Relações de gênero, renda e trabalho em microdados sobre formação inicial de professores/as no Brasil: uma análise multivariada

Gender relations, income, and work on microdata about initial teacher training in Brazil: a multivariate analysis

Daniel de Freitas Nunes

Professor da Educação Básica, Científica e Tecnológica do Instituto Federal Goiano, Campos Belos, Goiás, Brasil.

daniel.freitas@ifgoiano.edu.br - https://orcid.org/0000-0002-7468-0390

 

Etiene Fabbrin Pires Oliveira

Professora doutora na Universidade Federal do Tocantins, Palmas, Tocantins, Brasil.

etienefabbrin@uft.edu.br - https://orcid.org/0000-0002-6062-8014

 

Marcos Felipe Gonçalves Maia

Doutorando em Educação na Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Brasil..

marcosmaia@uft.edu.br - https://orcid.org/0000-0001-8118-6211

 

Recebido em 01 de outubro de 2019

Aprovado em 14 de maio de 2020

Publicado em 18 de novembro de 2020

 

RESUMO

O presente artigo apresenta dados relativos as relações e desigualdade de gênero em cursos de formação inicial de professores no Brasil buscando verificar em uma perspectiva multivariada as nuances desta desigualdade. Neste sentido, buscou-se, a partir do emprego de técnicas de análise multivariada de dados, verificar o impacto da questão de gênero em diferentes indicadores socioeconômicos de 197.625 estudantes de licenciatura no Brasil, compreendendo 78.088 alunos de instituições públicas e 119.537 de privadas, partindo-se da diferenciação teórica dos conceitos de sexo e gênero, partindo-se da premissa de que feminino e masculino dividem a amostra trabalhada pelo caractere do sexo biológico ao mesmo tempo em que o conceito de gênero é aqui compreendido como um instrumento de sedimentação da dominação do masculino sobre o feminino. Metodologicamente, o estudo caracteriza-se como um estudo quali/quantitativo e emprega a técnica estatística multivariada de Análise de Correspondência (AC).  Conclusivamente, discute-se que desigualdade de gênero nos cursos de formação de professores no Brasil vai além da desigualdade direta, isto é, o desequilíbrio no número de matriculados por sexo, refletindo também em desigualdade de renda, trabalho e condições para estudo. 

Palavras-chave: Formação de professores; Gênero; Desigualdade.

 

ABSTRACT

This paper presents some data on gender relations and inequality in initial teacher training courses in Brazil seeking to verify in a multivariate perspective the nuances of this inequality. By the way, it was sought, based on the use of multivariate data analysis techniques, to verify the impact of the gender question on different socioeconomic indicators of 197.625 undergraduate teacher training students in Brazil, comprising 78. 088 students from public institutions and 119.537 from private institutions. The analytical perspective applied is based on the theoretical differentiation of the concepts of sex and gender, starting from the premise that the feminine and masculine divide the sample worked by the character of the biological sex at the same time that the concept of gender is understood here as an instrument of sedimentation of domination from the masculine to the feminine. Methodologically, the study is characterized as a qualitative / quantitative study and employs the multivariate statistical technique of Correspondence Analysis (CA). conclusively, it is argued that gender inequality in teacher training courses in Brazil goes beyond direct inequality, that is, the imbalance in the number of students enrolled by sex, also reflecting inequality of income, work and conditions for study.

Keywords: Teacher training, Gender, Inequality.

Introdução

Apesar da latência do tema e do crescimento observado na discussão da questão de gênero no âmbito do trabalho feminino na sala de aula na década de 1990, Vianna (2002) nos lembra que raras exceções, as pesquisas sobre os meandros da sala de aula insistiam em uma retórica na qual a escola era vista quase que exclusivamente como um espaço onde as relações de classe preponderavam sobre quaisquer outras, desconsiderando, portanto, questões como gênero e etnia/raça.

De todo modo, é recorrente na literatura que trata da formação ou identidade docente a partir de então (ENGUITA, 1991; ROSEMBERG,AMADO, 1992; APPLE, 1996; VIANNA, 2002; FONTANA, 2005), a discussão de que este campo profissional se constituiu ao longo das décadas do século XX, em um espaço predominantemente feminino apoiado em um papel de gênero depositado nas mulheres, isto é, a diferenciação biológica entre homem e mulher assume uma conotação determinista que atribui naturalmente ao sexo feminino a tarefa de educar.

No âmbito das interpretações deste processo, as análises conjugam fatores históricos, sociológicos e culturais. De um ponto de vista histórico, é levado com consideração que em todo o século XX, houve um maciço movimento de ocupação do mercado de trabalho pelo sexo feminino. A este respeito e a partir de uma perspectiva analítica dos movimentos dos mercados de trabalho no século XX, Braverman (1987) postula que o avanço feminino em determinadas atividades profissionais se deu através de um processo continuo de desqualificação do trabalho e um consequente barateamento da mão de obra, sendo as mulheres um componente importante das fileiras rasas dos “exércitos industriais de reserva”.

Por sua vez, no âmbito da análise histórica e sociológica da formação e identidade docente, Apple (1995) e Enguita (1991), coadunam com essa análise, nos lembrando que a profissão docente já foi um espaço masculino e que esta só veio a ser ocupada gradativamente pelas mulheres a partir do momento em que os salários começaram a baixar e o trabalho a ser considerado desqualificado e isento de autonomia.

