Interfaces entre educação profissional em alternância e formação integrada omnilateral: reflexões a partir da experiência da Escola Família Agrícola de Natalândia/MG

Interfaces between professional education in alternation and omnilateral integrated education: reflections from the experience of the Escola Família Agrícola of Natalândia / MG [Agricultural Family School of Natalândia / MG] - EFAN    


Daiane Aparecida Ribeiro Queiroz

Assistente Social no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Norte de Minas Gerais, Arinos, Minas Gerais, Brasil

daianeufes@gmail.com - https://orcid.org/0000-0002-0630-7092

 

Mad'Ana Desirée Ribeiro de Castro 

Professora Doutora no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás, Goiânia, Goiás, Brasil

mdrcastro16@gmail.com - https://orcid.org/0000-0002-0270-8251

 

Recebido em 07 de janeiro de 2019

Aprovado em 09 de janeiro de 2019

Publicado em 05 de maio de 2021

 

RESUMO

 O presente trabalho tem como tema a reflexão do processo educativo do curso técnico em alternância da Escola Família Agrícola de Natalândia-MG. O objetivo aqui proposto é analisar as aproximações entre a Pedagogia da Alternância, realizada na EFAN e a formação integrada omnilateral. Trata-se de um trabalho que se desenvolve nos marcos da pesquisa qualitativa, tendo como procedimentos técnicos o estudo de caso e como instrumentos de coleta de dados a observação livre; a pesquisa documental, utilizando como fontes de coletas de dados o Projeto Político-Pedagógico e o Plano de Formação; a entrevista semiestruturada direcionada aos pais e aos professores/monitores e o grupo focal realizado com estudantes do curso técnico em agropecuária integrado ao ensino médio.  Como resultado deste estudo, é possível notar que há evidenciado, nos documentos orientadores da EFAN e no processo educativo por ela desenvolvido, preocupação em desenvolver o pensamento crítico-reflexivo, a criatividade e a curiosidade dos estudantes com vistas à formação integral. Além disso, observa-se o estabelecimento do vínculo entre formação geral e formação profissional, a fim de permitir que os estudantes possam se apropriar das técnicas produtivas e de seus respectivos fundamentos científicos. Neste sentido, observa-se que o modo educativo da EFAN dialoga com a perspectiva da formação integrada omnilateral.

Palavras-chave: Pedagogia da Alternância; Formação Integrada Omnilateral; EFAN.

 

ABSTRACT

The present work has as its theme the reflection on the educational process of the Technical Course in Alternation of the Escola Família Agrícola de Natalândia-MG [Agricultural Family School of Natalândia / MG] - EFAN. The objective proposed here is to analyze the approximations between the Pedagogy of Alternation, conducted at EFAN, and the omnilateral integrated education. It is a work developed within the framework of qualitative research, using the case study as a technical procedure and free observation as an instrument of data collection. Also, documentary research, using as sources of data collection the Political-Pedagogical Project, the Educational Plan, the semi-structured interview directed to parents and teachers/monitors, and the focus group conducted with students from the Technical Course in Agriculture integrated with high school. As a result of this study, it is possible to perceive that there is, in the guidance documents of EFAN and about the educational process developed by it, a concern with developing critical-reflective thinking, as well as the creativity and curiosity of students with a view to integral education. Besides, it is possible to observe the establishment of a bond between general education and professional education that motivates students to take ownership of productive techniques and their respective scientific foundations. In this sense, it is observed that the educational way of EFAN dialogues with the perspective of omnilateral integrated education.

Keywords: Alternation Pedagogy; Omnilateral Integrated Training; EFAN.

Introdução

            O presente escrito tem como motivação a apresentação e análise de um processo educativo que indica as possibilidades efetivas de construção da formação integrada omnilateral, buscando na Pedagogia da Alternância, enquanto princípio e prática, esta possibilidade.

            Propostas pedagógicas baseadas na pedagogia da alternância têm sua origem na França, em 1935, como resultado do constructo social dos agricultores franceses na luta por uma escola diferenciada para os seus filhos, uma escola que possibilitasse aos jovens franceses permanecer no meio rural e nele ter acesso a uma educação que atendesse às necessidades específicas dessa população e que tivesse como pano de fundo o trabalho, a cultura e o modo dos trabalhadores do campo (SILVA, 2012; GIMONET, 2007).

Essa proposta educativa que teve seu limiar no sudoeste francês, se expandiu para outras regiões da França e, no início da década de 1960, registrou-se as primeiras experiências na Itália sob a denominação de Scuela Famiglia Rurali (SFR). Posteriormente, estabeleceu-se em outros países da Europa, América do Sul, África e Oceania.

No Brasil, a primeira experiência baseada na pedagogia da alternância se concretizou no estado do Espírito Santo, no final da década de 1960, quando foi criada a primeira Escola Família Agrícola com base na experiência italiana. Desde então, essas experiências se expandiram e se solidificaram em solo brasileiro.

            No que se refere ao estado de Minas Gerais, segundo dados da Associação Mineira das Escolas Família Agrícola (AMEFA), em 2018, o estado contava com 21 Escolas Família Agrícolas (EFAs) em funcionamento e 14 em processo de implantação. Dentre aquelas em funcionamento, destaca-se a Escola Família Agrícola de Natalândia (EFAN), localizada no noroeste do Estado, região marcada pela produção agrícola em larga escala, mas também por movimentos sociais em defesa pela reforma agrária, haja vista que a região é a que agrega o maior número de Projetos de Assentamentos (PA), quando se observa a relação total do Estado.

A proposta educacional baseada na alternância, que fundamenta não apenas as ações educativas da EFAN, mas também as demais experiências que nela se baseiam, consiste em conjugar diferentes tempos e espaços de formação com vistas a promover a articulação de conhecimentos entre escola, família e comunidade uma vez que as vivências, os costumes, a cultura e o saber-fazer são significativos nesse processo. Trata-se de um processo de ensino-aprendizagem que parte do vivido, da prática para, juntamente com ela, se chegar a um conhecimento mais amplo proporcionado pela teoria. Além disso, a alternância entre tempos e espaços como fundamento da Pedagogia da Alternância possibilita que o estudante permaneça no campo contribuindo com o trabalho rural e, ao mesmo tempo, possa ter acesso à educação (GIMONET, 2007; NASCIMENTO, 2003; SILVA, 2003).

            Nesse processo de desvelamento da realidade e buscando superar os obstáculos à efetivação de uma formação emancipatória, o conhecimento e as ações retornam à realidade como concreto pensado. Para tanto, os tempos e espaços são alternados entre a formação na propriedade e a formação teórica na escola (GIMONET, 2007).

