Experiência do encontro na educação infantil: interações, brincadeiras e espaços

Metting experience at Early Childhood Education: interations, play and spaces

 

Jordanna Castelo Branco

Técnica em assuntos educacionais na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.

jordanna.branco@gmail.com - https://orcid.org/0000-0003-4987-908X

 

Patrícia Corsino

Professora associada na Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.

corsinopat@gmail.com - https://orcid.org/0000-0003-4623-5318

 

Recebido em 03 de novembro de 2019

Aprovado em 11 de março de 2020

Publicado em 25 de setembro de 2020

 

RESUMO

Este texto analisa parte do material produzido no âmbito da pesquisa de doutorado de uma das autoras, que teve como objetivo discutir a avaliação de contexto e a qualidade educativa na pré-escola. Os eventos de pesquisa analisados foram produzidos a partir de observações e registro em caderno de campo e fotográfico durante a estada em quatro escolas italianas, três localizadas na região de Piemonte e uma na Lombardia, por ocasião do doutorado sanduíche, no segundo semestre de 2017. O texto está organizado em duas partes: interações e brincadeiras e os espaços como lugar de diálogo. Tem como pilares teóricos os estudos de Bakhtin (2003, 1992) e Vigotiski (2008). As fotografias e notas de caderno de campo apontaram a importância de o adulto sustentar as interações das crianças seja pela escuta atenta, seja na organização dos espaços. Conclui que cabe ao adulto o deslocamento de uma pedagogia transmissiva, centrada em conteúdos pré-estabelecidos e na explicação, para uma pedagogia participativa, dialógica, cujas propostas se dão nas interações com as crianças, na interlocução com suas curiosidades, desejos, necessidades.

Palavras-chave: Educação Infantil; Interações Dialógicas; Experiências Educativas.

    

ABSTRACT

This text analyzes part of the material produced in the context of the doctoral research of one of the authors, which aimed to discuss the context evaluation and educational quality in preschool. The research events analyzed were produced from observations and record in field and photographic notebook during the stay in four Italian schools, three located in the Piedmont region and one in Lombardy, at the time of the sandwich doctorate, in the second semester of 2017. The text is organized in two parts: interactions and games and spaces as a place of dialogue. Its theoretical pillars are the studies by Bakhtin (2003, 1992) and Vigotiski (2008). The photographs and notes of the field notebook pointed out the importance of the adult to sustain the children's interactions either by attentive listening or in the organization of the spaces. It concludes that it is up to the adult to shift from a transmissive pedagogy, centered on pre-established contents and explanation, to a participatory, dialogical pedagogy, whose proposals are given in interactions with children, in dialogue with their curiosities, desires, needs.

Keywords: Childhood; Dialogic Interactions; Educational Experiences.

Introdução

           

Meu fado é o de não saber quase tudo.

Sobre o nada eu tenho profundidades.

Não tenho conexões com a realidade.

Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.

Para mim poderoso é aquele

que descobre as insignificâncias

(do mundo e as nossas)

(…).

 

Manuel de Barros,

Tratado Geral das Grandezas do ínfimo

 

Manuel de Barros no poema se refere ao não saber e, também, ao poder da descoberta das insignificâncias. Duas posições que consideramos importantes nas inter-relações entre adultos e crianças. O não saber diz respeito ao difícil deslocamento do adultocentrismo. Difícil porque, se por um lado exige muito conhecimento e sensibilidade para poder ver as crianças a partir de suas singularidades, por outro, exige do adulto renunciar as certezas construídas para poder acolher o imprevisível das criações e produções infantis. É justamente este despregar-se das certezas que dará lugar para a descoberta das insignificâncias, ou seja, daquilo muitas vezes invisível ao adulto, mas que, ao ser considerado, muda o rumo, desvia e revela a potência do inédito.

As relações entre adultos e crianças apresentam muitas nuances e variam não apenas porque cada pessoa e cada momento são únicos, mas também porque concepções e práticas socialmente produzidas atravessam as relações. No que diz respeito às concepções de crianças e infâncias, observa-se diferenças entre povos, épocas, lugares, classes sociais, etnias. Estudos mais recentes, no campo das Ciências Sociais, têm reivindicado uma forma de conceber as crianças não mais pela negatividade, falta ou incompletude em relação ao adulto, mas por suas competências, pelo que elas são e podem no tempo presente em que vivem. Tomam as crianças como agentes sociais plenos, capazes de, no seu agir no mundo, também modificar as estruturas sociais em que se inserem. Este paradigma considera a singularidade das produções infantis, suas formas criativas e imprevisíveis, suas lógicas e maneiras próprias de agir; concebe as crianças como sujeitos sócio historicamente constituídos e situados, que carregam, portanto, os traços da cultura da qual fazem parte, mas que nas suas ações estabelecem uma relação ativa com a cultura, constroem significados, partilham, transformam e produzem cultura. Paradigma que traz uma horizontalidade ética entre adultos e crianças já que a falta, a incompletude, a dependência, a improdutividade são características humanas.

Vale destacar que, ao considerá-las enquanto sujeitos competentes para atuar na sociedade onde estão inseridas, este paradigma não desconsidera as especificidades e diferenças das crianças em relação aos adultos e nem tira do adulto a responsabilidade em relação aos direitos das crianças de provisão, proteção e participação. Assumir esta diferença de ordem geracional implica no duplo movimento de conservação e renovação: proteção e cuidado dos que chegam, disponibilização do legado a ser apropriado e, também, a aposta de divergência, transformação, mudança, reinvenção. Para Arendt (2007, p. 235), a responsabilidade pela educação da criança encerra em si uma ambivalência: “a criança requer cuidado e proteção especiais para que nada de destrutivo lhe aconteça de parte do mundo. Porém, também o mundo necessita de proteção, para que não seja derrubado e destruído pelo assédio do novo que irrompe sobre ele a cada nova geração”.