Ao adentrar a seara da questão de gênero propriamente dita no âmbito da profissão docente, Rosemberg e Amado (1992) analisam a produção acadêmica brasileira em torno do trabalho docente até o início da década de 1990 e compilam um perfil de docente mulher no qual papeis como a docência, a maternidade e o cuidado do lar se confundem, tanto no que diz respeito ao reconhecimento social, quanto no ambiente institucional do trabalho docente. Na mesma perspectiva interpretativa, Fontana (2005) discute que atrelado à massiva presença observada das mulheres na sala de aula no hodierno, persiste um papel de gênero engendrado no seio na nossa sociedade patriarcal: deve caber as mulheres, naturalmente dóceis e mães, a lide com crianças.

Nesse sentido, é possível perceber o conceito de gênero como uma categoria de análise histórica que nos ajuda a compreender como a sociedade hierarquiza indivíduos a partir de percepções das diferenças entre os corpos (SCOTT, 1995). Gênero, assim, é compreendido como “relação de dominação do masculino sobre o feminino, no privilegiamento da produção e administração de riquezas sobre a produção da vida, como um dos eixos para compreender a dinâmica social” (ROSEMBERG, 2001, p. 515). E é nesse ponto que Fúlvia Rosemberg (2001) destaca a necessidade de ter cuidado ao analisar dados e políticas educacionais sobre a realidade de (in)sucesso de meninos e meninas a partir de uma matriz homogeneizante ou universalizante de “homem” e “mulher” universais.

A partir dos anos 2000, o alavancamento da sistematização e a produção de informações estatísticas concatenadas à uma política de publicização de dados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais – INEP proporcionou os primeiros escrutínios quantitativos mais robustos dessas informações e, consequentemente, a corroboração dessa discussão. Pioneiramente, Gatti & Barreto (2009) ao analisarem o perfil dos estudantes de licenciatura nos microdados do Exame Nacional de desempenho do Estudante – ENADE de 2005 constataram que naquele ano 75,4% dos estudantes eram do sexo feminino, sendo o curso de pedagogia o que apresentava o valor mais expressivo, com 92,5% de estudantes deste mesmo sexo.

No âmbito institucional, no ano de 2009 o INEP apresentou o “Estudo Exploratório do Professor Brasileiro” (INEP, 2009), que apresentou um amplo e detalhado panorama da profissão docente no Brasil através de uma série de variáveis distintas coletadas e escrutinadas a partir do senso da educação básica de 2007 corroborando as análises anteriores: há uma presença significativamente maior de mulheres nas salas de aulas do Brasil em todas as fases da educação básica, com exceção de algumas disciplinas do ensino médio. Como nos destaca Rosemberg (2001): corolários das diferenças de gênero ou reforçoda dominação de gênero?

O fato é que desse período até a atualidade, os estudos e levantamentos, sejam institucionais ou acadêmicos, tem corroborado a discussão em tela, isto é, a caráter feminino da sala de aula no Brasil, exemplo disso é o “Teacher and Learning Internacional Survey” de 2013, realizado pela Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico – OCDE que pesquisou o perfil de professores através de 31 países desenvolvidos e em desenvolvimento. De acordo com esse levantamento, no Brasil 71% dos professores em sala de aula são mulheres, um número superior à média dos países pesquisados, que foi de 68% (OECD, 2013).

De todo modo, a despeito desses estudos, há um evidente estacionamento da discussão nas evidências quantitativas imediatas da questão: constata-se que há um número significativamente superior de mulheres na sala de aula e que isso é reflexo da modelagem de um papel de gênero que associa a tarefa de educar às habilidades emocionais tidas como predominantes em indivíduos do sexo feminino. Há ainda uma outra visão desse fenômeno de feminização da docência vê uma forma de desvalorização da profissão no sentido de relegar esse trabalho às mulheres reduzindo a remuneração (SANTOS, 2005).

Nesse sentido, compreendemos, tal qual Vianna (2002), a importância de se comportar na discussão de gênero e feminização da profissão docente outras variáveis como a questão da etnia/raça e renda, o presente estudo parte do escrutínio dos microdados do ENADE de 2011, no qual buscou verificar, a partir desta atestada presença majoritária da mulher nos cursos de formação de professores e posteriormente na sala de aula, desigualdades relacionadas a questão de renda e trabalho entre os/as estudantes de licenciatura no Brasil.

Notas metodológicas

O presente estudo caracteriza-se como um estudo quanti-qualitativo. Como observa Creswell (2012), a pesquisa quantitativa ampara-se na compilação de dados numéricos em larga escala e caracteriza-se pela descrição do problema de pesquisa pela análise de tendências visualizáveis a partir desses dados ou a partir da explicação desse problema de pesquisa por meio da discussão da relação entre as variáveis envolvidas no estudo.  Deste modo, ainda segundo este autor, o percurso metodológico na pesquisa quantitativa envolve a análise de tendências e a comparação de grupos ou variáveis por meio de análises estatísticas, e a interpretação dos resultados se dá pela comparação com resultados e pesquisas anteriores. 

Com isso, damos destaque para o fato de que estudos quantitativos desenvolvidos por educadores e sobre educação no Brasil quase inexistem no hodierno (DEVECHI & TREVISAN, 2012).  Não obstante, como observa Gatti (2012), ressaltamos que o modelo quantitativo pode ser usado na pesquisa em Educação, mas sabendo de seu possível deslocamento de um momento positivista, isto é, com total aplicação dos métodos quantitativos das ciências físicas e matemáticas, até o momento de sua transformação pelos métodos qualitativos, mas sem deixar de lado o rigor científico-metodológico.

