Discursos de pais de crian�as surdas: Educa��o Infantil e a presen�a da Libras[1]
Discourses of deaf children�s parents: early childhood education and the presence of Libras
Bianca
Salles Concei��o
Doutoranda na Universidade Federal de S�o Carlos, S�o Carlos, S�o Paulo, Brasil.
bianca.csalles@gmail.com � https://orcid.org/0000-0003-2997-5576
Vanessa Regina de Oliveira Martins
Professora Doutora na Universidade Federal de S�o Carlos, S�o Carlos, S�o Paulo, Brasil.
vanymartins@hotmail.com � https://orcid.org/0000-0003-3170-293X
Recebido em 28 de maio de 2019
Aprovado em 30 de outubro de 2019
Publicado em 17 de dezembro de 2019
RESUMO
Este artigo tem como objetivo apresentar um recorte de uma pesquisa de mestrado realizada no Programa de P�s-Gradua��o em Educa��o Especial da Universidade Federal de S�o Carlos (UFSCar). A pesquisa problematizou as escolhas lingu�sticas nas instru��es escolares, com foco na Educa��o Infantil, feitas por pais e respons�veis de crian�as surdas matriculadas nesta etapa educacional. O intuito da pesquisa foi identificar, a partir do discurso de pais e respons�veis, quais tipos de instru��o escolar foram escolhidos para essas crian�as, e se a L�ngua Brasileira de Sinais (Libras) era utilizada no processo de aprendizagem. A pesquisa refere-se a um estudo de caso com abordagem qualitativa descritiva. Utilizaram-se, como instrumento de coleta de dados, entrevistas semiestruturadas. Participaram da entrevista quatro m�es e um pai de filhos surdos, estes inseridos em escolas com propostas bil�ngues de tr�s munic�pios do interior de S�o Paulo. As an�lises foram realizadas com base nas filosofias da diferen�a, especificamente nos estudos de Michel Foucault. Pode-se observar a entrada da l�ngua de sinais no seio familiar e social, assim como a percep��o dos familiares sobre a import�ncia dessa l�ngua nas pr�ticas escolares. O discurso dos respons�veis a partir de um vi�s cl�nico ainda � presente, mas tem como base a preocupa��o com as barreiras sociais que os levaram a procurar solu��es cl�nicas. Pode-se afirmar, portanto, que, apesar do discurso da surdez como defici�ncia ainda ser presente na fala dos pais, a l�ngua de sinais tem ganhado visibilidade social e � de conhecimento das fam�lias.
Palavras-chave: Educa��o Bil�ngue; Surdez; Fam�lia.
ABSTRACT
The purpose of this paper is to present a part of a Master�s research conducted under the Postgraduate Program in Special Education of the Federal University of S�o Carlos (UFSCar). The research has dealt with the linguistic choices made by parents and the people responsible for deaf children in the context of early childhood education. The purpose of the research has been to identify, based on the parents� and the responsible people�s discourses, what sorts of educational instruction have been selected for such children, as well as if the Brazilian Sign Language (Libras) was used throughout the learning process. The research consists of a case study with a descriptive and qualitative approach. In order to collect the data, we have used semi-structured questionnaires. Four mothers and one father of deaf children enrolled in bilingual schools from three cities located in the countryside of the state of S�o Paulo have participated in the interview. All the analyses have been conducted based on the philosophies of difference, specifically on the studies of Michel Foucault. We have been able to observe the entrance of the sign language into the family and the social environment, as well as the realization, by the family members, of its importance for the school practices. The discourse of the people responsible for the children still carries a clinical bias, although based on the concern with the social barriers that lead the family members to seek clinical solutions. Therefore, we may claim that, although the discourse according to which deafness is a disability is still present at the parents� utterances, sign language has been gaining social visibility and is known by the families.
Keywords: Bilingual Education; Deafness; Family.
Introdu��o
A partir da vis�o socioantropol�gica da surdez, a qual v� o sujeito surdo por sua diferen�a lingu�stica e n�o pela l�gica da falta trazida pela defici�ncia, temos a constru��o de uma perspectiva cultural na qual o sujeito se narra a partir da diferen�a. Essa singularidade produz formas subjetivas de vida, por meio de m�ltiplas identidades e com pr�ticas culturais acionadas a partir da L�ngua Brasileira de Sinais (Libras). Essa proposta social da surdez se d� com base nas quest�es pol�tico-jur�dicas, mais especificamente a partir da Lei n� 10.436/2002, que reconhece a Libras como meio de comunica��o e express�o legal no pa�s, e ainda pelo Decreto n� 5.626/2005, que a regulamenta e garante determinados direitos para esse p�blico (BRASIL, 2002; 2005).
Com base nessa proposta, este estudo tem como objetivo trazer um recorte de uma disserta��o de mestrado realizada no Programa de P�s-Gradua��o em Educa��o Especial na Universidade Federal de S�o Carlos (UFSCar), cuja problematiza��o abordou, com base nos discursos de pais e respons�veis de crian�as surdas matriculadas na educa��o infantil, as escolhas das instru��es escolares. O intuito da pesquisa foi identificar, a partir desses discursos, quais tipos de instru��o escolar foram escolhidos para essas crian�as, e se a L�ngua Brasileira de Sinais (Libras) era vista como importante no processo de aprendizagem da Educa��o Infantil.
A pesquisa se justificou pela escassez de estudos que articulem a surdez e as vozes dos pais em rela��o � Educa��o Infantil, podendo auxiliar em pesquisas da �rea e como referencial te�rico para a implementa��o de pol�ticas p�blicas, assegurando a representatividade social dos familiares que se responsabilizam pelo p�blico infantil surdo. Com isso, ressaltamos a import�ncia da visibilidade e escuta dessas fam�lias.
Como base te�rica, este artigo trouxe alguns conceitos foucaultianos. Tais conceitos s�o chaves de leitura para entendermos por quais focos de experi�ncia essas fam�lias est�o vivendo a surdez de seus filhos, como est�o sendo conduzidos esses corpos surdos, quais suas rela��es com as instru��es escolares e, ainda, como esses discursos sociais t�m interferido nas escolhas familiares. Al�m disso, discute-se sobre fam�lia e educa��o e quais s�o as possibilidades vigentes para a instru��o escolar de crian�as surdas.
