“Eu, quando era pequeno, gostava da escola… de comer na cantina”: perspectiva(s) dos adultos sobre a organização escolar
“When I was little I liked school… I enjoyed eating in the cafeteria”: perspective(s) of adults on school organization
Ana Isabel Moreira
CITCEM, Porto, Portugal / Investigadora Integrada
ana_m0reira@hotmail.com – https://orcid.org/0000-0002-6757-8005
Pedro Duarte
Escola Superior de Educação do Politécnico do Porto, Portugal / Assistente Convidado
pedropereira@ese.ipp.pt – https://orcid.org/0000-0002-3048-6959
Luís Rothes
Politécnico do Porto, Portugal / Professor Coordenador
lrothes@ese.ipp.pt – https://orcid.org/0000-0003-1476-0716
Fernando Diogo
Escola Superior de Educação do Politécnico do Porto, Portugal / Professor Coordenador
fdiogo@ese.ipp.pt – https://orcid.org/0000-0002-7178-7889
Recebido em 20 de agosto de 2019
Aprovado em 04 de junho de 2020
Publicado em 10 de agosto de 2020
RESUMO
A educação e formação de adultos não se restringe, hoje, a práticas educativas que se definem por relação a um qualquer sistema escolar (ou profissional). Ainda assim, e sendo a aprendizagem transversal às várias dimensões da vida humana e passível de acontecer em distintos contextos sociais, é legítimo que se questionem, por via de um inquérito, 32 adultos analfabetos ou com baixos índices de literacia sobre a perspectiva que perfilham quanto à organização escolar. Porque alguns deles experienciaram essa realidade e precocemente a abandonaram, porque outros têm familiares mais novos a frequentarem a escola, porque todos vivem num espaço/tempo onde tal instituição detém um papel de realce para cada um e para a comunidade. Além disso, com recurso à associação de palavras ou a respostas relativamente breves a partir de questões específicas, torna-se possível ler as representações construídas face ao assunto em discussão –o significado e importância da escola–, por indivíduos com idades compreendidas entre os 28 e os 69 anos, assumindo que as suas dificuldades de literacia serão mais um problema social do que uma deficiência individual.
Palavras-chave: Educação e formação; Adultos; Escola.
ABSTRACT
Adult's education and training is not limited, today, to educational practices defined by the relations to some school (or professional) system. Even so, and since learning is a process transversal to the various dimensions of human life and that can happen in different social contexts, it is rightful to question, through an inquiry, 32 illiterate adults (or with low literacy rates) about the perspective they share on school organization. Because some of them have experienced that reality and have abandoned it early, because others have younger relatives attending school, because all of them live in a space/time where that institution holds an highlighting role for each one and for the community. Besides, through the association of words or through the brief answers to specific questions, it becomes possible to read the built representations about the matter in discussion –the meaning and importance of the school–, by individuals aged between 28 and 69 years, assuming that their literacy difficulties will be more of a social problem than an individual disability.
Keywords: Education and training; Adults; School.
Quase como (uma) introdução
Entre a escola e a educação: os objetivos e finalidades da educação formal
Parafraseando Dewey (1897), a escola e a educação não devem ser entendidas como preparação para a vida, mas sim como a própria vida. Mais de um século depois dessa afirmação, a perspectiva daquele autor continua a ser de especial importância para quem pensa sobre a escola e sobre a educação. Aliás, como indica Robinson (2017), a educação não pode ser conceptualizada como uma alavanca para o futuro, antes tem de ser enquadrada enquanto modo de possibilitar que cada um viva, da melhor forma possível, o presente.
Assumindo a relação, implícita, entre os processos e as práticas educativas e a vida de cada indivíduo, nesta primeira secção procuraremos discutir os objetivos e finalidades da escola.
A educação é um direito humano universal fundamental (MANOJLOVIC, 2018). A este propósito, Onuora-Oguno (2018, p. 5) defende que “the right to a basic education is described as been a priority right above other socio-economic rights”. E nesta linha de pensamento, Stoer (2006) indica que, progressivamente, a escola, enquanto sistema responsável pela educação, tem potenciado a valorização do direito ao sucesso educativo e, em simultâneo, enfatizado os direitos culturais de cada indivíduo.
De acordo com Kemmis e seus colaboradores (KEMMIS et. al, 2014), o fenómeno educativo tem um impacto de suma importância na vida de qualquer pessoa. Assume-se, assim, que a educação integra uma dimensão associada aos direitos humanos, relacionando-se, ainda, com temáticas como a justiça social e económica, o desenvolvimento e a sustentabilidade mundial (APPLE, 2013). Como será explorado nas secções seguintes, é necessário tomar em consideração que esta perspectiva não se circunscreve à educação de crianças e jovens, sendo transversal, numa ideia subjacente à educação permanente ou educação ao longo da vida (SANTOS SILVA, 1990), e assente no princípio de que qualquer indivíduo tem direito à educação.
Concomitantemente ao mencionado, recorda-se que a visão apresentada sobre a educação enquanto direito se associa, de modo implícito, à ideia de que a sociedade valoriza cada uma das pessoas que a constitui, sendo aquela primeira fundamental para se compreender o investimento social no desenvolvimento individual (PRATT, 1980). Isto é, ao interligar a educação e os direitos sociais, políticos e culturais (STOER, 2006) coloca-se a tónica na conceptualização da “educação como o cerne do desenvolvimento da pessoa humana e da sua vivência em sociedade” (ALARCÃO, 2001, p. 10). A este propósito, Young (2014) relaciona a escola, e os processos educativos, com a possibilidade de as pessoas adquirirem conhecimento que não fica limitado à experiência pessoal, promovendo-se, portanto, o seu desenvolvimento mais amplo.