Por isso, complementam nossas análises o modelo qualitativo de pesquisa. Este não é uma simples separação daquelas pesquisas que usam números e cálculos, antes é uma forma de ver e estar no mundo, no mundo da vida, Lebenswelt (MERLEAU-PONTY, 1999). É reconhecer que mesmo com objetividade, não podemos ter neutralidade. Mas nunca podemos deixar de lado o rigor próprio do saber científico na pesquisa qualitativa em educação (LUDKE; ANDRÉ, 1986; MAIA; ROCHA, 2016)

Deste modo, para atender as pretensões metodológicas anunciadas, esse estudo se utilizou de variáveis do questionário socioeconômico respondidos pelos estudantes selecionados para fazer o ENADE. Sobre este exame é importante ressaltar que além de precisar indicadores como o Conceito Preliminar de Curso (CPC) e Índice Geral de Cursos (IGC) da Instituições de Ensino Superior brasileiras, sua realização gera um conjunto de informações detalhadas dos estudantes participantes que se sumarizavam no ano de 2011 em um índice de 126 variáveis.

O nível de detalhe e sofisticação dessa coleta de dados do INEP tem se ampliado a cada exame, de modo que a aplicação do ENADE nos lega um grande acervo de dados quantitativos e qualitativos que podem vir a nos auxiliar em uma série de análises. Estes microdados foram extraídos a partir do programa SPSS (Statistical Package for the Social Sciences) versão 22.0 e consistem em informações de 197.625 estudantes de licenciatura que realizaram o referido exame em 2011, compreendendo 78.088 alunos de instituições públicas e 119.537 de privadas. Optou-se por separar os dados por categoria administrativa das instituições (se públicas ou privadas) por compreender que no caso das instituições privadas a necessidade de se pagar pelo curso pode ser um fator homogeneizante para indivíduos de sexo masculino e feminino que pode ocultar desigualdades sexuais porventura ocorrentes no âmbito das amostras trabalhadas.

O tratamento dos dados extraídos se concentrou na análise das variáveis relacionadas ao sexo do estudante, renda familiar média, e situação laboral durante o curso de graduação e se deu a partir do programa XLS stat versão 2017 por meio da aplicação da técnica de análise multivariada de dados chamada Análise de Correspondência (AC). Esta é uma técnica muito utilizada nas ciências sociais a partir do pioneirismo de Pierre Bourdieu em seus estudos sobre classes sociais e distinções sociais simbólicas feitos na França (GREENACRE & BLASIUS, 2006). De acordo com Hair et al. (2005), a análise por correspondência possibilita a representação multivariada de interdependência para dados qualitativos, o que se torna inaplicável em outros testes estatísticos.  Ainda segundo Carvalho e Struchiner (1992) esse método se faz eficiente por permitir uma visualização gráfica das relações mais significativas de um grande conjunto de variáveis. Sucintamente, segundo Greenacre (2007), o objetivo mais útil desta técnica é representar o máximo possível da variância dos dados conjugados em um gráfico de poucas dimensões, sendo mais comum a representação dessa variância em gráficos de duas dimensões, que foram os gráficos utilizados nesse trabalho. 

Resultados

Corroborando o que já se sabia, os dados do ENADE de 2011 evidenciam pouca ou nenhuma mudança no perfil dos aspirantes a profissão docente no Brasil, sendo que o quantitativo de mulheres em nos cursos licenciatura pesquisados é significativamente superior ao contingente mulheres na população brasileira, como demonstra as figuras 1 e 2.

 

Figura 1 - Percentuais por sexo e área de enquadramento no Enade (IES públicas) em relação à composição por sexo da população brasileira


Fonte: Microdados do ENADE e da Pnad, elaboração dos autores (2020).

 

 

Figura 2 - Percentuais por sexo e área de enquadramento no Enade (IES privadas) em relação à composição por sexo da população brasileira


Fonte: Microdados do ENADE e da Pnad, elaboração dos autores (2020).

 

Dos 14 cursos de licenciatura avaliados no ENADE 2011, 50% dos cursos apresentavam um percentual de mulheres superior ao correspondente na população Brasileira (tanto nas IES públicas quanto privadas), o que se traduz, no final, de 69% de mulheres nos cursos de licenciatura das IES públicas e de 78,6% nas IES privadas. Contudo, a despeito dessa presença majoritária de mulheres, cursos com a Física e Computação, com maior saída no mercado de trabalho do Ensino Médio e consequentemente com um melhor salário, apresentam um número maior de homens do que de mulheres, evidenciando um aproveitamento pela população masculina de cursos que possuem uma saída mais bem remunerada no mercado de trabalho. Vale ressaltar que este perfil corrobora com a composição da classe docente no Brasil. Dados do Estudo Exploratório do Professor Brasileiro (INEP, 2009) evidenciam que a despeito do caráter esmagadoramente feminino da classe, no Ensino Médio (disciplinas especializadas) e no Ensino Técnico-Profissional, que sabidamente pagam os melhores salários, a discrepância quanto ao sexo dos estudantes é quase que insignificante, o que evidencia uma certa seletividade do sexo masculino por algumas carreiras da licenciatura.

Carvalho e Sobreira (2008) afirmam que as profissões e as áreas do conhecimento são definidas como “masculinas” ou “femininas”. Dessa modo, engenharias, produção, construção, matemática e computação seriam “masculinas”, enquanto educação, humanidades e artes seriam “femininas”. Para Rosemberg (2001, p. 515) essa diferenciação é feita num nível até mesmo “independentemente do sexo das pessoas que as executam”. O que faz, por exemplo, surgir um campo de resistências de mulheres que estudam e trabalham nos campos ditos “masculinos”, e vice-versa (CARVALHO; SOBREIRA, 2008). Portanto, não é a autodeclaração do sexo que faz a docência ser feminina, mas um processo social de desvalorização e feminização da docência (SANTOS, 2005) e socialização de meninos e meninas a partir de um conceito universal de masculino e feminino (CARVALHO; SOBREIRA, 2008).

