O Pensamento da Filosofia da Diferença que sonha signos do Arquivo da Educação
The Philosophy of Difference’s Thought that dreams signs from the Educations’s Archive
Marina dos Reis
Mestra e Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.
mdr@ufrgs.br - https://orcid.org/0000-0002-2088-5358
Sandra Mara Corazza (in memoriam)
Professora doutora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.
sandracorazza@terra.com.br - http://orcid.org/0000-0002-1237-198X
Recebido em 10 de agosto de 2019
Aprovado em 30 de janeiro de 2020
Publicado em 10 de março de 2021
RESUMO
Via a Filosofia da Diferença, este artigo de teor ensaístico desdobra-se no tratamento onirofílico ao Arquivo da Educação. Articula questões acerca do aprendizado, admitindo ilogismos, os quais, pela lógica do sonho, traçam rumos filosóficos à invenção de seus próprios sentidos. Desenvolve planos de pensamentos que afirmam o direito docente de sonhar didáticas e de poetizar currículos. Introduz os conceitos de Sonhografias e de Aulas-Sonho, entendidos como signos da brotação pulsional do corpo que dramatiza aulas. Conclui em poesia de experimentação e interroga se já não seria o Arquivo aquele que sonhografa uma docência-pesquisa.
Palavras-chave: Sonho; Docência; Invenção.
ABSTRACT
Via contributions from the Philosophy of Difference, this article, in an ensaistic way, unfolds itself by performing a dream-work treatment through the Archive of Education. It articulates questions about learning and admits the occurrence of illogisms. Such illogisms, by the logic of the dream, trace philosophical directions to the invention of their own senses. The text develops plans of thoughts that affirm the teaching right to dream didactics and to poetize curricula. The article also introduces the concepts of Sonhografias (Dreamographies) and Aulas-Sonho (Dream-Classes), these concepts are understood as signs of pulsional budding from the body that dramatizes classes. It concludes in experimentation poetry and asks if it would no longer be the Archive that sonhografa (writes to dream work mode) a teaching-research.
Keywords: Dream; Teaching; Invention.
O que se experencia pensar com a Aula-sonho?
Onironautas do Arquivo avistam sua tradução ao longe, filetes crisográficos que chegam a fulgurar a luz solar. Dessa montanha, emana a vontade de potência cuja sombra não aniquila o olhar, mas sim marca o centro de uma gravitação que me orienta os signos ao movimento na paisagem. Que língua é essa que sonha a Aula? O corpo é nosso primeiro território, mas ele, o corpo, é um plano irrealizável: nunca está lá, mas também não está aqui. Aula-sonho em não-lugar da linguagem. A linguagem ainda não satisfaz o sonho. Se, no sonho, as imagens nunca se apoiam e rapidamente substituem-se, então são letras deixadas para a consciência brincar com o inconsciente? Se uma Aula sonhada é vivência, e um sonho contado em aula emancipa-se à linguagem docente, então isso se torna uma experiência, uma didática, um currículo?[1]
De que maneira e em que intensidade a Matéria[2] é sentida e avaliada por um pensamento, ou melhor, que tipos de disparadores um pensamento realiza ao confrontar-se com algo que lhe causa estranhamento? E o que determina o estranhamento? É a natureza da Matéria, sua apresentação, suas partes intraduzíveis que derramam signos a-traduzir[3]? Ou são as ações do pensamento, aquilo que reconsidera, em si, tudo o que tenha vivido na memória para determinar algo? O pensamento, quando avalia, também sente e esquece-se um pouco do que já pensou? Como o pensar avalia aquilo que o próprio pensamento produziu aparentemente como algo novo, se o novo, por sua vez, precisa de suas memórias para então comparar reminiscências em seu frescor e calcular que o novo não faz parte delas, ou seja, que é criação por diferir-se daquilo que foi? E esse novo que surge constitui-se em arte porque informe?
Aquilo que chamamos de Arte, bloco de sensações, a terceira caóide (CORAZZA, 2011), conserva-se em si deveniente; sua duração faz-se tanto quanto a Matéria suportar. Uma obra de arte emana uma existência de autoposição, além do seu criador. Está dramatizada pelos contrapontos das sensações de quem a traduz, pelos seus ritmos dissonantes ou consonantes. Por exemplo, ao saltar como cavalos dos espaços vazios, uma caligrafia oriental desenha seu sonho sobre um fundo silencioso: isso deslumbrou Henri Michaux (1899-1984) em suas saturações em preto-e-branco. Segundo Deleuze e Guattari (1997, p. 231-215), essas percepções implantadas na matéria, pela arte, não são apenas desenhos infantis ou resultados de jorros sob o efeito de narcóticos: o controle dos vazios compõe-se com as ranhuras rítmicas do pensamento musical, em suas melodias, ritornelos[4] e contrapontos, que sensualizam o jogo da saturação e dessaturação do traço, do bloco, da pincelada, da palavra, da letra: fabulando-se e não rememorando. Usando o além da moldura e um fundo falso de infinitas seriações, um maneirismo faz saltar algo do vazio: eis aqui a criação pelo ilogismo sonhográfico em artistagem (CORAZZA, 2006): “Os afectos são precisamente estes devires não-humanos, como os perceptos [...] são as paisagens não humanas da natureza” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 220).