Num sentido complementar, Giroux (2011) defende que os processos educativos deverão fomentar a formação cultural, inerente à promoção de relações sociais e da afirmação do indivíduo no seio da comunidade. De facto, a educação pode perceber-se como um processo através do qual os educandos tomam consciência da realidade social e, por via dessa consciencialização, projetam a emancipação, reconhecendo que a sua intervenção social é potencialmente transformadora (FREIRE, 1987). Este ponto de vista relaciona-se, de alguma forma, com o que é defendido por Adorno (1995), quando o autor, ao rejeitar a educação como transmissão de conhecimentos, antes a remete para o aprimoramento de uma verdadeira consciência da sua individualidade e da sua relação com a sociedade.
A educação emerge, pois, intimamente ligada às dinâmicas sociais (DEMIRBOLAT, 2012), ainda que, tal como indica Apple (2004), por vezes o foco se coloque não naquilo que acontece no interior da escola[1], mas sim nos resultados relacionados com a preparação para a vida adulta ou, por outras palavras, com a preparação para o mercado de trabalho. Esta relação facilmente se constata quando se recorda que, no seu essencial, os sistemas educativos contemporâneos são altamente influenciados pelas perspectivas provenientes da Revolução Industrial, época durante a qual era expectável que a educação, mais concretamente a escola, tivesse a responsabilidade de manter o funcionamento do sistema económico (KEMMIS; EDWARDS-GROVES, 2018). De acordo com as ideias supracitadas, “primary purpose of education is to serve as a big new market for investment in technology, curriculum and testing materials, and schools themselves as for-profit enterprises” (HARGREAVES; FULLAN, 2012, p. 2).
Num trabalho recente, Pacheco (2018) reconhece que, pelo menos a partir de meados do século passado, a escola começou a ser pensada em consonância com um ponto de vista económico, com diferentes implicações pedagógicas e curriculares. De acordo com o autor, tal instituição, progressivamente, foi assumindo uma matriz de mercado, o que legitima práticas de competitividade, de prestação de contas, de uniformidade, de centralização nos resultados, entre outras. Simultaneamente, Apple (2013) ilustra uma dimensão transnacional associada, notando que as políticas centradas em análises de custo-benefício alusivas à educação e vinculadas aos sistemas de hipervalorização do funcionamento dos mercados, dos valores e competências, que se lhe encontram inerentes, surgem generalizadas em vários países.
E a opinião perfilhada por Goodson (2005), neste âmbito, alerta para as tendências pedagógicas marcadas pela influência dos mercados, entendidos à luz da globalização, que tendem a descontextualizar aquilo que é desenvolvido no interior da escola, o que, por sua vez, influencia a construção da identidade de cada um. Este processo pode, aliás, condicionar a continuidade, esperada, entre família, comunidade e escola (PARASKEVA, 2000) e o modo como aquela última potencia o crescimento do ser humano, como, de acordo com Alarcão (2001), é sua finalidade. Se, com efeito, não tomar em consideração diferentes dimensões da aprendizagem: a consciência cultural, a colaboração, a criatividade, entre outras (ROBINSON, 2017).
Neste sentido, e atentando na ideia de Paraskeva (2000), torna-se imprescindível que a escola, e os processos educativos, se estruture em torno do que define como ‘trindade de valores’, ou seja, o desenvolvimento cultural, educativo e, ainda, profissional dos estudantes. Na mesma linha de pensamento, Robinson (2017) associa a educação, e a escola, à mudança cultural, porém reconhece, também, uma dinâmica intrínseca à vida profissional dos estudantes e, com mais importância até, uma perspectiva de longo prazo e relacionada com o desenvolvimento global.
Para complementar o referido, talvez seja pertinente indicar que a educação deverá potenciar, junto de cada um dos indivíduos, a sua auto-expressão, autodesenvolvimento e autodeterminação, sendo estes elementos essenciais para a (co)construção de uma sociedade tendencialmente mais justa e democrática (KEMMIS; EDWARDS-GROVES, 2018).
De facto, as sociedades democráticas são aquelas nas quais há uma maior preocupação com os direitos humanos que, como já salientado, integram o direito à educação (APPLE, 2013). Porventura por isso, Adorno (1995) advoga a imprescindibilidade de, numa sociedade democrática, os sistemas educativos e as práticas pedagógicas valorizarem a tomada de decisões de modo consciente e independente. Ou seja, a educação só pode ser promotora de emancipação.
Mais se recorda que estas conceptualizações vão ao encontro do que foi defendido por Paulo Freire, em diferentes obras (1967; 1987; 2011), salientando o mesmo que a educação, entendida em sentido lato, pode emergir como promotora e prática de liberdade e autonomia, enquanto resposta a qualquer tipo de opressão ou subjugação.
A educação e a escola integram, pois, um processo dialógico entre diferentes dimensões, nomeadamente os direitos humanos, a sociedade (democrática) (DEMIRBOLAT, 2012; MANOJLOVIC, 2018), os grupos de influência e os indivíduos enquanto agentes (e transformadores) (PARASKEVA, 2000) que procuram promover a justiça social (APPLE, 2004). Os valores subjacentes àquele processo decorrem ainda das aprendizagens provenientes de diferentes âmbitos (KEMMIS et al., 2014), como aquelas que se relacionam com conhecimentos relevantes, porquanto o acesso ao saber é, ele próprio, um elemento vinculado a dinâmicas de injustiça, seleção e/ou reprodução social (YOUNG, 2014).
Em suma, pese embora se reconheçam as influências resultantes das especificidades do mercado globalizado (HARGREAVES; FULLAN, 2012; PACHECO, 2018), é essencial que a educação não se afaste de uma matriz subjacente ao desenvolvimento individual, também com implicações na evolução coletiva de cada comunidade, sendo entendida como um direito em si mesmo (ONUORA-OGUNO, 2018). Esta perspectiva, como nos lembra Alarcão (2001), conceptualiza a escola como uma organização emancipadora e crente na possibilidade de uma reconstrução da sociedade.
Educação e Formação de Adultos: percurso e campos de ação
Talvez possamos reconhecer a Educação e Formação de Adultos, como afirma (LIMA, 2005, p. 16), “enquanto campo político-educativo, socialmente construído a partir do século XIX e, sobretudo, durante o século XX”.