Ap�s os caminhos metodol�gicos, baseados na genealogia, trazemos as an�lises, com dois eixos distintos: (1) a experi�ncia familiar com a surdez e a inf�ncia surda em perspectivas m�ltiplas: da patologia aos aspectos culturais; e (2) a institui��o escolar como espa�o de reorganiza��o de um novo discurso social da surdez e da Libras.
Iniciamos as discuss�es trazendo a teoriza��o de tr�s conceitos � �matriz de experi�ncia�, �pr�ticas discursivas� e �governamentalidade� �, que ser�o ampliados para entendermos as concep��es da surdez como espa�o de constitui��o subjetiva.
Primeiramente temos, na matriz de experi�ncia, a forma��o do sujeito pela pr�pria experi�ncia, uma a��o sobre si mesmo. Justifica-se ser uma matriz, a partir da constru��o foucaultiana, a apreens�o de tr�s eixos distintos: 1) o campo de saber como um pilar na constru��o de verdades; 2) o campo do poder e a produ��o de normas e comportamentos; e 3) o efeito desses dois produtos, que � a cria��o da �tica. Dessas associa��es � que se constitui o eu-sujeito. Nomear-se-ia, assim, de �subjetividade� ou �constru��o �tica� a rela��o que o sujeito realiza com o outro, com as institui��es e, acima de tudo, consigo mesmo.
Ainda sobre esse conceito, Foucault (2010a) conta que estudou primeiro o eixo dos saberes e concluiu que, para observar a matriz como forma��o desses campos, �[...] n�o se devia procurar analisar o desenvolvimento ou o progresso dos conhecimentos, mas sim identificar quais eram as pr�ticas discursivas que podiam constituir matrizes de conhecimentos poss�veis [...]� (FOUCAULT, 2010a, p. 6).
As pr�ticas discursivas, segundo Foucault (2009, p. 164), s�o �[...] um conjunto de regras an�nimas, hist�ricas, [...] no tempo e no espa�o que definiram, numa �poca dada, e para uma �rea social, econ�mica, geogr�fica ou lingu�stica, as condi��es de exerc�cio da fun��o enunciativa.� Em outras palavras, os discursos se d�o como pr�ticas no meio social, que seguem determinadas regras e constituem verdades em determinadas ocasi�es. Segundo Fischer (2013), transformar o discurso em pr�tica significa seguir essas regras em rela��o aos jogos de poder existentes e criar possibilidades de viver tais perspectivas de saber.
Esse conceito ainda estabelece que discurso, tanto o oral como sua pr�tica, � tudo aquilo que o sujeito fala e se produz como pol�tica, constituindo uma realidade (FOUCAULT, 2010a). Dias (2018, p. 26) afirma que �as pr�ticas discursivas interditam, separam dizeres � margem de uma determinada ordem, a partir de princ�pios espec�ficos, mobilizam saberes e s�o produzidos por eles�.
Em rela��o ao eixo dos saberes, Foucault (2010a) afirma que enfatizou as normativas de comportamento. A an�lise se constituiu em estudar os procedimentos pelos quais se conduz a conduta dos outros, o que o autor tratar� como governamentalidade. A quest�o passa a ser o governo de si mesmo, das condutas dos sujeitos, por quem ser governado, com qual objetivo e qual o m�todo utilizado para determinada fun��o (FOUCAULT, 2010a). Foucault (2010a, p. 6) procurou colocar �[...] a quest�o da norma de comportamento primeiramente em termos de poder, e de poder que se exerce, e analisar esse poder que se exerce como um campo de procedimentos de governo [...]� que se efetiva sobre a vida, interpela modos de exist�ncia e de condu��o de si mesmo promovendo a��es. Por fim, o fil�sofo explica que tentou analisar o eixo do modo de constitui��o de vidas � a constru��o da �tica � na qual o sujeito pode se reinventar a partir de resist�ncias �s imposi��es do eixo normativo dos comportamentos. Para isso, sempre que se falava em sujeito, o fil�sofo era levado a pensar nos modos de sujei��o que o forjaram, ou melhor, por qual matriz de experi�ncia o sujeito passou para orquestrar sua pr�pria conduta.
Relacionando esses conceitos aos campos de saber da surdez e �s matrizes de experi�ncias poss�veis nesse contexto, podem-se apontar duas a��es emergentes: (1) a vertente cl�nica e (2) o vi�s socioantropol�gico. Com base no conceito de matriz de experi�ncia, pode-se analisar como se constituem as vidas surdas na temporalidade social e hist�rica. Temos, primeiramente, o saber cl�nico, ligado a discursos m�dicos que dizem o lugar em que o surdo � projetado: com base nos decib�is que ele ouve ou n�o, esses discursos produzem a verdade de que a surdez � uma defici�ncia, criando uma quest�o negativa para o sujeito, o qual deve se aproximar do padr�o �normal�, a saber, ouvinte e falante da l�ngua oral.
Dessa forma, criam-se pr�ticas atreladas �s rela��es de poder de uma matriz, com a necessidade, por exemplo, de que o surdo use aparelhos auditivos, com o objetivo de chegar o mais pr�ximo poss�vel da norma de corpos ouvintes. H� certos comportamentos corporais conduzidos para esses sujeitos: n�o usar a l�ngua de sinais, buscar a utiliza��o de aparelhos auditivos ou implantes cocleares, n�o participar de associa��es e, ainda, n�o aceitar serem chamados de surdos, entre outros quesitos que conduzem um modo espec�fico de ver a vida da pessoa surda. Como resultado desse processo, pode-se enxergar a rela��o entre os pilares de saber e poder que produzem a subjetividade surda, nomeando-o como �deficiente auditivo�, por exemplo.
Emerge ent�o outro campo de saber, criando n�o s� outros sujeitos, mas verdades que apresentam uma vis�o da diferen�a surda, sendo essa vertente denominada socioantropol�gica (SKLIAR, 2001).Com essa concep��o, tamb�m se observam normas e pr�ticas discursivas, dentre elas a cria��o da Lei n� 10.436/2002 (BRASIL, 2002) e do Decreto n� 5.626/2005 (BRASIL, 2005), que garantem os direitos dos surdos perante a sociedade, al�m de uma discursividade em rela��o � educa��o bil�ngue (Libras/Portugu�s).