Ao se debruçar sobre a questão da renda, o panorama geral verificado em vasta literatura foi de que em termos de salário a profissão docente é uma profissão da classe trabalhadora, isto é, da classe economicamente menos favorecida (BRITO, 2007; GATTI & BARRETO, 2009LOUZANOET al., 2010; SILVA et. al., 2010; RISTOFF, 2013, 2014; BRITTO & WALTENBERG, 2014). De acordo estudo de Nunes (2015), que trabalhou com a mesma amostra, na amostra da IES públicas 34% dos estudantes estão na faixa de renda acima de 1,5 até 3 salários mínimos: quando somados os percentuais das faixas de renda que vão de 1,5 até 4,5 mínimos chega-se ao percentual de 69,5% de toda a amostra, sendo que amostra das IES privadas estes percentuais também são próximos, embora apresentem variações. Ainda segundo o mesmo estudo, no caso desta amostra, 32% estão na faixa de 1,5 até 3 mínimos e a soma dos estratos que vão de até 1,5 a 4,5 mínimos fica em 65,9%, quatro pontos percentuais a menos do que o mesmo estrato das IES públicas (NUNES, 2015).

De todo modo, levando em consideração que nossos aspirantes a professores e professoras são majoritariamente do sexo feminino, buscamos, a partir dos dados utilizados por Nunes (2015) e através da aplicação da técnica de AC, verificar o comportamento da variável renda dos nossos 197.625 estudantes a partir de uma AC codificada interativa. Esta técnica consiste em dividir uma variável em dois grupos (neste caso, parte masculina e feminina da amostra) objetivando verificar se estes dois grupos se comportam de maneira semelhante ou diversa em relação à outra variável (neste caso, renda). Deste modo, intencionou-se verificar se a amostra se distribui harmonicamente tanto para indivíduos do sexo feminino quanto masculino quando a variável conjugada é a renda. Para tal, parte-se da hipótese amparada na literatura concernente a formação de professores de que mesmo em maior número nos cursos de licenciatura, as mulheres encontram-se em condições socioeconômicas menos favoráveis quando comparadas a homens, mesmo nos cursos de licenciatura no qual uma parte considerável dos estudantes (tanto homens quanto mulheres) são de família de baixa renda (34% dos estudantes nas IES públicas são de famílias com renda média de 1,5 a 3 salários mínios contra 32% nas IES privadas).

Nesse sentido, observou-se, por exemplo, que naqueles cursos de maioria masculina (com a exceção do curso de Letras) a condição de renda é desigual quando se compara os estudantes do sexo masculino e feminino no que diz respeito a amostra das IES públicas (figura 3ª), isto é, as mulheres advêm ou chefiam famílias com uma condição de renda mais precária. Para se ter ideia disto, basta observar que quando distribuímos a renda por sexo (f e m) os indivíduos do sexo masculino de cursos como o de Física (FSC-m), Ed. Física (EDF-m), Letras (LTR-m), Computação (CPÇ-m) e Geografia (GGF-m) associam à uma renda familiar maior do que a parte feminina da amostra.

 

Figura 3 - AC codificada interativa para a variável renda nas IES públicas (A) e privadas (B).


Fonte: Microdados do ENADE, elaboração dos autores (2020).

 

Figura 4 - AC codificada interativa para a variável renda nas IES públicas (A) e privadas (B).


Fonte: Microdados do ENADE, elaboração dos autores (2020).

 

Do mesmo modo, enquanto a parte feminina da amostra do curso de Física (FSC-f) fica mais próximo do estrato de renda “mais de 4,5 até 6 mínimos” (+4,5 até 6 SM) a parte masculina da amostra (FSC-m) está mais próxima do estrato de renda “mais de 6 até 10 mínimos (+6 até 10 SM). Isto quer dizer que nestes cursos, os grupos de indivíduos que apresentam uma condição de renda maior do que a média do curso quando separados por sexo evidenciam que a renda familiar dos homens é maior do que das mulheres. Já no caso do curso de Ed. Física, enquanto a parte feminina do curso (EDF-f) não se associa muito definidamente a determinado estrato de renda, a parte masculina (EDF-m) da amostra se associa ao estrato de renda “mais de 10 até 30 mínimos” (+10 até 30 SM), isto é, dentre aqueles que apresentam uma maior renda no curso de educação física, a maioria é do sexo masculino. No caso do curso de letras, que é um curso de maioria feminina, enquanto a parte feminina da amostra (LTR-f) fica entre os estratos de renda “mais de 3 até 4,5 mínimos” (+3 até 4,5 SM) e “mais de 1 até 3 mínimos” (+1 até 3 SM) a parte masculina da amostra (LTR-m) fica bem próxima do estrato de renda “mais de 4,5 até 6 mínimos” (+4,5 até 6 SM), isto é, dentre aqueles que apresentam uma melhor renda familiar no curso de letras, os homens se destacam mais que as mulheres.

No que diz respeito ao curso de Computação, enquanto a parte feminina (CPÇ-f) da amostra encontra-se – embora perto do centro do gráfico e por isso mesmo da média – próxima ao estrado de renda “mais de 3 até 4,5 mínimos” (+3 até 4,5 SM) a parte masculina fica bem próxima do estrato de renda “mais de 10 até 30 mínimos” (+10 até 30 SM). Uma das mais notáveis distâncias é o curso de Geografia. No caso deste curso, enquanto a parte feminina da amostra aparece bem associada ao estrato de renda “até 1,5 salário mínimo” (até 1,5 SM) o estrato masculino da amostra (GGF-m) aparece significativamente próximo do estrato de renda “mais de 4,5 até 6 mínimos” (+4,5 até 6 SM).