Assumir estas concepções significa rever ou até mesmo romper com visões que habitaram a infância de muitos de nós, adultos, e que perpassaram a formação profissional de muitos de nós, professores. Daí considerarmos a necessidade de rever as certezas, de apostar no não saber para acolher o inédito, as “insignificâncias”, isto é, as significações produzidas pelas crianças que, por se distanciarem do previsível ou esperado pelos adultos, são invisibilizadas.

Em outro artigo (CORSINO E BRANCO, 2018) defendemos com Larrosa (1999) que assumir este paradigma na relação entre adultos e crianças só seria possível pela experiência do encontro. O que se dá no momento em que o sujeito do encontro se dispõe a ser alterado pelo outro, a se transformar numa direção desconhecida. Experiência entendida como aquilo que atravessa, que deixa marcas nos sujeitos: “algo como uma superfície sensível que aquilo que nos afeta de algum modo, produz afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos” (LARROSA, 2002, s/p). A experiência do encontro ocorre quando, especialmente o adulto, está em presença com as crianças, com inteireza numa relação de empatia e acolhimento. 

Ainda que a experiência do encontro nem sempre ocorra, ressaltamos com Bakhtin (2003) que nos constituímos na relação com o outro, seja ela qual for. O dialogismo faz parte da arquitetônica da teoria da enunciação deste autor que considera que é na arena discursiva que nos constituímos e somos constituídos pelo outro, sempre de forma provisória e inacabada. Esta noção de constitutividade do sujeito posta pelo filósofo russo, para Geraldi (2015) implica em admitir: um espaço para o sujeito; a inconclusividade, o caráter não fechado dos ‘instrumentos’ com que se opera o processo de constituição; a insolubilidade. Assim, destaca:

Professar tal teoria do sujeito é aceitar que somos sempre inconclusos, de uma incompletude fundante e não casual. Que no processo de nos compreendermos a nós próprios apelamos para um conjunto aberto de categorias, diferentemente articuladas no processo de viver. Somos insolúveis (o que está longe de volúveis) no sentido de que não há um ponto rígido, duro, fornecedor de todas as explicações (GERALDI, 2015 p.32).

Esta constitutividade é inerente ao processo de viver. Um movimento contínuo que se inicia desde os primeiros momentos de vida. Processo dialógico, alteritário que não se situa nem numa faixa etária, nem numa categoria social específica, já que nascer implica em penetrar num fluxo contínuo e ininterrupto da comunicação verbal onde não há nem a primeira e nem a última palavra. As inter-ações são interlocuções, suscitam respostas, produção de sentido, e toda compreensão é uma réplica (BAKTHIN, 1992). No agir no mundo produzimos discursos e, também, somos por eles produzidos. É com a linguagem que nos relacionamos com a cultura a que pertencemos, que vamos produzindo sentidos e significados nas interações que estabelecemos com as pessoas e com as produções culturais que nos cercam, que criamos e re-criamos o que está à nossa volta (CORSINO, 2015, p.409).

Nesta perspectiva, entendemos a Educação Infantil, primeira etapa da Educação Básica, como um importante lugar de constitutividade dos sujeitos-crianças, de interações dialógicas, de socialização, partilhas e produção cultural.  Lugar de tensão entre o inter e o intrapsíquico, já que, como assevera Vigostski (1991), o desenvolvimento se dá de uma ação coletiva, colaborativa para uma ação pessoal. Lugar também de possibilidade da experiência do encontro.

Feita esta introdução, discutiremos a seguir algumas ações que podem conduzir à experiência do encontro em diálogo com fotografias e eventos de pesquisa realizada em escolas de Educação Infantil, que compõem parte do material produzido no âmbito da pesquisa de doutorado de uma das autoras, que teve como proposta discutir a avaliação de contexto e a qualidade educativa na pré-escola.

Na ocasião do doutorado sanduiche, foram observadas quatro escolas italianas, no segundo semestre de 2017: três localizadas na região de Piemonte e uma na Lombardia. Na escola da Lombardia, foram quatro horas de observação e entrevista com a coordenadora. Nas escolas de Piemonte, foram três dias de observação participante em cada turma, conversas informais e entrevista com as professoras, uma vez que as escolas não têm coordenadoras em seu quadro.  As observações participantes foram registradas por escrito, em notas em caderno de campo, e, também, por fotografias. As conversas informais favoreceram a entrada no campo, a empatia e o acolhimento. As entrevistas semiestruturadas procuraram ser mobilizadoras de narrativas. Nas escolas de Piemonte, aconteceram em dois momentos: antes das observações e depois. As entrevistas iniciais, voltadas para a apresentação da escola, foram tempos de escuta sobre funcionamento, propostas e rotinas. As que se sucederam às observações foram dialogadas com trocas de impressões e esclarecimentos de dúvidas. Todos estes procedimentos permitiram a tecitura da compreensão de cada uma das escolas, suas singularidades e também os pontos de aproximação. As notas de campo foram transcritas em forma de evento, entendidos, conforme elucida Corsino e Nunes (2019), como:

um fragmento capaz de condensar uma unidade de sentido e assegurar o contexto enunciativo. Trata-se de recortes dos registros que, quando agrupados por afinidade, passam a compor categorias ou coleções, que possibilitam apreender e atribuir novos significados às situações registradas (p.107).

Os eventos foram analisados e agrupados por aproximações. Neste texto analisamos eventos que deram pistas para compreender como as interações e brincadeiras são comtempladas nas escolas observadas.

O texto está organizado em três partes. Na primeira parte discutimos as interações e as brincadeiras como eixos do trabalho pedagógico. Na segunda parte analisamos os registros do campo no que diz respeito às interações e brincadeiras provocadas pelos espaços e materiais e, em seguida, damos continuidade às análises com foco nos espaços entendidos como lugar de diálogo. Por fim, concluímos que para uma experiência educativa com o eixo nas interações e nas brincadeiras é fundamental o deslocamento de uma pedagogia transmissiva, centrada em conteúdos pré-estabelecidos e na explicação, para uma pedagogia participativa, dialógica, cujas propostas se dão nas interações com as crianças, na interlocução com suas curiosidades, desejos, necessidades.