Fazendo o mesmo movimento, tamb�m podemos refletir sobre os sujeitos produzidos, numa vis�o socioantropol�gica. Com base nessa matriz, surgem afirma��es de que a surdez se d� pelas diferen�as lingu�stico-culturais entre o ser surdo e os ouvintes, contrapondo a surdez � perspectiva cl�nica da defici�ncia auditiva.
Portanto, para se encaixarem nessa outra norma pressuposta, os sujeitos se narram, segundo Sales et al. (2010), como falantes da l�ngua de sinais: n�o se autodeclaram como deficientes auditivos, mas como surdos, participantes de movimentos sociais e de associa��es de surdos, defendendo o uso da Libras e os aspectos culturais nas a��es propostas pela comunidade surda.
Por fim, dessa rela��o entre verdades e comportamentos produzidos, tem-se relacionado a essa matriz de experi�ncia, na perspectiva socioantropol�gica, o sujeito surdo. Assim, �(...) as comunidades surdas n�o se posicionam como deficientes, pois a falta da audi��o n�o os descaracteriza, mas possibilita viver uma experi�ncia visual distinta da do ouvinte, acompanhada do uso de uma l�ngua visual-gestual� (MARTINS; LACERDA, 2016, p. 169).
Cabe salientar que n�o necessariamente os sujeitos que se encaixam nessas matrizes cl�nicas e socioantropol�gicas v�o perpassar por todas as pr�ticas constitutivas e as verdades que configuram os comportamentos descritos. O que � proposto, neste momento, � uma forma did�tica de abordar a surdez, al�m de expor alguns recursos pelos quais o sujeito possa se narrar e as subjetividades que se podem constituir a partir de um discurso m�dico e/ou cultural, numa produ��o de subjetividades plurais em m�ltiplas identidades, as quais tornam o sujeito �nico em sua exist�ncia.
Essas formas subjetivas de olhar a surdez nos auxiliar�o a compreender o processo de constru��o e refac��o dessa diferen�a, nas mais variadas formas em que elas podem ser encontradas nos discursos familiares sobre as instru��es escolares, em rela��o aos corpos infantes surdos.
Educa��o Infantil e fam�lias de crian�as surdas
Com base nas quest�es filos�ficas trazidas, Souza (2018, p. 21) afirma que a humanidade sente a necessidade de se agrupar, de pertencer a um grupo: �a exist�ncia humana est� vinculada aos agrupamentos coletivos, sendo que o origin�rio � a fam�lia�. A autora ainda salienta que as institui��es formadas para o controle de um governo submetem ao poder do homem a possibilidade de conduzir a conduta do outro, pela a��o da governamentalidade.
O governo, como a��o de condu��o em micro institui��es � e n�o como a institui��o macro na figura do Estado, que faz a gest�o das vidas sociais �, est� dilu�do em diversas institui��es de poder, entre elas as escolares, as religiosas, as cient�ficas, as jur�dicas e, neste caso, as familiares, que v�o sendo constru�das em �teias de controle que se forjam na orienta��o da conduta dos outros, e isso se estabelece pelo agrupamento, da� a necessidade de pertencimento a um grupo� (SOUZA, 2018, p. 60). Dessa forma, ent�o, o governo dissipa seu poder nas microrrela��es, criando na fam�lia uma manifesta��o vis�vel desse poder, conduzindo as crian�as � por meio das culturas, tradi��es, cren�as e educa��es �, produzindo maquinarias e sujeitando a inf�ncia, entre diversos aspectos, ao dispositivo da linguagem.
Nesse sentido, a linguagem seria um dos dispositivos de controle da governamentalidade, que vem conduzindo e normalizando os corpos das crian�as, de forma geral, e os dos surdos, especificamente, observando as escolhas feitas pelas fam�lias e por quais matrizes de experi�ncias se constituir�o: se partir�o de discursos cl�nicos e/ou socioantropol�gicos ou se ser�o, portanto, oralizadas e/ou sinalizantes, j� que a l�ngua � ponto fundamental no processo de governamentalidade.
Segundo Rodriguero e Yaegashi (2013), � fundamental entender a rela��o que os respons�veis mant�m com suas crian�as surdas e como eles atuam diante de tal situa��o. As autoras ainda salientam a import�ncia de os pais, antes de fazer qualquer escolha, entenderem essas condi��es e reconhecerem que tamb�m precisam se preparar para o desenvolvimento e a apropria��o da l�ngua de sinais, que cont�m ressignifica��es e sentidos de mundo distintos e desconhecidos at� ent�o.
A partir de uma vis�o socioantropol�gica, � pelo contato com a Libras que a crian�a adquirir� conceitos para a vida, pois se apropriar� de uma l�ngua que a humanizar� e lhe permitir� dialogar e construir conhecimentos com outras pessoas. Em rela��o a essa aquisi��o de conhecimento e conte�do, partindo da l�ngua de sinais e de uma perspectiva cultural, �[...] afirma-se que o surdo se desenvolve a partir do contexto social dos surdos e n�o a partir das significa��es dadas pelos seus pais� (RODRIGUERO; YAEGASHI, 2013, p. 53). Outras pesquisas, por exemplo, a de Boscolo e Santos (2005), revelam que o discurso dos familiares em rela��o � l�ngua de sinais come�a a ter um novo aspecto, ganhando uma pequena aceita��o social e import�ncia para o desenvolvimento de seus filhos surdos.
Quando tratamos da rela��o entre a fam�lia de crian�as surdas e a escola, o que acontece muitas vezes � um percurso confuso sobre as obriga��es de cada institui��o, sobre as rela��es de condu��o por meio da l�ngua e, ainda, sobre as formas de intera��o que se devem estabelecer com essa crian�a, a depender de p�r quais matrizes de experi�ncia perpassaram suas forma��es. Isso influi, diretamente, nas escolhas dos respons�veis de crian�as surdas pela instru��o que seus filhos ter�o e em qual escola ser�o matriculados.
Compartilhar a responsabilidade entre escola, professor, fam�lia e dispositivo lingu�stico, principalmente na faixa et�ria de desenvolvimento inicial das crian�as, �, portanto, de extrema import�ncia, tanto para o desenvolvimento das atividades como pela pr�pria viv�ncia desse aluno, visto que �a institui��o precisa conhecer e trabalhar com as culturas plurais, dialogando com a riqueza/diversidade cultural das fam�lias e da comunidade� (BRASIL, 2018, p. 35).