Esta situação evidencia mais um braço pernicioso da desigualdade de gênero no âmbito da formação e carreira docente, que abarca uma incômoda contradição que envolve uma presença maior de mulheres nesses cursos de formação superior, mas que desfrutam de condições de vidas mais desafiadoras do ponto de vista financeiro. Vale ressaltar, que esta situação observada a partir da renda das estudantes de licenciatura pesquisadas reproduz na universidade as desigualdades de gênero imperantes na nossa sociedade, embora, e ao mesmo tempo, possa existir outra forma de renda como resistência a esse modelo de pouca remuneração das mulheres (CARVALHO; SOBREIRA, 2008). Para termos uma referência, basta registrar que apesar de no mercado formal a escolaridade média das mulheres ser 13% maior e a quantidade de mulheres com nível superior superar em 36% a quantidade de homens, elas ainda continuam a receber os menores salários (AGENOR; CANUTO, 2015). No caso em tela, a situação não é muito diferente: apesar de representarem a maioria nos cursos de licenciatura e na sala de aula, estas mulheres encaram condições bem mais desafiadoras quando o quesito é a renda, como sugere as análises aqui feitas. Não obstante, é seguro considerar essa situação de desigualdade de gênero observada dentre os estudantes de licenciatura constituem um fato progressivo e por isso mesmo um presságio das desigualdades de gênero vindouras, visto que segundo Yamed (2015), no Brasil as desigualdades salariais baseadas nas diferenças de gênero tendem a ser mais notáveis dentre aqueles mais escolarizados.  

Nesse sentido, é com segurança que se infere que embora a amostra no todo seja esmagadoramente feminina (68,9%), os trajetos a serem percorridos pelas mulheres são, em alguns casos, mais tortuosos: isto é, elas são oriundas de famílias com menor poder aquisitivo, o que reproduz com certa fidelidade a realidade nacional. Dados do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada – IPEA sobre desigualdades de gênero e raça no Brasil indicam que quase 1/3 das famílias brasileiras são chefiadas por mulheres, ao passo que desse 1/3 aproximadamente 50% dessas famílias são monoparentais (IPEA, 2015).  Considerando este dado, pode se inferir também que boa parte das mulheres que compõem a amostra do estudo possuem grande possibilidade de serem chefes de família, o que torna a situação delas ainda mais desafiadora. Deste modo, ainda no tocante à renda, estes dados corroboram também, a partir desta inferência, que o micro espaço do campus das universidades públicas, lugar quem em tese deve produzir ciência e conhecimento e ajudar no progresso social reproduz, com certa fidedignidade, as desigualdades observadas fora desse seletivo espaço acadêmico, ainda que este seja majoritariamente ocupado por mulheres, como é o caso dos cursos de licenciatura. As teorias reprodutivistas ainda seriam uma maneira de explicar esse fenômeno, isto é, as condições de desigualdades sociais são reproduzidas nos sistemas de ensino (BOURDIEU; PASSERON, 1975)?

Saviani (1983), ao analisar as teorias da educação, faz uma ressalva quanto aquelas teorias, que ao seu ver são crítico-reprodutivistas. Afirma ele que por mais que essas teorias consigam destacar a violência simbólica que estrutura a dominação e é reproduzida pelos sistemas de ensino, não conseguem ultrapassar a dicotomia estado sociedade e sua inter-relação com a escola, cabendo a esta transmitir os subprodutos de uma cultura dicotomizada entre burguesia e proletariado. Por isso, ele propõe uma teoria crítica da educação que reconhece seu caráter histórico, as contradições do real e a reificação da estrutura social. O que demanda uma educação de qualidade, especialmente para dominados/as, para apropriação dos instrumentos culturais para superação da dominação.

Nesse sentido, não cabe simplesmente dizer que a presença majoritária de mulheres nas licenciaturas simplesmente reproduz os espaços destinados para as mulheres no cuidado e no ensino. Por outro lado, deve-se compreender como o processo de feminização da docência foi e é um processo de diminuição salarial e descompromisso com a educação, ou seja, a feminização da força de trabalho está associada a uma maior degradação salarial (SANTOS, 2005), e não a simples adequação micro do que acontece no nível macro.

Para tomarmos plena compreensão do problema, dados do mesmo estudo do IPEA indicam também que no que se refere à renda média a diferença entre homens e mulheres é de aproximadamente 36% (IPEA, 2015), o que evidencia um paradoxo: apesar de serem mais escolarizadas, tanto no que diz respeito à quantidade média de anos de estudo quanto de títulos de ensino superior acumulados, estas mulheres ainda não são agraciadas com a renda adequada quando comparada aos homens, o que evidencia que a questão da renda quando colimada sob a ótica de gênero revela o aspecto subjetivo da desigualdade de gênero, mesmo em espaços que exigem altos níveis de qualificação.

No que diz respeito à amostra das IES privadas (figura 3B), a grande maioria dos cursos – tanto em seus estratos masculinos quanto femininos – e das faixas de renda aparecem bem próximos do centro do gráfico (média) e por isso mesmo não há grande diferenciação. Isto pode ser explicado em parte, ao nosso ver, pelo fato de se tratarem de IES privadas, isto é, o estudante tem de pagar a mensalidade para estudar, e face a esta exigência é de se suspeitar que independentemente da questão de gênero, essa seja uma condição momentaneamente homogeneizante em termos de renda, já que em primeira instancia todos tenham que ter uma condição financeira semelhante ou aproximada. 