De facto, é aquando da Modernidade, e inerente aos valores de liberdade e igualdade nos quais a mesma se suportou, que a educação, numa perspectiva generalizada e além das elites sociais, se assumiu como uma responsabilidade social fundamental. Nessa época, a par dos processos educativos dirigidos a crianças e jovens, começaram a emergir ações intencionais de promoção educativa dos adultos. Depois, será já após o final da 2.ª Guerra Mundial, no século seguinte, que o campo da Educação e Formação de Adultos se consolida como detentor de um carácter sistemático e resultante da articulação entre uma dimensão social cada vez mais alargada e um progressivo protagonismo dos Estados (ROTHES, 2009).
Doravante, definem-se as suas especificidades, assim como as componentes que à mesma podem estar subjacentes. São, pois, modalidades que detêm uma designação própria, uma função social ou económica inerente, um conjunto de valores evidentes, refletindo a heterogeneidade que subjaz, desde logo, à área da educação que tem como foco primeiro os adultos. Assim, destacam-se, por um lado, a permanência
da concepção de extensão escolar, como educação de segunda oportunidade segundo o paradigma escolar; e de três novas perspetivas programáticas diferentes entre si, mas não necessariamente antagónicas e nenhuma ainda claramente hegemónica (SANTOS SILVA, 1990, p. 12).
Mais do que uma “educação em que participam pessoas adultas” (FLECHA, 1990, p. 91), a Educação e Formação de Adultos tomou-se, neste período de implantação, de acordo com representações construídas sobre aquilo que se considerava educativo e o que se admitia como adulto, numa clara manifestação do seu carácter sócio-histórico. Desde aí, e progressivamente, se entendeu que a conceção ‘daquela educação’ “[se] vai alterando com o tempo e, em cada momento histórico, nem todos [lhe] atribuem o mesmo sentido” (ROTHES, 2009, p. 131).
A perspectiva programática da educação de segunda oportunidade, ou recorrente, aproximou-se, de imediato, do modelo escolar, no sentido de compensar os adultos pela inexistência ou mal sucedida experiência na rede escolar e, muitas vezes, fazendo uso de conteúdos e estratégias de ensino e de aprendizagem características da educação básica de crianças (SANTOS SILVA, 1990). Paulatinamente, esta escolarização compensatória foi adotando percursos próprios, tendo em conta o seu público-alvo, e, portanto, promovendo uma adequada alternância entre o estudo, o trabalho e o ócio. A visão meritocrática do processo, e relacionada com uma recompensa imediata, não se desvaneceu.
Uma outra perspectiva transformou a dimensão da qualificação e formação profissional num elemento fundamental no âmbito da Educação de Adultos. Aliás, é desde então que o mesmo ficará marcado “por uma contínua tensão entre os seus dois principais vectores de crescimento, um mais associado à perspectiva da educação permanente e o outro mais ligado à formação profissional” (ROTHES, 2009, p. 141). Perpetua-se, pois, a ideia da modernização da economia conseguida pela qualificação, ou requalificação, dos recursos humanos ativos, numa perspectiva de aperfeiçoamento e reconversão profissionais da mão de obra. Com o passar do tempo, manteve-se subjacente a este campo uma intenção de resposta face aos problemas sociais relacionados com o trabalho (SANTOS SILVA, 1990), até porque as transformações nos setores de atividade económica são permanentes e os níveis do desemprego continuam a atingir valores francamente elevados, nomeadamente nos países industrializados.
Há, no entanto, visões mais amplas da Educação e Formação de Adultos e que, desde o início, permitiram que as perspectivas não se esgotassem na mercantilização dos processos formativos pensados para a população adulta. Assim, segundo Licínio Lima (2005), mais do que privilegiar a lógica da produção de certificações escolares e profissionais, assume-se como pertinente a valorização de dinâmicas associativas, comunitárias, de desenvolvimento local e de práticas de educação não-formal que antes se associam à lógica da educação popular, isto é, da mobilização crítica, da educação política e da formação para a cidadania.
Como tal, a perspectiva da alfabetização surge, na década de sessenta, sob a forma de um método mais distante do paradigma escolar, mas “cuja orientação principal preconizava a combinação entre a aquisição da leitura e da escrita e a formação de base, designadamente profissional […]” (SANTOS SILVA, 1990, p. 13). Assente, posteriormente, nos ideais defendidos por Paulo Freire (1967; 1987), o campo da alfabetização adquiriu contornos de promoção de competências de literacia, com uma intenção funcional e, em simultâneo, de dignificação social e profissional. Portanto, também se afirmou como formação cívica e política, como ‘ação cultural para a libertação’, como ‘pedagogia do oprimido’, como ‘conscientização’ do sujeito contextualizado. De acordo com Alberto Melo (1981, pp. 356-357),
o adulto deixou de ser considerado como objecto de um tipo diferente de educação e o conceito de educação de adultos evoluiu no sentido de atribuir à noção ‘adulto’ um significado ético, uma perspectivação no futuro, uma aproximação permanente de um ideal de ‘ser humano realizado’.
De modo mais específico, esta ideia de educação permanente orientou-se, desde aquele século XX, para uma formação geral, intelectual, cívica e profissional dos indivíduos adultos, fundamental à sua assunção de cidadãos comprometidos com o contexto real em que estão inseridos (SANTOS SILVA, 1990). Baseado na visão de que o sistema educativo, estruturalmente, havia de se ajustar a uma aprendizagem que pode iniciar-se nos primeiros tempos de vida e prolongar-se indefinidamente, aquele campo de ação, também denominado como educação popular ou comunitária, tem vindo a querer implantar-se como resposta ao direito à educação para todos e à possibilidade de os adultos poderem participar ativamente na gestão do seu percurso formativo. De algum modo, cumprindo a ideia de Peter Jarvis (1993), que não esgota a Educação e Formação de Adultos em programas de preparação de recursos profissionais ou de produção de capital humano e antes a associa à formação para a democracia, para o ambiente e a saúde, para a participação cívica e a autonomia, sem que os critérios da dimensão económica prevaleçam.