Interações e brincadeiras: os eixos do trabalho pedagógico

Iniciamos com os dois eixos do trabalho pedagógico na Educação Infantil postulados pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil – DCNEI (Resolução no 5, CEB/CNE, 2009): as interações e as brincadeiras. Como são dois termos polissêmicos, faremos uma breve pontuação sobre o que compreendemos sobre eles para analisar práticas observadas nas escolas e suas possibilidades de provocarem experiências do encontro.

Como já adiantamos na introdução, as interações são entendidas como processos de significação. Inter-agir é agir com alguém ou com alguma coisa. E esta ação no mundo não se reduz a uma atividade meramente motora ou sem consequências. Como afirma Arendt (2007, p. 190) [...]“agir, no sentido mais geral do termo, significa tomar iniciativa, iniciar (como o indica a palavra grega archein, ‘começar’ ‘ser o primeiro’ e, em alguns casos, ‘governar’), imprimir movimento a alguma coisa (que é o significado original do termo latino agere)”. Mas toda ação está, por sua vez, inserida dentro de um contexto mais amplo, capaz de provocar reações em cadeia cuja previsibilidade também está fora do alcance dos sujeitos. E a ação, sendo ação em conjunto, é mediada pela palavra, pelo discurso.  Enfatiza a autora:

como a ação atua sobre seres que também são capazes de agir, a reação, além de ser uma resposta, é sempre uma nova ação com poder próprio de atingir e afetar os outros. Assim, a ação e a reação jamais se restringem, entre os homens, a um círculo fechado, e jamais podemos, com segurança, limitá-la a dois parceiros (ARENDT, 2007, p. 203).

Destaca, ainda, que

A pluralidade humana, condição básica da ação e do discurso, tem o duplo aspecto de igualdade e diferença. Se não fossem iguais, os homens seriam incapazes de compreender-se entre si e aos seus ancestrais, ou de fazer planos para o futuro e prever as necessidades das gerações vindouras. Se não fossem diferentes, se cada ser humano não diferisse de todos os que existiram, existem ou virão a existir, os homens não precisariam do discurso ou da ação para se fazerem entender. Com simples sinais e sons, poderiam comunicar suas necessidades imediatas e idênticas (ARENDT, 2007, p. 188).

Interagir é, então, colocar em movimento uma ação que inicia algo inesperado e imprevisível e que põe em movimento outras pessoas e outras ações neste processo que articula igualdade e diferença, singular e plural. “Cada sujeito é capaz de realizar infinitamente o improvável. E isto, por sua vez, só é possível porque cada homem é singular, de sorte que, a cada nascimento, vem ao mundo algo singularmente novo”. (ARENDT, 2007, p. 190-191). Mas, se por um lado, cada ação afirma a singularidade do agente, por outro, ao mesmo tempo, reafirma a pluralidade humana. Vale destacar que a própria autora se refere à ação e ao discurso. Pois, todo discurso é também ação que desencadeia outras ações e toda ação tem uma intenção, portanto, é simbolização e pode ser interpretada, desencadeando réplicas, respostas que movem outros discursos e ações. Nesta via, ter as interações como eixo do trabalho na Educação Infantil significa possibilitar e acolher os discursos/ações singulares das crianças, com o novo e o imprevisível que eles desencadeiam. Esta articulação entre o singular e o plural, individual e coletivo exige tanto a escuta sensível dos interlocutores, quanto a responsabilidade de resposta, isto é, a continuidade das ações. Pontos que têm a ver em considerar radicalmente a participação das crianças e a potência criativa e inaugural de suas respostas.

Já o eixo da brincadeira nas propostas educativas da Educação Infantil exige também uma tomada de posição em relação à reflexão sobre o seu significado para as crianças de zero a seis anos. Várias são as teorias que abordam a brincadeira infantil, tais como a psicanálise, as diferentes correntes da psicologia, a antropologia, a sociologia, a filosofia. Não é nosso objetivo neste texto discorrer sobre elas, mas sim trazer algumas referências que podem mover este eixo e sustentar práticas educativas em escolas de Educação Infantil.

O filósofo Walter Benjamin (1984,1993) destaca que as crianças criam um microcosmo no macrocosmo, um mundo próprio no mundo dos adultos e, neste espaço criativo, dão nova ordem às coisas, fazem história com o lixo da história. O autor afirma que brincar é um ato de libertação. Liberdade de imaginar, de decidir, de transformar, de explorar. Nos seus textos e fragmentos, especialmente em “Infância Berlinense” e “Rua de mão única”, Benjamin recupera o mundo da cultura dos pais, mas, ao mesmo tempo, recupera a maneira de ver do menino Benjamin, sua sensibilidade, seus hábitos, desejos, afetos e valores. Vai dando voz à criança totalmente inserida na história, parte da cultura e produtora de cultura; dizendo também de um momento histórico e de uma sociedade. Nos relatos de infância, Benjamin traz uma história que é simultaneamente individual e coletiva, história que pode ser continuada e re-significada dentro de cada um de nós a partir da nossa experiência de ser criança, história que também continua na experiência de ser criança em outros tempo e espaço (CORSINO, 2003). Os fragmentos benjaminianos que apresentam as brincadeiras infantis são convites para, simultaneamente, revisitarmos e rememorarmos nossas infâncias e observarmos as crianças que lidamos diariamente nas escolas de Educação Infantil. Observar as brincadeiras das crianças na Educação Infantil assume uma importante possibilidade de conhecê-las, de conhecer os grupos sociais que pertencem e também de ver o contemporâneo, no micro ver o macro. Ver pelas crianças o que com os nosso próprios olhos e visões de mundo não conseguimos. Do que brincam as crianças? Como brincam? Que relações podemos estabelecer entre o micro de suas brincadeiras e o macro da sociedade em que vivem, do tempo presente que partilhamos?