Não obstante, quando se considerou a análise da questão trabalho as desigualdades ora discutidas se repetem. Partindo da premissa já confirmada de que estamos trabalhando com uma amostra socialmente proletária, isto é, de estudantes advindos de famílias de baixa renda, buscamos verificar as condições de trabalho desses estudantes, comparando a parte feminina e masculina da amostra (figura 4A e 4B) quando se considera a variável trabalho (excluindo-se o benefício por bolsas ou auxílios). Como podemos notar na figura 4A há uma clara distinção entre a parte feminina e masculina nos estudantes das IES públicas quando se considera esta variável. Pode-se deduzir isso quando se observa, a título de exemplo, que a parcela feminina dos cursos conjugados (destacados com um “f”) se concentram no lado direito do gráfico, associados as categorias de trabalho eventual (eventual) e de não trabalho (não), ao passo que a parcela masculina da amostra se concentra do lado esquerdo do gráfico, ao lado das categorias de trabalho que vão de menos de 20 horas semanais (>=20h) até aqueles que trabalham quarenta horas semanais em tempo integral (TI, 40h).

 

Figura 5 - AC codificada interativa para a variável trabalho nas IES públicas (A) e privadas (B).


Fonte: Microdados do ENADE, elaboração dos autores (2020).

 

Figura 6 - AC codificada interativa para a variável trabalho nas IES públicas (A) e privadas (B).


Fonte: Microdados do ENADE, elaboração dos autores (2020).

 

Estes dados sobre trabalho também corroboram mais uma vez uma discrepante realidade que perpassa as desigualdades de gênero no Brasil e que se reflete nas universidades públicas, como atesta o caso em tela. Apesar de mais escolarizadas, dados também do IPEA indicaram, que no ano da coleta dos dados utilizados nesse estudo, que para cada homem desempregado no Brasil, havia 1,73 mulher desempregada (IPEA, 2011). Do mesmo modo, este estudo também indica que além de serem as maiores vítimas do desemprego, as mulheres inseridas no mercado de trabalho enfrentam condições menos favoráveis, como a informalidade, algo mais ou menos dedutível nos dados apresentados, já que a parte feminina da amostra (“f”) ficou mais próxima da categorial de trabalho “eventual”, o que também pode indicar o trabalho eventual doméstico (ROSEMBERG, 2001), que apesar de constituir uma forma de trabalho não é reconhecido como tal.

Por outro lado, de maneira mais homogênea se comporta mais uma vez a amostra das IES privadas, onde não há uma clara distinção em relação à situação davariável trabalho (figura 4B) quando se considera o sexo dos estudantes. Deste modo, mais uma vez também chamamos a atenção para o fato de que a condição financeira semelhante exigida para o pagamento da mensalidade do curso tem um peso significativo nessa explicação, sendo esta uma tendência observada em variáveis desse tipo no que diz respeito a amostra das IES privadas.

É evidente a discrepância tanto nas rendas quanto na carga horária de trabalho entre instituições públicas e privadas. Estudantes de instituições públicas trabalham menos e possuem uma renda mais elevada quando comparados/as com estudantes de instituições privadas. Talvez, esse comportamento se dê frente à realidade das duas formas de instituições. Enquanto as públicas são tidas como de maior qualidade e de maior pertencimento das elites, as instituições privadas são destinatárias majoritariamente de classes trabalhadoras (SALATA, 2018). O que além de demonstrar desigualdades entre os sexos, se intersecciona com outros marcadores sociais das diferenças (SABATINE; FODRA, 2018).

A continuidade desta análise nos levou novamente a escrutinar a amostra das IES públicas a partir da separação entre homens e mulheres no que diz respeito às condições de sobrevivência no campus, isto é a situação financeira declarada quando da realização da prova do ENADE. Esse escrutínio permitiu verificar que a quantidade percentual é semelhante entre aqueles que declaram ter alguma renda e receber alguma ajuda é quase a mesma (34% para as mulheres e 31% para os homens, tabela 1 e 2), ao passo que quando observamos aqueles que declaram ter renda e contribuir para o sustento da família, observa-se que o número de mulheres nessa situação é 21% superior ao de homens (tabela 1 e 2).

Diante desta constatação, fomos inclinados a inferir que essa aparente situação de maior conforto financeiro dos homens quando comparamos homens e mulheres dos cursos de licenciatura das universidades se reproduz nas diferentes variáveis socioeconômicas conjugadas. Portanto, é seguro considerar que mesmo em maior número e ocupando cursos tidos como “femininos”, as futuras professoras enfrentam um cenário mais dificultoso.

 

Tabela 1 - Situação financeira das estudantes do sexo feminino que fizeram o ENADE nas IES públicas[1]

CURSOS

CATEGORIAS DE RESPOSTAS

A

B

C

D

E

TOTAL

MATEMÁTICA

N

712

1192

446

868

200

3418

%

20,8%

34,9%

13,0%

25,4%

5,9%

100%

LETRAS

N

2861

3909

1411

2740

614

11535

%

24,8%

33,9%

12,2%

23,8%

5,3%

100%

FÍSICA

N

127

207

76

102

35

547

%

23,2%

37,8%

13,9%

18,6%

6,4%

100%

QUÍMICA

N

448

578

129

229

35

1419

%

31,6%

40,7%

9,1%

16,1%

2,5%

100%

BIOLOGIA

N

1800

1882

450

765

215

5112

%

35,2%

36,8%

8,8%

15,0%

4,2%

100%

PEDAGOGIA

N

4081

5843

2650

5726

1314

19614

%

20,8%

29,8%

13,5%

29,2%

6,7%

100%

HISTÓRIA

N

1115

1277

368

539

108

3407

 

