianewosniak@bol.com.br - http://orcid.org/0000-0002-7234-2638
Recebido em 07 de janeiro de 2019
Aprovado em 09 de janeiro de 2019
Publicado em 30 de junho de 2021
RESUMO
Trata-se de uma resenha crítica sobre o livro Teatro e Universidade: Cena. Pedagogia. [Dialogismo] do autor Jean Carlos Gonçalves, publicado em 2019 pela Editora Hucitec, compondo o número 23 da Coleção Pedagogia do Teatro.
Palavras-chave: Educação; Linguagem; Arte.
ABSTRACT
This is a critical review of the book Teatro e Universidade: Cena. Pedagogia. [Dialogismo] by the author Jean Carlos Gonçalves, published in 2019 by Editora Hucitec, composing number 23 of the Pedagogia do Teatro Collection.
Keywords: Education; Language; Art.
Introdução
O livro Teatro e Universidade: Cena. Pedagogia. [Dialogismo], de Jean Carlos Gonçalves, lançado em 2019 pela Editora Hucitec – compondo o vigésimo terceiro volume da série Pedagogia do Teatro –, configura-se, inicialmente, como uma publicação resultante de sua tese de doutorado, mas que adquiriu o olhar da revisão e da atualização forjado a partir de dois estágios de pós-doutorado realizados no âmbito do Programa de Estudos Pós-Graduados da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a supervisão de Beth Braith – responsável pelo sensível texto de apresentação do livro.
O autor, que é Doutor e Mestre em Educação, ator e diretor de teatro, também atua como Professor na Universidade Federal do Paraná (UFPR), lecionando disciplinas cujos conteúdos perpassam as áreas de Linguagem, Corpo e Teatro, tanto na Graduação em Produção Cênica (SEPT/UFPR), quanto no âmbito do Programa de Pós-Graduação – Mestrado e Doutorado – em Educação (PPGE/UFPR) – vinculando-se à Linha de Pesquisa LICORES (Linguagem, Corpo e Estética na Educação). Gonçalves também é docente do Programa de Mestrado Profissional em Educação: Teoria e Prática de Ensino (PPGE-Tpen/UFPR) e líder do Laboratório de Estudos em Educação Performativa, Linguagem e Teatralidades (ELiTe/UFPR/CNPq), além de diretor do CARMEN Group (Centro de Treinamento em Corpo, ARte, Movimento e ENcenação) na UFPR.
A presente obra coloca em discussão os densos conceitos e reflexões de Mikhail Bakhtin e do Círculo – especificamente a Análise Dialógica do Discurso (ADD) – para apresentar o pensar e o fazer teatro no contexto do ensino superior, decifrado por meio das dimensões verbo-visuais descritas pelos sujeitos da aprendizagem – alunos-atores do curso de Bacharelado em Teatro-Interpretação da Universidade Regional de Blumenau (FURB) –, ao escreverem sobre os processos vivenciados in locus, quando da montagem de espetáculos teatrais no decurso de suas formações em teatro.
Trata-se de um livro que apresenta uma temática ainda pouco explorada no universo acadêmico e nas pesquisas da grande área da Educação. Em uma tentativa original e metodologicamente rigorosa – pesquisa que incorpora os pressupostos da investigação qualitativa em educação –, o autor aproxima, de fato, a educação [ensino-aprendizagem/formação em teatro], a linguagem (ADD) e as Artes da Cena [processo de criação/encenação de um espetáculo teatral], no momento em que se reporta às vozes, ou melhor, aos enunciados dos seus alunos – agentes da prática cênica – para entender e refletir sobre os supostos processos de construção de sentidos da educação e do teatro. E de que que modo e com que meios Gonçalves empreende o percurso gerativo da investigação?
Para a compreensão do processo de formação profissional e criação teatral no âmbito universitário, tomam-se como objetos empíricos os memoriais de formação da disciplina Prática de Montagem III, escritos pelos acadêmicos do último semestre (2017) no referido curso da FURB. É a partir desta amostragem relacional e processual, que o autor se lança em uma jornada de leitura, análise e compreensão do processo de criação da obra teatral, pelo ponto de vista da perspectiva bakhtiniana, defendendo “a dialogicidade como possibilidade de escuta investigativa” (GONÇALVES, 2019, p. 54).
Ao longo de 172 páginas, e dividido em duas partes, o livro claramente se reveste de uma possibilidade vigorosa de estudo de/sobre educação contaminada pelo pensamento bakhtianiano[1] aplicado às artes da cena.