Os estudos da sociologia da infância trazem a relação entre a brincadeira infantil e a cultura. Segundo Corsaro (2011) a brincadeira é entendida como uma experiência de cultura que encerra um duplo movimento: reprodução e interpretação. As crianças se apropriam dos referenciais do mundo adulto para produzir sua própria cultura de pares, ou seja, não só assimilam a cultura, como alteram, constroem, modificam tanto nas interações com os adultos, como com as crianças. Daí a expressão “reprodução interpretativa” que o autor utiliza para se referir às brincadeiras de faz de conta:  as crianças interpretam a cultura em que se inserem e expressam suas marcas ao brincar. As culturas de pares, por sua vez, vão sendo produzidas por grupos de crianças que partilham tempos e espaços de forma regular. O autor faz sua pesquisa etnográfica em escolas, especialmente nos momentos livres de recreio, justamente por ser onde grupos infantis convivem diariamente e têm a oportunidade de criar e reelaborar suas culturas de pares. Estes e muitos outros estudos interpelam à sociedade e à educação em particular sobre tempos e espaços que são disponibilizados aos grupos infantis para brincar. Quando e onde as crianças de hoje brincam juntas? Quais são os tempos e espaços de brincar na Educação Infantil?

O também sociólogo Gilles Brugère (1998, 2001) traz contribuições para pensar a brincadeira como uma atividade dotada de significação social que, como outras, necessita de aprendizagem. “A criança pequena entra progressivamente na brincadeira do adulto, de quem ela é inicialmente o brinquedo, o espectador ativo e depois o real parceiro” (2001, p 98). Para o autor “a criança brinca com as substâncias materiais e imateriais que lhe são propostas. Ela brinca com o que tem na mão e com o que tem na cabeça. ” (2001, p.105). Seus estudos trazem indagações sobre a cultura lúdica, tanto na sua materialidade – brinquedos e brincadeiras que estão à disposição das crianças (aqui podemos incluir outras produções culturais destinadas às crianças como livros, músicas, filmes, desenhos animados etc) - quanto na socialização desta cultura: quem ensina às crianças a brincar e como ensina. A materialidade diz muito das condições de infraestrutura das escolas: o que existe, qual o estado de conservação, se têm em quantidade suficiente para o número de crianças atendidas etc. e também diz da relação com a qualidade. Sabemos que discutir qualidade abre uma gama de discussões pelo forte teor valorativo do termo. Entretanto, consideramos importante que a escola hoje abra espaço para pensar criticamente as produções culturais a serem disponibilizadas às crianças, já que cada vez mais a lógica do consumo, do descartável, da falta de profundidade abarca as produções. Portanto, perguntamos: que elementos desta cultura lúdica cabe a escola selecionar, disponibilizar, ensinar?

 Ainda para pensar a brincadeira como eixo na Educação Infantil, tecemos algumas considerações sobre a teoria histórico cultural que considera a brincadeira na infância não como uma mera atividade lúdica ou de entretenimento das crianças, mas, como destaca Vigotski (2008), como uma atividade guia. Prestes (2016) chama a atenção para o fato de que a expressão “atividade-guia” não significa que “seja a atividade que mais tempo ocupa ou que seja a mais importante ou que seja a única presente naquela etapa do desenvolvimento. É guia porque, em certa idade, vai guiar o desenvolvimento psicológico da criança, gerando neoformações”. Segundo o psicólogo russo, ao longo do desenvolvimento infantil, há diferentes atividades guias que mantém entre si uma relação dialética, já que uma surge dos conflitos gerados na que a antecedeu. “A passagem de um estágio a outro relaciona-se à mudança brusca dos motivos e dos impulsos para a atividade” (PRESTES, p.24). No seu texto “A brincadeira e o seu papel no desenvolvimento psíquico da criança” (VIGOTSKI, 2008), levando em consideração o impulso pela atividade, o autor destaca três estágios[1]: primeira infância; idade pré-escolar; idade escolar.

No recém-nascido a atividade-guia é a relação ativa com os adultos e com aqueles que estão ao seu redor. São os adultos que apresentam o mundo às crianças e que possibilitam que elas produzam significados e sentidos. Mas quando as crianças conseguem ter uma certa independência para se deslocar e manipular objetos, a força impulsionadora provém dos objetos e a criança manifesta a tendência para a resolução e a satisfação imediata de seus desejos, “surge uma reação afetiva isolada, ainda não generalizada” (VIGOTSKI, 2008, p. 23). Já na idade pré-escolar, afirma o autor, “a criança tem consciência de suas relações com os adultos, reage a eles com afeto, mas, diferentemente do que acontece na primeira infância, generaliza essas reações afetivas (a autoridade dos adultos impõe-lhe respeito, etc.)” (VIGOTSKI, 2008,p. 24). Entretanto, Vigotski ressalta que esta presença de afetos generalizados na brincadeira não significa que a criança o faça de forma consciente, e é justamente este fato que distingue a brincadeira de outras atividades. Para o autor “em geral, deve-se dizer que a esfera de motivos, ações, impulsos está relacionada àquelas esferas menos conscientes e se torna plenamente acessível à consciência apenas na idade de transição. Somente o adolescente consegue responder por que ele faz isso ou aquilo” (VIGOTSKI, 2008,p. 24). As crianças inventam situações imaginárias e brincam daquilo que, por alguma razão, são impedidas de fazer na vida real. Assim, as crianças inventam a brincadeira de faz-de-conta e os objetos começam a exercer um papel secundário, pois são transformados por suas ações: ”na brincadeira a criança aprende a agir em função do que tem em mente e não do que vê” (VIGOTSKI, 2008,p. 24).  A brincadeira de faz-de-conta é um campo de liberdade das crianças que podem ser o que imaginarem. Mas esta liberdade, segundo Vigotski, é ilusória, já que é regida por regras sociais. A ação numa situação imaginária “leva a criança a aprender a agir não apenas com base na sua percepção direta do objeto ou na situação que atua diretamente sobre ela, mas com base no significado dessa situação” (VIGOTSKI, 2008,p. 30). Isso leva a consequências importantes para as crianças: se emancipam das amarras situacionais, aprendem a agir pela linha de menor resistência, pois fazem o que desejam e também pela linha de maior resistência, já que se submetem às regras sociais.  Para o autor, “a submissão às regras e a recusa à ação impulsiva imediata, na brincadeira, é o caminho para a satisfação máxima” (VIGOTSKI, 2008,p. 31).

