Para além de “meninas vestem rosa, meninos vestem azul”: As conjunturas e as ideologias nos novos rumos da educação para os gêneros e as sexualidades
Beyond "girls wear pink, boys wear blue": the conjunctures and ideologies in the new rumps of education for genders and sexualities
Fabiana Aparecida de Carvalho
Professora doutora na Universidade Estadual de Maringá. Maringá, Paraná, Brasil.
facarvalho@uem.br - http://orcid.org/0000-0002-6746-4200
Recebido em 09 de agosto de 2019
Aprovado em 03 de setembro de 2019
Publicado em 18 de novembro de 2020
RESUMO
Este ensaio questiona as conjunturas contemporâneas das pautas de diversidade e promove uma genealogia de condições políticas e acontecimentais que favoreceram o ordenamento de um novo panorama na educação para os gêneros e para as sexualidades no Brasil, considerando, especialmente, as últimas três décadas. As análises, derivadas de leituras documentais, de revisões e de teorizações advindas das epistemologias feministas e pós-críticas, têm em vistas os gêneros e as sexualidades como dispositivos de poder e ferramentas para a compreensão das contradições sociais. Percorre as batalhas políticas de (des)construção das agendas destinadas à promoção de igualdade e equidade, entre elas, as interferências no Plano Nacional dos Direitos Humanos, o veto ao Brasil Sem Homofobia, o engessamento do Plano de Educação; questiona a ascensão fundamentalista religiosa e o recrudescimento de setores neoliberais e conservadores quanto à reiteração de discursos enviesados, preconceituosos e promotores de violências que podem afetar e normatizar a educação sexual.
Palavras-chave: Educação para os gêneros; Sexualidades; Discursos biológicos; Discursos religiosos.
ABSTRACT
This essay questions the contemporary conjunctures of diversity issues and promotes a genealogy of political conditions and events that helped the ordering of a new aspect in education for the genders and sexualities in Brazil, considering, especially, the last three decades. This research, derived from documentary readings, reviews and theorizations of feminist and post-critical epistemologies, have gender and sexuality views as instruments of power and help understanding social contradictions. The article analyzes the political battles of deconstruction of the agendas destined to the promotion of equality and equity, among them, the interferences in the National Plan of Human Rights, the suspension to Brazil Without Homophobia, the stagnation of the Education Plan; questions the religious fundamentalist rise and the upsurge of conservative and neoliberal sectors that is regarding the reiteration of skewed, prejudiced and violent discourses that can affect and normalize education for sexualities.
Keywords: Education for genders; Sexualities; Biological discourses; Religious discourses.
Introdução
Em janeiro de 2019, após o processo eleitoral que elegeu Jair Bolsonaro (PSL) como presidente do Brasil para o período de 2019-2022, a pastora Damares Alves, nomeada Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos na pasta oficial responsável pela reestruturação das políticas em prol dos direitos e da diversidade social, proferiu uma declaração afirmando ser contrária a uma “Ideologia de Gênero” circulante nas escolas, nas redes sociais e nos locais de produção de artefatos pedagógicos e educacionais. Damares declarou que seu mandato à frente do Ministério guiar-se-ia pelo resgate dos valores morais e por uma nova era na educação sexual das crianças, proferindo o bordão essencialista cunhado no fundamentalismo religioso de grupos católicos e neopentecostais: “meninos vestem azul e meninas vestem rosa[1]”.
Na ocasião, Damares enunciou também parte da posição teísta do novo governo. Somada a essa configuração, a base política na gestão atual está fortemente atrelada à promoção do Estado mínimo, ao enxugamento de investimentos públicos nas áreas prioritárias como saúde e educação e à convicção ideológica da existência de uma guerra cultural entre a direita liberal e uma facção esquerdo-partidária que visa, sobretudo, impor-se no âmbito da sociedade civil, tornando-se dominante nas pautas sócio- assistenciais manifestas nos ministérios, nas escolas, universidades e nos locais de produção do conhecimento. Tal viés deliberadamente assinala, conforme apontam Denise Carreira e Roberto Catelli, a existência de um “movimento em curso na gestão educacional comprometido com a desconstrução ampla e profunda das políticas educacionais como direito humano” (CARREIRA, CATELLI, 2019, p. 08).
Nesse contexto, o pronunciamento da Ministra reflete uma perspectiva de desmanche não somente das políticas para as mulheres, mas das políticas educacionais, coadunando-se com estratégias difusas de uma nova conjuntura nacional para a educação para os gêneros e as sexualidades, mormente balizada pela política ultraconservadora, neoliberal e ideológica a moldar as posturas oficiais do novo governo.
No arranjo midiático para a declaração de Damares, conforme se viu na coletiva dada à imprensa, há uma arquitetura a demarcar enunciados discursivos (bandeiras de países hegemônicos, bordões de igrejas, frases sobre a sexualidade de crianças e jovens, escalão ministerial predominantemente masculino, a pastoral cristã, entre outros) refletindo os imperativos de alguns setores sociais que tentam, ativamente, universalizar um modo de conduta nas escolas pautado em atos regulatórios e totalizantes, em ataques aos saberes dos grupos minoritários, no banimento dos avanços conquistados e das proposições de pessoas militantes e na ascensão de novas e velhas biopolíticas, ou, como diria Michel Foucault (2008), na ascensão de técnicas de governamentalidade da população, nesse caso, a escolar, que variam desde dispositivos discursivos de controle (FOUCAULT, 1988) a dispositivos pedagógicos, tais como: as vigílias e pastorais contra os movimentos sociais, a escolha de quem pode falar sobre sexualidade, o que deve ser dito como saber autorizado nos espaços escolares, a exclusão simbólica e o escamoteamento dos saberes produzidos por mulheres e por pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transgêneras e Transexuais (LGBT) da política oficial, das reformas do sistema educacional, das políticas de igualdade, entre outras, com a finalidade explícita de relativização e precarização dos direitos adquiridos.
Este preâmbulo converge para a proposição central da comunicação e para o objetivo deste ensaio teórico (aportado em discussões analíticas, imersão em documentos e em teorizações de autoras/es feministas e pós-críticas/os as/os quais emprego com o intuito de fornecer estofo aos argumentos): problematizar as relações de poder, as tensões sociais, os modos de (des)construção de igualdades e desigualdades nas questões contundentes que atravessam as políticas educacionais quando se considera e se perfaz uma genealogia dos entendimentos de gêneros, de sexualidades e das contradições entre as bases científicas e as argumentações ideológicas na atualidade da Educação Sexual Brasileira.
Para tal exercício, tomo as categorias gênero e sexualidade não como questões estritamente inatas ou como estratégias escolares abarcadas pelo Ensino de Ciências e de Biologia, ou, de maneira geral, pela Educação. Certamente, as condições de produção das pesquisas, do conhecimento e das práticas e dinâmicas das áreas em questão merecem ponderações específicas e análises para se diagnosticar o Estado da Arte da Educação Sexual e para se apontar como os saberes, os conteúdos e as explicações migraram das transformações históricas para os territórios escolares e marcaram, nos currículos oficiais, o Ensino de Ciências e Biologia como território pedagógico e como saber autorizado para se explicar sobre as fisiologias, as organicidades, as potências do desejo e da afetividade e os modos políticos em torno das sexualidades e dos gêneros.