O primeiro capítulo da Parte I denomina-se Pesquisar o teatro feito na universidade. O autor aborda, ao longo de 18 páginas, a sua própria trajetória como artista-docente e os motivos que o levaram à delimitação de seu problema de pesquisa. É no atravessamento polifônico de três distintos campos do conhecimento que as vozes teórico-práticas emergem para dar sustentação às reflexões sobre a montagem teatral na universidade – especialmente àquelas levadas a termo no âmbito dos cursos de formação superior – o que, segundo o autor, diferencia-se do pensar-fazer teatro na ampla esfera de grupos artísticos vinculados à extensão universitária. Gonçalves ressalta que as lógicas investigativas advindas da interconexão e interdependência é a perspectiva almejada para cogitar a educação, a linguagem e o teatro como produtores de sentido. O pesquisador também alerta o/a leitor/a sobre os devidos cuidados a serem tomados para que o objeto, as metodologias ou os instrumentos de pesquisa não venham a ser considerados peculiares, visto que estes estudos sobrevivem solidamente na intersecção de diferentes áreas de conhecimento. A síntese do capítulo introdutório expõe o conceito de memorial de formação e explicita que aí reside o foco da pesquisa: os escritos sobre procedimentos de criação teatral na universidade e não, necessariamente, a análise do resultado final da obra cênica ou espetáculo.
O capítulo 2 – Pesquisar em perspectiva bakhtiniana – aborda o pensamento bakhtiniano, esclarecendo ao/a leitor/a os modos e os meios pelos quais tais estudos de linguagem – (ADD) – interagem com os dados coletados a partir dos memoriais de formação dos agentes da prática cênica. No decurso de 17 páginas, os estudos de Bakhtin e o Círculo são referenciados histórica e conceitualmente e também é apresentado um panorama das pesquisas internacionais que seguem esta linha de investigação e a precariedade de iniciativas de possíveis aproximações entre o pensamento bakhtiniano e as artes cênicas no Brasil.
Salienta-se que:
a perspectiva bakhtiniana, ao trazer a importância do social, do outro, do contexto, em uma discussão sobre linguagem que implica alteridade, multivocalidade e interação como constituintes do sujeito, tem fundamental contribuição a dar para os estudos em educação (GONÇALVES, 2019, p. 50).
O capítulo é concluído com a constatação de que o autor, na leitura e interpretação da multivocalidade de informações provenientes dos dados descritos nos referidos memoriais, direciona suas reflexões a partir de um recorte particular e assume estas escolhas em sua constituição como sujeito interessado nas questões provenientes do teatro universitário, acreditando veementemente em uma universidade como espaço de formação estético-pedagógica.
A segunda parte do livro estabelece um diálogo entre os dados obtidos com a leitura e análise dos memoriais de formação e a (ADD), efetivando-se a premissa de interlocução entre Bakhtin e o Teatro. O primeiro capítulo da Parte II denomina-se Vozes da educação no teatro. O próprio autor realiza uma condensação do teor deste capítulo já nas páginas iniciais do livro: “centro minhas reflexões nas vozes que constituem professor e aluno, e que fazem do espaço de criação teatral um lugar de educação” (GONÇALVES, 2019, p. 21).
Gonçalves esboça uma elucidativa subdivisão de 4 seções para o capítulo II, composto de 51 páginas. A primeira seção é intitulada Imaginários sociais de professor: professor-diretor? E examina a maneira como o professor de práticas teatrais, na universidade, é abordado. Admite-se que o papel do docente carrega traços marcantes e personificam um imaginário construído historicamente. E para (re)pensar os dizeres dos alunos acerca do papel dos professores em montagens teatrais no âmbito universitário, o autor se reporta a enunciados provenientes dos memoriais, colocando-os sob o prisma acentuado das vozes da educação. A justificativa para a interpretação de dados acerca da função docente inserido neste contexto formativo advém da seguinte assertiva: “o sujeito está em meio a um processo de montagem teatral, mas seu memorial não escapa do contexto educacional e das imagens que circulam em tal espaço” (GONÇALVES, 2019, p. 73). É pelos enunciados dos alunos que o autor reflete sobre o próprio sentido de ser professor.