Vigotski (2008) também postula que a brincadeira na idade pré-escolar impulsiona o desenvolvimento e argumenta, ainda, que do ponto de vista do desenvolvimento, a criação de uma situação imaginária pode ser analisada como um caminho para o desenvolvimento do pensamento abstrato:

A brincadeira é fonte do desenvolvimento e cria a zona de desenvolvimento iminente. A ação num campo imaginário, numa situação imaginária, a criação de uma intenção voluntária, a formação de um plano de vida, de motivos volitivos - tudo isso surge na brincadeira, colocando-a num nível superior de desenvolvimento, elevando-a para a crista da onda e fazendo dela a onda decúmana do desenvolvimento na idade pré-escolar, que se eleva das águas mais profundas, porém relativamente calmas (VIGOTSKI, 2008, p. 35).

Na idade escolar a brincadeira diminui à medida que os jogos de regras externas, como os jogos esportivos, predominam. Mas os jogos esportivos e outros, embora desempenhem um importante papel no desenvolvimento geral da criança, para o autor, eles não têm o mesmo significado que desempenha a brincadeira para o pré-escolar. No jogo, tem-se a consciência antecipada do objetivo pré-definido. Na idade escolar, a brincadeira penetra na relação com a realidade. “Ela possui sua continuação interna durante a instrução escolar e os afazeres cotidianos (uma atividade obrigatoriamente com regras)” (VIGOTSKI, 2008,p. 36).

Os argumentos de Vigotski evidenciam a importância da brincadeira na idade pré-escolar e o quanto privar a criança desta atividade guia, com propostas direcionadas e jogos de regras externas não favorecem o autodesenvolvimento. Reiteramos esta afirmativa para indagar, ainda, qual seriam as contribuições da pré-escola em relação ao desenvolvimento e aprendizagem das crianças?       

Espaços, materiais, interações e brincadeiras: discutindo experiências

As observações que aqui serão apresentadas evidenciaram situações que dialogam com as indagações que fizemos sobre as interações e as brincadeiras. Foram realizadas em três escolas no interior de Piemonte, em uma escola da zona rural, em 3 turmas de crianças de 3 a 5 anos.

As observações evidenciaram que a organização dos espaços tinha uma forte intencionalidade educativa. Havia ambientes nas escolas propícios às brincadeiras, à participação das crianças e aos processos interativos. As professoras organizavam espaços e tempos para que o cotidiano girasse em torno dos eixos, como pode ser observado no evento a seguir:

[...] Após o almoço uma parte das crianças dormia e outra não. As que ficaram acordadas (...) foram para a sala do jogo simbólico. Esta era organizada como se fosse uma casa. Em cada canto da sala havia um cômodo da casa. Em um dos cantos havia um tipo de bancada em L com pia e fogão. No fogão havia algumas panelinhas. No outro canto da sala tinha um armário da altura das crianças com roupas (vestidos, camisas de botão etc), fantasias, bolsas e sapatos de adulto. Próximo ao armário ficavam dois carrinhos de bebê. Já em outro canto tinha mesas e cadeiras, pratinhos e talhares de brinquedo. No canto ao lado havia blocos de madeira de diversos tamanhos e uma cesta com panelinhas, talheres e legumes de brinquedo. No centro da sala não havia móveis ou objetos. As crianças brincaram livremente, com a participação dos adultos somente quando solicitados, por mais de uma hora. (Notas de caderno de campo, escola 2, Piemonte, 2/11/2017)

Nas quatro escolas havia um cuidado em organizar o espaço com materiais variados dispostos de forma a provocar e sustentar as interações e possibilidades de as crianças vivenciarem situações cotidianas diversas. A maneira como os móveis estavam dispostos na sala possibilitava às crianças criação de brincadeiras individuais e/ou coletivas, favorecia ações sobre os objetos e interações entre elas. A diversidade de materiais à disposição retratava a importância dada pelas professoras para esta atividade. Ao ambiente assim preparado somava-se o tempo disponível para a brincadeira livre e, com isso, as interações e negociações entre as crianças eram parte do cotidiano das turmas.

Nas brincadeiras observadas, as crianças podiam ser o que desejassem, exerciam diferentes papéis, com fantasias, roupas de diversos tipos. Vale destacar que a ação com e sobre os objetos não estava relacionada somente com a percepção direta do objeto. Sua função era alterada de acordo com a situação da brincadeira e eram usados com base no significado dessa ação, como postula Vigotski (2007). Assim, uma peça retangular podia exercer a função de um celular que, ao ser colocado no ouvido, desencadeava conversas e gestos. Para o psicólogo russo, ainda que regras sociais rejam as brincadeiras, as crianças dão novos significados aos objetos e criam situações que podem ser vivenciadas livremente. As crianças, ao agirem sobre os objetos, imprimiam neles movimentos que provocavam reações que eram muitas vezes continuadas por outras crianças. Uma ação podia desencadear outras, ao ser interpretada, provocando novos discursos e ações. 

Observamos que brincadeiras desencadeavam um fluxo de interações entre as crianças e, também, delas como as professoras cujo papel, além de organizar o espaço, também era de participar das interações. Mas, quando entravam na brincadeira, seguiam o movimento iniciado pelas crianças.