Minha postura não me impede de apostar que a historiografia aqui resgatada contribuirá para a construção de compreensões, por docentes e por estudantes, das conjunturas que atravessam e circunscrevem as práticas escolares, as expectativas, os medos e as abordagens sobre tais assuntos. Minha intenção, portanto, é questionar os rumos das proposições sobre os gêneros, as sexualidades e as diferenças em meio aos embates que se despontam na atualidade do país, considerando que a Educação Básica e o ensino das áreas do conhecimento e das discussões correlatas, em vistas das reformas do ensino e das políticas educacionais, a curto ou longo prazo, sofrerão os efeitos das (im)posturas e das regulações nas temáticas em questão.
Alinho o pensamento às acepções sobre as categorias de gêneros e de sexualidades que as conceituam como ferramentas de análise das condições sociais para mulheres e homens (e/ou para as condições nas quais se fazem feminilidades e masculinidades diversas), como dispositivos historicamente construídos, discursivos ou não, científicos, jurídicos ou pedagógicos atravessados por sistemas de técnicas que gerem os grupos sociais e visam produzir certas verdades e conhecimentos, muitas vezes, enviesados por meios discursivos e atos reiterados de regularização das sexualidades que estão também conectados a outros discursos hegemônicos e/ou normativos (FOUCAULT, 1988; SCOTT, 1995; BUTLER, 2003). Em síntese, tomo os gêneros e as sexualidades como práticas discursivas e como narrativas inseparáveis das relações de poder (FURLAN; CARVALHO, 2019); essa é a lente para olhar as categorizações e ponderações que apresento no texto.
Feitos os destaques, percorro, a seguir, algumas conjecturas, movimentações e fatos políticos das últimas três décadas, sinalizando o panorama da Educação Sexual e as interferências que estão a culminar num processo de desconstrução das agendas políticas para a diversidade. Por outro lado, destaco também a explosão discursiva em torno das minorias LGBT e das pautas de gênero e de alteridade, que ora repercutem favoravelmente, ora disseminam discursividades que borram a importância de certas discussões sobre os gêneros e as sexualidades, principalmente, em políticas públicas, nas escolas e mediante as práticas discursivas do Estado Brasileiro encabeçadas nos fatos destacados e recrudescidos nos primeiros meses do Governo Bolsonaro.
A evolução da (des)montagem das políticas públicas educacionais para os gêneros e as sexualidades nas últimas décadas
Desde a Reforma Educacional da década de 1990 e com a concordância legislativa da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB/1996) e dos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1999), as temáticas de sexualidade e gênero oficializaram-se em escolas, campanhas de saúde pública, projetos pedagógicos, atuações de Organizações Governamentais e do terceiro setor e em divulgações midiáticas que presentificaram o protagonismo de militantes LGBT, de negras/os, de feministas, de professoras/es e pesquisadoras/es responsáveis por repercutir o reconhecimento dos direitos de mulheres, afrodescendentes, indígenas, lesbianas, gays, bissexuais e pessoas transgêneras e por levar à cena política os debates acerca do direito ao prazer, das vivências sexuais, dos direitos sexuais e das diferenças entre pessoas e grupos sociais capturadas por processos de subalternização ou inferiorização social.
Os discursos ativistas contribuíram para o questionamento e o abalo de alguns enunciados eugênicos, higiênicos fundados no racismo cultural e científico, no darwinismo social e nos posicionamentos sexistas enraizados no projeto de colonização da nação, especialmente aquelas narrativas que se posicionaram em relação à supremacia de corpos brancos, masculinos e heterossexuais, sistematicamente presentes no cerne da educação para as sexualidades praticada pelo Estado desde o início do Século XX (CARVALHO, 2018; MILKOLCI, 2013). Reconheceram também o caráter contingencial dos saberes e que as verdades são transitórias, discursivas e situadas em espaços, lugares sociais de pertencimento e de fala e em intersecções que deslocam posições de classe, de etnias, de raças, de gêneros, de idades e de grupos culturais distintos. Ampliaram, ainda, as acepções usuais de sexualidade: tida como manifestação inata, cultural e subjetiva humana, para ser potencializada em seu sentido plural – sexualidades – e como dispositivo histórico, discursivo, de poder (FOUCAULT, 1988; FURLAN; CARVALHO, 2019), que produz identidades e que pode, inclusive, ser utilizado para controle e normatização social.
No que concerne ao contexto pedagógico, os PCN favoreceram debates sobre os gêneros nas escolas, com amparos pedagógicos para as discussões sobre corpo e corporeidade, sobre as construções generificadas de masculinidade e de feminilidade e sobre formas políticas de se apresentar e se tematizar as prevenções de doenças e infecções sexualmente transmissíveis (IST), de gravidez não planejada e de questões atinentes aos direitos sexuais e reprodutivos nas escolas, consubstanciando-se em um grande avanço interdisciplinar e num intenso amparo às práticas educativas de professoras/es e estudantes frente ao sexismo, à misoginia e ao preconceito social.
Por outro ângulo, embora os movimentos feministas, as estudiosas de gêneros, as associações LGBT, os coletivos negros, os coletivos em prol de direitos humanitários e as instituições sociais, com suas verdades e construções epistemológicas, tenham empurrado o Estado Brasileiro para a adoção de reformas e políticas públicas educacionais nas últimas três décadas, justamente porque muitas das proposições antidemocráticas do governo desencadearam as reinvindicações desses mesmos grupos (GENTILLI; SILVA, 1994), a persistência ou a negociação para com as pautas continuaram a se dar em meio a um paradoxo: algumas reformas, mesmo as mais progressistas, não estão isentas da pressão exercida nos conchavos da democracia neoliberal, conectando-se às articulações, objetivos e critérios que deslocam, especialmente, instâncias e atuantes sociais para colaborar e atender, em boa parte das articulações, à lógica intervencionista do Capital.
Esse é um contexto macro político que acaba sendo refletido nos territórios educacionais quando, por exemplo, a cada novo governo ocorre uma reforma que atinge, principalmente, os ensinos básico e médio, implicando na adoção, pelas escolas e pelos currículos, dos estatutos das reformas e das políticas que melhor se adequam não tanto à promoção da equidade e da igualdade em termos de direitos e cidadania, mas aos interesses do Estado.
Esconde-se, estrategicamente, que alguns dos discursos educacionais de promoção da cidadania, de valorização da vida humana, de minimização da violência, de igualdade, de efetivação da escolaridade básica, de superação do atraso histórico em relação ao analfabetismo da população, de construção do senso crítico nos diferentes níveis da escolaridade, de respeito à diversidade, aos direitos sexuais e às construções generificadas dispersaram-se na medida em que os interesses dos blocos regentes da ordem mundial governaram as políticas internacionais das quais o Brasil, corporativamente, é parceiro e se dispôs a cumprir acordos com a finalidade de emergir economicamente.
Pensar a contradição dessas reformas é um ponto que considero pertinente também ao cenário de subalternização – resistência às políticas de Educação para os gêneros – as sexualidades – e as diferenças. Outro ponto, ainda em relação à questão e para o qual serei mais atenta nesse percurso genealógico, seria evidenciar as proibições, os vetos cedidos, os interditos e as movimentações sociais em função das pressões políticas que interferiram no reconhecimento das alteridades e abriram picadas para a rearticulação de discursividades amparadas em determinismos morais, religiosos ou mesmos científicos, que encontraram condições acontecimentais para a dispersão de seus discursos e estão a dominar a cena atual da Educação no Brasil e da compreensão dos sexos, das sexualidades e dos gêneros.