O percepto é a paisagem anterior ao homem, o homem internalizado, um sonhador, some na paisagem singular. O pensamento da diferença que sonhografa diante da Matéria implica-se no plano imaginário, elabora-se de forma subliminar: semelhante ao labor do sonho[5], informe de forças constantemente opostas e transversais. Para diferenciar e elaborar uma forma da Matéria, a elaboração secundária vígil cunha sobre o pensamento onírico as suas destruições para fragmentar essa univocidade aparente da consciência. Debruça-se no espírito (intelecto) para pensar, segue-se uma cadência radiante sobre a obscuridade das imagens: vislumbra paisagem de inconsistências do caos, onde caminhos azuis tramam-se enquanto pisoteadas.
Nesse plano de imanência composicional onírico subjetivo, estamos a n-1, ou seja, sem algo que, de fora ou do alto, justifique isto aqui. Passamos a desacelerar signos do Informe (CORAZZA, 2013), do meio do pensamento sem imagem, pois no sonho a queda imagética é livre. Sonhografamos de qualquer ponto do caos, do umbigo do sonho, nesta dimensão exponencial.
Um signo sentido é pensamento em gestação, relaciona-se com o não-pensado, devir-larva: o mundo sonhoreiro elabora-se pelo gesto, abrupto e ritualístico em seus sinais. Os signos não são a reserva a um dono ausente, mas forçam desterritorializações ao pensamento, cujo ponto de início da trajetória, quando tomado, é chispa e fissura à criação, e não alguma imagem pronta. Deambulamos nessa paisagem de velocidades impossíveis sem visualizar uma forma, mas maquinamos as formulações do trabalho imaginativo. Na elaboração secundária do sonho, esse ponto-zero à imaginação é restaurado, pois evocamos antes uma “imagem primeira da poesia, e a poesia, a forma primitiva da linguagem” (FOUCAULT, 2002, p. 100).
Elaborada por este empirismo transcendental onírico, a Matéria, ou aquilo que a levou a ser matéria é urdida pelas forças apolíneas e dionisíacas (NIETZSCHE, 2005) desse drama onírico. Na percepção microscópica da perspectiva do sonhador, essa trama embrenha-se em suas inconstâncias e ilogismos, para libertar-se justamente daquilo que tenderia a recolher, a processar, a calcular e a compreender. Nesse rigor apolíneo, Valéry (1954) descreve, na introdução sobre o pensamento de Descartes, que à luz de um olhar geômetra, uma linha é uma equação: é um sonho extraído de um pensamento, antes de tornar-se abstração ao mundo. O pensamento fugidio de Descartes decepcionara-se com as letras, entendendo que “tudo o mais não passa de divertimento ou não é absolutamente nada” (VALÉRY, 1954, p. 13). Correia (2002, p. 49) destaca a relevância dada por Descartes — ao descrever em seu Discurso do Método para bem conduzir a própria razão e procurar a verdade na ciência, (1637)[6] — que boa parte do desenvolvimento de seus pensamentos científicos ocorrera em viagens em experimentação do pensamento via o ato tradutório da escrita, ou seja, Descartes não nega que o pensamento é inseparável do corpo. No sonho famoso, o corpo é pensado pelo pensamento:
E [...] um mundo aberto, onde é possível vislumbrar toda a diversidade das línguas e dos costumes, onde a opção por uma língua vulgar na produção da ciência — para além do imperativo do latim — não é um insulto, visto que qualquer pensamento pode ser expresso em qualquer língua. Aquilo que vem de um país estrangeiro [o melão sonhado por Descartes] sendo-o ofertado aponta para a descentralização da verdade, ou seja, que ela bem pode não estar no lugar suposto pelo douto (CORREIA, 2002, p. 49-50).
O pensador usou também as reminiscências de seus sonhos nessa experiência de corpo nômade para que pudesse fixar-se em um trampolim sensorial. Tal labor permitiu-lhe aventurar-se nas paisagens de suas ideias, totalmente atuais, porque surpreendia-se com a mística noturna de seus pensamentos latentes e debruçava-se diurnamente sobre os conteúdos manifestos para arrastá-los, desossá-los na tradução a partir do jogo de forças desse mistério do intelecto:
As ideias claras do filósofo [de Descartes] são feitas do mesmo tecido dos pensamentos do sonhador e do louco com sua nudez e corpos de vidro. Esta será a constatação de Freud [A Interpretação dos Sonhos, volume II] quando assevera que o sonho dá continuidade à vida diurna de onde as valiosas ideias brotam sempre ‘das profundezas da alma’. Um certo pensamento das luzes se torna bem menos luminoso quando é obscurecido por estas misteriosas profundezas. Este é precisamente o mistério da criação científica e literária e da ascese religiosa (CORREIA, 2002, p. 54).
Esse nascimento poético da parte a-traduzir da Matéria que é o corpo do filósofo-sonhador pode ser o próprio divertimento necessário à disruptura da ideia platônica, porque é na fuga de uma ideia que o pensamento pode esbarrar no Informe incidental e dele destacar signos a-traduzir. O sonho bordeja a lógica para averiguar o nonsense do real. Pensar e sonhar não é uma determinação para a recognição ou para a representação, não se trata de um senso-comum que avalia um dado e lhe define em uma fórmula estanque.