Opções no século XXI
Hoje, já no século XXI, entende-se que a aprendizagem, sob diferentes formas e intencionalidades, pode acontecer para lá das barreiras de um determinado nível etário e proporcionar, a qualquer sujeito, uma compreensão mais ampla sobre si, os outros e o mundo (TÁVORA, VAZ; COIMBRA, 2012). Assim, se “a educação/formação não se limita a um dado período da vida de cada um” (SANTOS SILVA; ROTHES, 1998, p. 5), as possibilidades educativas no seio de uma qualquer sociedade não podem cingir-se ao sistema escolar. Serão, porventura, e num outro sentido, o resultado de uma interação dialógica entre o sistema educativo, a realidade laboral e os diferentes contextos que compõem e organizam uma comunidade (PIRES, 2002).
Efetivamente, a educação básica de adultos não pode emergir como sinónimo de escolarização de adultos, até porque não só os processos educativos formais, que decorrem em instituições sociais que validam academicamente saberes, garantem o domínio de competências essenciais. De alguma forma, é inegável que a organização escolar assume a sua importância no alargamento das oportunidades de qualificação académica dos adultos, mas sem que seja suficiente para uma afirmação social mais abrangente. A escola, então, tem de ser considerada no seio de várias outras instituições que são capazes de responder aos desafios educativos atuais, distanciando-se, pois, as perceções mais totalizantes do sistema educativo formal (ROTHES, 2018 [no prelo])[2].
Por consequência, a Educação e Formação de Adultos, enquanto experiência formativa nesse percurso ao longo da vida, não se pode cingir a um conjunto de dispositivos mais pertinentes para beneficiar os adultos com a escola que não tiveram aquando da idade mais jovem (CANÁRIO, 1999), ou seja, não é apenas a alfabetização ou a educação de segunda oportunidade. Para lá de uma visão escolarizada da aprendizagem, há inúmeras práticas educativas intencionais, não formais e informais, que de modo continuado podem potenciar a aquisição de novos saberes, o desenvolvimento de competências de literacia, cívicas ou sociais, a ampliação de qualificações profissionais (PIRES, 2002; ROTHES, 2009; TÁVORA, VAZ; COIMBRA, 2012). E, desta forma, a educação ao longo da vida adquire espaço para se afirmar como preocupação estratégica que, porventura, ocasionará uma outra direção subjacente à reestruturação dos sistemas educativos.
É, pois, segundo uma perspectiva de construção e/ou transformação individual que a Educação e Formação de Adultos precisa de concretizar-se, mobilizando-se e integrando-se com carácter transferível, nas ações encetadas, as aprendizagens e competências que cada um detém, como resultado da riqueza da experiência e história pessoal construída, a par dos novos saberes elaborados. Para tal, exigem-se “novas estratégias, metodologias de trabalho e de avaliação […] em ruptura com os modelos transmissivos dominantes” (PIRES, 2002, p. 56).
Por outras palavras, reconhecem-se maiores potencialidades formativas de atividades diversificadas, se orientadas por objetivos co-construídos e valorativas das idiossincrasias individuais (JARVIS, 2007; 2008). O trabalho organizado conjuntamente, de modo flexível e negociado, é, assim, uma opção educativa que favorece o ajuste às particularidades de cada grupo, porque assente em abordagens democráticas e promotoras de uma reflexão programática continuada. São ainda marcas de um processo com intencionalidade moral e socialmente construído, da assunção de objetivos e metas exequíveis, pois inseridos num quadro local envolvente, e da sua aproximação ao quotidiano real dos sujeitos, onde, daí em diante, os mesmos poderão atuar com consequência (JARVIS, 2004; ROTHES, 2009).
A diversidade de projetos educativos potenciadores de criatividade, otimismo, vontade de aprender e confiança emergem, então, como opções para se enfrentar os problemas reais e se responder às exigências do mundo contemporâneo, no que concerne às dimensões pessoal, social e económica, e de acordo com intenções democráticas, de justiça e coesão social (AMBRÓSIO, 2001).
Na verdade, hoje, e também em Portugal, continua a ser amplamente pertinente equacionar a Educação e Formação de Adultos na dupla perspectiva de um desenvolvimento integral do ser humano e de uma participação na evolução social, económica e cultural, equilibrada e independente (UNESCO, 2015; 2016), mas num sentido mais abrangente, talvez. Ou seja, valorizando-se as ações educativas de facto favoráveis à conscientização, os modos de intervenção que combatem a alienação, a participação dos educadores na investigação e em práticas que rompem com modelos educativos tradicionais (CASTRO, GUIMARÃES; SANCHO, 2007).
Porque, com efeito, a Educação e Formação de Adultos continua a desempenhar um papel de destaque na ação educativa das várias sociedades (UNESCO, 2015; 2016), se reconhecida para além de entendimentos conservadores, tendenciosos ou redutores. De alguma forma, não se desvanece “uma necessidade de desescolarizar a educação de adultos e de revalorizar epistemologicamente a experiência dos aprendentes, promovendo modalidades de educação não-formal e reflectindo criticamente sobre os saberes da experiência” (CASTRO, GUIMARÃES; SANCHO, 2007, p. 76). Mais ainda, e de acordo com os mesmos autores,
[continua a ser] importante que a educação de adultos permita reflectir criticamente as práticas educativas inscritas nos processos sociais, sendo consequentemente relevante incorporar […] estratégias assentes em modos de intervir baseados na pedagogia crítica, emancipadora e problematizadora (FREIRE, 1975), que permitam compreender como os adultos integram e perspectivam nas suas vidas e nos modos de acção individual e colectiva práticas de educação formal, não formal e informal.