Na raiz da recente crise da democracia representativa que estamos a vivenciar, porém, já de longe anunciada no país, o primeiro desses vetos, na efetivação das políticas, diretrizes e currículos de uma educação para os gêneros e as sexualidades, direcionou-se para o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), ainda na década de 1990.
Concebido para dar ênfase aos direitos civis e políticos, o PNDH inaugural consolidou-se em 1996, no Governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), como um conjunto de propostas de ação governamental na tentativa de reverter violências direcionadas aos grupos marginalizados e de promover a proteção dos direitos humanos no Brasil. O programa alinhou-se não somente à concepção de direito ligada a estatutos universais e indissociáveis e às disposições abrangidas pela Constituição Federal de 1988, mas a regimentos e obrigações assumidos em tratados internacionais ratificados pelo Congresso (PINHEIRO; MESQUITA-NETO, 1997), além disso, foi um preâmbulo governamental a considerar, pela via do direito, a comunidade LGBT como parte do povo brasileiro e minoria social demograficamente significativa e a integrar o Programa Nacional de Combate à Violência Contra Mulher com ações pautadas na igualdade social e de gêneros. A segunda versão, em 2002, voltou-se para a incorporação de direitos econômicos, sociais e culturais, abrindo espaço para a defesa do multiculturalismo como condição fundante da nação brasileira (GONZÁLEZ, 2010).
Implantados em projetos de governança respaldados na reestruturação econômica e na política de Estado mínimo, ou seja, em projetos ideologicamente desacordados com a promoção da igualdade e de responsabilidades sociais, os dois PNDH foram propositadamente despercebidos pelos Estados, Municípios e pelos setores empresariais, mercantis e midiáticos do país, ficando o debate e a consecução de suas metas, mais diretamente ligados, às iniciativas da sociedade civil organizada e do terceiro setor.
Posteriormente, o alcance do terceiro PNDH, publicado em 2009, esbarrou em empecilhos e divergências arrastadas ao longo dos governos esquerdo-partidários de Lula (2003-2011) e Dilma Rousseff (2011-2016), que tiveram dificuldades em promover a intersecção e a indivisibilidade dos direitos em suas dimensões civis, econômicas, culturais, de desenvolvimento, de memória, de pertencimento, sexuais, reprodutivas, ambientais e de educação para a civilidade e para os direitos humanos, principalmente por resvalarem na complexidade dos problemas estruturais advindos da colonização brasileira, na distribuição desigual de renda, na pobreza, nas normas de exceção de direitos praticadas pelas elites, nos cortes em programas sociais e nos próprios interesses governistas.
Essa última versão, ainda em vigor, foi atacada por coalisões que se desdobraram em críticas para refrear algumas metas do Plano, especificamente aquelas que esbarravam em: a) dogmas religiosos – a Igreja Católica, representada pela Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB) e por congressistas reticentes ao direito de interrupção da gestação, posicionou-se contrária à descriminalização do aborto (inclusive, com embargos às condições já amparadas por lei) e intransigente à posição de laicidade do Estado; b) assuntos de concessão pública aos veículos de comunicação – canais de rádio e televisão foram incisivamente relutantes à imputação de responsabilidade e à perda da concessão, caso seus programas, direta ou indiretamente, atentassem contra os direitos humanos; c) questões campesinas – ruralistas negaram-se a adotar posturas de mediação nos conflitos decorrentes das ocupações de terra e como cláusula para pedidos de reintegração de posse; e, d) pressões de segmentos militares e sociais para não se punir as violências ocorridas durante a ditadura (CARVALHO; LORENCINI-JÚNIOR, 2018).
Em decorrência desses antagonismos, o texto final do PNDH, em 2011, teve a redação original adulterada e reescrita após veto do Presidente Lula. Essa medida foi o aval para a suspensão das referências à laicização dos órgãos públicos, para a flexibilização das concessões midiáticas, para a atenuação de crimes ditatoriais e para a alocação do aborto como problema de saúde pública, além de simbolizar um retrocesso governamental nas políticas de direitos humanos articuladas desde a retomada da democracia brasileira na década de 1980 e um entrave nos programas de atendimento às demandas sociais defendidos nas plataformas eleitorais de Lula e Dilma. A visão universalista da cidadania e o esvaziamento dos direitos no PNDH não foram capazes, conforme elucida Flávia Biroli (2018), de lidar com as hierarquias que organizam a vida privada e, menos ainda, com os circuitos que se estabeleceram a partir dessas hierarquias. E, ainda, fragilizaram as intersecções de classes, etnias, gêneros no acesso das minorias aos diversos debates institucionais e oficializados cujas urgências se amparam na luta e nas pautas identitárias.
Por efeito, esse panorama se constelou numa das condições acontecimentais para que enunciados discursivos e dispositivos de controle – de facções conservadoras e neoliberais como a Igreja (e a defesa da família natural), o agronegócio (e a relativização dos direitos ambientais em função da exploração dos biomas), as corporações midiáticas (e o monopólio das informações por sobre a divulgação de fatos políticos), o poder miliciano (com o discurso de ordem social e de justiça paralela ao Estado) e os defensores de torturas (e a garantia de oprimir para controlar) – se dispersassem como verdadeiras pedagogias culturais imbricadas na elaboração de outras políticas educacionais.
Concomitante ao cenário difuso do estabelecimento da política nacional de direitos humanos, houve também o desdobramento de forças articulares para se configurar o segundo interdito governamental às pautas das sexualidades e dos gêneros, ainda que a discussão militante estivesse a pleno vapor nas entidades civis e do terceiro setor.
Os Planos Orçamentários Plurianuais dos Governos Lula e Dilma propuseram orientações estratégicas de combate à discriminação sexual. As estratégias, num primeiro momento, foram incentivadoras das resistências a favor dos direitos sexuais nos órgãos estatais e subsidiaram programas gestados, por exemplo, no Ministério da Saúde, na Secretaria Especial de Direitos Humanos, no Conselho Nacional de Combate à Discriminação (CNCD), na Secretaria Especial da Mulher e na Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECADI) vinculada ao Ministério da Educação (MEC). Visando o apoio à diversidade sexual, algumas dessas repartições encabeçaram e conceberam conjuntamente, em 2004, o Programa Brasil sem Homofobia.
Diferentemente dos indicativos voltados à compreensão de corpo sadio, das sexualidades normatizadas e dos dispositivos pedagógicos destacados nos PCN, o Brasil sem Homofobia avançou em termos da promoção da cidadania das pessoas diferentes e das sexualidades dissidentes da norma heterossexual e se alinhou à visibilidade das existências “gays, lésbicas, travestis, transgêneras e bissexuais, a partir da equiparação de direitos e do combate à violência e à discriminação homofóbicas, respeitando a especificidade de cada um desses grupos populacionais” (BRASIL, 2004, p. 11). Para mais além, cindiu, ao nível da criação de políticas públicas, os sentimentos de masculinidade e feminilidade das marcas genitais e biológicas e promoveu a articulação do discurso de representatividade LGBT com os discursos de mudanças das condutas sociais.