Assim, a disposição dos móveis, de modo a criar cenários, e os materiais disponíveis potencializavam e enriqueciam as interações individuais e coletivas, mas a dimensão do tempo também foi muito importante. A organização do tempo precisa ser coerente com o espaço físico e vice-versa, pois influencia a maneira como os espaços serão usados e vivenciados e a possibilidade de interações entre os sujeitos e deles com os objetos e materiais que compõem o espaço. O tempo também revela a maneira como está organizada a proposta educacional da instituição. Pensar os tempos de modo a ter as crianças como centro do processo educativo demanda a sua organização em torno das necessidades e ritmos das crianças. Desta forma, a organização do tempo nas escolas observadas: valorizava a brincadeira; proporcionava momentos individuais e coletivos; possibilitava a livre expressão com os materiais colocados à disposição.  A brincadeira livre garantida na rotina com duração de mais de uma hora indicou não só o respeito ao ritmo das crianças, como também o quanto essa livre expressão possibilitou criações, explorações dos espaços e materiais de formas inusitadas e favoreceu as interações entre as crianças,

As escolas observadas oferecem mais do que espaço bem organizado e com materiais disponibilizados às crianças, elas dão tempo para que possam usufruir deste espaço, agir nele e com todos os recursos que aí se encontram, estabelecer inúmeras relações e também interagir entre elas, criando uma cultura de pares, como propõe Corsaro (2011). Possibilidades que se abrem quando as crianças brincam daquilo que as interessa, da maneira que desejam e no ritmo delas. É o tempo destinado à brincadeira na rotina que possibilita que a potencialidade dos materiais venha à tona.

O evento a seguir traz uma situação de brincadeira em que a liberdade de ação das crianças potencializou suas interações:

Após o almoço, crianças de 4 e 5 anos brincavam na sala de artes. Um grupo de 4 meninos acordava entre si qual seria a brincadeira. Antes que o acordo fosse estabelecido, um deles se dirigiu até um dos cantos da sala com materiais diversos (papéis, fitas adesivas, retalhos, tampinhas plásticas de garrafa, sementes, gravetos, cola, papéis etc.) e pegou fitas adesivas coloridas e colou no pulso um pedaço de cartolina colorida, como se fosse um bracelete, e, rapidamente, em seguida amarrou uma fita colorida na cabeça. Antes de terminar de se caracterizar o menino disse para os colegas animado que era um dos três Tartarugas Ninja, Michelangelo. Os outros meninos pareceram gostar da ideia e, também, se caracterizaram de Tartarugas Ninja com sobras de papel colorido, fitas adesivas de diversas cores e se transformaram em outros personagens do desenho animados. Por alguns minutos, caracterizados de Tartarugas Ninjas e encarnando os personagens, criavam histórias à medida em que lutavam entre si (Notas de caderno de campo, escola 2, Piemonte, 3/11/2017).

As crianças se apropriam e ressignificam os materiais colocados à disposição delas. Pegam as sobras de papel colorido, fitas adesivas de diversas cores e se transformaram em personagens de desenhos animados. Ao olhar para esse evento com lentes benjaminianas, podemos dizer que as crianças criam o seu microscosmo no macrocosmo (BENJAMIN, 1984, 1993), dão uma nova ordem às sobras de materiais diversos, as transformam em acessórios dos seus personagens favoritos.

Como mencionado anteriormente, Brugère (1998, 2001) afirma que as crianças transformam o que têm na mão no que vem na cabeça. Com os materiais disponíveis os transformam em elementos da cultura contemporânea. Ao se caracterizarem de Tartaruga Ninjas trazem não só apropriações dos materiais, como também dos elementos da cultura midiática na qual estão inseridos. Com os elementos que têm em mãos recriam os acessórios usados pelos personagens: pedaços de papéis colados com cola e fita adesiva se transformam em cinto, por exemplo. Na mesma direção, Vigotski (2007) afirma que, na idade pré-escolar, a brincadeira é desencadeada a partir da ideia e não mais do objeto: “separar a ideia (significado do objeto) do objeto é uma tarefa tremendamente difícil para a criança. A brincadeira é uma forma de transição para isso” (p.9). A criança ao brincar pode atribuir outro sentido ao objeto, invertendo a relação para sentido/objeto. As crianças dão novos significados e reeleboram as impressões vivenciadas de modo criativo.

Cabe destacar que, à medida que agiam com e sobre os diferentes materiais, chamavam ao diálogo personagens de diferentes desenhos animados e construíram narrativas. Numa dança de gestos e palavras entre os quatro meninos, recriavam e reinventavam as ações dos personagens e, conforme brincavam, criavam histórias atravessadas por lutas entre o bem e o mau, entre o vilão e o mocinho. Narrativas tecidas com enredos repletos de situações cotidianas, vivenciadas e imaginadas e a partir do repertório de narrativas conhecidas.

Como afirma Vigotski (2009), a criação é constituída pela combinação e reelaboração de elementos de experiências anteriores. Novas situações e novos comportamentos se apoiam em situações anteriormente vividas. Há nesta reelaboração das quatro crianças a criação de uma situação imaginária que responde aos seus anseios e aspirações. Na brincadeira partilhada, criam juntos e, como afirma o autor: “criar é a imaginação em atividade” (2009, p. 117).

Nas escolas observadas muitos materiais ficavam à disposição da criação e imaginação das crianças. A seleção deles objetiva a promoção de experiências que favoreçam a autonomia, as interações e diferentes formas de expressão. A ideia é que fomentem a exploração de diferentes linguagens, como: pintura, desenho, dramatização, leitura. Por isso, nas escolas há espaços coletivos organizados de diferentes formas com acesso livre e fácil das crianças. Materiais como: canetinhas, lápis de cor, giz de cera, tecidos, livros, revistas etc., tudo é ordenado em estantes baixas, caixas, carrinhos, como pode ser observado na Figura 1:

 

Figura 1 - Materiais pra brincar, montar, construir, colar.

A table full of food

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Fonte: Caderno de campo, 2018.

 

Há uma ordenação que dá visibilidade ao que se tem para criar. Nestas escolas havia a preocupação de apresentar materiais simples, reutilizáveis e muitos elementos naturais, tais como: sementes, gravetos, folhas secas, toquinhos de madeira. Esta simplicidade dos materiais tinha a intencionalidade de romper com a lógica do consumo tão presente na sociedade contemporânea e dos objetos exaustivamente expostos pela mídia, pela indústria cultural, em que o constante apelo à repetição e à padronização vem transvestido de novidade.