Problematizando tal fórmula, como a da hipotenusa, por exemplo, o que ela nos fornece? Linhas em determinados espaços. E seus traços são suficientes para caracterizar no pensamento um triângulo retângulo? Propomos assim, via sonhografia, um estranhamento a essa imagem-dada em nosso exemplo, do triângulo retângulo — sentimos que o pensamento sem imagem, o onírico do impossível, depende muito mais da experiência da mão e do espírito (intelecto) do que da correlação entre símbolos pré-determinados pela visão ou pelo pensamento estabelecido e metafísico e abstrato. É possível desenhar a vida e não apenas equalizá-la a partir de seus produtos aritméticos. Traduzir à maneira de um sonho é um processo de assimilação da Matéria, para compreender a revelação em seus próprios termos, em vez de simplesmente acreditar apenas naquilo que os olhos e ouvidos tendem a nos mostrar ou a ensinar-nos, pois “a palavra do poeta perdura em sua própria língua” (BENJAMIN, 2011, p. 108). Temos nessa sutileza tradutória uma aliança poética com a palavra.
No entanto, afirmamos que um conceito como Matéria Matemática terá, no seu logos, a definição de si determinada tanto por sua imagem quanto por sua equação, que é imagem de um pensamento. O pensamento que lê sem transcriar talvez receba tais informações sem, muitas vezes, dramatizar no informe esse fazer. Dramatizar o quão estranha poderia parecer a linguagem que remete a uma linha reta, que deve constar numa relação angular com outras duas, caso contrário, não nasce um triângulo retângulo naquela ciência. A hipotenusa tem o seu lugar reservado numa relação que a define. Ao transcriar a Matéria preparando o que o espírito problematizará em sua interpretação, a avaliação pensamental passa a dramatizar sob um determinado logos do desejo (casa do sonho).
Dramatizando-se em máscaras composicionais, em sua feitura tradutória, ao mesmo tempo em que subtrai aquilo que seria clichê da perspectiva do sujeito da vigília metafísica, ou do puro conteúdo manifesto, as sonhografias forjam seus sentidos nas imagens que transcriam sua poética. Pelas forças desse tipo sonhador, um corpo molda-se além daquilo que já sabe. O sonho nos compromete a uma vivência daquilo que ainda não conseguimos ler. Descartes tem seu lugar nessa sonheria.
Signos insones: da luz às sombras do aprendizado poético
De que maneira, no aprendizado tradutório, um pensamento pode estar suspenso de modo a lidar com aquilo que lhe assustaria, de modo que sonhe com as suas conclusões, crie valores não-unânimes, heterotopias (FOUCAULT, 2010)? Nesses espaços de não-lugares, haverá a coragem no corpo que encara o medo para dobrar-se com o Fora? Quanto mais luz científica, mais clareza nas ideias? E se a luz retificar e consumir as dobras do Informe, isso não age impedindo-nos de ser afetados pelos signos que escapam da relação de forças dos a-traduzir sobre a Matéria, a-traduzir desenhados em seus mistérios? Como criar uma ideia de sonho, subliminar ao pensar, a qual busque essas partes a-traduzir, fareje o obscuro que está dramatizado sob uma definição pura? A criação poderia ser aquilo que o pensamento consegue lidar à sua maneira?
Há uma luz onírica na imaginação, que brinca com a linguagem e que perfura o real. Imersão e emersão no/do umbigo do sonho (parte intraduzível do sonho), que é, por sua vez, a parte obscura da genealogia do pensamento. Durante a tradução de um sonho, do Arquivo, de uma sensação, arrastamos muitas pistas à invenção, pois os a-traduzir são espaços da brotação pulsional, já que:
Resta em todas as línguas e suas traduções, afora o elemento comunicável, um elemento não-comunicável, um elemento que — dependendo do contexto em que se encontra — é simbolizante ou simbolizado. Simbolizante apenas nas composições finitas da língua; simbolizado, porém, no próprio devir das línguas. (BENJAMIN, 2011, p. 116)
De certa forma, foi o que Descartes fez ao mergulhar o espírito no obscuro. Será que, como este pensador, seria necessário recorrermos a um sonho cujas mensagens de um daimon[7] justificariam e iluminariam nossas ideias? Será que, para criarmos nosso monstro Informe, talvez fosse uma necessidade ao espírito o abandono, não sem estar permanentemente em conflito, de todas as teorias que nos explicam o que desejamos saber?
A poética[8] sonhoreira mergulha o espírito nesse deserto desterritorializante. Nele, nosso corpo torna-se enorme, ancestral. Com olhos confusos sempre seduzidos por miragens, avistamos caminhos derretidos, nunca demoramos em nenhum sítio, pois a febril ausência de pistas queima quaisquer paragens. Passagens em pré-matéria, sem enciclopédias, sem compassos. Pensar que se assume poeta-tradutor pela atualização da própria série mental — ao ouvir ou pensar a palavra hipotenusa, poderíamos traçar no papel uma curva sensual, feminina; ou, no pensamento sem imagem, a Hipotenusa é deusa, é animal de sangue-frio, é a não-equação, é o não-p.
Perguntar o que é? é expor o que já temos, sabemos, é dar a ver o já visto. Subtraímo-nos disso e sistematizamos dramas pelo Método do Informe (CORAZZA, 2013) — onde?, como?, com quem?, quando?. Aquilo que nos surge é algo a ser estranhado pelo sistema que se tece a partir de um pensamento receptivo a pequenas percepções: afeta-se o corpo do poeta ao traduz o entrever. Tece conceitos com aquilo que vibra sua teia, aquilo que crê saber e aquilo que age para descobrir. Nessa poética, “um sistema é uma empresa contra si mesmo” (VALÉRY, 1954, p. 21).