A frente de articulação do MEC para o programa encampou subprojeto similar, o Escola sem Homofobia, cujas estratégias propunham a criação de campanhas, de espaços de discussão e de ambientes políticos favoráveis como propositivos de condições de respeitabilidade. O projeto foi planejado e discutido, para posterior execução, juntamente com diversas organizações não governamentais, entre elas, a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), sendo um emblema de esperança para a desconstrução da heteronormatividade e das sexualidades compulsórias, binárias, modeladas e ensinadas nos territórios escolares. Logo, os sentidos intervencionistas das estratégias metodológicas, dos seminários de capacitação, de disponibilização de pesquisas e dados acerca da situação da homo-lesbo-transfóbica no Brasil, da ótica dos valores humanos, da criação de kits didático-pedagógicos para formação de educadoras/es foram ampliados como contra dispositivos das intervenções tradicionais e como ações urgentes a serem implantadas nas escolas de ensino fundamental e médio.
Pouco depois de anunciada a implantação da Escola sem Homofobia, os setores mais dogmáticos de igrejas neopentecostais e católicas encabeçaram beligerantes articulações contra a intenção do MEC de visibilizar as sexualidades dissidentes nas escolas, enxergando as proposições do Ministério menos por seus desdobramentos educativos, mas como verdadeiros atentados à moral e aos costumes das pessoas cidadãs e como pedagogias de incitação às práticas de sexualidades promíscuas entre jovens.
O programa do MEC, composto inicialmente por: a) um caderno com conteúdos teóricos e sugestões de dinâmicas; b) boletins para esclarecimento de estudantes, com a apresentação da construção histórica e social das sexualidades, dos gêneros e dos mecanismos negativos de criação de representações e preconceitos; c) uma série de audiovisuais abordando as dúvidas e os receios em relação às orientações sexuais; e, d) e cartazes de divulgação para a comunidade, ganhou pejorativamente a alcunha de Kit Gay e foi alvo de posicionamentos e campanhas, entre os anos de 2010 e 2011, que o categorizaram como o responsável pela criação de um sentimento anti-heterossexual, além de incitar confusões e mais preconceitos não apenas direcionados ao conteúdo relativo à diversidade sexual, mas, também à entrada de perspectivas não biologizadas e de outras políticas identitárias nas escolas.
Após incessantes protestos conservadores, a celeuma foi abrandada, todavia, sem a liquidação dos enunciados dogmáticos e fóbicos, mas com a suspensão da distribuição dos materiais didáticos em 2011. Na ocasião, a Presidenta Dilma Rousseff cedeu às intimidações políticas, argumentando que seu governo não deveria interferir na vida privada das pessoas e “nem aceitar a propaganda de opções sexuais nas escolas[2]”.
O contexto do Brasil sem Homofobia naufragou, portanto, em outra tática de governança justificada pelos discursos de prudência e respeito às orientações sexuais heteronormativas. Ao manter uma pseudoneutralidade, o governo Dilma alinhou-se às bancadas religiosas católica, evangélica e da família, tanto ao incorporar os apelos dessas nas negociações do programa que, curricularmente, poder-se-ia institucionalizar-se como uma nova e diferenciada perspectiva de Educação para os gêneros – as sexualidades – e as diferenças, quanto ao operar a troca de apoio político no Congresso Nacional para o avanço das plataformas econômicas governistas, o que implicou, nos anos seguintes, no crescimento da representatividade conservadora nas casas parlamentares maiores e nas casas legislativas de todo o país.
Marcados por embates mais acirrados nos processos de mediação das pautas públicas de igualdade e equidade, os anos de 2014 e 2015 dizem respeito ao intervalo da terceira blindagem às políticas públicas e educacionais em prol da diversidade no país.
Por conseguinte, durante a elaboração e votação do Plano Nacional de Educação (PNE) e dos Planos Educacionais Estaduais e Municipais, a educação para as sexualidades voltou aos holofotes como o foco de disputas desdobradas em todo país – tanto no cenário geral político, como junto às contingências educacionais que poderiam direcionar as inserções didáticas no ensino.
O recrudescimento das “bancadas boi-bala-bíblia”, na voz política do agronegócio, das religiões neopentecostais, dos setores católicos carismáticos e dos defensores do sistema prisional e do armamento da população, ditou os desdobramentos do PNE em 2014. A votação desse documento, que a cada decênio, determina ações educacionais, foi condicionada à aprovação nas casas parlamentares desde que, de sua disposição textual inicial, fossem retiradas quaisquer metas, conceitos, terminologias ou referenciais que fizessem menção às categorias gênero ou pudessem predispor uma obrigatória implicação de seu debate nas escolas.
Sob o argumento de que teóricas feministas, marxistas e os setores militantes dos direitos das minorias sociais apoiam uma suposta Ideologia de Gênero, a redação do Plano, que previa a superação das desigualdades educacionais, tomada por suas intersecções com desigualdade/igualdade racial, étnica, de gênero e de orientação afetivo-sexual, foi drasticamente alterada e deixou um campo de interpretação genérica quando da necessidade de promoção da cidadania e de combate à discriminação (CARVALHO; POLIZEL; MAIOR, 2016).
Na esteira do PNE, as votações de Planos Estaduais e Municipais também estiveram marcadas por rígidas disputas entre militantes religiosas e defensoras pró-gêneros. Desconsiderando-se o princípio da laicidade, algumas das seções plenárias antecederam ou sucederam a cultos, orações ou manifestações de entidades religiosas amplamente apoiadas e aplaudidas por parlamentares e pela vereança, e podem ser traduzidas como a uma “estratégia de tomada de poder de extrema direita e que se reveste da autoridade religiosa para justificar a inflexibilidade de suas posições no processo de regulação e políticas públicas” (LIONÇO, 2015, p. 13-14).
Mesmo com a confusão gerada ao se crer que os esses documentos seriam os regentes de ações docentes futuras, é válido alertar que os planos em vigência não são proposições curriculares e nem propostas de Educação para os gêneros – as sexualidades – e as diferenças a determinar a suspensão arbitrária das intervenções pedagógicas com temas correlatos na escola. Tais documentos são antes planejamentos estratégicos e táticos que determinam, primeira e especificamente, as diretrizes que os governos devem seguir e cumprir para a garantia do direito à educação pública e gratuita, para a superação de desigualdades, para a valorização de profissionais da educação básica e do ensino superior.
Ademais, considerando a competência complementar, as ações envolvendo as discussões de sexualidades, gêneros e corporeidade estão subordinadas ao amparo da legislação anterior, como exemplo: a LDB/1996 e a Constituição Federal, responsáveis por tratar os temas em seções e campos específicos, não tendo sentido legal o uso dos Planos como arguição direcionada ao MEC ou às pessoas educadoras no uso de resoluções, currículos, notas, materiais didáticos e provas que propõem, direta ou indiretamente, debates de gêneros e sexualidades no contexto escolar. Lastreando esse princípio complementar, qualquer ato de supressão, censura e coerção de práticas educativas e éticas direcionadas às diferentes diversidades seria, portanto, inconstitucional e afrontoso à liberdade de expressão.