Nas entrevistas chamou a atenção a articulação entre o fazer e o pensar pedagogicamente. As professoras sabem o porquê de suas práticas. A intencionalidade descrita nos eventos tem uma sustentação teórica. A valorização da brincadeira, das interações e expressões das crianças vem sendo construída com reflexões sobre a prática e, também, com leituras de vários teóricos, conforme nos informaram.       

As professoras, ao colocarem à disposição das crianças materiais diversos, mostram compreender a exploração deles como momento de criação, da imaginação em ação. Os materiais eram entendidos como importantes elementos para potencializar a capacidade criadora das crianças e possibilitar uma outra relação com o que seria inútil ou descartável.

Não se pode deixar de mencionar que nos eventos analisados as professoras das turmas estavam nas salas atentas às brincadeiras das crianças. Ora observavam de longe, fazendo anotações que viriam a dar suporte a novas propostas; ora participavam das brincadeiras das crianças de modo a não conduzi-las e sim potencializá-las com questionamentos e propostas que ampliassem as interações delas com as crianças e das crianças entre elas.  Buscavam compreender os jogos infantis, as inter-relações e interações estabelecidas entre as crianças assim como o seu registro. Também, participavam das brincadeiras quando convidadas pelas crianças de modo a dar suporte a elas.

Os espaços como lugar de diálogo

Estar atento às vozes das crianças vai além de deixa-las falar ou escutar o que elas têm a dizer. É ouvir, observar, dialogar, sustentar e ampliar as experiências das crianças. O que os espaços que oferecemos a elas dizem? Os espaços e toda materialidade que compõem creches e pré-escolas dizem algo, nos interrogam e nossas interpretações são as respostas possíveis a elas, em um dado momento. A organização dos móveis, os objetos, murais, brinquedos, livros e tantos outros materiais vão dizendo das interlocuções que ali se estabelecem e, simultaneamente, nos chamam a interagir e a entrar na corrente comunicativa.

Os espaços e materiais atuam pedagogicamente, e as escolhas dos dirigentes e docentes na apresentação e ordenação destes espaços e no que ali se dispõe às crianças fazem diferença porque enunciam e sãos signos ideológicos que desencadeiam ações, interlocuções. Se as crianças são tidas como sujeitos ativos, exploradores e produtores de sentidos é preciso pensar em um espaço que incentive a sua autonomia, sua autoria, sua criatividade, o que só é possível se o adulto envolvido no processo educacional apoiar as ações das crianças por meio da oferta de uma infraestrutura voltada a elas. Para Corsino e Guimarães (2015), essa forma de pensar lança o desafio de

instituir um trabalho pedagógico que garanta estruturas organizadas, facilmente legíveis pelas crianças e abertas às suas explorações (...) O espaço tido como ambiente de trocas, explorações, interlocuções diversas e de crescimento de todos os envolvidos, a partir de um planejamento que propicia experiências contínuas e significativas das crianças nele. Assim, elementos importantes numa pedagogia centrada no contexto são a organização do espaço – que inclui desde a arquitetura, chegando ao mobiliário, materiais, recursos diversos, suas disposição e legibilidade, modos de gestão do grupo de crianças, a organização da rotina e cotidiano também. (CORSINO e GUIMARÃES, 2015, p.164)

A creche, localizada na periferia de Milão, Lombardia, atendia crianças de 6 meses a 3 anos. No período da observação todas andavam sem a ajuda dos adultos e podiam circular livremente pelos espaços, desde que estivesse nele um adulto presente. Os ambientes eram organizados de modo a oferecer possibilidades de deslocamento autônomo, mesmo para as crianças bem pequenas, pois o objetivo era favorecer o seu desenvolvimento, as interações e as brincadeiras. O hall de entrada da creche tinha não só a finalidade de ser um espaço voltado para a exploração das crianças, como também de acolhimento das famílias, que, como afirmou a coordenadora, “quanto menor a criança mais fundamental é a relação com as famílias”. A disposição dos móveis e objetos mostravam diferentes possibilidades de interação: rampas, brinquedos de madeira, janelas baixas para as crianças, sofás e almofadas. Este mesmo espaço era usado também para atividades de apresentação musical, festas de final de ano, entre outras. A Figura 2 mostra como a organização desse espaço, com móveis na altura das crianças, favorece explorações e descobertas:

 

 

Figura 2- Sala de uma creche da periferia de Milão.


Fonte: Caderno de campo, 2018.

 

Segundo Malaguzzi (1999), o modo como os adultos se relacionam com as crianças influencia no que as motiva e no que aprendem. Por sua vez, a maneira como essa relação é tecida influencia diretamente no modo como o ambiente educativo é preparado, o que ele oferece às crianças. Para o autor, o ambiente educativo deve ser preparado de modo a interligar o campo cognitivo com os do relacionamento e da afetividade. O que só é possível se isso estiver combinado com a conexão entre: o desenvolvimento e a aprendizagem, as diferentes linguagens simbólicas, o pensamento e a ação e a autonomia individual e pessoal. “Os valores devem ser colocados em contextos, em processos comunicativos e na construção de uma ampla rede de intercâmbios recíprocos entre as crianças e entre elas e os adultos” (Malaguzzi, 1995 apud Edwards; Gandini; Forman, 1999, p. 77).

Bondioli e Montovani (1998) ao se debruçarem sobre a pedagogia do relacionamento reiteram que as intervenções educativas devem ser pensadas, projetadas e realizadas. Dentro dessa perspectiva, ação pedagógica envolve mais do que um plano para a oferta de uma experiência educativa inteligente e interessante. A pedagogia do relacionamento tem como base a intervenção educativa entendida enquanto aquela que age sobre o sistema de trocas sociais e a tem como instrumento de crescimento, isto é, de desenvolvimento e de aprendizagem. É nas trocas sociais, que progressivamente se criam e se aperfeiçoam os laços entre crianças e adultos, que são tecidos conjuntos de significados compartilhados, que se constrói uma história social própria de uma determinada instituição com o seu conjunto de rotinas, e divisões temporais e regras próprias de contexto educativo.