Enquadramento metodológico
Para a análise das conceções construídas sobre a escola, o seu significado e importância, a nível metodológico optou-se por conferir a esta pesquisa características próprias de uma investigação de tipo qualitativo (BOGDAN; BIKLEN, 2006). Nesse sentido, selecionou-se um número restrito de participantes, aos quais se deu a palavra, para depois se explorar, com algum detalhe, fenómenos específicos e atuais acontecidos numa realidade particular e associados ao contexto de vida real do grupo social em análise (KATAYAMA, 2014; PALACIOS, 2014; YIN, 1993).
A amostra, face ao objetivo do trabalho, foi composta por 32 adultos, com idades compreendidas entre os 28 e os 69 anos, a frequentarem um projeto de alfabetização promovido por uma associação privada sem fins lucrativos, sediada num distrito do norte de Portugal. O número de participantes contemplados, apesar de não permitir uma generalização das conclusões alcançadas, por não ser suficientemente representativo, proporciona, no entanto, os dados suficientes para se analisarem imagens individuais, e únicas, elaboradas por sujeitos que foram considerados como construtores daquela realidade e implicados na sua vida concreta de todos os dias.
De facto, qualquer adulto pode, a partir de vivências e experiências pessoais, mais ou menos positivas, elaborar entendimentos particulares sobre uma organização secularmente implantada na sociedade e que, de uma forma ou outra, tem presença marcada no quotidiano de cada sujeito que a compõe. Se não de modo direto, por via de uma frequência da escola interrompida precocemente ou de um mais tardio ingresso num processo formativo para adultos, em parte escolarizado, pelo menos pela perceção do papel de tal instituição no desenvolvimento de familiares próximos, e mais novos, como filhos, sobrinhos ou netos.
Optou-se, assim, por um estudo de caso, ou seja, “por uma investigação empírica que investiga um fenómeno contemporâneo dentro do seu contexto de vida real, […]” (YIN, 2005, p. 32). Desta forma, torna-se possível estabelecer uma articulação entre a dimensão prática, relativa aos processos passíveis de descrição que dão forma ao quotidiano de pessoas e/ou locais e a dimensão conceptual, sejam os factos e conceitos teóricos já conhecidos ou a organização das ideias que expressam a compreensão necessária do investigado (STAKE, 1999). Procuramos, também, que a partir da reflexão sobre exemplos concretos considerados se pensasse sobre o que é a escola e qual a sua função social percebida, assim como sobre a educação de adultos, enquanto área que extrapola as quatro paredes daquela organização educativa.
A técnica utilizada para a recolha de dados, por sua vez, foi o inquérito por questionário. Este incluiu uma primeira questão para associação de palavras ao vocábulo ‘escola’ e outras quatro perguntas abertas, cujas respostas, de breve redação, foram sujeitas a uma posterior análise de conteúdo, mais uma vez tendencialmente qualitativa.
O inquérito por questionário surge, sob a forma de um formulário (COUTINHO, 2013), como uma opção exequível para se recolherem opiniões ou conhecimentos de uma amostra selecionada e no que diz respeito a um assunto específico em estudo (BELL, 2010; QUIVY; CAMPENHOUDT, 2005). As mesmas questões colocadas aos vários inquiridos permitem a descrição das várias respostas, a sua comparação ou a perceção da relação estabelecida entre elas (BELL, 2010), viabilizam a verificação de hipóteses teóricas e a análise de correlações emergentes (QUIVY; CAMPENHOUDT, 2005) e proporcionam a possibilidade de se identificarem características idiossincráticas que certos grupos de indivíduos possuem.
A primeira questão do inquérito aplicado procurou criar uma situação para ajudar os inquiridos a pensar de uma forma diferente (DONOVAN; BRANSFORD, 2005), ocasionando a oportunidade para manifestarem as suas conceções sem a influência de quaisquer figuras de referência ou elementos simbólicos. A técnica de associação de palavras é, de facto, favorável ao estabelecimento de um primeiro contacto, permitindo o registo de respostas espontâneas, pouco refletidas e que proporcionam um acesso quase sem restrições à complexa rede de representações mentais de cada um (GIL SAURA, 1994; WAGNER, 1996).
Neste caso, os dados recolhidos foram tratados, inicialmente, de modo quantitativo, para se valorar o peso que adquirem nas perceções construídas por aqueles adultos, todavia, depois, procedeu-se à descrição e interpretação das mesmas, numa complementaridade entre métodos quantitativos e qualitativos no estudo dos dados coligidos (DENZIN; LINCOLN, 2012; FLICK, 2015).
Por sua vez, as respostas elaboradas pelos inquiridos às quatro questões seguintes puderam refletir as suas opiniões relativas a dimensões sociais mais específicas, nomeadamente o significado atribuído à escola no passado e no presente e a importância da mesma para cada sujeito em particular e, numa outra perspectiva, para os seus familiares mais novos.
Aqueles dois parâmetros foram definidos a priori, tendo em conta o que se pretendeu investigar, enquanto as categorias de análise se estabeleceram após a primeira leitura das respostas, portanto, em consonância com os dados recolhidos. Procedeu-se, assim, a um estudo do conteúdo das frases de resposta escritas por cada inquirido e elaborou-se, de modo indutivo, uma estrutura ordenada das informações incluídas naquelas redações (MINAYO, 2012), agrupadas e organizadas por via de um processo analítico flexível e integrado.
Como categorias de análise surgiram: I) a escola associada à aprendizagem; II) a escola promotora de aspetos de socialização; III) o gosto/interesse face à escola; IV) a escola do passado diferente da escola do presente; V) a escola como garantia de um futuro melhor; VI) a relação mercantilista que liga a escola ao mercado de trabalho.
As palavras apontadas pelos adultos participantes, depois também associadas às supracitadas categorias, aparecem ilustradas no Apêndice I. Nas próximas secções apresentar-se-á, então, uma explicitação pormenorizada dos dados coligidos e algumas conclusões alcançadas sobre as conceções construídas por aqueles indivíduos que vivenciam, no presente, a frequência de um projeto de alfabetização de adultos sobre os sentidos e a relevância passíveis de se conferirem à escola, enquanto outro espaço que pode contribuir para a formação dos seres humanos nas suas diferentes dimensões.
