Discursos de pais de crianças surdas: Educação Infantil e a presença da Libras[1]

Discourses of deaf children’s parents: early childhood education and the presence of Libras


Bianca Salles Conceição

Doutoranda na Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, São Paulo, Brasil.

bianca.csalles@gmail.com – https://orcid.org/0000-0003-2997-5576

 

Vanessa Regina de Oliveira Martins

Professora Doutora na Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, São Paulo, Brasil.

vanymartins@hotmail.com – https://orcid.org/0000-0003-3170-293X

 

Recebido em 28 de maio de 2019

Aprovado em 30 de outubro de 2019

Publicado em 17 de dezembro de 2019

 

RESUMO

Este artigo tem como objetivo apresentar um recorte de uma pesquisa de mestrado realizada no Programa de Pós-Graduação em Educação Especial da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). A pesquisa problematizou as escolhas linguísticas nas instruções escolares, com foco na Educação Infantil, feitas por pais e responsáveis de crianças surdas matriculadas nesta etapa educacional. O intuito da pesquisa foi identificar, a partir do discurso de pais e responsáveis, quais tipos de instrução escolar foram escolhidos para essas crianças, e se a Língua Brasileira de Sinais (Libras) era utilizada no processo de aprendizagem. A pesquisa refere-se a um estudo de caso com abordagem qualitativa descritiva. Utilizaram-se, como instrumento de coleta de dados, entrevistas semiestruturadas. Participaram da entrevista quatro mães e um pai de filhos surdos, estes inseridos em escolas com propostas bilíngues de três municípios do interior de São Paulo. As análises foram realizadas com base nas filosofias da diferença, especificamente nos estudos de Michel Foucault. Pode-se observar a entrada da língua de sinais no seio familiar e social, assim como a percepção dos familiares sobre a importância dessa língua nas práticas escolares. O discurso dos responsáveis a partir de um viés clínico ainda é presente, mas tem como base a preocupação com as barreiras sociais que os levaram a procurar soluções clínicas. Pode-se afirmar, portanto, que, apesar do discurso da surdez como deficiência ainda ser presente na fala dos pais, a língua de sinais tem ganhado visibilidade social e é de conhecimento das famílias.

Palavras-chave: Educação Bilíngue; Surdez; Família.

 

ABSTRACT

The purpose of this paper is to present a part of a Master’s research conducted under the Postgraduate Program in Special Education of the Federal University of São Carlos (UFSCar). The research has dealt with the linguistic choices made by parents and the people responsible for deaf children in the context of early childhood education. The purpose of the research has been to identify, based on the parents’ and the responsible people’s discourses, what sorts of educational instruction have been selected for such children, as well as if the Brazilian Sign Language (Libras) was used throughout the learning process. The research consists of a case study with a descriptive and qualitative approach. In order to collect the data, we have used semi-structured questionnaires. Four mothers and one father of deaf children enrolled in bilingual schools from three cities located in the countryside of the state of São Paulo have participated in the interview. All the analyses have been conducted based on the philosophies of difference, specifically on the studies of Michel Foucault. We have been able to observe the entrance of the sign language into the family and the social environment, as well as the realization, by the family members, of its importance for the school practices. The discourse of the people responsible for the children still carries a clinical bias, although based on the concern with the social barriers that lead the family members to seek clinical solutions. Therefore, we may claim that, although the discourse according to which deafness is a disability is still present at the parents’ utterances, sign language has been gaining social visibility and is known by the families.

Keywords: Bilingual Education; Deafness; Family.

Introdução

A partir da visão socioantropológica da surdez, a qual vê o sujeito surdo por sua diferença linguística e não pela lógica da falta trazida pela deficiência, temos a construção de uma perspectiva cultural na qual o sujeito se narra a partir da diferença. Essa singularidade produz formas subjetivas de vida, por meio de múltiplas identidades e com práticas culturais acionadas a partir da Língua Brasileira de Sinais (Libras). Essa proposta social da surdez se dá com base nas questões político-jurídicas, mais especificamente a partir da Lei nº 10.436/2002, que reconhece a Libras como meio de comunicação e expressão legal no país, e ainda pelo Decreto nº 5.626/2005, que a regulamenta e garante determinados direitos para esse público (BRASIL, 2002; 2005).

Com base nessa proposta, este estudo tem como objetivo trazer um recorte de uma dissertação de mestrado realizada no Programa de Pós-Graduação em Educação Especial na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), cuja problematização abordou, com base nos discursos de pais e responsáveis de crianças surdas matriculadas na educação infantil, as escolhas das instruções escolares. O intuito da pesquisa foi identificar, a partir desses discursos, quais tipos de instrução escolar foram escolhidos para essas crianças, e se a Língua Brasileira de Sinais (Libras) era vista como importante no processo de aprendizagem da Educação Infantil.

A pesquisa se justificou pela escassez de estudos que articulem a surdez e as vozes dos pais em relação à Educação Infantil, podendo auxiliar em pesquisas da área e como referencial teórico para a implementação de políticas públicas, assegurando a representatividade social dos familiares que se responsabilizam pelo público infantil surdo. Com isso, ressaltamos a importância da visibilidade e escuta dessas famílias.