Na Base Nacional Comum Curricular � BNCC (2018), a Educa��o Infantil � o in�cio de todo o processo educacional da crian�a, o momento em que ela se distancia da institui��o familiar como �rg�o �governamentalizador� e se aproxima de outro: o ambiente escolar, sendo �a primeira separa��o das crian�as dos seus v�nculos afetivos familiares para se incorporarem a uma situa��o de socializa��o estruturada� (BRASIL, 2018, p. 34).
Com a pol�tica proposta de uma educa��o para todos, a Educa��o Infantil precisou se adequar �s crian�as p�blico-alvo da educa��o especial (PAEE), surgidas ap�s a perspectiva inclusiva dada pela Declara��o de Salamanca (BRASIL, 1994). Apesar de seu atendimento ser previsto pela Pol�tica Nacional de Educa��o Especial na perspectiva da Educa��o Inclusiva � PNEEI (BRASIL, 2008), nem sempre as especificidades desses sujeitos v�m sendo respeitadas.
Segundo Gurgel et al. (2016), oferecer uma Educa��o Infantil de qualidade, que resista � segrega��o da l�ngua de sinais e sua desvaloriza��o, � fundamental para crian�as surdas, que necessitam de uma l�ngua sem impedimento f�sico para o desenvolvimento de sua subjetividade. Lacerda e G�es (2007, p. 1) afirmam que esse ambiente escolar, que pensa nos educandos surdos, deve �[...] oferecer oportunidades para que a crian�a se torne bil�ngue, esteja em intera��o com pares em sua l�ngua e tenha contato com a comunidade surda, podendo se reconhecer como pertencentes a ela e (re)conhecer aspectos pertinentes � surdez�.
No que se refere aos educandos surdos, a estrat�gia 4.7 do Plano Nacional de Educa��o (PNE) garante a oferta de uma educa��o bil�ngue, em Libras, como primeira l�ngua, e L�ngua Portuguesa na modalidade escrita, como segunda, em escolas e classes bil�ngues e em escolas inclusivas (BRASIL, 2014).
Destaca-se, sobre isso, uma pesquisa desenvolvida na cidade de Campinas sobre projetos bil�ngues em Escolas-Polo[2] da rede p�blica. Nesse projeto, classes regulares de Educa��o Infantil e Ensino Fundamental I s�o nomeadas como �Salas l�ngua de instru��o Libras�, tendo a Libras como primeira l�ngua e o Portugu�s escrito como segunda. Trata-se de uma proposta diferenciada que, segundo registros, tem tido grande sucesso em sua forma de atua��o (LACERDA; SANTOS; MARTINS, 2016).
Gurgel et al. (2016, p. 73) afirmam que �[...] o programa inclusivo bil�ngue enfrenta este duplo desafio: proporcionar aquisi��o da Libras e garantir que as lacunas deixadas no desenvolvimento cognitivo pela aquisi��o tardia de uma l�ngua sejam preenchidas e superadas�. Essa aquisi��o tardia ocorre porque as crian�as surdas s�o, em sua maioria, filhas de pais ouvintes e n�o t�m, na maior parte dos casos, o uso de sua l�ngua matriz em circula��o nos ambientes familiares.
A aceita��o dessa l�ngua em ambientes escolares, mesmo associada a projetos bil�ngues e salas de instru��o Libras, ainda sofre uma grande resist�ncia da pol�tica inclusiva radical, com afirma��es contr�rias ao que a proposta sugere (ALMEIDA, 2017; MORAIS, 2018). O discurso dessa resist�ncia, baseado na Pol�tica Nacional de Educa��o Especial na Perspectiva da Educa��o Inclusiva � PNEEPEI (BRASIL, 2008), � que essas salas, na verdade, levam a uma exclus�o dos alunos surdos, por concentrarem apenas sujeitos com determinada particularidade lingu�stica, mesmo que ainda sejam consideradas, pelo Decreto n� 5.626/2005, salas regulares de ensino.
Al�m das salas de instru��o Libras, tamb�m se observa outro cen�rio nessa proposta bil�ngue: nas salas em codoc�ncia (que cont�m alunos surdos ao lado de ouvintes), h� uma professora regente para os discentes ouvintes e uma professora regente bil�ngue para os surdos. Enquanto a professora regente apresenta o conte�do program�tico para os alunos ouvintes, a professora bil�ngue faz o mesmo movimento, mas com material adaptado ao melhor desempenho das crian�as surdas.
Martins e Lacerda (2016) afirmam que, na Educa��o Infantil, � de extrema import�ncia haver, al�m da escola � constituindo o sujeito surdo por meio de um dispositivo lingu�stico favor�vel � aprendizagem �, o papel ativo da fam�lia nesse processo subjetivo. Nos casos em que surdos oriundos de fam�lias de ouvintes t�m contato com a l�ngua de sinais fora do lar, a apropria��o da Libras n�o fica t�o evidente, porque as representa��es sociais se fazem presentes em perspectivas cl�nicas, �[...] as quais os significam como deficientes e desconhecem a l�ngua de sinais como meio de intera��o social� (MARTINS; LACERDA, 2016, p. 174).
Por esse cen�rio, nota-se o quanto as institui��es familiar e escolar, especificamente na Educa��o Infantil, se organizam por meio de dispositivos sociais que refletem os saberes-poderes em constru��o, diante das verdades a serem firmadas. Tais a��es constituem importantes ferramentas para a constitui��o da subjetividade das crian�as surdas e da possibilidade de reconhecimento (ou n�o) de suas diferen�as.
Metodologia
A pesquisa apresentada tratou de um estudo de campo de abordagem qualitativa do tipo descritiva. Pode-se dizer que o processo de investiga��o levou em conta o levantamento de dados sobre as motiva��es de um grupo (GIL, 2002), analisados � luz de um referencial te�rico, a saber, a perspectiva discursiva das filosofias da diferen�a, especificamente em Michel Foucault. Os levantamentos desenvolvidos em rela��o � educa��o de crian�as surdas pela voz dos familiares depararam-se com a escassez de pesquisas nessa dire��o. Nos bancos de dados pesquisados, foram encontrados poucos resultados ao se agruparem as palavras-chave �surdez�, �Educa��o Infantil� e �fam�lia�.