            Por esta razão, a alternância não se configura como sinônimo de um ir e vir irrefletido entre espaços formativos. Compreendê-la como princípio pedagógico é reconhecer que estes dois ambientes se integram e não concebem a supremacia de um espaço em detrimento do outro. E é por meio dessa articulação entre esses espaços e a estreita relação entre os sujeitos que a constituem – escola, família e comunidade – que se efetiva, verdadeiramente, a alternância.

            Dada a importância dessa proposta, o presente texto traz um recorte da pesquisa realizada durante o Mestrado Profissional em Educação Profissional e Tecnológica e objetiva analisar o processo formativo desenvolvido pela Escola Família Agrícola de Natalândia/MG, fomentado pelos textos institucionais, e sob o olhar dos sujeitos que constituem o esteio da instituição (estudantes, pais monitores/professores)[1].

            Para tanto, a pesquisa foi conduzida a partir de uma abordagem qualitativa, sendo utilizados como instrumentos de coleta de dados a observação livre, a pesquisa documental, cujos objetos de análise foram o Projeto Político-Pedagógico (PPP) e o Plano de Formação; entrevistas semiestruturadas, com questões abertas direcionadas aos 3 monitores/professores e 11 pais, além de um grupo focal composto por 15 estudantes[2] do curso técnico em agropecuária integrado ao ensino médio.

            Destaca-se que a pesquisa se limitou a entrevistar monitores/professores que, no momento da pesquisa de campo, atuavam no primeiro ano do curso técnico integrado em agropecuária, já que, nesta turma, foi aplicada a técnica de observação simples. Os pais entrevistados na pesquisa de campo foram aqueles que, durante a realização da reunião de pais realizada na EFAN no limiar do ano de 2019, se prontificaram a participar da pesquisa. O grupo de estudantes, por sua vez, contempla estudantes dos três anos do curso técnico integrado em agropecuária que manifestaram interesse em participar da pesquisa.

Para preservar a identidade dos sujeitos desta pesquisa, os participantes foram identificados da seguinte forma: os estudantes foram identificados pela palavra adolescente, seguidos da numeração de 1 a 15, de acordo com a disposição no ambiente em que o grupo focal ocorreu. Já os pais foram identificados como pai ou mãe e os monitores/professores como monitores, ambos seguidos pela sequência em que as entrevistas foram realizadas.

Com base nessas informações, este trabalho, objetiva discutir as aproximações do processo educativo da Escola Família Agrícola de Natalândia/MG com os princípios da formação integrada omnilateral. Espera-se que as reflexões contribuam para lançar luz e desnudar uma temática ainda pouco discutida, sobremaneira no espaço acadêmico.

A trajetória da Pedagogia da Alternância

            O movimento de constituição dos Centros Educativos Familiares de Formação em Alternância CEFFAs transcende, em tempo e espaço, as experiências brasileiras, já que a história das Escolas Famílias Agrícolas remete-nos à França, em 1935, momento em que surge a ideia de uma escola que contemplasse uma formação geral, social e profissional, de modo a atender às necessidades específicas dos jovens do campo, daqueles que viviam a realidade rural, e que contribuísse com o desenvolvimento local (SILVA, 2012).

            Nesse período, a realidade agrária da França era marcada por um número considerável de pequenas propriedades familiares das quais se extraía a subsistência. Além disso, os camponeses viviam em situação de extremo abandono em relação às políticas públicas destinadas a assegurar os direitos básicos, como saúde e educação (SILVA, 2003).

            Diante deste contexto, com o apoio do pároco local, um grupo de agricultores organizou uma proposta educativa, denominada de Maison Familiale Rurale (MFR), cuja projeto se assentava na alternância entre tempos e espaços formativos: o tempo escola – formação geral e técnica em um centro de formação, e o tempo família – experiência cotidiana na propriedade agrícola. Nesse sentido, objetivava-se alternar “a formação agrícola na propriedade, com a formação teórica geral na escola que, além das disciplinas básicas, engloba uma preparação para a vida associativa e comunitária” (SILVA, 2003, p. 11).

              Essa proposta de ensino se solidificou e se expandiu pela França nos idos da década de 1950 e, gradativamente, chegou à Itália e a outros países europeus. Posteriormente, estabeleceu-se em outros países da Europa, África, Oceania e América do Sul.

             Conforme Begnami (2003), a primeira experiência brasileira surgiu no final da década de 1960, no sul do Estado do Espírito Santo, por meio da criação da Escola Família Agrícola no município de Anchieta. Essa primeira tentativa sofreu influências daquelas desenvolvidas na Itália e contou com a atuação do Padre Humberto Pietrogrande, da Companhia de Jesus (Jesuítas), com o apoio do Movimento de Educação Promocional do Espírito Santo (MEPES). Posteriormente, já na década de 1970, expandiu-se a criação para outras regiões do Estado e, na década seguinte, ocorreu a consolidação em outras regiões do Brasil.

            Chartier (1985, apud SILVA, 2003) chama a atenção de que, desde o início, estavam presentes nas MFRs as seguintes características: responsabilidade das famílias na gestão da escola por meio da criação de um conselho administrativo e de uma associação composta pelos pais e representantes locais; a vivência dos estudantes em pequenos grupos propiciada pelo regime de internato, no qual assumiam responsabilidades, inclusive pela manutenção da casa; composição de uma equipe de formadores que atuasse de acordo com as diretrizes do Conselho de Administração e a presença de uma pedagogia adaptada à realidade dos camponeses.

            Em meio a essas características, Queiroz (1997) aponta as acentuadas diferenças das MFRs em relação às demais escolas rurais, uma vez que seus currículos são formulados levando em consideração a realidade do estudante e de seus familiares. Além disso, os pais são coautores no processo de formação dos filhos, pois participam de toda a vida da escola, desde o acompanhamento dos filhos, quando estão no meio familiar, até a administração, coordenação e a manutenção na escola.

Neste sentido, é oportuno destacar que alternar significa que o processo de ensino-aprendizagem ocorre em tempos e espaços distintos que se articulam, de modo a possibilitar “uma formação contínua na descontinuidade das atividades” (GIMONET, 2007, p. 29). O primeiro espaço formativo é o ambiente sociofamiliar, é a realidade do estudante que permite a experiência, a realização de observações e investigações. Por sua vez, o segundo espaço é o ambiente escolar no qual o estudante partilha saberes com os demais atores sociais e os conceitualiza a partir de bases científicas. Após esse processo, retorna ao ambiente sociofamiliar, “a fim de continuar a práxis [...] seja na comunidade, na propriedade (atividades de técnicas agrícolas) ou na inserção em determinados movimentos sociais” (NASCIMENTO, 2003, p. 1).