Quanto à natureza da Matéria, não é pensada pela própria natureza? Natureza de um pensamento que se dilui no limiar entre o sonho e a vigília, a fim de coabitar com os signos daquilo que lhe é causa, a própria Matéria. As cores dos perceptos ressonados no corpo a partir de a-traduzir do que se toma por Matéria retroalimentam o desejo transcriador, amplificam a paleta de tons afetivos do intelecto, traçam novas viabilizações mentais e, quiçá, novas palavras, mundos, imagens de Aula. Ressemantizações da vida.
Espaços, Imagens e Signos: EIS de Aulas-Sonho
Nas Aulas-Sonho, há decepção. A palavra fere. Ensina-nos Deleuze (2003) que os signos amorosos agridem o pensamento, o qual se maquina à criação. Esse pensamento ferido cria seus remédios para revigorar suas forças assustadas. Nessa imaginação que é relação de forças, o caminho não está alinhado imediatamente. Explora-se por outras percepções, dos tipos: errantes, projetivas, subjetivas, impossíveis. O corpo apaixonado, sem forma, tem de aprender a lidar com a geometria da ausência:
A decepção é fundamental ao aprendizado ou à sua busca: à primeira vista (a visão da inexperiência) ainda não somos capazes de distinguir o signo e o objeto (este se interpõe e confunde os signos). ‘Decepção na primeira audição de Vinteuil, no primeiro encontro com Bergotte, na primeira visão da igreja de Balbec” (DELEUZE, 2003, p. 32, cita trecho de Em busca do tempo perdido, de Proust).
Surpreender-se com o pensamento não se apoia numa imagem dogmática, este é o umbigo da transcriação, ora conceituada Sonhografia[9]. Capilares de sonho recolhem a luz advinda da racionalidade, da lógica e da doxa. Testemunham traduzindo a cada vez uma Matéria diferencial, mesmo elaborada no ritual de repetição de Aula. Mil vezes lembro-me do sonho daquela paisagem. A cada vez, com o trabalho consciente do espírito, preciso forçar as pequenas percepções que o corpo dramatiza para traduzir e (re)apreender o que é essa paisagem. Sonhar com uma bicicleta não é a mesma coisa que sonhar com uma magrela. Afectos diferentes, eis a palavra que sonhamos?
O método aqui problematizado sonhografa suspeitando daqueles conteúdos de aula, que são os dados da realidade. Sonhografamos partes deslocadas da Matéria sobre a qual o pensamento que agiu já a tornou outra coisa; nisso também já somos Outros. Transbordam em sonhografias de Aula[10] essas escritas de uma unidade da Diferença, heterogênica e disruptiva. Tal transcriação ausculta as polifonias do Arquivo, as quais são avessas às literalidades perante o Original da Matéria (um texto dado por original, isto é, o texto de partida). Este tipo de docência-pesquisa sonhográfica lança-se no instante da própria feitura, modulando-se pelas irrupções das palavras que lhe dão sentido. Assim, o Arquivo[11] da educação passa a ser tão aberto quanto um sonho. O gesto sonhoreiro docente lava a poeira da Matéria arquivada, percola dela os a-traduzir, distancia-se do texto de partida em seus pensamentos latentes, mas sem perdê-lo de vista, dá nova vida a este original em seus conteúdos manifestos, pela elaboração secundária de sua transcriação do Arquivo.
O tratamento do Arquivo a partir das sonhografias da Diferença desenvolve-se, portanto, a partir das proposições freudianas (via a leitura de Derrida em sua obra Freud e a Cena da Escritura, de 1966) as quais repercutiram sobre a noção clássica de arquivo, ou seja, a elaboração do arquivo restrita ao trabalho mnemônico. Segundo Telles (2002), Freud criou modelos psíquicos para entender como as percepções são gravadas em memórias inconscientes e conscientes. A partir disso temos na arquivística as ações do inconsciente, da memória e da história. Assim, as viabilizações que o arquivista, o intérprete, realiza na montagem do arquivo admitem a escrita como inconsciente, sendo o arquivo uma concepção de “diferentes espaços psíquicos” (BIRMAN, 2008, p. 117). O Arquivo está, portanto, sujeito ao trabalho de sonho sobre aquilo que tomamos por Original, sobre aquilo que vemos nele: seu conteúdo manifesto. Temos em mãos um fragmento resultante de: pensamento latente, censuras, recalques, deslocamentos, inversões, apagamentos (pulsão de morte), condensações e facilitações (pela repetição traumática, por exemplo):
Dessa maneira, o arquivo não se constituiria apenas de traços patentes e ostensivos, mas também pelas múltiplas leituras possibilitadas pela condição de posterioridade do intérprete e pela ação das operações do recalque e da repressão, que transformariam o que é patente em latente e virtual. Os traços, enfim, apareceriam assim de maneira indireta, sob as diversas configurações assumidas pelas formações do inconsciente, a saber, o sintoma, o lapso, o ato falho e o chiste. (BIRMAN, 2008, p. 117)
O docente sonhografista compõe fantasias para acordar os sonâmbulos do Arquivo, entoa ninares que inventam memórias didáticas. Essa escritura ascende ou descende ao criar novas moradas: o Arquivo é sonho, as aulas são drama em suas diferenças. A poética sonhográfica amplifica, desloca, mistura, condensa, inverte e destrói as imagens de aulas-dadas, quer sejam elas oriundas do Arquivo, da literatura, do cinema, das artes visuais, da ciência, da metafísica, quer sejam elas dos sonhos alheios ou dos sonhos de AICE.