Na creche mencionada, observamos que as descobertas vão para além do espaço interno da escola, havia uma intensa relação entre o que estava dentro com o que estava fora. Como estava localizada num prédio que não havia sido pensado para ser creche, as janelas eram altas. Mas, para que as crianças também pudessem ver o que tinha lá fora e se relacionar com o que se passava na área externa, foram colocadas pequenas janelas na altura das crianças. Observar o que tem fora era visto como fundamental. Relacionar-se com o mundo à sua volta, fazia parte da proposta das crianças compreenderem o contexto no qual se inserem e as relações que ali se estabelecem. As crianças costumavam olhar pelas janelas para observar o que se passava lá fora - a rua, as árvores em torno da creche, os colegas brincando no pátio. Observar o fora para se reconhecer como parte do contexto no qual está inserido e se relacionar com ele, conforme mostra a fotografia a seguir na Figura 3.

 

Figura 3 - Janela adaptada às crianças de uma creche universitária da periferia de Milão-Itália.


Fonte: Acervo fotográfico da escola, 2018.

 

Bondioli e Montovani (1998) chamam a atenção para o fato de que a pedagogia do relacionamento envolve uma “didática do fazer”. Consideram essa didática um convite ao fazer, ao explorar o mundo à sua volta, ou seja, explorar os objetos, tocá-los, manipulá-los e transformá-los. Cabe ao adulto, propiciar a criança um ambiente organizado com uma selecionada e variada gama de objetos com a intenção de possibilitar atividades significativas às crianças. É uma didática em que cabe ao adulto propor um convite à ação, propiciar aprendizagens de formas sempre mais complexas. Em suma, o adulto deve indagar-se a respeito de estratégias para que a sua intervenção promova e facilite experiências significativas às crianças. Além disso, deve estar disponível para o encontro com as crianças.

Considerações finais

Todas as questões apontadas ao longo do texto trazem possibilidades da experiência do encontro entre adultos e crianças na Educação Infantil. Mas, o encontro implica em movimentar-se em direção ao outro e este deslocamento se inicia pelo adulto.  Deslocar-se com a intenção de ir ao encontro do outro-criança é uma rua de mão dupla, que exige alterar e alterar-se. Quando trazemos esta reflexão para as práticas educativas desenvolvidas junto às crianças da Educação Infantil, entendemos que um primeiro passo é dos adultos – professores e coordenadores - estarem “em presença” com as crianças, com inteireza, numa relação empática e acolhedora. Isso se inscreve nos espaços, nos materiais e nas rotinas quando pensados para as crianças, para a promoção de experiências significativas, formadoras e transformadoras. Os adultos se fazem presentes justamente quando conseguem chegar até as crianças. A inteireza não é só pela presença física, mas também por pensarem tempo e espaço para serem vividos pelas crianças também com inteireza, autonomia e liberdade de ação e criação. Para isso, a pesquisa constatou o quanto a organização dos espaços, a disposição de materiais variados e tempo disponível para as brincadeiras foram fundamentais para fomentar e sustentar as ações e interações das crianças. Na Educação Infantil, as interações e a brincadeira se articulam. As interações entre as crianças mobilizam brincadeiras e vice-versa. São eixos que giram e movem as práticas educativas.

Os eventos da pesquisa de campo mostraram a potência dos espaços e materiais organizados e acessíveis às crianças, a importância da ação dos professores nesta organização e na atenção dada aos tempos de brincar. Mostraram também a movimentação do adulto em direção às crianças, os passos que dão ao encontro delas: a escuta dos diálogos das crianças entre elas, as observações das suas brincadeiras, a percepção de quais são seus interesses – individuais e coletivos –, a criação de um ambiente educativo que desencadeie ações e a continuidade delas.

Os eventos mostraram também a brincadeira compreendida em toda a sua potencialidade. O entendimento de que as crianças ao brincar interagem entre elas e com os materiais postos à sua disposição, transformam os espaços e objetos, dando a eles novos significados, em sintonia com as suas experiências. As crianças imprimem as suas marcas ao interagir e se apropriam da cultura conforme a produzem. Também, se fez presente nas análises o entendimento da brincadeira como um espaço-tempo fundamental para a imaginação e criação, para as interações e produção de significados partilhados e de sentidos singulares, o que corrobora com a teoria de Vigotski de que é a atividade-guia do desenvolvimento infantil, na idade pré-escolar.

Para que essas ideias possam se materializar em práticas educativas, cabe ao adulto sair do lugar tradicionalmente dado ao professor e mudar o seu olhar. O deslocamento proposto é de uma pedagogia transmissiva, centrada em conteúdos pré-estabelecidos e na explicação, para uma pedagogia participativa, dialógica, cujas propostas se dão nas interações com as crianças, na interlocução com suas curiosidades, desejos, necessidades. Uma pedagogia na qual a ação do professor se concentre na organização dos espaços e tempos para que interações e brincadeiras aconteçam e na observação dos movimentos das crianças para ter elementos que deem continuidade às ações; que penetre na profundidade no nada sei para se aproximar e ver as insignificâncias. Deslocar o centro das propostas dos conteúdos pré-estabelecidos para a experiência do encontro, exige também o deslocamento proposto por Rancière (2002) de sair de uma pedagogia da explicação para uma que acredita na inteligência das crianças, na sua capacidade de aprender as coisas da vida da mesma forma como aprendem a falar a língua materna, ousando e experimentando: “fala-se a eles e fala-se em torno deles. Eles escutam e retêm, imitam e repetem, erram e se corrigem, acertam por acaso e recomeçam” (RANCIÈRE, 2002, p.19).

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Correspondência

Jordanna Castelo Branco e Patricia Corsino Universidade Federal do Rio de Janeiro . Avenida Pasteur, 250 -2º andar, Faculdade de Educação, Urca, CEP 22290240, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.

Nota



[1] Cabe ressaltar que o autor não fixa uma faixa etária precisa. A partir da nota da tradutora podemos separá-las assim: até três anos, de 4 a 6/7 anos, a partir de 7 anos.