É notório que, na dinâmica destes espaços formativos, estão presentes não somente os atores da instituição escolar como também a comunidade e a família. Como abordado por Gimonet (2007, p. 30), trata-se de uma “pedagogia da cooperação, uma partilha do poder educativo” que requer uma estreita vinculação entre os atores envolvidos para que se efetive a formação integral do estudante e se construa uma alternância integrativa[3].

Convém destacar ainda que a formação por alternância busca promover a integração do jovem com o seu meio, tendo como base uma “continuidade de formação numa descontinuidade de atividades”, a fim de proporcionar uma tomada de consciência dos problemas que não se limita ao jovem, mas também àqueles aos quais está intimamente ligado (pais, comunidade, dentre outros) (ROCHA, 2007, p. 10).

Trata-se de uma formação centrada na contextualização do estudante, reconhecendo-o não como objeto do processo formativo e, sim, como o ator principal do processo. Acerca disso, Rocha (2007, p. 11) diz que

o alternante não é um aluno na escola, mas um ator socioprofissional que entra em formação permanente. Com eles pratica-se uma estratégia personalista, isto é, do “eu” no meio dos “nós” e de ambientes; estratégia de cooperação educativa porque cada alternante, através de sua experiência de vida pessoal (familiar, profissional, social, cultural, etc.) é portador de saberes a serem transmitidos.

O “eu” no meio de “nós”, engendrado por um processo educativo que reconhece a necessidade de compreender os processos histórico-sociais que permeiam a sociedade e as relações de poder que a entremeiam, possibilita formar sujeitos emancipados que refletem sobre a sua realidade, reconhecendo-a como parte de um todo. Além disso, contribui para que o estudante se torne autônomo, atores socioprofissionais e socioculturais, “porque o processo convida a dominar a si próprio, a interagir, a assumir as dependências e a trabalhar as interdependências, mas ficando, todavia, dono de si próprio, gerindo-se e conduzindo-se” (GIMONET, 2007, p. 125).

Isso implica dizer que a alternância não se constitui como sinônimo de rotação automática entre espaços desconectados. Compreendê-la como princípio pedagógico é reconhecer que estes dois ambientes (família e escola) se integram e não concebem a supremacia de um espaço em detrimento do outro. Isso significa

articular universos considerados opostos ou insuficientemente interpenetrados – o mundo da escola e o mundo da vida – a teoria e a prática, o abstrato e o concreto – a alternância coloca em relação diferentes parceiros com identidades, preocupações e lógicas também diferentes: de um lado, a escola e a lógica da transmissão de saberes e, de outro, a família e a lógica da pequena produção agrícola. (SILVA, 2003, p. 12).

 Nesta perspectiva, fazendo uso das acepções atribuídas por Gimonet (2007, p. 124-125), entende-se que o sentido da Pedagogia da Alternância deve ser o de “articular, distinguir sem desunir, associar sem reduzir” a vida e a escola; a formação geral e a formação profissional; os campos de saberes (da vida e dos programas escolares); os atores do processo de formação (estudantes, pais, monitores, dentre outros) e os tempos de vida do estudante, aqueles vivenciados por meio da sucessão de períodos entre o meio sociofamiliar e escola, como também a vida passada e futura.

À luz destes sentidos é possível efetivar uma proposta educativa que não se limite a alternar tempos e espaços formativos, mas cujo processo de construção do conhecimento se concretize por meio da tríade ação-reflexão-ação.

Formação integrada omnilateral: princípios e perspectivas

            A natureza do curso ofertado na EFAN e os propósitos deste artigo indicam a necessidade, nos limites deste escrito, de discutir os princípios da formação integrada omnilateral. Estes foram inicialmente formulados por Marx e Engels como resposta ao processo histórico que instituiu a propriedade privada e a divisão do trabalho e a consequente cisão da formação dos trabalhadores no momento de consolidação do capitalismo. De forma tensionada, impulsionada pelas disputas entre projetos educativos antagônicos, a formação integrada, ou parte do que historicamente foi possível efetivar, está presente na Lei de Diretrizes e Bases (LDB), nº 9.394/1996, no seu Art. 36 C, e no processo educativo da Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica, amparado pela Lei nº 11.892/2008, no item I do Art.7º, por exemplo.

            Segundo Manacorda (2007), Marx e Engels indicam a necessidade de que instrução e trabalho (como articulação entre teoria e prática) estejam vinculados; referindo-se à sociedade comunista, onde a propriedade privada e a divisão de trabalho estarão superados e as necessidades de todos supridas, os homens novos deverão desenvolver suas aptidões em todos os sentidos, ou seja, de maneira omnilateral, rompendo assim com a formação unilateral e, com ela, seus aspectos alienantes. Chamaram atenção ainda para que os estudantes tivessem acesso aos fundamentos científicos gerais de todos os processos da produção e que pudessem fazer uso prático e manejo dos instrumentos elementares de todos os ofícios.

            No exposto acima, apreende-se que formação integrada omnilateral é resposta a uma situação formativa histórica que perdura nos dias atuais. O propósito fundante é a busca pela formação de todas as potencialidades do homem. Neste processo, é importante efetivar uma educação que se assente na relação entre teoria e prática e na apreensão dos fundamentos científicos e tecnológicos dos processos produtivos e da apropriação dos instrumentos e seus manejos na produção. A finalidade para Marx e Engels, em relação à instrução, é a realização da liberdade. Portanto, a formação omnilateral compreende

a chegada histórica do homem a uma totalidade de capacidades produtivas e ao mesmo tempo, a uma totalidade de capacidades de consumo e prazeres, em que se deve considerar sobretudo o gozo daqueles bens espirituais, além dos materiais, e dos quais o  trabalhador tem estado excluído em consequência da divisão do trabalho. (MANACORDA, 2007, p.96).

            A proposição e efetivação de uma formação integrada omnilateral traz implicações importantes. É uma perspectiva educacional intimamente vinculada com mudanças estruturais da sociedade atual. Isto porque sua natureza histórica se realiza na superação da propriedade privada, da divisão do trabalho e dos processos de alienação inerente a ela. O que se vislumbra, segundo Chauí (2006, apud Barbosa, 2017, p. 39) é a “busca de construção da integridade humana que tem componentes éticos indissociáveis, como por exemplo, a autonomia, a responsabilidade e a liberdade”. É, portanto, uma proposição educativa que “só pode cumprir com sua finalidade de formar na perspectiva da totalidade se assumir a liber­dade como utopia e mantiver íntima vinculação com o projeto político de construção de uma sociabilidade para além do capital (ARAÚJO; FRIGOTTO, 2015, p.64)”.