Autor, Infantil, Currículo, Educador: AICE da tradução sonhográfica
O consciente brinca com as reminiscências involuntárias, devolve suas transcriações ao Arquivo tomado. As criações não chegam a destruir o Original. Adsorvido ao que nos afeta está o seu acaso. Acaso que, se atentos, podemos sentir. A sonhografia treina um tipo de proteção poética: o training freudiano tratado por Benjamin[12] para a recepção dessas forças diante do Arquivo e preparando-se um corpo docente para experenciar com as vidas que trata, Aula. A Sonhografia opera gulliverizando as intensidades no corpo que as sonhou. Em sua lógica, o sentir não se vincula ao mito História, ao passado de valores e de tribunais morais alocados num dado tempo e espaço. Esse training é a angústia do poeta que previne o corpo às decepções. Angustiado, o corpo transcria vividamente aquilo que lhe assusta. Essa prevenção não cansa de inscrever seus espaços, imagens e signos (EIS).
A memória com a qual estamos acostumados, aquela que informa prioristicamente estancando uma vivência é aquela que nos dita o conteúdo X a ser dado na aula Y. Memória inflada por valores que apequenam a vontade inventiva. Na Aula-Sonho, o irrecuperável da memória é o que lhe dá o onirismo. Vincula-se ao estranhamento diante do familiar: um chiste diante do corpo cansado de aulas apenas informativas. Nesse espaço extraordinário que sonha o ritual auleiro, a docência-pesquisa pensa o Arquivo em sua novidade no atual.
Uma experiência docente é sempre vontade de potência, nela inaugura-se, a cada Aula, a energia das palavras pelas suas sensações, pelas vidas psíquicas. Tal vontade torna-se poética já que não se repete para produzir quantidades, mas para diferenciar-se qualitativamente. A coragem em seu direito de sonheria (CORAZZA, 2019) é esse obscuro sobre o qual lançamo-nos em a-traduzir: “Devemos — diz ele [Descartes] — encarar a dificuldade sem considerar nenhuma diferença entre as linhas conhecidas e as desconhecidas” (VALÉRY, 1954, p. 26).
O pensamento sonhográfico transconstrói um método (em sua etimologia de acesso), diante do que ainda não sabe da Matéria: sonhar fazendo a genealogia do próprio pensamento. Educar em sonho é atentar àquilo que escapa ao racionalismo porque não se detém no medo de errar, é um tipo amoroso de vida, pois se ama alguém ou algo quando há fascínio pelos signos sensuais do mistério que me desafia.
Método de sonhos na docência-pesquisa
O artistar (CORAZZA, 2006) partes a-traduzir da Matéria elabora em sua superfície indícios imagéticos à aparente significação do Original. No labor sonhográfico, o movimento de restauro e de inversões promove possibilidades a indícios poéticos, pois não se fixa em um símbolo do Arquivo como se fosse um enigma a ser decifrado. A imaginação sonhografa o Original acenando o que lhe é próprio, e dele se liberta para a existência Informe, composta de potenciais de significação. A livre associação (FREUD, 1996; 2005) que se dá na evocação do sonho, na elaboração secundária, sensibiliza-se intelectivamente para tangenciar uma estética das qualidades do sentir do corpo, a partir do inconsciente em multiplicidade — de si e do Arquivo.
A fala sonhográfica nas Aulas-Sonho torna-se língua menor (no sentido deleuziano-guattariano) e renova seus territórios pulsionais como uma ampulheta que gira em seu eixo vertical, ritornelos que a mão do tipo sonhador conduz. Essa fala é o que torna o sonho de Arquivo consciente. Nela, as distâncias tradutórias são encurtadas ou ampliadas. Por esse restauro, novos rastros do Arquivo circulam entre as bocas e anunciam que nada é idêntico a si mesmo. Quando as palavras se esgotam ou nos paralisam, sonhamos, fazemos nossos pesadelos, traduzimos Aulas.
A significação não se esgota em nenhuma imagem. A sonhografia não é leitura de imagem sonhada. A imagem é um resíduo, mímica da existência de algo intraduzível, mancha composicional do trabalho inconsciente, resultado do percurso da imaginação. Interessa-nos a percepção desse traço de restauro impossível à imaginação e de uma possibilidade de expandi-la nessa execução (FOUCAULT, 2002, p. 83). Nesse rigor, há uma possibilidade de que a imaginação tangencie os eixos de significações internas e externas do trabalho de sonho. Trabalho que cria suas bordas poiéticas, ao realizar-se pela perspectivação diferencial, nesses movimentos de foco e borramento do original.
Essa perspectiva retorna ao pensamento em paisagens oníricas, “distantes de palavras” (FOUCAULT, 2002, p. 113), e novos indícios do conteúdo manifesto ascendem do pensamento latente. A poética aciona esses a-traduzir na relação de forças da poesia: a verticalidade de queda e de ascensão. As paisagens sonhografadas não são quantificáveis em espacialidade, consumam-se em simbologias móveis e provisórias profundidades. Oriunda da arte apolínea solar, a sonheria docente desvela-se no infinito da Aula. Morre em seu ritual diário e, longe de nossos olhos, passa a traduzir as línguas mudas que permaneçam em nossos sonhos noturnos.
É tarefa do sonhografista compreender o sonho além de uma satisfação alucinatória do desejo infantil. Encara a sua tradução utilizando digna e criativamente esses conceitos psicanalíticos, caso assim o deseje. A significação do sonho pode ser compreendida como “uma retomada sobre o modo de interioridade [do sujeito que sonha]” (FOUCAULT, 2002, p. 86). A significação que se restitui é traduzida num gesto expressivo e não é uma locação que situa e define um ato.