Análise dos dados
Para se iniciar a análise, assume-se como pertinente tomar em atenção a seguinte nuvem de palavras:
Figura 1 – Palavras associadas a escola pelos participantes
Como é possível constatar após a observação da figura, quando questionados sobre que palavras associavam à escola, os adultos participantes referiram mais vezes os vocábulos: aprender (60% dos inquiridos), ler (49% dos inquiridos), escrever (37% dos inquiridos) e estudar (23% dos inquiridos). Face ao apresentado, nota-se que aqueles adultos, com maior destaque, apontaram palavras que tradicionalmente estão vinculadas à realidade escolar. É ainda relevante assinalar que o conceito mais indicado foi aprender, enquanto a palavra ensino, por sua vez, apenas foi referida por um dos inquiridos, o que indicia uma perspectiva de escola mais associada à aprendizagem do que ao processo de ensino, sendo esta mesma noção sugerida por diferentes autores (GOODSON, 2005; HARGREAVES; FULLAN, 2012).
Tal perspetiva surgiu corroborada pelas redações decorrentes das questões de resposta aberta. De facto, no que concerne à primeira categoria de análise definida – I) a escola associada à aprendizagem –, esta foi mencionada em 44% das respostas obtidas, considerando todas as questões de resposta aberta. Portanto, evidencia-se que para os inquiridos, de forma genérica, a escola serve para aprender (I26, 61 anos).
Salvaguarda-se, no entanto, que a aprendizagem mencionada pelos adultos em formação foi interpretada de dois modos distintos. Por um lado, contaram-se várias frases que relacionam a organização escolar com a aprendizagem em sentido lato, tais como:
Vejo a escola como uma segunda casa e onde aprendemos tudo (I5, 36 anos).
Eu acho a escola importante, porque se aprende muitas coisas (I9, 35 anos).
As citações anteriores ilustram uma perspectiva abrangente face à aprendizagem, também acontecida no contexto escolar. Retomando a opinião de Alarcão (2001), é uma aprendizagem relacionada com o desenvolvimento integral dos estudantes, e promovida por tal organização educativa.
Por outro lado, com uma representação de 45% face ao total de registos textuais integrados na mesma categoria, diferentes respostas associaram a aprendizagem à ideia de escola promotora de um currículo mínimo essencial, vinculado às literacias básicas (leitura, escrita e cálculo). Essa visão da escola, onde primordialmente se aprende a ler, escrever e contar (I10, 31 anos), remonta, na realidade portuguesa, ao período de ditadura salazarista/marcelista (1933-1974). Durante tal regime ditatorial, procurou-se condicionar socialmente as massas populares, de acordo com a ideologia do regime, por via de diferentes instrumentos ou práticas e, por exemplo, no âmbito educativo, para a maioria da população, a escola encontrava-se, de facto, limitada à aprendizagem daqueles três elementos. A este respeito, importa ressalvar que a mesma ideia, marcadamente redutora dos processos formais de ensino e de aprendizagem, é transversal a diferentes níveis etários, e até mesmo alunos do século XXI, que frequentam o 2.º ciclo do Ensino Básico, manifestam esta representação da finalidade educativa da escola (Moreira, 2018). Assim, e retomando a opinião dos participantes no estudo, a escola é, repetidamente:
boa para elas [as crianças] aprenderem a ler e a escrever (I31, 62 anos).
para ler e fazer contas (I4, 52 anos).
importante para aprender a ler e escrever (I1, 45 anos).
para aprender a ler e a escrever (I17,31 anos).
De modo transversal, parece ser popularmente habitual, ainda, a vinculação de um determinado valor aos distintos espaços sociais da realidade quotidiana, interiorizado aquando do processo de socialização: na escola aprendem-se a leitura, a escrita e os números; no trabalho, as especificidades da profissão; na família, os princípios socioculturais; na comunicação social, o que parece ser suficiente sobre o mundo.
A par da menção àquela supracitada dimensão formativa, e num total de 9 referências, palavras que nos remetem para objetos usados em contexto escolar –livros, lápis, carteira, caneta – foram também apontadas, o que evidencia uma associação de escola sobretudo ao espaço de sala de aula, portanto subordinada a uma representação física do que é essa organização educativa. Sendo a sala de aula, então, o local onde está presente o professor (2 referências) ou a professora (4 referências) e onde os estudantes desenvolvem ações como: entender, ouvir, pensar, pintar, respeitar e saber (totalizando 8 referências). Os objetos e as ações referidas centram-se, de modo claro, nos aprendentes que, por isso, ganham o protagonismo no contexto escolar. É interessante mencionar, porém, que ações como agir, participar ou transformar ficaram por referir, indiciando, apesar de tudo, uma imagem mais passiva daquele mesmo aprendente.
Em contrapartida, são também 9, no total, as referências a palavras como recreio, brincar, brincadeira e lazer. A escola não é, deste modo, interpretada como um espaço onde somente se estuda, antes é, simultaneamente, um local de socialização e convivência. Assim, e a par das palavras já sinalizadas, verificou-se ainda, num total de 10 vezes, a menção a conceitos inerentes a essa socialização: amigos, amizade, amor, conviver, dialogar, comunicar e comunicação. Estes dados permitem-nos crer que na eventualidade de frequentarem processos formativos (mais) escolarizados, os adultos inquiridos poderão, pois, encará-los de um modo recetivo e positivo, já que a escola, para eles, não se limita à experiência de uma aprendizagem rígida, centrada apenas nos conhecimentos e circunscrita ao espaço de uma sala.
A escolha de tais palavras encontra paralelo nas respostas longas desenvolvidas pelos inquiridos. Fazendo uma análise de acordo com duas categorias distintas, que condensaram 21% das respostas — II) a escola promotora de aspetos de socialização e III) o gosto/interesse face à escola — verifica-se, de facto, que os adultos perspectivam a escola como um lugar-tempo associado a diferentes elementos que ultrapassam a formação, entendida em stricto sensu.