Ramos (2007), ao tratar da relação entre ensino médio e educação profissional, propõe uma análise do conceito de integração em três acepções que não podem ser analisadas de modo isolado, uma vez que uma é complemento da outra. Deste modo, indica três sentidos para a formação integrada: a formação omnilateral, isto é, a formação do homem por inteiro; a indissociabilidade entre educação profissional e educação básica; e a integração entre conhecimentos gerais e específicos.

O primeiro compreende a formação como integração das dimensões do pensar/fazer humano, quais sejam: o trabalho, a ciência e a cultura. Segundo a autora, o trabalho como dimensão da produção da vida humana e como realização histórica, no tempo e espaço; a ciência compreendida como possibilidade do avanço contraditório da produção; e a cultura, que evidencia os valores éticos e estéticos que orientam as normas de conduta social. Assim, o homem não se realiza apenas em uma destas dimensões. Trabalho, Ciência e Cultura, que se colocam como especificidades do pensar/fazer do homem em resposta às necessidades da realização da vida, são desenvolvidos dentro de uma totalidade espaço-temporal e, mutuamente, se determinam.

O segundo sentido é a integração entre formação profissional e Educação Básica, reconhecida pela legislação atual, e que aproxima modalidade e níveis formativos. Ainda que as experiências desta integração não realizem em sua totalidade, representam a possibilidade de acesso da classe trabalhadora a uma educação de qualidade em um país dependente e subordinado. Além disso, esta aproximação cria ambiente de diálogo e possibilidades de compreender a formação para o mundo do trabalho em sua íntima relação com a ciência e a cultura, conteúdos da Educação Básica, ao mesmo tempo que a profissionalização lembra que ciência e cultura integram a produção da vida que se dá por meio do trabalho.

Neste ponto, deve-se estar presente o terceiro sentido, que é a relação entre conhecimentos específicos e gerais. Nesta, tem-se que os conhecimentos específicos são construções históricas, foram elaborados a partir das necessidades de reprodução da vida do homem - que é realizada nos embates entre diversas perspectivas políticas e interesses de classe. Diz-se, então, que a formulação dos conhecimentos específicos assume finalidades e objetivos sociais.

O desvelamento desta condição é dado quando se promove a reflexão dos conhecimentos específicos à luz das ciências e da cultura. Da mesma maneira, a formação geral, destituída das condições em que o homem realiza o trabalho e responde às necessidades mais imediatas da reprodução da vida, torna-se um emaranhado de formulações ocas, generalistas, que pairam pelo ar, demonstrando o seu desenraizamento da ação do homem na construção da vida. Nestas condições, não tem significado, pois realiza-se como enormes listas de informações a serem “decoradas” ou rituais de “cultura” que dizem pouco sobre a sociedade e suas relações.

Ainda sobre a formação integrada como resultado da articulação entre formação geral e formação profissional (específica), Barbosa (2017) chama a atenção para o fato de que somente é possível entender essa articulação na perspectiva da omnilateralidade se houver interligação entre os fundamentos pedagógicos e políticos e se o currículo for integrado permitindo uma formação humana com vistas à transformação social. De modo contrário, a formação integrada pode ocorrer pela via tecnicista por meio da qual “[...] os processos e fundamentos pedagógicos estão submetidos ao mercado, à divisão internacional e social do trabalho e à reprodutibilidade técnica” (BARBOSA, 2017, p. 40).

            Considerando que a formação integrada omnilateral responde pela edificação do homem por inteiro, a partir do desenvolvimento das potencialidades que o compõe dentro da complexidade do movimento contraditório e mediatizado de totalidade, o diálogo interdisciplinar se coloca como reposta e possibilidade de afirmação deste novo homem. Nesse sentido, Barbosa (2017, p. 75), sobre a relação entre formação integrada e interdisciplinaridade, diz que não se trata de uma soma “é, de fato, um imbricamento. O pressuposto é de que a formação integrada omnilateral exige a capacidade de integrar saberes possibilitados pela interdisciplinaridade. Há, portanto, uma semelhança e uma complementaridade entre seus objetos e objetivos”.

            Posto os princípios fundantes e a finalidade da formação integrada omnilateral, a questão que vem se colocando, desde então, é a necessidade de realizar o ensino integrado omnilateral, tendo como contexto a hegemonia de processos educativos acríticos, individualistas (assentados na meritocracia) ou intimamente vinculados às demandas formativas da produção capitalista.

            Barbosa (2017) compreende que a Escola Unitária, proposta por Antônio Gramsci e exercitada minimamente em Turim pelos Conselhos Operários entre 1919 e 1920, constituiu-se em possibilidade de efetivação da formação integrada omnilateral. Para Gramsci, esta escola deveria “superar a separação entre trabalho intelectual e trabalho manual, o que seria possível ao existir um currículo que privilegiasse tanto as disciplinas escolares convencionais [...] quanto a preparação para o trabalho”. Além disso, que proporcionasse a todos o acesso aos bens culturais, independente da sua origem de classe (Barbosa, 2017, p.37).

            A Escola Unitária, na sua última fase, segundo Gramsci (1995), que tem como objetivo criar os valores fundamentais do humanismo, a autodisciplina intelectual e a autonomia moral necessárias a uma posterior especialização, deve ser campo, portanto, de desenvolvimento de estudos e aprendizagens por meio de métodos criativos na ciência e na vida. Nesse sentido, a Escola Unitária é ativa, contudo, diferentemente das proposituras liberais. Assim,

a escola criadora não significa escola de “inventores” e “descobridores”, ela indica uma fase e um método de investigação e de conhecimento, e não um “programa” predeterminado que obrigue à invenção e à originalidade a todo custo. Indica que a aprendizagem ocorre notadamente graças a um esforço espontâneo e autônomo do discente, e no qual o professor exerce uma função de guia amigável, como ocorre ou deveria ocorrer na Universidade. (GRAMSCI, 1995, p.124).

            Araújo e Frigotto (2015), baseando-se, de modo especial, nas contribuições de Pistrak (2009), discutem possíveis práticas pedagógicas para a efetivação do projeto de formação integrada no ensino médio, ressaltando, contudo, que estas precisam ser fundamentalmente ético-políticas. Ressaltam como procedimentos metodológicos importantes a vinculação da formação à realidade dos estudantes, a valorização da atividade e da problematização como forma de desenvolvimento da autonomia e a promoção do trabalho coletivo, como via para o exercício solidário entre eles e na sociedade.