Todavia, o efeito perverso reside no fato de a votação enviesada dos Planos – e seus contextos legislativos – ter se legitimado como a portadora dos discursos oficiais e hegemônicos sobre os gêneros, as sexualidades e as diferenças (CORREA, 2013) e promovido uma cultura de desconstrução das agendas e pautas referentes a essas temáticas. Infelizmente, o poder legislativo contribuiu para formular discursos que sustentarão as discriminatórias de gênero, das orientações sexuais e a vigília moral a fim de que as pessoas LGBT se expressem dentro normatividade imposta aos corpos e fiquem relegadas ao estatuto da excentricidade, da anormalidade, do desvio ou do crime. Apesar de todos os princípios de direitos previstos e articulados em dispositivos legais, as ações deliberadas das bancadas conservadoras tornaram-se problemáticas ao se adensaram como
um campo contraditório de investidas para se controlar e se normatizar os corpos, os prazeres, as questões de gênero sempre em função de uma sociedade que exclui aquilo que ela mesma patologiza e não deseja. Com o efeito de um dispositivo de sexualidade, ou, de verdade [...], o deslocamento e a invisibilidade semântica tanto do termo gênero, quanto dos termos raça, etnia e orientação sexual, nos [...] planos educacionais [...], não favorecem a uma política de erradicação da violência de gênero nas escolas. Discursivamente, portanto, tem-se um jogo de apagamentos e de contradições entre poderes, resistências, necessidades que derivam da implantação das políticas públicas e educacionais sobre gênero e violência de gênero. Em meio à urgência das necessidades sociais e das políticas de proteção, combate e visibilidade dos direitos de mulheres, crianças e minorias, esse dispositivo (quer seja na forma de lei, quer seja nos preconceitos e desconhecimentos internalizados pelos diferentes setores sociais) impede aquilo que, formativamente, deveria visar, ou seja: a educação para a sexualidade e o respeito ante a diversidade cultural e sexual no Brasil (CARVALHO et al, 2015, p. 103).
De fato, os muitos episódios dos planos de educação no país desvelaram que as ações parlamentares, além de repressoras, sexistas, misóginas e segregadoras, foram ações subsidiadas por biopoderes porque, juridicamente, importaram-se em classificar e correlacionar as sexualidades a uma biologia do nascimento e “à noção de continuidade entre sexo – gênero – desejo – prática sexual” (CARVALHO; POLIZEL; MAIO, 2016, p. 81) aos entendimentos perpassados pela ideia de direito/lei natural, ou seja, por uma concepção amparada por dispositivos religiosos que não reconhecem feminilidades e masculinidades como constructos ligados às estruturas sociais, ao machismo, ao patriarcado e aos processos de apagamento da diversidade cultural e sexual.
Ainda em 2014 e 2015, o Movimento Brasil Livre (MBL) e a organização Escola sem Partido (ESP) interpelaram o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) quanto à presença de questões referentes a temas sociais contundentes no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), tais como: violência contra mulheres, feminícidio, expropriação da força de trabalho e regimes de escravidão social. Os movimentos alegaram a contaminação do ENEM com proposições marxistas e sociológicas, com preleções feministas, ideológicas, com ofensivas aos valores tradicionais cristãos e com a exigência de respostas para além do conhecimento científico e do conhecimento escolar das áreas de história, de filosofia, sociologia e mesmo biologia.
A partir de então, tanto o MBL quanto o ESP aderiam às denegações dos gêneros nos planos estaduais e municipais e suas insurgências cresceram como novos interditos e desconstruções das agendas da Educação para os gêneros – as sexualidades – e as diferenças. Esses movimentos continuaram a sustentar suas prerrogativas durante e após o processo de deposição de Dilma Rousseff em 2016 – caracterizado por ser uma transição governamental forçada, parlamentar, política, jurídica e econômica, cuja história também poderá ser lida como uma fraudação sexista e misógina (RUBIM; ARGOLO, 2018) que coibiu e negou às mulheres, representadas no simbólico da Presidenta, os lugares de atuação, fala e competência na ordem política oficializada.
O ESP, em termos de ataques à educação, segue com o avanço parlamentar de seus projetos de leis em municípios, em Assembleias Estaduais, no Congresso, com a finalidade específica de alterar a LDB/1996, o Plano Nacional de Livros Didáticos (PNLD), de limitar e censurar currículos educacionais plurais e de regimentar a neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado, apregoando uma falácia que tem como enunciados a defesa do pluralismo de ideias, de liberdades de crença, o respeito a vulneráveis, o respeito à moral e a proibição nas escolas de conteúdos e assuntos conflitantes com as convicções políticas direitistas e com as disposições religiosas familiares (CARVALHO; POLIZEL; MAIO, 2016). Defende a judicialização da educação com a punição das discussões democráticas, a legalização da educação domiciliar na modalidade homeschooling, o aumento da interferência familiar nas escolas, a redução de impostos de escolas privadas, a militarização de escolas públicas e de escolas em áreas de risco social, a gestão da escola pública por organizações sociais e sistemas de ensino particulares, a facilitação da expansão da rede privada via financiamento estatal, o incentivo à produção científica nas áreas de exatas e biológicas com finalidade econômica, a extinção das abordagens de temas contundentes pelas ciências humanas.
A reboque dos setores católicos e evangélicos e com infiltração nos segmentos educacionais via palestras, propagandas, cartilhas, folders, cartazes, vídeos em circulação pelas redes sociais, O MBL e o ESP implantaram uma série de enunciados falaciosos e persuasivos de coerção das sexualidades, cujo intuito é construir a representação do MEC e das pessoas educadoras como maquinarias da dissolução dos costumes, calcando compulsoriamente nos gêneros a retórica de um Cavalo de Tróia da educação nacional.
Nessa conjuntura, as posturas defendidas por pessoas religiosas têm proferido revisionismos dos fatos históricos e interpretações pseudocientíficas baseadas em especulações e notícias falsas que levam à cena pública um “dispositivo discursivo anti-gênero” (GARBAGNOLI; PREARO, 2017, p. 13), particularmente inscrito na ideia de que a educação para o respeito às diferenças, aos gêneros e às minorias LGBT seria a causa e a consequência de ensinamentos que destruiriam a ordem sexual biológica determinada na concepção e no nascimento, o amor, a heterossexualidade e os dogmas cristãos. Por esse prisma, exortações aos grupos cristãos contrários aos direitos reprodutivos têm tido ação fundamentalmente estratégica na constituição de normalidade e de anormalidade sexual e na implantação de táticas fascistas para a vida das pessoas a partir da concepção tradicional de família (MISKOLCI, 2007).
Ao postular a família nuclear como ponto de partida de suas narrativas, os grupos religiosos, o MBL e o ESP empenham-se em atribuir aos estudos de gênero um estatuto de problema público maior, agenciado como patologia social produzida por posturas democráticas demais, por comportamentos liberais, por defesas libertárias e por desvios de condutas gestados numa ontologia (ou causa qualquer) negativa, libidinosa e que carece de ser corrigida. Esse é um dispositivo perigoso que, atrelado às expectativas sociais decalcadas de uma biologia dos seres, primeiro, abre caminhos para as tecnologias de cura das condutas e sexualidades diferenciadas, uma vez que a medicalização nas escolas é terreno fértil para também se criar os “fenômenos da patologização, da psiquiatrização, da psicologização e da criminalização das diferenças e da pobreza” (VIEGAS; GOLDSTEIN, 2017); segundo, apoiado no dispositivo da verdade única dos sexos, serve a dizer que os construcionismos sociais são inculcações de teorias esquerdo-partidárias nos modos de ser e agir das pessoas.