A etapa de educa��o b�sica escolhida pelas pesquisadoras tamb�m � de grande import�ncia. A Educa��o Infantil � a fase em que, segundo Lacerda et al. (2016), a crian�a vivencia um momento de seu desenvolvimento, sendo a base para a forma��o de suas subjetividades, constru�das por meio da rela��o que ela estabelece com os outros e pela viv�ncia de diversos fatores do ambiente escolar, juntamente com experi�ncias fora da escola, por meio do dispositivo linguagem.
Assim, para o desenvolvimento da revis�o de literatura, tomamos por base as seguintes quest�es: Quais pontos os pais de crian�as surdas levam em considera��o na escolha do formato de Educa��o Infantil para seus filhos? A l�ngua de sinais � ponto de partida para tal escolha?
Para responder tais inquieta��es, foram entrevistados cinco participantes do interior do estado de S�o Paulo, dos quais quatro eram m�es e apenas um pai. A escolha dos entrevistados se baseou nos seguintes crit�rios: ter filhos surdos menores de 5 anos e 11 meses matriculados em escolas de Educa��o Infantil da rede p�blica no per�odo de 2012 a 2017; ser maior de idade e ser o respons�vel pelas crian�as surdas. A busca foi feita em associa��es de surdos e com a ajuda de profissionais de escolas p�blicas e entidades que atendem o p�blico infantil surdo, j� que a entrevista aconteceu no modo e local que os pais ou respons�veis preferiram.
Embora a pesquisa permitisse participa��o de pais com filhos matriculados em propostas distintas de Educa��o Infantil, tivemos acesso apenas �queles cujos filhos estavam matriculados em escolas com propostas bil�ngues (Libras/L�ngua Portuguesa). Os participantes P1 e P2 tinham seus filhos matriculados em escolas com projetos bil�ngues da prefeitura, em salas de instru��o Libras multisseriadas, que, apesar de abertas ao p�blico, s� tinham alunos surdos. Os filhos dos participantes P3, P4 e P5 igualmente faziam parte de projetos bil�ngues, mas em salas com dupla doc�ncia (ouvintes e surdos matriculados).
Utilizou-se como instrumento de coleta um roteiro de entrevista semiestruturada. Pela lente foucaultiana, buscou-se identificar os crit�rios que levaram esses respons�veis a optar pelo uso da l�ngua de sinais e/ou pr�ticas de oraliza��o para seus filhos, bem como a escolha do tipo de proposta de Educa��o Infantil, verificando, a partir de suas considera��es, como eles percebem a a��o da escola, na parceria com eles, na promo��o da aquisi��o de linguagem, ou seja, as pr�ticas bil�ngues desenvolvidas para o ensino de seus filhos.
A proposta metodol�gica e a an�lise dos dados da pesquisa resultaram de uma an�lise geneal�gica, sendo ela �[...] uma forma hist�rica que d� conta da constitui��o dos saberes, dos discursos, dos dom�nios do objeto [...]� (FOUCAULT, 1979, p. 7), presente nas rela��es entre saber/poder e as verdades em que s�o constitu�das. As falas dos pais refletem verdades que ainda fundamentam o campo da surdez e constroem um desejo de corpo e filho surdo.
Nessas entrevistas, foram analisados quais campos de saberes ou, ainda, por quais matrizes de experi�ncias passaram esses pais e respons�veis para a constru��o de verdades as quais impactaram a subjetividade de seus filhos.
Resultados e discuss�es
Com as contribui��es te�ricas e a ativa��o dos conceitos descritos, traz-se, neste momento, uma articula��o, de modo a apoiar tais estudos nas an�lises empreendidas. Com base nas entrevistas e nas considera��es mais relevantes encontradas nas produ��es discursivas, foram desenvolvidos dois eixos: 1) a experi�ncia familiar com a surdez e a inf�ncia surda em perspectivas m�ltiplas: da patologia aos aspectos culturais; 2) a institui��o escolar como espa�o de reorganiza��o de um novo discurso social da surdez e da Libras.
A proposi��o do primeiro eixo se fundamenta na transcri��o e an�lise dos dados das entrevistas, nas quais mais de um participante relatou o impacto da descoberta do diagn�stico e as ressignifica��es que enfrentou na tentativa de assimilar o que a surdez causava em seus filhos, tanto nas rela��es familiares quanto fora dela.
S� que, assim, eu queria usar todos os recursos poss�veis que a tecnologia, que a medicina me d�, para o meu filho. Ent�o se hoje � poss�vel voc� ouvir alguns sons � por conta do implante. N�o sei se ele vai ouvir perfeitamente, mas a m�e fez tudo que podia. Se ele quiser tirar o implante, tira (...), mas eu sinto uma rejei��o por conta, um preconceito por conta dos surdos (Entrevista, P1, 2018).
Ficam expl�citas, na cita��o acima, as duas experi�ncias e narrativas sobre a surdez: de um lado, o desejo da m�e de que seu filho ou�a e seja oralizado; de outro, o desejo de que seu filho fa�a parte da comunidade surda. Nas duas posi��es h� o receio do poss�vel preconceito social, baseado na experi�ncia vivida em cada uma dessas matrizes.
Trazer a quest�o do olhar dessa fam�lia para o filho surdo e todas as discursividades sociais que seus enunciados produzem vai ao encontro dos objetivos desta pesquisa. Esse eixo aborda todo o movimento dos familiares, desde a descoberta do diagn�stico, passando pela preocupa��o com as poss�veis barreiras lingu�sticas e salientando o esfor�o da fam�lia em proporcionar um futuro melhor, at� a descoberta da Libras no seio escolar.
Verificou-se que todos os participantes deste estudo anseiam ver seus filhos desenvolvendo a oralidade, por acreditarem ser a forma mais comum segundo a maneira como veem o mundo, estando impregnados em um discurso essencialmente monol�ngue, do Portugu�s como �nica l�ngua nacional (e sua l�ngua matriz), e vendo a surdez como defici�ncia a partir de uma vis�o m�dica: �[...] ele (m�dico) encaminhou para conseguir colocar o aparelho, n�, depois encaminhou a gente para fazer �fono� e ter um atendimento nessa �rea [...] Ele tem aparelho� (Entrevista, P2, 2018).