Em última instância, a formação integrada busca superar a condição do ser que é reiteradamente cindido pela divisão social do trabalho, entre aqueles que executam e aqueles responsáveis por pensar, refletir ou dirigir; entre aqueles que desenvolvem o trabalho simples e aqueles que desenvolvem o trabalho complexo, típicos do modo de produção da vida sob o capitalismo. E, ancorada na perspectiva ético-político de emancipação, vislumbra outra sociedade, outro homem. Isto porque o apartamento do homem impede o desenvolvimento das potencialidades humanizadoras que levam à realização de uma vida boa para todos.

A seção seguinte apresenta análises das relações estabelecidas entre os documentos e os processos educativos efetivados pela EFAN, pautados pela Pedagogia da Alternância e a formação integrada omnilateral.

Processo formativo da EFAN e suas aproximações com a formação integrada omnilateral

a)  Os textos institucionais

             O Projeto Político-Pedagógico (PPP) de 2018 e o Plano de Formação de 2015 da EFAN são os documentos norteadores da proposta de formação ofertada pela instituição, pois circunscrevem o planejamento escolar ao expressar os objetivos, conteúdos e atividades a serem desenvolvidos ao longo do ano letivo.

Ao analisar os textos institucionais, foi possível notar que a proposta educativa de nível médio da instituição se pauta na integração curricular entre ensino médio e ensino técnico. Tal evidência se expressa, dentre outros, por meio da integração entre disciplinas específicas do curso técnico, neste caso, do curso técnico em agropecuária, e as disciplinas da formação geral, além de conteúdos vivenciais que permitem a integração entre a experiência prática no meio social e os conteúdos teóricos.

Nestes documentos, estabelece-se também que o processo formativo fundamenta-se na alternância entre o tempo-escola e o tempo-família num processo educativo que, como bem aponta Gimonet (2007), tem como ponto de partida a experiência da vida quotidiana que caminha em direção à teoria para em seguida retornar à experiência, valorizando o contexto social, a cultura e as vivências dos estudantes. Nesta direção, o PPP chama a atenção para o fato de que o meio social representa o eixo central do projeto pedagógico, pois a experiência de vida não é somente o ponto de partida, mas também o ponto de chegada do processo de ensino e aprendizagem, uma vez que “[...] os jovens retornam ao seu meio com propostas de atividades concretas para aplicação e experimentação” (ESCOLA FAMÍLIA AGRÍCOLA DE NATALÂNDIA, 2018, p. 12).

A opção por um processo educativo que visa a integração entre naturezas formativas diferentes - historicamente criadas - ou seja, geral e técnica, e, com ela, o fim  da separação entre teoria e prática, por meio da adoção de um currículo constituído por disciplinas vinculadas à formação geral e à profissionalização, remete ao princípio da formação integrada que compreende o estudante (os homens em geral) como ser de totalidade, ontologicamente inteiro e que foi cindido pelo estabelecimento da divisão social do trabalho que provocou, ao mesmo tempo,  aumento da produção e  mutilação do homem (MANACORDA, 2007). Nesta perspectiva, o Projeto Político Pedagógico (PPP) (ESCOLA FAMÍLIA AGRÍCOLA DE NATALÂNDIA, 2018, p. 8-9) ainda define como objetivos:

Proporcionar a apropriação de conhecimentos – da ciência, tecnologia, da cultura e do trabalho – envolvidos de forma indissociável na atuação enquanto Técnicos em Agropecuária e cidadãos;

Realizar a integração dos conhecimentos científicos, culturais, técnicos e tecnológicos;

Proporcionar a compreensão do significado da ciência, das linguagens contemporâneas e das transformações históricas, sociais e culturais pelas quais passaram a sociedade.

O documento postula também o vínculo entre processo formativo com a realidade dos estudantes. Esta relação é, para a Pedagogia da Alternância, o fundamento que tem possibilitado aos estudantes do campo a permanência na escola e a continuidade e melhoramento do seu trabalho no campo junto às famílias. Este vínculo, mais que uma estratégia didática, assume caráter orgânico, ou seja, de produção da vida, que, neste caso, se dá na relação entre escola e família, entre educação e trabalho, entre reino da necessidade e reino da liberdade. Esta perspectiva posta pela Pedagogia da Alternância vai ao encontro dos princípios da omnilateralidade, pois requer que os processos formativos considerem o contexto histórico para se desenvolver (ARAÚJO; FRIGOTTO, 2015; BARBOSA, 2017). Caso contrário, conhecimentos e métodos pedagógicos se tornam “ocos”, acentuadamente formais e alheios às demandas sociais.

Outra premissa da formação integrada omnilateral é a proposição de situações formativas que instiguem a constituição de sujeitos que combinem formação teórico-prática e consciência ético-política (ARAÚJO; FRIGOTTO, 2015; BARBOSA, 2007; RAMOS, 2007). Preocupação também evidenciada pelo PPP quando objetiva “oferecer aos educandos uma formação mais completa, de caráter integral para a leitura do mundo e atuação como cidadão pertencente à sua Comunidade, seu município, estado e país, integrado dignamente a sua sociedade política” (ESCOLA FAMÍLIA AGRÍCOLA DE NATALÂNDIA, 2018, p. 8).

Baseando-se nos objetivos traçados no mencionado documento, é possível perceber, portanto, que o horizonte para o qual aponta o processo formativo da EFAN se alicerça na perspectiva de uma formação dos sujeitos em suas múltiplas dimensões, em sua totalidade, omnilateralidade, uma vez que assume o compromisso com a formação integral dos estudantes e não apenas com a oferta de um curso que prima pela profissionalização restrita dos jovens do campo. Ou seja, aquela pautada pelas pedagogias liberais que subordinam a educação aos princípios do individualismo-meritocrata, do tecnicismo e de uma visão acrítica do mundo.