Embora muito da eficácia de convencimento discursivo dessas mobilizações esteja atrelada ao plano da manutenção do status quo econômico (e as Igrejas contribuem para tal), a mobilização de discursividade moral dos movimentos conservadores religiosos e sociais tem incorrido, justamente, no mascaramento histórico e na inversão dos avanços sócio-educacionais em relação aos gêneros, às sexualidades e às diferenças, para se criar o establishment e a genealogia dessa categoria política e reacionária: a Ideologia de Gênero (GARBAGNOLI; PREARO, 2017; JUNQUEIRA, 2017), assim como de sua ênfase em rebater diretamente as epistemologias feministas e as militâncias LGBT por serem essas os contrapontos não hegemônicos em relação às conquistas e à paridade de direitos sociais.
A evolução da (des)montagem das políticas públicas educacionais para os gêneros e as sexualidades nas últimas décadas
Essa concepção de Teoria ou Ideologia de Gênero não é fato ou ideia recente. Seu histórico desponta, inicialmente, na década de 1990, quando Barbara Dale O´Leary, jornalista cristã coligada ao prelado Opus Dei, fora incumbida pelo Vaticano de cobrir a Conferência para as Mulheres de Pequim. Nesse momento, a Organização das Nações Unidas (ONU) exortava os gêneros como ferramentas na superação de desigualdades e para o tratamento igualitário destino às mulheres e às pessoas LGBT pertencentes a países e lugares em condições de baixo desenvolvimento e risco social. O´leary, entretanto, apregoou essa tomada de decisão como um conluio internacional de forças de esquerda destinado a corromper os setores públicos e privados, principalmente com fins de destruição da família e de corrupção de crianças e jovens.
Esse posicionamento canônico contagiou a visão de representantes eclesiásticos nas duas últimas décadas, como exemplo: o Cardeal Ratzinger, feito Papa Emérito Bento XVI, o bispo da cidade Lima, Monsenhor Oscar Revoredo, o padre e psicanalista romano Tony Anatrella, a teóloga Marguerite Peeters, o argentino Jorge Scala e o jurista brasileiro Ives Gandra Martins, também partidário da Opus Dei (AUTOR, 2017; GARBAGNOLI; PREARO, 2017). O “Documento da Aparecida” (CELAM, 2007), expedido pela Igreja Católica, fulgura na América Latina e no Brasil como um apelo fundamentalista contra a ideia de Ideologia de Gênero, orientando canonicamente que entre
os pressupostos que enfraquecem e menosprezam a vida familiar encontramos a ideologia de gênero, segundo a qual cada um pode escolher sua orientação sexual, sem levar em consideração as diferenças dadas pela natureza humana. Isto tem provocado modificações legais que ferem gravemente a dignidade do matrimônio, o respeito ao direito à vida e a identidade da família (CELAM, 2007, p. 08).
O documento pensa as políticas públicas de gênero em termos de um cenário anticristão despótico e como regras poluídas por ideários que disseminam o controle populacional, a liberdade sexual, o aborto a qualquer custo, a ideia de modificação/redesignação sexual dos corpos, o ativismo gay, lésbico e transgênero, o casamento para todas/os e a multiplicidade de vivências afetivas como questões de escolhas individuais inventadas a bel prazer e cambiáveis a qualquer momento.
Nessa perspectiva, a Igreja tem insistido em distorcer as pautas de gênero da ONU e das epistemologias feministas com base em mais outras duas formações discursivas: a) a de que a organização desejaria implantar ideários feministas e gayzistas em escala planetária; b) a de que os estudos de gênero têm saído do plano acadêmico e migrado para as escolas para ganhar um corpo ideológico de colonização com métodos doutrinários de convencimento que se baseiam – única e exclusivamente – na imposição das vontades ditatoriais LGBT às/aos jovens. A base da discursividade católica foi paulatinamente assumida pelas igrejas neopentecostais brasileiras a partir dos anos de 2000, e essas conclamam, na conjuntura política atual, a palavra de deus e a interpretação literal dos preceitos bíblicos de normatividade sexual numa massiva investida contra os princípios laicos do Estado.
Num processo viralizante de politização desses discursos religiosos, o Vaticano recorre veementemente a exortações apostólicas e a encíclicas para reafirmar que “projetos educativos e diretrizes legislativas“ [...] promovem uma identidade pessoal e uma intimidade afetiva radicalmente desvinculadas da diversidade biológica entre homem e mulher” (LAZARI, 2016, p. 122). Sustentado pela demonização das pessoas LGBT, o dispositivo anti-gênero dessa suposta Ideologia cruza-se ainda com outros dispositivos complementares: a reformulação eufemística da ordem sexual a partir de ideias de feminilidade e de orientação sexual e a apresentação de argumentos de autoridade advindos da manipulação dos saberes científicos como verdades inquestionáveis.
Em relação a esse dispositivo, por exemplo, a Igreja alega que as dimensões naturais são “o fundamento último do télos” e estão perpetradas da normatividade que nos definem enquanto pessoas. Para a Igreja, a individualidade de cada ser humano depende de
[...] seus caracteres biológicos, um programa genético que fornece as chaves para todo o desenvolvimento físico, psicossomático, existencial e mesmo espiritual de uma pessoa. Em razão disso, essa realidade biológica encerra, em si mesma, um significado que deve ser colocado de manifesto, o qual seja, a de identidade natural básica. A identidade corporal, sexual, social e familiar que se desprendem dessa realidade encontram-se encarnadas nesse mesmo organismo e marcam radicalmente o sentido etimológico do termo, a vida dessa pessoa (FERNANDES, 2016, p. 30).
E mais. Endossa sua posição inatista ao afirmar que a ciência está do seu lado (GARBAGNOLI; PREARO, 2017), demonstrando a existência dos determinismos biológicos (que ampararam a posição da Igreja) a produzir as naturezas de mulher e de homem e as naturezas das disforias, sendo eles: a) primeiramente, determinismo de ordem genética, quando recorre a uma representação genecêntrica repleta de suposições errôneas acerca da relação entre genes, fatores epigenéticos e expressão dos cromossomos X e Y; b) de ordem hormonal, quando tenta fixar masculinidade e feminilidade à disposição fisiológica de hormônios esteroides e quando tenta explicar que mulheres lésbicas, homens gays e pessoas transgêneras possuem estrógeno, testosterona demais ou de menos e são resultantes de erros da química hormonal; e, c) determinismos de ordem neurológica, quando opta por um trato extremamente dualista dos gêneros no convencimento de que neurônios determinariam todo o corpo e as causas comportamentais e quando busca diferenças cerebrais e cognitivas para as pessoas cisgêneras, homossexuais ou transgêneras. Nesse último entendimento, localizam-se as tecnologias de regulação moral, pois se pressupõe que as causas da homoafetividade e das identificações com gêneros não binários migram da genética para o comportamento psicológico e para os desvios sociais.