De acordo com aquelas respostas obtidas, constata-se com certa clarividência que os inquiridos ligam a escola a experiências de vida e a interações sociais tendencialmente encaradas como positivas. A par da seleção de palavras já apontadas, nas questões de resposta aberta, aqueles adultos fizeram alusão a uma escola que é quase uma segunda casa (I4, 52 anos; I29, 47 anos), onde, além de se aprender, há a possibilidade de brincar, conviver, aproveitar o recreio ou outros espaços com os pares. Atente-se nos seguintes exemplos:
Quando era criança a escola era brincadeira e estudar (I8, 28 anos).
A escola tem muitas coisas boas, como fazer amigos, aprender e brincar (I20, 28 anos).
Eu quando era pequeno, gostava da escola: de aprender, de comer na cantina junto com os outros alunos da escola e do recreio para jogar à bola (I18, 37 anos).
É pertinente referir que, à semelhança do que é salientado por Araújo (2007), a escola não pode circunscrever-se ao processo formal e tradicional de aprendizagem e desenvolvimento individual. Assume-se como necessário, pois, que a dimensão lúdica e de socialização entre pares seja valorizada e promovida precisamente no contexto escolar, reconhecendo-se assim a sua significativa importância na vida das crianças e na sua educação.
Ainda sobre a dimensão subjacente aos processos de socialização, notou-se que três dos adultos mais velhos (com idade superior a 60 anos) registaram palavras com uma clara conotação negativa, nomeadamente: terror, fugir e defendia-me. Não se pode esquecer que estes adultos vivenciaram uma escolarização no período do Estado Novo, que, como indica Nóvoa (2002), é não raras vezes lembrado pela ‘pedagogia da palmatória’. Em parte, a marca geracional tende a ser (auto)justificação para as situações de distanciamento ou insucesso face à escola, neste caso, e relativamente aos mais velhos, inerentes à conjuntura social que, à época, influía as condições de acesso àquele espaço. Naturalmente, e tomando em conta o processo de democratização iniciado em 1974, os inquiridos mais jovens afastam-se de uma conceção de escola delineada pelo medo, optando por escolher palavras com um significado mais positivo, tais como as mencionadas nos parágrafos anteriores.
De alguma forma, este ponto de análise surge inerente à categoria IV) a escola do passado diferente da escola do presente, sendo que 7,04% do total das respostas alcançadas podem ser assim sintetizadas: hoje em dia vejo a escola de uma maneira mais positiva (I12, 46 anos). Particularmente para os inquiridos mais velhos, com idades compreendidas entre os 40 e os 60 anos, a escola do século XXI tem conseguido distanciar-se daquela imagem sombria e rigorosa e, portanto, as crianças são mais comunicativas (I16, 50 anos), pelo que hoje em dia, a escola está muito melhor (I15, 51 anos). Aqueles que se encontram abaixo de tais idades, por sua vez, mostraram-se capazes de fazer a mesma comparação, mas acentuando aspetos mais concretos e que se relacionam com a aprendizagem. Para eles, de forma genérica, [agora] na escola há mais coisas para aprender (I2, 35 anos) e são ainda os mesmos que concluem que vejo o quanto me faz falta e o que eu poderia ter ganho se tivesse continuado a escola (I7, 39 anos).
Contudo, não deixa de ser interessante mencionar que, de modo transversal às diferentes faixas etárias, e pese embora num número de respostas diminuto (5,63% das respostas), os adultos evidenciaram um certo desagrado relativamente à realidade escolar, entendida como pouco aliciante, motivadora e desafiante. Essa opinião é ilustrada por um dos inquiridos quando afirma que: quando era criança pensava que a escola não me traria nada de bom, achava-a uma seca, sentia-me fechado e não gostava de lá estar (I7, 39 anos). De acordo com Robinson (2017), as dinâmicas escolares contemporâneas tendem a desvalorizar as dimensões criativas e estéticas da vida humana, o que pode explicar a reação menos positiva demonstrada pelos participantes. A par disso, e retomando a perspectiva de Freire (2011), algumas práticas pedagógicas não respeitam a individualidade e as dimensões cultural, ética e social de cada um dos estudantes, o que também poderá contribuir para se perceber aquelas anteriores respostas.
Num outro sentido, 12,68% das respostas associaram a frequência escolar, e a aprendizagem aí promovida, à melhoria das condições de vida dos indivíduos ou, nas palavras de um dos inquiridos, a escola é importante para o futuro […], para uma vida melhor (I3, 61 anos). No âmbito da categoria V) a escola como garantia de um futuro melhor, esta conceção surge inerente à ideia de escola como promotora de mobilidade social ascendente, que marcou e potenciou a estruturação dos sistemas educativos contemporâneos (CORTESÃO, DALE; MAGALHÃES, 2014). Acrescente-se, ainda, mais dois exemplos obtidos junto dos adultos:
Hoje vejo que a escola é algo que é obrigatório na vida das pessoas, porque é fundamental para poder ser alguém (I7, 39 anos).
A escola é muito importante para mais tarde as minhas filhas serem alguém (I6, 49 anos).
Aquela perceção de futuro melhor é, por vezes (4,93% da totalidade de respostas), e na voz dos participantes, intrinsecamente associada a uma possibilidade assegurada de emprego — categoria VI) a relação mercantilista que liga a escola ao mercado de trabalho. Por outras palavras, a formação que a escola proporciona é, para eles, fundamental para permitir o desempenho de um qualquer cargo profissional. Ainda que essa perspectiva seja criticada por diferentes autores (APPLE, 2004; 2013; LIMA, 2005; PACHECO, 2018), alguns dos participantes vão conceptualizando a escola como preparação para o ‘mundo do trabalho’. Segundo os mesmos:
[A escola é importante] para terem um melhor futuro, sem estudos não há trabalho (I11, 53 anos).