Tal existência em sonho, do qual nos impregnamos pela Diferença, entende que a vivência onírica “não é esgotada pela análise psicológica”, mas é da ordem da “teoria do conhecimento” (FOUCAULT, 2002, p. 88). O conteúdo concretizado no sonho pode ser vivido como “experiência de existência”. O sentido objetivo do sonho pode ser considerado pobre, por outro lado, é riquíssimo já que seu conteúdo foi motivado por “inúmeras determinações psicológicas e fisiológicas” (FOUCAULT, 2002, p. 90).
O Docente do tipo que sonha signos em educação
Tipificamos o docente sonhador como o espírito onírico que vivencia a pesquisa como experiência intermediária entre a vigília e o sono. O sonhador é uma espécie de estado clarividente, pois o sonho é retorno aos objetos sem mediação dos órgãos dos sentidos. Numa descrição poética, mas tradicional e mística, o sonho desdobra-se como uma verdade que ultrapassa o pensamento e inclina-se perante ele sob espécies concretas de imagens.
Nesse sistema de operações sobre o Arquivo da Educação, o pensamento docente a ele mesmo se entrega, desafia-se, engendra-se para sonhar a Aula. O sonho opera nele um devir-infans, isto é, da pré-linguagem que não teme o desconhecido, afirma um mundo de poesia curricular, repleto de inominados e informes. Isso transcria um tempo outro, um lugar outro, as condições outras, as variações outras: as contraformas de EIS (Espaços, Imagens, Signos) e a atmosfera de AICE (Autor, Infância, Currículo, Educador).
Uma possibilidade de invenção, do aprender a inventar. Por isso, tempo, espaço e duração são importantes, bem como o fator repetição nesta constante tensão entre criar e re-pensar. A repetição do sono é uma das possibilidades ao pensar quando em sonho, pois há no corpo que dorme a maquinaria da imaginação para a extração de sonhos. No pensamento onírico podemos ainda experenciar potencialmente todas as perspectivas no informe: não desabo no abismo, mas soçobro, isto é, caio e elevo-me. Durante a queda, vejo um mar profundo, mas que me impede de afundar pois há o empuxo das multiplicidades que não reconhecem o eu. Sonha na inconsistência o pensamento diferencial que dinamita o eu nas multiplicidades de dimensões e ângulos, num “espaço em que os signos se repartem, descobrindo uma nova profundidade” (DELEUZE, 2006 a, p. 156). Intempestivamente o sonho desse inconsciente-multiplicidade povoa-nos de personagens, de terras, de vidas. É um processo de subjetivação no qual desejamos, ao mesmo tempo, o retorno ao particular e ao secular coletivo, a um tempo do sonho e de mitos de Aula:
[...] mesmo entre os Antigos o eterno retorno nunca foi puro, mas misturado a outros temas, como o da transmigração [...] concebido de maneiras muito variadas, segundo as civilizações e as escolas; [...] o retorno não era talvez nem total nem eterno, mas que consistia sobretudo em ciclos parciais incomensuráveis. (DELEUZE, 2006 a, p. 160-161)
Conclusões do sonho no Arquivo
Sonhografar o Arquivo da Educação é uma invenção quando perfura os seus dados conhecidos e priorísticos. Esse drama avalia seus valores na maquinação que os transcria, podendo destruí-los pela interpretação[13] das imagens e dos signos. Um sonho contado é golpe à realidade, tipifica-a. Esses signos manifestos do Arquivo não determinam um começo ou um comando às didáticas, e nem encobrem um currículo ideal. Mas mostram suas dobras, esquecem nomes, começam um assunto pelo meio, bifurcam-se nas Aulas-Sonho. Signos multirreferenciais que operam por vezes com ilogismos para os corpos na Aula não sufocarem em pesadelos.
Nada no sonho é fim, assim, artistar sonhos do Arquivo resolve-se provisoriamente nas Aulas-Sonho, anunciadas em uma imanência de não-lugares, já que é paragem e passagem às possibilidades de criação no pensamento: “A última instância é a criação, a arte: ou, antes, a arte representa a ausência e a impossibilidade de uma última instância” (DELEUZE, 2006 b, p. 168). É um tipo de sede que o corpo dá ao pensar. O pensamento circula no oásis que cria para saciá-la, conforme avalia a sua necessidade. Decepção: sonho e sede, desejos de algo além dos próprios sentidos controlados pela razão. Nessas veredas a sonhografia aventura-se, recolhendo-se no pensamento através de tipologias:
Tem-se sempre a verdade que se merece de acordo com o sentido do que se diz, e de acordo com os valores que se faz falar. Isso supõe uma concepção radicalmente nova do pensamento e da linguagem, porque o sentido e o valor, as significações e as avaliações fazem intervir, sobretudo, mecanismos de inconsciente (DELEUZE, 2006 b, p. 175).
Na diferença que surge dessas sensações traduzidas da Matéria, provocamos uma marcação temporal. Talqualmente num sonho, encontramos assim o que é individualizante no aprendizado: o a-traduzir sobre o qual deve agir a criação do pensamento, pelo estranhamento. Seria possível obrar arte da educação latente do sonho?