Em certos usos públicos, os três determinismos apontados são ainda reduzidos a um enunciado diretivo e contestador da máxima feminista “não se nasce... torna-se” (BEAUVOIR, 2009). Na lógica excludente e discriminatória dos bordões: “menina já nasce menina e menino já nasce menino”, “menina é XX e menino é XY”, “existem dois sexos na natureza: homem e mulher”, “meninos vestem rosa e meninos vestem azul”, repetidos à exaustão em pronunciamentos e dispositivos pedagógicos religiosos, dispensam-se os marcadores culturais de nossas personalidades, desejos e condutas por intermédio de uma biologia decalcada de algum compêndio não apenas como a base redutivista de uma interpretação arbitrária, mas como bloqueio das possibilidades de intervenção ativa, emancipatória e transformadora, que foram “postas em prática por conceitos feministas de gênero como diferenças localizadas socialmente, historicamente e semioticamente” (HARAWAY, 1995, p. 35).
Nessa manifestação da Igreja, os princípios jurídicos tornam-se bem mais difusos e os sexos biológicos são vistos como distintivos na constituição do Estado e para se negociar equitatividade entre os grupos sociais; todas as demais manifestações das sexualidades ou dos gêneros a descaracterizar esse princípio básico, segundo o legado canônico, seriam, pois, antibiológicas, antinaturais e desenvolvidas por experiências negativas e pecaminosas. Como desvios de conduta, poderiam ser estudadas, analisadas à exaustão, etiquetadas e corrigidas, sobretudo, porque se acredita na natureza cisgênera (de equivalência da condição biológica do sexo e com a manifestação cultural do gênero) e heterossexual.
As epistemologias feministas
consideram preocupante essa potencialização dos saberes teológicos e dos
dispositivos anti-gêneros para se legitimar a ordem sexual patriarcal e
heterocentrada da natureza, já que o Vaticano busca substituir a linguagem do
gênero pela do sexo natural (BUTLER, 2014), rebiologizando a diferença sexual e
estabelecendo um estreitamento do conceito de reprodução como um destino social
que vai desde a certidão de nascimento até as políticas públicas estatais .
Esse é um exemplo do uso distorcido das ciências para produzir sentidos, compreensões e significados científicos, culturais e políticos equivocados na cabeça das pessoas leigas. A questão é que
as estratégias discursivas usadas pelo fundamentalismo religioso não abrem espaço para dúvida: tratam-se de violências que intentam a aniquilação daquilo que expõe a insustentável fragilidade com que a heteronormatividade se mantém. Não nos esqueçamos que por pressões da Frente Parlamentar Evangélica (e católica), vivencia-se um cerceamento das políticas públicas de saúde, educação e de direitos civis, além do enfraquecimento de estratégias de combate às violências contra as dissidências sexuais e de gênero (TOLOMEOTTI, 2017, p. 40-41).
E o emprego do biologismo com finalidade ideológica, portanto,
tem sido uma maneira persuasiva de explicar as visíveis desigualdades de posição social, riqueza e poder nas sociedades industriais capitalistas contemporâneas, e de definir as universalidades do comportamento humano como características naturais dessas sociedades. Por tudo isso, foi reconhecidamente apropriado como legitimador político pela Nova Direita que vê assim os seus problemas sociais elegantemente imputados à natureza; pois, se essas desigualdades são biologicamente determinadas, são, portanto, inevitáveis e imutáveis (LEWONTIN et al., 1984, p. 27).
Desse modo, nessa biologia enviesada e subserviente a dogmas patriarcais e ao capital, temas de saúde pública e de direito coletivo ou individual como concepção, gestação, direito à vida, interdito aos abortos, homossexualidade, direitos sexuais e reprodutivos são ainda relidos nas biopolíticas (dinâmicas da escola, controles produtivos, demográficos, trabalhistas, familiares) a serviço do poder hegemônico.
A ideia de que existe uma diferença fundamental e determinante entre as naturezas masculinas e femininas segue sendo poderosa e, sob a influência de corporações, políticas/os e empresas, ganha uma perspectiva normativa traduzida em diretrizes e explicações sobre a ordem econômica dos corpos (a que servem, para quem servem, o que produzem), além disso, embora se pense o contrário, alastra-se em institutos, universidades, escolas, casas parlamentares e na voz de atuantes sociais.
O MBL e o ESP são exemplos dessas instituições que estão, no Brasil, a apoiar o marketing estratégico da Ideologia de Gênero e a introdução de programas escolares contrários à diversidade sexual, à educação para os gêneros e as sexualidades e ao pluralismo de ideias, corroborando com os setores religiosos para legitimar a ordem sexual e para veicular a reelaboração do discurso da Igreja acerca da natureza e da vocação da família.
Atualmente, acolhida no sintagma Ideologia e nos comunicados destinados às pessoas fiéis emitidos pelo Papa Francisco, a polaridade dos gêneros é a base jurídica da negação das pessoas LGBT pela Igreja que, gradativamente, povoa os sentidos das explicações que adensam as escolas.
Muito embora os catecismos tenham reconhecido o papel humano da acolhida às pessoas homossexuais e transgêneras, o Vaticano nega-lhes o direito ao casamento e à união civil, pois reconhece que o matrimônio de pessoas do mesmo gênero: a) “evoca temores com relação à sobrevivência da instituição em seu papel de mantenedora de toda uma ordem social” (MISKOLCI, 2007); b) desestabiliza o dogma do pecado original, que prescinde justamente da existência dos sexos/gêneros complementares para a igreja exercer/impor seus sacramentos; c) requer a rediscussão do direito à herança e à propriedade a partir do próprio poder eclesial; d) exige o reconhecimento dos diferentes arranjos afetivos e familiares; e) exige a aceitação da homo-lesbo-parentalidade e da adoção diferenciada; f) força a aceitação de questões ligadas à reprodução artificial e às redesignações corporais de gênero para atender aos direitos sociais, reprodutivos e individuais das pessoas. E mais: incisivamente, os catecismos consideram as condutas dissidentes como depravações, distorções da natureza e atos intrinsecamente desordenados das condutas humanas (VATICAN, 2017). Passíveis de serem estudadas e vigiadas, as pessoas LGBT se subordinariam à castidade incondicional para se restringirem a uma homossexualidade bem comportada e silenciosa.
Consonante a esse empreendimento do pensamento dogmático, a Congregação para a Educação Católica formalizou, no mês de julho de 2019, e o Papa Francisco endossou um manual cristão sobre o gênero nas escolas denominado: “Homem e mulher Ele os criou: rumo a um caminho de diálogo na questão da teorida de gênero na educação” (VATICAN, 2019), cujo objetivo é orientar as discussões escolares sobre sexualidade e diversidade de forma metódica, com base em pesquisas científicas consideradas relevantes pela igreja e não alinhadas às teorias feministas e aos estudos de gênero. Esse documento não retira a educação para as sexualidades e para a diversidade das escolas, ao contrário, ele visa manter a orientação cristã sobre os corpos, as orientações afetivas, as vivências sexuais pautadas na conjugabilidade homem/mulher e na família tradicional, além disso, exige para si a tarefa de orientar o Estado e as posições partidárias das/os representantes legislativos cristãos na limitação das vozes das mulheres emancipadas, pessoas LGBT e educadoras/es críticas/os em políticas educacionais.