Associa-se a necessidade desse reparo, portanto, � grande influ�ncia, nas rela��es de poder, da medicina com a popula��o, fazendo um liame entre surdez e o que Foucault chamou, em seu livro Os anormais, referindo-se ao segundo grupo que constitui esse p�blico: o indiv�duo a corrigir. Foucault (2010b) afirma que, com base em todas as verdades constru�das na sociedade por um vi�s m�dico, cria-se a necessidade da disciplinariza��o dos corpos at� ent�o �incorrig�veis�, sendo necess�rio estudar �as diferentes institui��es de corre��o e as categorias de indiv�duos a que elas se destinam� (p.255), sendo, nesse momento, as pr�ticas de governamento realizadas tanto pela fam�lia quanto pela escola.
Nesse cen�rio, que leva os pais a pr�ticas discursivas atreladas a uma perspectiva m�dica, percebe-se a dificuldade de aceita��o da surdez, devido ao vi�s negativo que a sociedade agrega a essa singularidade. Nas entrevistas, foi poss�vel reconhecer o choque familiar com a descoberta do diagn�stico de seus filhos e o quanto prevaleceu o sentimento de desespero e tristeza nas discursividades encontradas, como a P5 relata:
A� deu que ele tinha severa profunda. A� daquele dia pra c�, para mim foi o fim do mundo. Eu fiquei muito mal, eu e o pai dele. O pai dele foi junto. Foi um susto, um susto que a gente estava percebendo, mas quando teve certeza, n�?... (Entrevista, P5, 2018).
Sendo assim, por quest�es hist�ricas, culturais e sociais, familiares de crian�as surdas, dentro da luta di�ria que envolve sentimentos e press�es, recolhem-se ao luto ap�s o diagn�stico da surdez, mas, aos poucos, v�o renovando suas esperan�as. Nessa caminhada, eles se reencontram e se reconstroem com esse novo conhecimento acerca do inesperado.
Miller (1995) relata que, ap�s o diagn�stico da surdez, os respons�veis por crian�as surdas passam por diversos sentimentos, mas uma fase de extrema import�ncia � quando buscam alternativas, o que representa um per�odo de a��o e movimenta��o, como podemos ver no trecho da entrevista abaixo:
A gente n�... fez o Bera, que o Bera que falou que ele tem perda auditiva e a� ele encaminhou pra conseguir e colocar o aparelho, n�, depois encaminhou a gente pra fazer �fono� [...] A gente est� acompanhando, tanto na escola, tanto em casa, tanto no atendimento. [...] Quando ele passou... foi encaminhado para essa escola, a que ele est� agora (Entrevista, P3, 2018).
A partir dessa busca di�ria das fam�lias por melhores oportunidades cl�nicas e educacionais para seus filhos, pode-se constatar nesses discursos, principalmente, que os pais n�o querem normalizar os filhos exclusivamente por um desejo isolado ou por uma quest�o meramente pessoal de avers�o � defici�ncia. A maior frustra��o das fam�lias de crian�as surdas � que a sociedade ainda trata a surdez como uma quest�o confusa, o que aumenta a ang�stia pelo desejo da fala. H� uma nova discursividade sobre o direito do surdo � Libras, mas as pr�ticas discriminat�rias ainda est�o presentes, o que gera nos pais uma indefini��o sobre o modo de lidar com seus filhos no que concerne � l�ngua usada em casa.
Para al�m dos campos de saberes que associam a surdez a uma patologia, o que existe atualmente � a incerteza de uma acessibilidade social para as pessoas surdas. Mesmo com as legisla��es vigentes � que incluem a Lei n� 10.436/2002 e o Decreto n� 5.626/2005 �, e uma visibilidade cada vez maior da l�ngua de sinais, ainda h� muitas barreiras que marcam nos pais um anseio pela fala do Portugu�s em sua modalidade oral.
[...] eu acho que o Portugu�s � t�o fundamental quanto, para a crian�a ser... ficar bem como adulta sabe? Porque n�o adianta a gente se iludir e achar que o mundo inteiro vai aprender Libras, que qualquer lugar que voc� v� a pessoa vai contratar um int�rprete pra voc�, porque n�o vai. Se voc� estudar s� em escola p�blica, ou ter a sorte de entrar numa Universidade P�blica, porque como � seu direito, o governo d� um jeito [...] agora numa escola particular voc� n�o vai ter vaga, entendeu? [...] Eu acho que pode ser que algum dia a gente chegue nesse n�vel de civilidade, mas n�o � agora, na gera��o do meu filho. Ent�o eu quero que ele seja uma pessoa inclu�da (Entrevista, P4, 2018).
Diante esse excerto, que reitera o desejo pela modalidade oral, conclui-se que, atualmente, o saber cl�nico pode ser colocado em outro patamar: vinculado � acessibilidade, ao lugar de trabalho desses sujeitos no futuro, aos estudos, �s oportunidades de vida e � posi��o social que ocupar�o na fase adulta se n�o tiverem o desenvolvimento oral. Esse temor assusta os pais e distancia a import�ncia da Libras, ainda que mencionem o uso dela pelos filhos.
Martins e Lacerda (2016), diante dessa realidade da barreira social lingu�stica, salientam a dificuldade de mudan�a desse discurso, gerado pela a��o da perspectiva monol�ngue essencializadora. Eles apresentam alguns acontecimentos, tomados como verdades absolutas, que se firmam como �saberes de pr�ticas da constru��o de modos de exist�ncia [...] oprimindo outras verdades poss�veis para se pensar o homem e o conhecimento� (MARTINS; LACERDA, 2016, p. 172-173). As pesquisadoras ainda afirmam que a hist�ria, travada por lutas, e as tais resist�ncias d�o abertura para a constru��o de novos campos de saber, e � nesse cen�rio de resist�ncias surdas (MARTINS, 2008) que se tornam vigentes o uso da Libras e o campo de saber socioantropol�gico.