%

32,7%

37,5%

10,8%

15,8%

3,2%

100%

ARTES VISUAIS

N

228

335

123

236

59

981

%

23,2%

34,1%

12,5%

24,1%

6,0%

100%

GEOGRAFIA

N

818

1031

401

659

166

3075

%

26,6%

33,5%

13,0%

21,4%

5,4%

100%

FILOSOFIA

N

197

219

80

135

24

655

%

30,1%

33,4%

12,2%

20,6%

3,7%

100%

ED. FÍSICA

N

801

1157

198

219

39

2414

 

%

33,2%

47,9%

8,2%

9,1%

1,6%

100%

COMPUTAÇÃO

N

49

57

23

32

16

177

%

27,7%

32,2%

13,0%

18,1%

9,0%

100%

MÚSICA

N

44

138

44

69

9

304

%

14,5%

45,4%

14,5%

22,7%

3,0%

100%

CIÊNCIAS SOCIAIS

N

266

338

110

94

27

835

%

31,9%

40,5%

13,2%

11,3%

3,2%

100%

TOTAL

N

13547

18163

6509

12413

2861

53493

%

25,3%

34,0%

12,2%

23,2%

5,3%

100%

Fonte: Microdados do ENADE, elaboração dos autores (2020).

 

Tabela 2 - Situação financeira das estudantes do sexo masculino que fizeram o ENADE nas IES públicas.

 

CURSOS

CATEGORIAS DE RESPOSTAS

A

B

C

D

E

TOTAL

MATEMÁTICA

N

486

952

806

794

764

3.802

%

12,8%

25,0%

21,2%

20,9%

20,1%

100,0%

LETRAS

N

461

794

563

613

482

2.913

%

15,8%

27,3%

19,3%

21,0%

16,5%

100,0%

FÍSICA

N

195

438

292

244

208

1.377

%

14,2%

31,8%

21,2%

17,7%

15,1%

100,0%

QUÍMICA

N

189

381

180

198

118

1.066

%

17,7%

35,7%

16,9%

18,6%

11,1%

100,0%

BIOLOGIA

N

535

762

306

314

232

2.149

%

24,9%

35,5%

14,2%

14,6%

10,8%

100,0%

PEDAGOGIA

N

273

446

455

538

409

2.121

%

12,9%

21,0%

21,5%

25,4%

19,3%

100,0%

HISTÓRIA

N

647

919

517

501

294

2.878

%

22,5%

31,9%

18,0%

17,4%

10,2%

100,0%

ARTES VISUAIS

N

46

103

65

55

30

299

%

15,4%

34,4%

21,7%

18,4%

10,0%

100,0%

GEOGRAFIA

N

514

832

554

516

369

2.785

%

18,5%

29,9%

19,9%

18,5%

13,2%

100,0%

FILOSOFIA

N

183

222

165

131

105

806

%

22,7%

27,5%

20,5%

16,3%

13,0%

100,0%

ED. FÍSICA

N

599

1103

349

295

148

2.494

%

24,0%

44,2%

14,0%

11,8%

5,9%

100,0%

COMPUTAÇÃO

N

54

89

57

63

38

301

%

17,9%

29,6%

18,9%

20,9%

12,6%

100,0%

MÚSICA

N

64

198

112

97

66

537

%

11,9%

36,9%

20,9%

18,1%

12,3%

100,0%

CIÊNCIAS SOCIAIS

N

158

222

96

93

37

606

%

26,1%

36,6%

15,8%

15,3%

6,1%

100,0%

TOTAL

N

4.404

7.461

4.517

4.452

3.300

24.134

%

18,2%

30,9%

18,7%

18,4%

13,7%

100,0%

Fonte: Microdados do ENADE, elaboração dos autores (2020).

 

É conclusivo pois, considerar que mesmo em maior número, as futuras professoras enfrentam desafios socioeconômicos bem mais robustos do que seus colegas do sexo masculino. Insistimos mais uma vez, portanto, na evidência de um paradoxo. Embora o fato de não trabalhar – ou melhor dizendo, de trabalharem em menor número e com cargas horárias menores – possa representar melhores condições de formação dessas futuras professoras, sendo isto atestado por uma maior média de anos de escolaridade no mercado de trabalho  isto é, de dedicação aos componentes teóricos e práticos do curso, como aulas campo, estágios diversos e atividades de extensão e cursos extras, essa formação mais sólida se dá em uma condição socioeconômica mais fragilizada, sendo isto deduzível a partir das figuras 3 e 4 e das tabelas 1 e 2.

Pode-se, portanto, a partir dos dados apresentados, traçar um paralelo entre as desigualdades de gênero na formação de professores e professoras com a própria história da mulher no mercado de trabalho no século XX. Como observa Ponthieux e Meurs (2015), é na segunda metade do século XX que a mulher passa a ocupar de maneira mais significativa o mercado de trabalho em suas diferentes ramificações, não sendo diferente na profissão docente, como observa Apple (1995) e Enguita (1991). É nesse período também que as mulheres experimentam um extraordinário aumento nos seus níveis educacionais, superando, em alguns casos, o dos homens (PONTHIEUX; MEURS, 2015), sendo que no caso da formação de professores/as a exigência de maior qualificação insta professores e professoras a se profissionalizarem (HUBERMANN, 1989).  Não obstante, é a partir desse período também que as diferenças salariais se tornam mais evidentes. No caso dos mercados de trabalho em modo geral, observa-se que essa entrada significativa e definitiva da mulher no mercado de trabalho se dá em setores específicos do mercado e nas fileiras rasas e mal remuneradas dos exércitos industriais de reserva (BRAVERMANN, 1987). No âmbito do mercado de trabalho docente, naqueles países onde a profissão docente era uma profissão predominantemente masculina, a ocupação deste espaço pela mulher se deu às custas de perda de autonomia e de uma drástica redução salarial e de prestígio (APPLE, 1995; ENGUITA, 1991).