Toda essa genealogia aponta que antes de ser uma mobilização que ganhou as ruas e contagiou as instâncias oficiais com os brados da militância católica e ou evangélica, a eficácia doutrinária do sintagma Ideologia de Gênero se constitui na nova vontade de saber a “dire la vérité cachée du genre pour redire la vérité vraie du sexe comme fait de nature[3]” (GARBAGNOLI; PREARO, 2017, p. 79). No Brasil, assim como em partes do mundo como França, Itália, Espanha, alguns países da América e da África que possuem vínculos com a moral canônica e os avanços missioneiros das igrejas, a aliança de religião, de discursividade cientificista-naturalista e as manobras políticas e econômicas acaba por conformar parte de agitos e protestos que instauram “um clima de pânico moral contra grupos social e sexualmente vulneráveis e marginalizados (JUNQUEIRA, 2017, p. 28), que descaracteriza a prática militante em função do medo infundado de uma ditadura gay.
Toda essa descaracterização dos discursos minoritários nos expoentes partidários, econômicos, (pseudo) científicos e religiosas perfaz um dos traços mais perversos de manipulação ideológica perpetrada no país com a transição governamental de 2016: a pós-verdade dos gêneros a criar a negação das subjetividades diferenciadas nos espaços públicos.
Não é por acaso que lógica binária dos sexos/gêneros/sexualidades também foi adotada como bandeira por Michel Temer (2016-2018) e segue como pauta dura no Governo Bolsonaro, tanto nas práticas discursivas presidenciais quanto na arquitetura engessada dos ministérios e na nova agenda de políticas públicas, destacando, para efeito de ilustração, as tomadas de decisões que envolveram novos rumos e descobramentos da Educação Sexual como extinção de secretarias e o remodelamento de órgãos de gestão executiva, a exemplo: a) a liquidação da prórpia SECADI, responsável pelos programas, ações e políticas de Educação Especial, Educação de Jovens e Adultos, Educação do Campo, Educação Escolar Indígena, Educação Escolar Quilombola, Educação para as relações Étnico-Raciais e Educação em Direitos Humanos e Diversidade Sexual; b) a remodelação do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos tendo à sua frente a pastora Damares Alves, ferrenha defensora da criminalização do aborto, do binarismo gênero/sexo e da Escola sem Partido; c) o desmantelamento do Ministério da Educação com a executiva de Abraham Weintraub e suas pautas ideológicas de caça às/aos educadoras/es comunistas e de cortes e contingências nas Universidades públicas e em pesquisas amparadas por agências estatais de fomento; d) a promulgação do Decreto no. 9.759 (BRASIL, 2019) que redefiniu as diretrizes e as regras para os colegiados da Política Nacional de Participação Social, extinguindo comissões e conselhos que congregavam a sociedade civil, entre os quais o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CONADE) e Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de LGBT (CNCD-LGBT); e, e) a precarização das políticas de combate à AIDS e o enxugamento do Departamento de IST, AIDS e hepatites do Ministério da Saúde para uma pasta menor que trata de doenças crônicas.
Por fim, condenando aquilo que chama de doutrinação política nas escolas, o Governo Bolsonaro estabelece um critério ideológico para definir as prioridades da educação para os gêneros e para as sexualidades – lembrando que não se trata de encerrar as discussões, mas de instituir a verdade única, as sexualidades hegemônicas, as formações acríticas e desconectadas da história e o cerceamento das vozes das diferenças. Nessa perspectiva, reformas políticas como a Reforma do Ensino Médio (iniciada por Temer), a implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), os programas de formação inicial e continuada de professores, as políticas de saúde sexual de adolescentes, as políticas de prevenção de combate à AIDS/HIV, as discussões sobre violência contra mulheres e LGBT e pautas de direitos sexuais e reprodutivos e, ao nível cotidiano, as práticas educativas atravessadas pelas analíticas de gênero ficam reféns da discursividade Ideologia de Gênero, da falácia conspiratória de um marxismo cultural e do projeto econômico de redução do Estado.
Considerações finais
As mudanças no PNDH, a retração do Programa Brasil sem Homofobia, as votações e o estabelecimento dos Planos de Educação como “projetos de nação”, a emergência de anti-movimentos sociais como o ESP e o MBL, a cruzada anti-gênero, anti-feminista e anti-LGBT, a transição política de 2016, a leitura da biologia (e seus determinismos) pelo viés inatista e o seu cruzamento com ideários dogmáticos dos novo Governo Federal são elementos destacados na genealogia das três últimas décadas da educação para os gêneros e para as sexualidades. Ora mais, ora menos, essas conjunturas refletem as estruturas de dominação e dos poderes que ordenam e normatizam as vidas e as diferenças em função de trocas econômicas e produtivas.
Tais estruturas se dispersam em discursos e práticas – oficiais e não oficiais – construtoras de posições de fala, de assujeitamentos e ou lugares nos quais certos grupos e setores sociais podem se reconhecer como escolhidos a consolidar as políticas públicas e a escolarização dos gêneros com base em suas próprias expectativas de corpo, de vida, de sexualidade, de feminilidade e masculinidade.
Embora muito se diga, ao nível do senso comum, que política, ciência e religião não se misturam, quando se trata de compreender a manutenção do establisment político, vemos emergir uma série de articulações entre esses campos do pensamento e das conjunturas sociais, porque seus discursos são epistemes, narrativas e interpretações que performam outras discursividade e dispositivos de controle.
A presentificação da atualidade brasileira na educação para os gêneros – as sexualidades – e as diferenças aponta para um cenário pessimista onde a exclusão parece ter avançado na ordem dos discursos e nas políticas estatais que visam a (des)construção dos direitos adquiridos. Lamentavelmente, essas frentes agenciam coletividades de ódio, de enunciações, de lógicas reativas, de práticas discursivas a conclamar um projeto de nação que renega a outridade, a diferença e apela para a relativização de preconceitos, misoginias, sexismos, racismos e violências que podem por efeito, influenciar as negociações escolares e ordenar o dito e o não dito curricularmente sobre os gêneros e as sexualidades.
Obstinadamente, setores políticos e religiosos seguem com o apelo de retirada dos gêneros nas escolas, mas nenhuma escola tem o poder de mudar ou de extinguir os gêneros e as orientações afetivas de cena; por mais que se perpetrem violências e apagamentos simbólicos, as pessoas continuarão a clamar por suas marcas identitárias, por novas conjecturas de Educação Sexual e por posicionamentos libertários que desestabilizam a ordem social classista, hierárquica e preconceituosa.
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Correspondência
Fabiana Aparecida de Carvalho — Universidade Estadual de Maringá — Av. Colombo, 5790 - Zona 7, CEP 87020-900, Maringá, Paraná, Brasil.
Notas
[1] Pronunciamento de Damares Alves sobre o combate à ideologia de gênero nas escolas brasileiras. Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/menino-veste-azul-menina-veste-rosa-diz-damares-alves-em-video-23343024.
[2] Palavras de Dilma Rousseff sobre a proibição do Programa Brasil sem Homofobia. Disponível em: http://g1.globo.com/educacao/noticia/2011/05/governo-nao-fara-propaganda-de-opcao-sexual-diz-dilma-sobre-kit.html.
[3] Tradução minha: “falar a verdade ocultada do gênero para reiterar a verdadeira verdade do sexo como um fato da natureza”.