Expressamos a Aula-Sonho nessa tentativa de invenção pelo método de pensar signos do Arquivo em suas repetições e paradigmas. Nas Aulas-Sonho, a poesia curricular pensa e conta as experiências sonhografadas para que algo aconteça, ao invés de nada: acontecer é uma implicação de corpos. O sonho contado do Arquivo reafirma o direito de sonhografar uma docência em seus próprios signos:
— É um olho versus uma mão
Fecho o outro olho para a nuvem decomposta
Brilho azedo doutra atmosfera, a escritura
Capturada pela noite da órbita lunar, adormeço
Diz a Docência, encantadora de corpos:
Ó, Arquivo, sonha-me, e deixa-me te transcriar —
Referências
BENJAMIN, Walter. A tarefa do tradutor [1921]. In: BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e linguagem. Trad. Suzana Kampff Lages e Ernani Chaves. São Paulo: Ed. 34, 2011.
BIRMAN, Joel. Arquivo e Mal de Arquivo: Uma leitura de Derrida sobre Freud. Natureza Humana, n. 10(1), p. 105-128, jan.-jun. 2008.
CAON, José Luiz. Escritos figurais ou plásticos do pensamento latente onírico. In: DA ROSA Jr., Norton Cezar; CORREIA, S. (Org.). A interpretação dos sonhos: Várias Leituras. São Leopoldo/RS: UNISINOS, 2002.
CHÂTELET, Gilles. Para Gilles Deleuze, pensador do gatilho. Trad. Martha Gambini. Cadernos de Subjetividade. Org. Suely Rolnik. São Paulo, n. especial, p. 41-44, junho 1996.
CORAZZA, Sandra Mara. A-traduzir o arquivo da docência em aula: sonho didático e poesia curricular. Educação em Revista, Minas Gerais. 2019, v. 35. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-46982019000100416&script=sci_arttext. Acesso em: 27. jul. 2019.
CORAZZA, Sandra Mara. Caóides. In: MONTEIRO, Silas Borges (Org.). Cadernos de Notas 2: rastros de escrileituras. Anais do I Colóquio Nacional Pensamento da Diferença Escrileituras em meio à vida (Canela/RS, 3,4 e 5 nov. 2011). Coleção Escrileituras. Canela: UFRGS, 2011. p. 13-15.
CORAZZA, Sandra Mara. Método Valéry-Deleuze: um drama na comédia intelectual da educação. In: CORAZZA, Sandra Mara. O que se transcria em educação? Porto Alegre: UFRGS/Doisa, 2013. p. 41-70.
CORAZZA, Sandra Mara. Artistagens. Belo Horizonte: Autêntica. 2006. 120 p.
CORREIA, Sandra. Descartes: seus sonhos e suas viagens pelo grande livro do mundo. In: DA ROSA Jr., Norton Cezar; CORREIA, S. (Org.). A interpretação dos sonhos: Várias Leituras. São Leopoldo/RS: UNISINOS, 2002.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Percepto, Afecto e Conceito. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. 2. ed. São Paulo : Editora 34, 1997.
DELEUZE, Gilles. Conclusões sobre a vontade de potência e o eterno retorno. In: DELEUZE, Gilles. A ilha deserta e outros textos. São Paulo: Iluminuras, 2006 a.
DELEUZE, Gilles. A gargalhada de Nietzsche. In: DELEUZE, Gilles. A ilha deserta e outros textos. São Paulo: Iluminuras, 2006 b.
DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Trad. Antonio Piquet e Roberto Machado. 2 ed. Rio de janeiro: Forense Universitária, 2003.
FREUD, Sigmund. Dream Psychology Psychoanalysis for Beginners. Trad. M. D. Eder. The Project Gutenberg: EBookk#15489. 2005. Disponível em: http://www.gutenberg.org/ebooks/15489. Acesso em: 10. Ago. 2019.
FREUD, Sigmund. A interpretação dos Sonhos (I, 1900). Obras Completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Trad. (coord.) Jayme Salomão. Vol. IV, Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FOUCAULT, Michel. O corpo utópico. In: FOUCAULT, Michel. El cuerpo utópico. Las heterotopías. Trad. Cepat. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, 7 p., 2010 [1966]. Disponível em: http://hipermedula.org/wp-content/uploads/2013/09/michel_foucault_heterotopias_y_cuerpo_utopico.pdf. Acesso em 09. set. 2019.
FOUCAULT, Michel. 1954 – Introdução (Binswanger). In: FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos, volume I — Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise. Trad. Vera Lucia Abellar Ribeiro. 2. ed., xxxix, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
JUNG, Carl Gustav. Sizígia. In: JUNG, Carl Gustav. Aión: estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. Trad. Pe. Dom Matheus Ramalho Rocha. Petrópolis: Vozes, 1986 a. xii, p. 9-20.
JUNG, Carl Gustav. O si mesmo. In: JUNG, Carl Gustav. Aión: estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. Trad. Pe. Dom Matheus Ramalho Rocha. Petrópolis: Vozes, 1986 b. xii, p. 21-33.
NIETZSCHE, Friedrich. A visão Dionisíaca do Mundo. In: NIETZSCHE, Friedrich. A visão Dionisíaca do Mundo e outros textos de juventude. Trad. Marcos Sinésio Pereira Fernandes, Maria Cristina dos Santos de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 2005. [93 p.] p. 5-44.
TELLES, Sergio. As vicissitudes da memória segundo Derrida: resenha de Jacques Derrida (1930-2004), Mal de Arquivo — Uma impressão Freudiana (Rio de Janeiro, Ed. Relume-Dumará, 2001. 130 p.). Psychiatry On-line Brazil, n. 2, v. 7, n.p., fev. 2002. Disponível em: http://www.polbr.med.br/ano02/psi0202.php. Acesso em: 21. set. 2019.