Sobre a formação crítica dos estudantes, no âmbito do processo de apreensão dos conhecimentos, dois objetivos do PPP destacam a sua importância: 1) desenvolver o espírito de curiosidade crítica acerca dos elementos em estudo, visando ao conhecimento do todo e não apenas das partes; 2) promover eventos como seminários, exposições, divulgações de trabalhos científicos da área propedêutica e da agropecuária, contribuindo para a participação crítica (ESCOLA FAMÍLIA AGRÍCOLA DE NATALÂNDIA, 2018, p. 8-9). Sobre eles, é possível destacar ainda que, ao propor o desenvolvimento da curiosidade e participação crítica na apropriação do conhecimento, o PPP busca traçar caminhos para que a relação entre teoria e prática possibilite não apenas a compreensão de técnicas produtivas, com vistas a formar técnicos especializados, mas, sobretudo, compreender os fundamentos científicos, proporcionando ao estudante conhecer a multiplicidade de processos de produção para “[...] estar em condições de desenvolver as diferentes modalidades de trabalho, com a compreensão de seu caráter, sua essência” (SAVIANI, 2003, p. 140).

Recupera-se aqui uma premissa básica da omnilateralidade que compreende ser necessário, por parte do aprendente, a apreensão dos fundamentos gerais de todo o conhecimento que institui o processo produtivo e não apenas parte dele (MANACORDA, 2007). Nestas condições, os sujeitos poderão constituir sua autonomia na medida em que, de posse dos “segredos” da produção econômica da vida, não ficam refém das demandas pontuais e específicas do mercado de trabalho. Há maiores possibilidades de se movimentar ao longo da cadeia produtiva, ou mesmo fora dela, instituindo novas formas de produção, assentadas em princípios, como, por exemplo, da economia solidária, cooperativismo, dentre outros.

Nessa perspectiva, o Plano de Formação, ao enunciar a estruturação da alternância educativa, descreve a necessidade de que os temas e conteúdos abordados contribuam para a emancipação dos jovens do campo. Além disso, esse documento destaca a necessidade de integrar conteúdos humanísticos que permeiam a formação geral com os conteúdos da formação técnica numa perspectiva interdisciplinar, a fim de oportunizar a “[...] integração de conteúdos vivenciais práticos da experiência no meio com os conteúdos escolares, teóricos” (ESCOLA FAMÍLIA AGRÍCOLA DE NATALÂNDIA, 2015, p. 59). A ação interdisciplinar tornou-se modo de efetivação da formação omnilateral, pois unicamente as disciplinas e seu escopo restrito de atuação, não conseguem sozinhas dar respostas à complexidade social e à formação do homem por inteiro (ARAÚJO; FRIGOTTO, 2015; BARBOSA, 2017).

Evidenciados, em linhas gerais, os princípios e perspectivas do processo educativo traçados nos textos institucionais e realizadas algumas aproximações com a formação integrada omnilateral, discutir-se-á sobre o campo do vivido pela EFAN, como expressão da comunidade escolar.

b)  O processo educativo da EFAN

Processos formativos que têm como norte a Pedagogia da Alternância são marcados por um continuum de formação entre o tempo-escola e tempo-família. Isso implica dizer que não deve haver uma cisão entre eles, tampouco uma suspensão das atividades escolares durante o período em que o estudante permanece no contexto familiar, pois a alternância se impõe como uma formação contínua na descontinuidade de atividades (GIMONET, 2007).

Essa articulação entre os diferentes espaços e tempos, entre o aprendizado no contexto escolar e no contexto familiar, possibilita que, para além da escola, o ambiente sociofamiliar também se configure como campo do saber e da partilha de conhecimento. O conhecimento, portanto, não se restringe aos muros escolares, mas está presente também nas relações sociais e produtivas que permeiam a realidade dos estudantes.

Esse processo permite que trabalho e educação se constituam a partir de um vínculo orgânico que faz com que o trabalho desenvolvido na atividade produtiva seja compreendido como princípio educativo para este modo de ensino, isso porque, desde a gênese da Pedagogia da Alternância, a necessidade de continuar o trabalho no campo fomentou a criação de um processo pedagógico que se configurasse como parte integrante da vida produtiva, e essa como parte da educação.

Em outros termos, pode-se dizer que, por sua natureza, a Pedagogia da Alternância tem no trabalho uma dimensão imprescindível para o processo formativo. Quando assumido em sua natureza ontológica, o trabalho se configura como fundamento educativo e promotor de outras dimensões da vida humana, colaborando, deste modo, para a melhoria da vida da comunidade à qual o estudante pertence, uma vez que a alternância proporciona aplicar “[...] aquilo que ele [o estudante], é, aprendeu aqui, na comunidade dele, na prática” (MONITOR 3), “[...] ajudando a família e também ajudando o seu próprio aprendizado” (ADOLESCENTE 15). Essa relação também pode ser apreendida nas falas abaixo

E em casa, porque, quando eles vão para lá, eles trabalham na roça comigo, já é um trabalho que eles levam daqui para ser feito, junta a teórica e a prática que eles estão estudando. (PAI 3).

Então assim, essa foi uma das que eu lembro, né, a aplicabilidade, porque não é aquela matemática que passa no quadro e você x, y e num passa a ser real. Ela passou a ser real pra nós. É, eles conseguem aplicar a metodologia no dia a dia. A medição do... quando eles vão plantar alguma coisa, a medição que eles usam no plantio é a medição que eles usam pra aferir os animais, pra acompanhar o desenvolvimento. Então, que eles aprenderam na sala de aula, eles aplicam naquele dia a dia e eles chegam em casa e falam, é o tamanho de uma planta, o período que ela vai demorar pra desenvolver é a questão da quantidade de adubo, a quantidade de terra e isso, é isso, é a matemática que eles aprenderam lá e eles colocam em prática, né (MÃE 8).

            Na condição ontocriativa[4], a relação trabalho e educação assenta-se como totalidade social, e seu pensar e fazer são partes que dialeticamente estabelecem nexos e mediações que buscam a formação do homem por inteiro. Neste caso, o esforço é a articulação, conforme assinalado na segunda parte deste escrito, entre trabalho, ciência e cultura, pois, no processo produtivo e educativo, são chamados a contribuir para a formação dos estudantes e o desenvolvimento da produção. Pode-se perceber que estas preocupações e práticas são indicadas nas falas abaixo:

[...] antes de começar as aulas, tem a reunião com os pais, formação das famílias, é feito um questionário com os pais [...]. Ali, faz ali com os pais quais são os temas mais relevantes que eles gostariam que, além da formação das disciplinas que têm, que eles gostariam que os alunos tivessem um conhecimento, que tivesse um estudo daquele tema fora das disciplinas. (MONITOR 3).