A refer�ncia � Libras e sua import�ncia, observada nos discursos dessas fam�lias, apontam para o in�cio de um olhar sobre as constitui��es subjetivas dos sujeitos surdos, com o reconhecimento e a aceita��o das singularidades presentes e as especificidades da l�ngua de sinais, ainda que paralela ao medo de ficar s� com a Libras, pelas quest�es descritas acima.
Embora todos os pais pesquisados achem que a oraliza��o seja de extrema import�ncia, por motivos tanto pessoais quanto culturais ou, principalmente, sociais, a Libras tamb�m est� presente na fala desses respons�veis, comprovando que essa l�ngua, por meio de discursos cient�ficos e jur�dicos, tem ganhado visibilidade social, a ponto de se fazer presente no enunciado familiar.
A entrada da Libras nos discursos das fam�lias as faz ver a surdez sob outro paradigma. Assim, o que aparece � ora a matriz de experi�ncia cl�nica, com suas verdades e comportamentos dependendo das quest�es sociais que a englobam, ora a experi�ncia por um vi�s cultural, pois falam da import�ncia da Libras na vida de seus filhos e do encontro destes com outros surdos, como relata P1: �[...] eu queria os dois pro meu filho, pra falar a verdade, [...] eu n�o fa�o s� a Libras pra ele, tamb�m estimulo a leitura labial� (Entrevista, P1, 2018).
Quebrar essas ideias de normalidade ap�s a introdu��o da Libras, e ainda aceit�-la, como no discurso desses pais entrevistados, certamente n�o foi uma tarefa simples, tendo em vista toda a constru��o hist�rica e social apresentada. Essa import�ncia presente no discurso dos familiares � uma semente a cultivar. Acredita-se que, para as crian�as n�o viverem em paradoxos, o mais assertivo para elas seja a educa��o bil�ngue de surdos (LACERDA; SANTOS; MARTINS, 2016), subjetivando-se, mesmo que de plurais maneiras, em matrizes de experi�ncias socioantropol�gicas em uma perspectiva do bilinguismo que tem a Libras como l�ngua matriz, e, posteriormente, o Portugu�s em sua modalidade escrita.
Dessa forma, nota-se a presen�a de um novo campo de saber que constitui esse discurso dos respons�veis por essas crian�as surdas. A partir do espa�o pol�tico que a l�ngua de sinais ganha, ela vai sendo aos poucos reconhecida na sociedade.
Ent�o, assim, Libras � a l�ngua materna dele [...] Porque quando eu aceitei que ia adotar o K., � o K. que eu liguei na vara da inf�ncia, eu comecei a fazer o curso online de Libras da USP [...] Ent�o quando ele chegou na minha casa, ele n�o tinha l�ngua, n�o se comunicava. Eu falo assim, que ele brincava, ele pegava todos os carrinhos da caixa, enfileirava e guardava, era essa a brincadeira. Ele n�o tinha a brincadeira do faz de conta sabe? Que � importante, pegar o carrinho, subir, descer, bater... n�o existia. Ent�o, ele aprender a Libras foi um salto gigante. A gente percebeu, uns dois meses depois que ele estava em casa, que ele entendeu que a Libras era uma forma de comunica��o [...] (Entrevista, P4, 2018).
Percebe-se, pelo relato acima, o quanto as crian�as surdas desenvolveram seu aprendizado a partir do contato com a l�ngua de sinais, como isso ajudou na constru��o do faz de conta e da abstra��o e do quanto esse processo � muito mais r�pido (RODRIGUERO; YAEGASHI, 2013) do que a oraliza��o, que � uma forma imposta socialmente por uma l�ngua que n�o os representa, tanto por quest�es biol�gicas quanto culturais e identit�rias.
Nas entrevistas, nenhum dos cinco pais apresentou resist�ncia � Libras. Quatro participantes que n�o eram fluentes entraram em diferentes cursos � na internet, em centros de reabilita��o ou nas pr�prias escolas � para tentar aprender e melhorar a comunica��o com os filhos. Goldfeld (1997) salienta a import�ncia do aprendizado por parte da institui��o familiar em rela��o � l�ngua de sinais, para que haja uma intera��o de sucesso entre seus integrantes.
Essa valoriza��o por parte dos respons�veis das crian�as surdas s� tem a ajudar nesse desenvolvimento. O seu reconhecimento � muito mais do que somente o assentimento da l�ngua: � o entendimento da surdez � ou, ao menos, o in�cio dessa compreens�o � e a aceita��o da diferen�a de seus filhos.
Assim, pode-se questionar: que local, ent�o, possibilitou essa busca por alternativas de desenvolvimento das crian�as surdas, gerando um novo olhar para o surdo? A resposta �: as institui��es escolares. Essa nova discursividade da surdez, de um olhar n�o patol�gico, vem das narrativas e de pr�ticas discursivas criadas na escola, subjetivando os sujeitos por uma matriz de experi�ncia socioantropol�gica.
A escola, nesse contexto, possibilitou muito al�m de aquisi��o de linguagem para as crian�as: oportunizou um lugar de encontro, de reorganiza��o da surdez, tanto para a fam�lia reconhecer essa diferen�a lingu�stica, rompendo os padr�es da normalidade, quanto para a pr�pria crian�a. Al�m disso, no n�vel de escolaridade escolhido para esta pesquisa � a Educa��o Infantil �, os pais s�o ainda mais presentes no cotidiano escolar, n�o s� porque as crian�as s�o menores e, portanto, mais dependentes, mas tamb�m por causa da surdez delas (RODRIGUERO; YAEGASHI, 2013).
Na sala bil�ngue, a professora s� fala em Libras. S�o tr�s alunos na sala dele. Os tr�s surdos e os tr�s s� Libras [...] Eu acho importante, muito importante e n�o sei muita coisa, eu acredito que o que vai ser ensinado para uma crian�a ouvinte vai ser ensinado para uma crian�a surda, para o meu filho, eu acredito nisso (Entrevista, P1, 2018).
A reorganiza��o da surdez, por parte da escola, rompe seus muros e entra em contato diretamente com as institui��es familiares. Em rela��o aos respons�veis pelas crian�as surdas, a escola com projetos bil�ngues se constitui em espa�o de acolhida da fam�lia sem evocar o discurso cl�nico. Quando a crian�a retorna para casa, tendo contato com a l�ngua de sinais, leva essa fam�lia a se deslocar das rela��es de poder atreladas a normas �ouvintistas� e oralistas em dire��o a novas constru��es interativas com os sujeitos surdos e, no caso desta pesquisa, tamb�m procurando aprender Libras.