A segunda seção procura analisar o(s) sentido(s) da autoridade que ecoa(m) a partir dos enunciados. Autoridade essa que, segundo Gonçalves, “aparece em meio aos diálogos e discussões propostas durante os processos de criação cênica” (GONÇALVES, 2019, p. 66). Com o título de Autoridade docente: quem decide?, são examinados importantes dados decorrentes do recorte e seleção de três memoriais de formação e que apontam para uma possível posição enunciativa do professor como uma das vozes que circulam na esfera universitária. Esta voz docente surge, na investigação, como versão aberta, propositora, sutil, responsiva, mas nem por isso desprovida de uma certa autoridade. O trecho escrito nesta seção ainda demarca noções de disciplina, persuasão, autoridade, sempre pelo viés da linguagem e do pensamento bakhtiniano, ou seja, a palavra autoritária e a palavra persuasiva, concluindo-se a seção com a segurança de que a voz docente, inserida neste contexto, não se pretende dotada de autoridade, todavia, “possui autoridade na própria posição discursivo-enunciativa da qual dialoga com seus outros, que no caso, são os acadêmicos” (GONÇALVES, 2019, p. 86).
Com o título Avaliação em teatro: vai ter nota?, a terceira seção traz à cena a avaliação docente: os olhares do professor para os processos de criação e para o produto final, a montagem teatral. A análise dos dados recai sobre os enunciados discentes relativos às formas com as quais o docente participa dos processos de criação no âmbito da montagem teatral universitária. A última seção do capítulo 1 da Parte II denomina-se A sala de aula de teatro: sala de ensaios? Aqui o “olhar interpretativo se direciona aos dizeres sobre a sala de aula, a noção de atividade em tal esfera e a sua relação com as angústias dos sujeitos quanto ao tempo necessário para desenvolvê-las” (GONÇALVES, 2019, p. 66). O autor descreve os enunciados e os possíveis sentidos daí extraídos a partir de menções ao espaço/sala de aula – como lugar físico de acontecimento das montagens – e ao tempo/durante as aulas – lugar da preparação corporal, dos jogos, dos ensaios, das trocas perceptivas, do diálogo, das oficinas – concluindo que nestes indicativos verbais ocorre uma aproximação efetiva entre as vozes do teatro e da educação.
O capítulo 2 da Parte II traz o título de Vozes do teatro na educação e as reflexões são tecidas a partir do complexo conjunto de enunciados que se referem aos diferentes sentidos do teatro na contemporaneidade. Estruturado em 3 seções, a saber: 2.1) Processos colaborativos de criação cênica: uma utopia?; 2.2) Encenação teatral: qual é mesmo o modelo?; 2.3) Teatro de grupo: somos um grupo?, o autor encena a cada final dos títulos das seções um ponto de interrogação. E é na/da interrogação que este capítulo se reveste ao trazer para o foco da cena duas questões: “quais as tendências contemporâneas no fazer teatral que acabam sendo recorrentes na prática universitária? Como os modelos de teatro feitos fora da universidade acabam constituindo as trajetórias criativas nessa esfera?” (GONÇALVES, 2019, p. 115). O autor aposta em uma reflexão pautada na precisão sobre a criação cênica como um espaço/lugar no qual as vozes da educação e do teatro, em relação dialógica, estão presentes.
Finalizando a obra, o texto Ensaio aberto traz as considerações finais sobre o processo investigativo, assumindo o seu “não acabamento e sua incompletude” (GONÇALVES, 2019, p. 22), como requerem os pressupostos de um estudo bakhtiniano.
Diante da inegável lacuna existente no campo dos estudos teatrais no que tange às afinidades e semelhanças entre o teatro, a educação e a linguagem e, especificamente, nas concepções metodológicas que vislumbram a prática educativa em teatro a partir da linguagem, o livro Teatro e Universidade: Cena. Pedagogia. [Dialogismo], de Jean Carlos Gonçalves, certamente contribui para a área da Educação ao lançar um olhar crítico para os processos educacionais presentes na montagem teatral no âmbito do ensino superior e também para os processos de performance teatral que acontecem no âmbito formativo e educacional.
Referência
GONÇALVES, Jean Carlos. Teatro e universidade: cena. pedagogia. [dialogismo]. São Paulo: Hucitec Editora, 2019. 172p. – Coleção Pedagogia do Teatro, Nº 23.
Nota
[1] Expressão que denomina o conjunto das produções dos autores [estudiosos de Mikhail Bakhtin e do Círculo] que desenvolveram a perspectiva dialógica da linguagem.