[...] na colocação em comum[5], né? Que é o momento em que o aluno vai trazer aquelas informações do Plano de Estudo e socializar, né. [...] é importante também porque nós acabamos verificando que há diversas expressões culturais, diversas formas de se fazer uma coisa, né. Imagina que nós estamos aqui, Riachinho, Urucuia estão muito próximo, né? E se você for pegar a forma como se faz uma cerca em Natalândia é totalmente da forma como se faz uma cerca em Riachinho, em Buritis, em João Pinheiro, né? É diferente. Cada região, [...] tem um comportamento diferente [...] até a forma de conversar particular. [...] eles passam a entender que cada região tem uma cultura diferente [...] (MONITOR 1).

Sobre a questão cultural, o Monitor 3 faz um relato significativo:

[...] nós chamamos várias expressões culturais para dentro da instituição de ensino, onde os alunos vão vivenciar isso, né? Coisas que não são muito normais para essa nossa região, né? A gente pega culturas afrodescendentes, né? E não apenas assim, encenação apenas, pessoas que vivem daquilo, né? Que aquilo é rotina, é vida delas e traz para dentro da escola, acho que o menino tem ampliação da sua visão de mundo.

            As expressões culturais não são tratadas como folclore, como algo exótico. Há a necessidade de superar o folclore como premissa para desenvolver uma formação ético-política (GRAMSCI, 1995).  É significativo que haja interação com aqueles que demonstram que a cultura é um modo de ser dos grupos, da sua visão de mundo e da forma como se organizam para estar no mundo. Não é um fenômeno estático, vazio de conteúdo humano. Ao contrário, expressam a diversidade de respostas que os homens dão para a reprodução da vida, em suas muitas necessidades e dimensões.

            Outro princípio importante da formação integrada omnilateral é o estabelecimento do vínculo entre a formação geral e a formação profissional e, neste mesmo processo, a integração entre formações distintas, a fim de que se possa permitir que os estudantes se apropriem de conhecimentos que permitam a sua inserção na vida produtiva dignamente, conforme destaca Ramos (2007). Essa é a natureza do Curso Técnico em Agropecuária. Deste modo, integrar não se limita a uma simples descrição nos documentos institucionais ou a uma junção entre disciplinas que contemplam a formação técnica e a formação geral. Isso porque a integração se externa no processo educativo da EFAN, conforme destacado nas falas que se seguem:

Ela tem duas vertentes, tem uma que é da Base Nacional Comum, que isso é em todas, e a outra é da parte técnica. Só que, além dessa parte técnica, entra algumas disciplinas também dentro dessa ideia, que é justamente para formar a pessoa como um cidadão. Por isso que dentro da escola, por exemplo, tem várias atividades diferentes. (MONITOR 2).

Às vezes, por exemplo, em outra instituição que tem o curso técnico, mas ali ele está visando mais [...] a questão técnica mesmo de produzir, de consumir, consumismo, capitalismo, de trabalhar naquela função mesmo. E aqui a formação técnica não é só para isso, a formação cidadã, mais cidadão crítico, a questão social mesmo do ser humano e que esses técnicos têm assim, a visão de desenvolver projetos e trabalhar na sua própria comunidade ali, não precisa de ir para certa empresa e tal. Pode desenvolver com as suas técnicas, pode desenvolver na sua comunidade e fazer o desenvolvimento do meio ali mesmo para poder contribuir, né, assim, de forma pra ele mesmo. (MONITOR 3).

Então na minha experiência assim, eu acho a experiência muito ótima, que eu aprendi muita coisa que eu não aprendia no meu antigo colégio, tanto na parte nacional comum que eu não, realmente, eu não tinha interesse com nada, na verdade. Então eu desenvolvi muito depois que eu vim pra cá. [...] Então, é assim, é um, é um, é uma coisa que te abre umas porta pra um mundo diferente Então eu acho assim que o conceito deles que eles tentam trazer é preparar a gente pro mundo lá fora, porque realmente como tá hoje em dia não é tão fácil assim, né? Então, é mais uma preparatória pra gente mesmo pro mundo que tá aí fora. (ADOLESCENTE 10).

            As falas acima rememoram a perspectiva de uma formação integrada que compreende a educação sob a égide da completude, da totalidade, que busca superar a formação como sinônimo de uma simples preparação para o trabalho, que possa proporcionar ao estudante “[...] uma formação completa para a leitura do mundo e para atuação como cidadão pertencente a um país, integrado dignamente a sua sociedade política” (CIAVATTA, 2012, p. 85). De outro modo, pode-se dizer que a formação na EFAN busca contrapor-se a uma formação unilateral, fragmentada, uma vez que propõe uma formação omnilateral que objetiva formar sujeitos emancipados, críticos e que sejam protagonistas do meio social que ocupam (MANACORDA ,2007; ARAÚJO; FRIGOTTO, 2015).  

Essa defesa é possível de ser assinalada tendo como base a avaliação da proposta educativa realizada pelos monitores, por meio da qual apontam que a EFAN visa colaborar com a construção de uma visão crítica acerca da realidade, para a ampliação da visão de mundo e para proporcionar maior interesse pelos estudos. Salientam ainda que a formação na EFAN tem contribuído para que os estudantes deem prosseguimento aos estudos, ingressando em cursos superiores de muitas universidades públicas.

É de sempre ofertar para o menino um ensino crítico, acima de tudo, tanto é que os meninos criticam até demais, às vezes, né? E a gente, claro, sempre tenta colocar na mente deles que para criticarem, tudo que você criticar sempre apresentar uma solução, não só criticar por criticar, né? [...] Nós queremos que os nossos alunos eles consigam cada vez mais adentrarem em universidades públicas né? e assim é o sonho de todo pai, né? É o sonho de toda mãe, é o sonho do menino que ele passe a ter as vezes aqui dentro, porque ele vem pra cá não com essa perspectiva e, claro, se ele não quiser, ele tem o curso técnico, vai gerenciar a propriedade da família, vai obter uma renda, talvez até superior a de quem faz a graduação, né? (MONITOR 1).

Olha, assim, a avaliação dos alunos eu acho muito que é bem diferenciada [...] assim, a avaliação, a formação diferenciada de qualidade, né, de muitas oportunidades também, né, uma vez que o aluno conclui ou estuda aqui eles têm várias oportunidades de entrar na Universidade, de entrar, fazer outros cursos, e na formação, a questão, a formação ética, a questão da formação cidadã [...] (MONITOR 3).

Araújo e Frigotto (2015) e Barbosa (2017), destacam que os procedimentos pedagógicos (didáticos) para a efetivação da formação omnilateral necessitam criar situações que instiguem o pensamento crítico-reflexivo, a curiosidade, a criatividade, importantes aspectos para a constituição da autonomia dos estudantes. Nesse sentido, o processo educativo efetivado na EFAN tem se preocupado com estes procedimentos.