Para a gente ser melhor e ter mais possibilidades de trabalho (I12, 46 anos).
De um modo geral, e pelos dados coligidos, constata-se que uma parte minoritária dos adultos inquiridos olhou para a escola associando-a ao desenvolvimento de condições de vida e, concomitantemente, à possibilidade de obtenção de melhores oportunidades profissionais. Tal pode ser percebido, portanto, como uma visão daquela instituição enquanto preparação para a vida adulta, mais concretamente, para o emprego. Todavia, apontando numa outra direção, a maioria das respostas concentrou-se na valorização da escola pela sua dimensão socializadora e promotora de aprendizagem.
Considerações finais
No final da análise antes apresentada, talvez se possa assumir que os adultos em processo formativo, quando pensam sobre as dinâmicas escolares, concentram a sua análise em dois grandes domínios.
Por um lado, associam a escola a um local de aprendizagem e promotor da formação individual de cada estudante nas suas diversas dimensões. Porém, neste âmbito, aqueles adultos ainda tendem a apontar, mais significativamente, o desenvolvimento das competências de literacia e numeracia básicas. Estes dados podem ser explicados ao tomar-se em consideração que os mesmos não concluíram o percurso escolar obrigatório, mas ao frequentarem, já em idade adulta, projetos formativos, agora reconhecem que a educação e a aprendizagem são elementos relevantes para a sua vida (hoje vejo que a escola é algo que é obrigatório na vida das pessoas, porque é fundamental para poder ser alguém (I7,39 anos)).
Por outro lado, e talvez por não terem tido um percurso de sucesso na escola, estes adultos mais valorizam a dimensão relacionada com a socialização e a interação que ocorrem no espaço escolar, concretamente o que diz respeito à relação entre colegas, aos momentos de jogo e ludicidade e à frequência de locais outros que não a sala de aula. Esta perspectiva é relevante para se constatar o modo como tais sujeitos não limitam a escola à relação professor-aluno, nem aos processos formais de ensino e de aprendizagem. A escola é, para eles, como para Alarcão (2001), uma comunidade em constante interação.
Estes dados recolhidos assumem-se, assim, como favoráveis a uma reflexão mais ponderada sobre as experiências pensadas e organizadas sob o mote de uma ‘educação permanente’. De facto, esta educação/formação que se direciona para públicos adultos, analfabetos ou com baixos índices de literacia, não pode, como já foi indicado, sustentar-se numa perspectiva de “[…] os métodos mais adequados para dar aos adultos a escola que não tiveram na infância” (CANÁRIO, 1999, p. 4). Tem de ser mais do que isso. Sobretudo, porque os próprios adultos, quando questionados de forma muito direta sobre a escola e as suas especificidades, vão mais além de visões conservadoras e tradicionais daquilo que pode ser a aprendizagem, os seus espaços e tempos. Aquela pode emergir de processos educativos, formais ou não formais, com organização intencional, ou mesmo de circunstâncias informais, que permitem que, de modo continuado, qualquer indivíduo se possa realizar pessoalmente, exerça uma cidadania ativa ou se adapte aos contextos nos quais se move. Porque há uma educação que tem de ser para todos, sem restrições, com propósito moral e fruto de uma construção social (JARVIS, 2008; ROTHES, 2009).
Não podemos deixar de salientar que aqueles adultos em formação reconheceram mudanças na escola, quando estabeleceram uma comparação entre a realidade que, algumas vezes, vivenciaram e a realidade atual. Essa mudança entende-se, tendencialmente, como um processo positivo, quando os mesmos apontaram que as crianças, hoje em dia, experienciam melhores condições na escola e aprendem mais. Estas opiniões notam-se como importantes, em parte, para uma contínua valorização pessoal da escola e para o modo como esses mais velhos vão (ou não) influenciar a frequência escolar das gerações mais novas.
Com este estudo, é possível considerar-se que, para os adultos em formação selecionados, a escola não é uma realidade imutável. Esta organização afirma-se, pois, condicionada pelos diferentes contextos históricos e sociais. É um lugar de aprendizagem, mas é, também, um lugar de relação, determinado pelos diferentes agentes que aí intervêm, num processo simultaneamente formal e informal, no qual o recreio, à semelhança da sala de aula, emerge como um espaço simbólico da realidade escolar.
Contudo, não deixa de ser premente refletir sobre o facto de conceções conservadoras sobre o modelo e as aprendizagens escolares – recorde-se a velha máxima ‘ler, escrever, contar’ – ainda hoje apresentar um significativo impacto na forma como a opinião pública, em geral, conceptualiza a escola e as suas finalidades. Depois, e neste sentido, torna-se necessário ultrapassar um entendimento mercantilista do processo educativo. E a escola, mais do que se afirmar como um local de preparação para o mercado de trabalho, tem de fazer parte e, à semelhança do que referem Dewey (1897) e Alarcão (2001), ser a vida de cada um dos seus estudantes.
Questionar adultos que se afastaram, ou foram afastados, da realidade escolar sobre aquilo que é a escola, a educação ou a aprendizagem pode fazer sentido, particularmente se as suas representações construídas forem tomadas em consideração quando se preconizam, depois, experiências formativas que se pretendem promissoras e aliciantes para aquele público específico. Fica, porém, uma última nota: nenhum inquirido referiu a palavra direito. Que implicações terá, para estes adultos, a inexistência de relação entre educação e direitos?
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Correspondência
Ana Isabel Moreira — CITCEM — Faculdade de Letras da Universidade do Porto — Via Panorâmica s/n, 4150-564. Porto, Portugal.
Notas
[1] O autor faz um paralelismo entre a vivência escolar/pedagógica e uma caixa negra, apontando que aquilo que se passa no interior da escola é um processo invisível e, em certas ocasiões, insignificante, ou pelo menos pouco importante.
[2] O texto completo intitula-se “Plano Nacional de Literacia de Adultos: breve contributo para a clarificação conceptual”, e data de novembro de 2018.