N�o se pode negar a import�ncia desse ambiente escolar, mais especificamente da Educa��o Infantil, que tem a �responsabilidade de contribuir para o desenvolvimento de linguagem de qualquer crian�a� (GURGEL, et al., 2016, p. 73) apesar de toda sua constru��o hist�rica j� apresentada nesse estudo e do dif�cil entendimento dessa etapa educacional pela sociedade.
Lacerda (2000) afirma que o sujeito deve ser exposto, o mais cedo poss�vel, � l�ngua de sinais, �identificada como uma l�ngua pass�vel de ser adquirida por ele sem que sejam necess�rias condi��es especiais de �aprendizagem�. Tal proposta educacional permite o desenvolvimento rico e pleno da linguagem, possibilitando ao surdo um desenvolvimento integral� (LACERDA, 2000, p. 53).
Organizar uma Educa��o Infantil bil�ngue de qualidade para essas crian�as surdas, por�m, n�o � tarefa simples, pois requer uma reorganiza��o escolar, funcion�rios e profissionais capacitados, curr�culos adaptados e atividades visuais que incluam de fato essas crian�as (GURGEL, et.al. 2016). �Nossa, que escola, n�? Muito boa! [...] Ela mudou at� aqui dentro de casa, ela era muito agitada [...] foi onde ela est� tendo muita afinidade, tanto com a professora como com todo mundo l� (Entrevista, P2, 2018).
A partir dos relatos de Gurgel et al. (2016), que se referem � Educa��o Infantil bil�ngue, pode-se concluir que as pr�ticas dos profissionais envolvidos nesse processo e a promo��o de um ambiente bil�ngue de qualidade constituem uma tarefa complexa, principalmente por causa da responsabilidade da Educa��o Infantil como base de ensino e aprendizagem, seja de crian�as ouvintes ou surdas. Para estas �ltimas, h� ainda mais uma quest�o: trata-se de promover uma l�ngua matriz a qual n�o �, na maioria das situa��es, utilizada at� que elas entrem na escola.
Conclus�o
Assim, com base no arcabou�o te�rico e nas an�lises desenvolvidas, verificou-se que o discurso da surdez como defici�ncia auditiva, advindo de um vi�s m�dico, ainda � muito presente, at� por uma constru��o hist�rica. Todos os pais entrevistados salientaram a import�ncia da l�ngua oral, o que mostra o quanto a sociedade ainda est� ligada � ideia da surdez como defici�ncia e como tem dificuldade de aceitar as diferen�as. Os motivos desse pensamento variam de anseios particulares at� preocupa��es com barreiras sociolingu�sticas.
Mesmo com essa constru��o social sobre a surdez, o que chamou muito a aten��o foi a preocupa��o desses pais em proporcionar todos os recursos poss�veis, seja por orienta��es advindas de um discurso cl�nico ou cultural, seja por profissionais de Sa�de, seja pela Educa��o, atravessando fronteiras para uma real inclus�o, verificando-se ora matrizes de experi�ncias cl�nicas, ora a valoriza��o dos focos de experi�ncia socioantropol�gicos.
Apesar das verdades enraizadas a partir de uma norma ouvinte, h� uma mudan�a de discurso: todos os pais reconhecem a import�ncia da l�ngua de sinais no desenvolvimento das crian�as, pois perceberam, tanto no conv�vio dom�stico quanto na escola bil�ngue, mudan�as que levaram ao aprimoramento da comunica��o, imagina��o e entendimento de conceitos abstratos, apontando para a cria��o de sua subjetividade.
No que diz respeito �s instru��es escolares, a escola com projetos bil�ngues mostrou ser um novo espa�o de constitui��o e reorganiza��o, tanto para as subjetiva��es das crian�as surdas quanto na rela��o comunicativa com seus familiares. A partir da instru��o em l�ngua de sinais para todos os filhos dos participantes desta pesquisa, p�de-se ver a entrada de um novo campo de saber: a l�ngua de sinais constituindo vidas surdas.
Verificou-se a ascens�o da Libras, possibilitando um novo olhar para essa experi�ncia gesto-visual e aprofundando o reconhecimento e o desenvolvimento dessas crian�as por sua l�ngua matriz, que podem, no ambiente escolar, entrar em contato com experi�ncias outras que enxergam a Libras como fator principal da constitui��o de um saber socioantropol�gico e da refac��o dos sujeitos, tanto dos infantes como dos seus respons�veis.
Acredita-se que essa mudan�a de discursividades � o in�cio de uma grande caminhada para a valoriza��o da Libras como uma l�ngua para toda a sociedade, e o presente trabalho � apenas o come�o desse di�logo, sendo uma pesquisa que, para o meio social, teoriza e afirma a import�ncia da Libras no desenvolvimento das crian�as surdas na rela��o familiar.
Ressalte-se, ainda, a necessidade de mais estudos que tragam � cena as vozes dos pais e suas pr�ticas na constitui��o relacional com seus filhos. Tais saberes s�o fundamentais para a produ��o de pol�ticas p�blicas e educacionais que endossem e estreitem a rela��o entre fam�lia e escola e valorizem o discurso de quem vivencia o dia a dia dessa experi�ncia da surdez.
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Correspond�ncia
Bianca Salles Concei��o � Universidade Federal de S�o Carlos � Rod. Washington Luiz, s/n, CEP 13565-905, S�o Carlos, S�o Paulo, Brasil.
Notas
[1] Financiamento do trabalho: Coordena��o de Aperfei�oamento de Pessoal de N�vel Superior � CAPES
[2] �(...) escolas preparadas para o atendimento de alunos surdos com uma abordagem de inclus�o bil�ngue de forma a lhes propiciar um desenvolvimento que lhes permitisse um agir social de forma aut�noma (...)� (LACERDA, et al., 2016, p. 20). A partir dessa iniciativa, diversas a��es foram realizadas, como a contrata��o de profissionais (professores bil�ngues, instrutores surdos e int�rpretes educacionais) capacitados para proporcionar melhor aquisi��o e aprendizagem dos alunos em l�ngua de sinais.