Resgatando Scott (1995), sabemos que gênero é constituinte das relações sociais e é a primeira forma de dar sentido e significar as relações de poder. No movimento histórico da docência se transformando em “feminina” podemos perceber essa reestruturação do social a partir de noções e representações da mulher como naturalmente “mulher” com atributos do cuidado, “essências” para relações de poder e dominação. Uma estratégia do biopoder na formação dos sujeitos numa sociedade neoliberal (FOUCAULT, 2005).

Carvalho e Rabay (2015) destacam que no campo educacional o conceito de gênero perpassa currículo, prática docente, política educacional, formação de professores. Sua assimilação deve ultrapassar a simples sinonímia com sexo, compreendido como “natureza”, quanto gênero se relacionaria com “cultura”. Independentemente dessa dicotomização de uma ciência positivista na Modernidade, gênero está presente desde processos educativos da sala de aula à níveis mais elevados como a elaboração de políticas públicas. Vimos recentemente o debate e os discursos em torno da “ideologia de gênero” tanto no planejamento nacional da educação, como nos estados, municípios e Distrito Federal: um verdadeiro pânico moral para governamentalidade (MAIA; ROCHA, 2017).

Formar professores e professoras conscientes do gênero e da política sexual (CARRARA, 2015) é necessário para a docência da melhor qualidade a nível local, contextual (IMBERNÓN, 2016). Compreender os processos que levam à construção de subjetividades, a internalização de representações que levam meninos e meninas serem socializadas de maneiras dicotômicas, e a apropriação de campos científicos e práticas profissionais ditas “masculinas” e “femininas” passam pelo conceito de gênero.

Nesta pesquisa as informações foram trabalhadas com base no conceito de sexo biológico, isto é, com a autodeclaração de alunas e alunos num processo avaliativo, que é o ENADE. Essa categoria esconde meandros que devem ser explorados na formação docente tanto da educação básica, quanto da educação superior para ultrapassarmos a sensocomunização (CARVALHO; RABAY, 2015) nas questões que afetam mulheres, homens, e outras formas de ser, viver e estar em nossa sociedade. De todo modo, ainda que reconhecendo essas limitações, considera-se que se apresenta dados e informações importantes para a compreensão e discussão do tema em tela.

Considerações finais

Dentre as evidências a serem consideradas no âmbito de nossas alegações finais, destacamos a necessidade de se refletir, contrariando o que insta o senso comum, sobre a necessidade de se discutir com mais afinco a questão de gênero e sua perniciosidade no âmbito da formação e prática docente, ainda mais em um espaço cuja responsabilidade de desconstrução dessas desigualdades se materializa em diferentes pilares curriculares. 

É evidente pois que a literatura brasileira que trata dos aspectos socioeconômicos da formação e profissão docente no Brasil tem concentrado significativos esforços e nas mais diferentes frentes, com especial ênfase e discussão da marginalização social do/a professor/a ou do/a futuro/a professor/a. Essas análises são uníssonas no trato desta atestada marginalização socioeconômica, sendo este um fator homogeneizante da classe docente: somos mal pagos, desfrutamos de quase ou nenhum prestígio social e exercemos nossa profissão sob condições aviltantes.

Falemos especificamente da questão e das desigualdades de gênero. Torna-se premente colocar a frente desta discussão mais ou menos sedimentada da marginalização social do/a professor/a à conclusão aqui apresentada de que sendo a nossa classe formada em condições menos favoráveis e que no mercado de trabalho recebemos menores remunerações, há de se reconhecer que essas condições ainda são mais insidiosas às mulheres. Não obstante, cabe ressaltar ainda que o comprometimento com essa discussão deve denunciar também que estas mesmas mulheres, uma vez dentro da classe docente, continuarão a receber os menores salários quando comparadas aos homens, geralmente empregados em maior número no ensino médio onde os salários são maiores.

 É evidente pois que precisamos falar mais da questão de gênero no que tange a formação e profissão docente. É evidente também que a despeito de o campus acadêmico da área de formação e pesquisa sobre profissão docente proporcionar as mais robustas e ressonantes discussões no âmbito da educação e formação de professores e professoras, envolve-se de um tecido social que corrobora desigualdades de gênero.

Por fim, é mister destacar que a ideia de reprodução das condições sociais no campo educacional concernente às desigualdades de gênero não é tão simples assim como atestam as teorias educacionais reprodutivistas, tecnicistas e de aparelhamento ideológico do Estado. O processo de feminização da docência está mais para um sistema co-intencional do que naturalmente posto. Nesse sentido partimos da premissa de que esse processo se dá como forma de desvalorização da profissão e rebaixamento salarial como processo da Modernidade. Nesse sentido, conclui-se que precisamos vencer esse pelo escrutínio do pensamento crítico em suas mais diferentes nuances, isto é: conjugar análise, compreensão e ação em um mesmo processo e espaço. 

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Correspondência

Daniel de Freitas Nunes Instituto Federal GoianoRodovia Go-154, Km 03, s / n, CEP 76300-000, Ceres, Goiás, Brasil.

 

Nota



[1] Categorias de Respondentes: A = não tenho renda e meus gastos são financiados por outras pessoas; B = tenho renda, mas recebo ajuda para financiar meus gastos; C = tenho renda e me sustento totalmente; D = tenho renda, me sustento e contribuo com o sustento da família; E = tenho renda, me sustento e sou o principal responsável pelo sustento da família.