VALÉRY, Paul. Apresentação. In: DESCARTES, René. O pensamento vivo de Descartes. Trad. Maria de Lourdes Teixeira. São Paulo: Martins, 1954.
ZORDAN, Paola. Matérias. In: ZORDAN, Paola. Gaia Educação: arte e filosofia da diferença. Curitiba: Appris, 2019.
Notas
[1] Este estudo está vinculado à pesquisa teórico-prática do mestrado (agosto de 2018 a novembro de 2019) e atualmente do doutorado, este sob orientação da Profª Drª Paola Basso Menna Barreto Gomes Zordan (UFRGS). Também vinculada à pesquisa na dissertação “A-traduzir em educação: sonhografias de aula” (2019). O mestrado inseriu-se nos eixos temáticos do Projeto da Pesquisa de Produtividade 1B, da Profª Drª Sandra Mara Corazza, aprovado pelo CNPq (março/2019 a fevereiro/2023), denominado “A-traduzir o Arquivo em aula: sonho didático e poesia curricular” (2019-2023). Sandra Mara Corazza (jul. 1950 — jan. 2021), Arcanista Nietszchiana, nos deixou de herança a potência das Escrileituras: o Arquivo-Educação de Sonho didático e de Poesia curricular. Dedicamos essa publicação, na qual é autora, à sua memória inquietante, digna de afetos e pletora de signos a-traduzir.
[2] Matéria é tudo o que existe em extensão, plano estratigráfico e extenso do Caosmos, formado pelo conjunto de imagens que temos do mundo. “O princípio da matéria é distensão. O movimento, força que lhe é intrínseca, prolonga-se no espaço. A matéria não tem representação, tudo o que se obtém dos corpos materiais são sensações, vibrações intensas provocadas pelas substâncias incorporais implicadas na matéria” (ZORDAN, 2019, p. 38).
[3] A-traduzir: é o tipificador da tradução, aquilo que escapa da passagem comunicativa interlingual, ao mesmo tempo, é a ferramenta do tradutor que, na transcriação, transforma o simbolizante no simbolizado.
[4] Pois a Aula-Sonho = (Repetição_múltipla+vigília_poética)*(Arquivo/Sonho).
[5] O labor onírico (Traumarbeit) é trabalho de tradução, é “o trato dado pelo inconsciente aos pensamentos latentes; e que o sonho manifesto é o resultado desse trato” (CAON, 2002, p. 173). O discurso é necessário para tornar a vivência (o sonho sonhado) em experiência (o sonho contado). Tomando-se o cuidado de que o fato de “traduzir” ou de contar um sonho não significa que se está compreendendo ou entendendo “o original” (CAON, 2002, p. 171-174).
[6] Segundo nos informa Correia (2002), O Discurso do Método é obra de observações sobre a vida de Descartes e de aspectos de sua vida espiritual: “a dimensão [...] não é da ordem de um saber, mas de um desejo como ele mesmo se define. [...]” (CORREIA, 2002, p. 54). Uma tradução experenciando o método de Descartes como um sonho é potência à extração de sonhos, do ponto de vista de uma docência onírica.
[7] Daimon, para JUNG (1986 b, p. 25), “é poder determinante que vem de encontro ao homem”, e cita uma frase de Diotima (em O Banquete, de Platão): “O Eros, meu caro Sócrates, é um grande demônio [daimon]”, sendo que o aumento do poder é diretamente proporcional ao aumento do grau da inconsciência (JUNG, 1986 a, p. 19).
[8] Poética, pelo caleidoscópio da Filosofia da Diferença, em sua projeção deformante, que diagnostica devires atuais, é a possessão do espírito pelo escrutinador “demoníaco que fareja movimentos mesmo nas ciências mais duras, escandalizando a Besteira”, sendo a Besteira aquela que perde todos os encontros e ignora a energia de impulsão (CHÂTELET, 1996, p. 41-44).
[9] Sonhografar, isto é, uma tradução alucinatória dos a-traduzir, é a escrita sob as relações de forças no corpo escrileitor que promovem desmanches e avanços ao pensamento que transcria signos em Educação.
[10]Na poesia curricular, a operacionalização do Arquivo é radical-tradutória, sulca o texto de partida donde transbordam signos e tipologias. O docente, em seu gesto de sonho, dá os sentidos aos indícios tradutórios, sem apagar o Original, mas transcriando-o.
[11] Arquivo, na Filosofia da Diferença, em suas imagens, signos e espaços, é aberto e permeável, vivo como um sonho. Torna-se repetível por interpretações que, por sua vez, tornam-se transcriações além-origem, também prontas a novas interpretações, a novos fôlegos perspectivos. O Arquivo desejado interpela-nos em suas projeções obscuras, pelo susto, pelo intraduzível e pela não-fixidez em guardar e reproduzir, mas em modificar-se diante dos fluxos das forças da tradução à invenção.
[12] A referência deste estudo de Benjamin que explica, a partir do choc freudiano, a angústia como potência de preparo ao susto, e que aqui transcriamos para o preparo poético, pode ser consultada em: BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: BENJAMIN, Walter. Textos Escolhidos: Walter Benjamin. Trad. José Lino Grünnewald et alli. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1980, [333 p.] p. 29-56.
[13] A Interpretação, pela filosofia da diferença, nessa vontade inventiva com os signos, opera entre o docente, o Arquivo e o Sonho. Trata-se de um processo, devir que joga com as forças da realidade, não equivalendo às diversas interpretações ou sendo indiferente a elas, mas questionando os seus termos interpretados em seus valores.