Bom, a colocação em comum, basicamente, reúne os quatro tutores dos alunos, é...em sala de aula. Aí tipo, o meu tutor leva a questão, eu respondo. Aí já vem outra pessoa de outro grupo já responde e vai debatendo, né, dentro da sala de aula. Mesma questão é respondida por quase todos os alunos da sala. Tipo, minha resposta, eu falo uma resposta, ela não tá completa totalmente. Aí outra pessoa vai e responde, aí assim responde todo o tema (ADOLESCENTE 6).

É, a colocação em comum aqui é... mais ainda pode ser considerada como uma troca de saberes, é porque você chega com seu artigo pronto, seu trabalho pronto, você vai na frente apresenta juntamente com seus, mais uns quatro, cinco alunos e vocês vão lá e discutem sobre esse, esse tal tema. O resto da sala, eles fazem pergunta pra você e enquanto você explica o que você entendeu, você mesmo tira suas dúvidas com as perguntas deles (Adolescente 4).

            Os documentos institucionais e o expresso pelos sujeitos desta pesquisa acerca do processo educativo do curso técnico em alternância da EFAN indicam que há um trabalho de “edificação” de um novo homem, diferente do que se apresenta hegemonicamente atualmente. Há aproximações entre este processo e a omnilateralidade. O quanto esta educação tem efetivamente alcançado, considerando as contradições inerentes à sociedade, é mote para outras reflexões e pesquisas.

Considerações finais

            Neste artigo, e dentro dos seus limites, buscou-se apresentar as aproximações entre o processo educativo realizado sob os pressupostos da Pedagogia da Alternância e a formação integrada omnilateral.

            Com base nos documentos institucionais e nas falas descritas, é possível indicar que há, no processo formativo da EFAN, pautados na alternância aproximações significativas com os princípios e proposições pedagógicas vinculadas à formação integrada omnilateral. Evidenciam-se preocupações com o desenvolvimento das diversas potencialidades dos estudantes, visando uma formação “por inteiro”. Como desdobramento, a busca é pela constituição de uma visão crítica do mundo e a “elevação” ético-política destes estudantes. Optam pela integração entre teoria e prática quando promovem o diálogo entre formação geral e formação específica (profissional) e também para que eles se apropriem, o máximo possível, dos conhecimentos gerais (fundantes) da atividade/ramo produtivo do curso.

            Princípios e objetivos como estes exigem o uso de procedimentos pedagógicos que instiguem os estudantes, por meio de problematizações, ao desenvolvimento do pensamento autônomo e que apure o senso curioso, crítico e solidário destes. Neste estudo de caso, a Pedagogia da Alternância realizou premissas significativas da omnilatralidade. Afinal a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte, como dizem os Titãs, na música “Comida”.

            Sabe-se, contudo, que o processo educativo como o desenvolvido pela EFAN não são hegemônicas e que, para a sua efetivação, foi necessário um significativo envolvimento dos movimentos sociais na sua implantação. Por essa razão, é necessário que haja uma articulação para o estabelecimento de políticas de Estado que se comprometam com elas. Há necessidade, em última instância, de pensar e realizar um outro projeto de nação. Mas a existência destas ações é que vai criando as contradições e as possibilidades de surgir alternativas educativas para as que estão aí hoje fortemente vinculadas às demandas da reprodução do capital. Até então, essas se manifestavam na educação profissional, mas, hoje, com a pedagogia das competências, está posta desde a educação infantil.

            Estudar, pesquisar e socializar experiências que colocam proposituras e processos contra-hegemônicos, afirmando e realizando uma escola que, como ensina os princípios da formação omnilateral, não fique refém de processos educativos que repõem a fragmentação do homem, a sua consciência e seu exercício político, se colocam como forma de resistência e de desvelar que é possível construir uma outra educação, que reintegre o homem, apesar de tantas desintegrações.

Referências

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Notas



[1]Nesta pesquisa, faz-se uso da distinção entre professor e professor/monitor. Neste caso, professores são os profissionais contratados para ministrar aulas de determinada disciplina, restringindo suas atividades à sala de aula. Por sua vez, os monitores também são professores, contudo, além dessa atividade, são os responsáveis pelo acompanhamento diário dos estudantes no ambiente escolar e no meio sociofamiliar. Como se trata de uma escola em tempo integral, geralmente os monitores moram nas dependências da escola ou passam a maior parte da semana no ambiente escolar. Segundo Cerqueira e Santos (2012, p. 8), no Plano de Estudo, os professores/monitores “agem como motivadores, orientadores e facilitadores desse processo de aprendizagem e capacitação. Além disso, o monitor deve visitar as famílias e as comunidades dos alunos a fim de efetivarem um real acompanhamento destes alunos no seu período de alternância”.

[2] Em relação aos pais, a ideia inicial seria entrevistar 15 pais, contudo, foram realizadas 11 entrevistas considerando aqueles que, durante a reunião ocorrida na EFAN, em 03/02/2019, manifestaram interesse em participar da pesquisa. Por sua vez, para a realização do grupo focal com os estudantes, foi definido o número de 15 participantes, a fim de permitir a efetiva participação dos participantes, sendo que a escolha foi realizada a partir daqueles que assentiram em participar com autorização dos pais e/ou responsáveis. Por fim, foram entrevistados os três monitores responsáveis por conduzir o Plano de Estudos na turma cuja observação livre se efetivou.

[3] Gimonet (2007) destaca que para que uma escola seja qualificada como alternada não basta ter alguma relação com a área profissional, tampouco empregar a sucessão de tempos e espaços formativos sem nenhuma vinculação entre si. Há, segundo o autor, verdadeiras e falsas alternâncias, a saber: a) falsa alternância ou justaposta: compreendida pela sucessão dos tempos ou períodos destinados ao trabalho e ao estudo, sem que haja uma relação entre eles. b) alternância aproximativa se caracteriza pela organização didática dos dois tempos de formação, contudo, sem que se efetive uma verdadeira interação entre eles. c) alternância real ou integrativa: compreende a sucessão dos tempos de formação teórica e prática como uma unidade de tempos formativos.

[4] Entende-se por ontocriativo a condição que permite ao ser social compreender a realidade, transformá-la e, ao mesmo tempo, transformar a si mesmo (FRIGOTTO, 2008).

[5]Os temas são abordados no Plano de Estudo, procedimento pedagógico da Pedagogia da Alternância que é construído pela família, professores e estudantes e tem como objetivo tratar de temas de estudo de interesse destes segmentos.