Como base teórica, este artigo trouxe alguns conceitos foucaultianos. Tais conceitos são chaves de leitura para entendermos por quais focos de experiência essas famílias estão vivendo a surdez de seus filhos, como estão sendo conduzidos esses corpos surdos, quais suas relações com as instruções escolares e, ainda, como esses discursos sociais têm interferido nas escolhas familiares. Além disso, discute-se sobre família e educação e quais são as possibilidades vigentes para a instrução escolar de crianças surdas.

Após os caminhos metodológicos, baseados na genealogia, trazemos as análises, com dois eixos distintos: (1) a experiência familiar com a surdez e a infância surda em perspectivas múltiplas: da patologia aos aspectos culturais; e (2) a instituição escolar como espaço de reorganização de um novo discurso social da surdez e da Libras.

 

Filosofia e surdez

Iniciamos as discussões trazendo a teorização de três conceitos – “matriz de experiência”, “práticas discursivas” e “governamentalidade” –, que serão ampliados para entendermos as concepções da surdez como espaço de constituição subjetiva.

Primeiramente temos, na matriz de experiência, a formação do sujeito pela própria experiência, uma ação sobre si mesmo. Justifica-se ser uma matriz, a partir da construção foucaultiana, a apreensão de três eixos distintos: 1) o campo de saber como um pilar na construção de verdades; 2) o campo do poder e a produção de normas e comportamentos; e 3) o efeito desses dois produtos, que é a criação da ética. Dessas associações é que se constitui o eu-sujeito. Nomear-se-ia, assim, de “subjetividade” ou “construção ética” a relação que o sujeito realiza com o outro, com as instituições e, acima de tudo, consigo mesmo.

[...] queria dizer uma análise do que se poderia chamar de focos de experiência, nos quais se articulam uns sobre os outros: primeiro, as formas de um saber possível; segundo, as matrizes normativas de comportamento para os indivíduos; e enfim os modos de existência virtuais para sujeitos possíveis. Esses três elementos – formas de um saber possível, matrizes normativas de comportamento, modos de existência virtuais para sujeitos possíveis [...] é a articulação dessas três coisas que podemos chamar, creio, de "foco de experiência” (FOUCAULT, 2010a p. 4-5).

Ainda sobre esse conceito, Foucault (2010a) conta que estudou primeiro o eixo dos saberes e concluiu que, para observar a matriz como formação desses campos, “[...] não se devia procurar analisar o desenvolvimento ou o progresso dos conhecimentos, mas sim identificar quais eram as práticas discursivas que podiam constituir matrizes de conhecimentos possíveis [...]” (FOUCAULT, 2010a, p. 6).

As práticas discursivas, segundo Foucault (2009, p. 164), são “[...] um conjunto de regras anônimas, históricas, [...] no tempo e no espaço que definiram, numa época dada, e para uma área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa.” Em outras palavras, os discursos se dão como práticas no meio social, que seguem determinadas regras e constituem verdades em determinadas ocasiões. Segundo Fischer (2013), transformar o discurso em prática significa seguir essas regras em relação aos jogos de poder existentes e criar possibilidades de viver tais perspectivas de saber.

Esse conceito ainda estabelece que discurso, tanto o oral como sua prática, é tudo aquilo que o sujeito fala e se produz como política, constituindo uma realidade (FOUCAULT, 2010a). Dias (2018, p. 26) afirma que “as práticas discursivas interditam, separam dizeres à margem de uma determinada ordem, a partir de princípios específicos, mobilizam saberes e são produzidos por eles”.

Em relação ao eixo dos saberes, Foucault (2010a) afirma que enfatizou as normativas de comportamento. A análise se constituiu em estudar os procedimentos pelos quais se conduz a conduta dos outros, o que o autor tratará como governamentalidade. A questão passa a ser o governo de si mesmo, das condutas dos sujeitos, por quem ser governado, com qual objetivo e qual o método utilizado para determinada função (FOUCAULT, 2010a). Foucault (2010a, p. 6) procurou colocar “[...] a questão da norma de comportamento primeiramente em termos de poder, e de poder que se exerce, e analisar esse poder que se exerce como um campo de procedimentos de governo [...]” que se efetiva sobre a vida, interpela modos de existência e de condução de si mesmo promovendo ações. Por fim, o filósofo explica que tentou analisar o eixo do modo de constituição de vidas – a construção da ética – na qual o sujeito pode se reinventar a partir de resistências às imposições do eixo normativo dos comportamentos. Para isso, sempre que se falava em sujeito, o filósofo era levado a pensar nos modos de sujeição que o forjaram, ou melhor, por qual matriz de experiência o sujeito passou para orquestrar sua própria conduta.

Relacionando esses conceitos aos campos de saber da surdez e às matrizes de experiências possíveis nesse contexto, podem-se apontar duas ações emergentes: (1) a vertente clínica e (2) o viés socioantropológico. Com base no conceito de matriz de experiência, pode-se analisar como se constituem as vidas surdas na temporalidade social e histórica. Temos, primeiramente, o saber clínico, ligado a discursos médicos que dizem o lugar em que o surdo é projetado: com base nos decibéis que ele ouve ou não, esses discursos produzem a verdade de que a surdez é uma deficiência, criando uma questão negativa para o sujeito, o qual deve se aproximar do padrão “normal”, a saber, ouvinte e falante da língua oral.

Dessa forma, criam-se práticas atreladas às relações de poder de uma matriz, com a necessidade, por exemplo, de que o surdo use aparelhos auditivos, com o objetivo de chegar o mais próximo possível da norma de corpos ouvintes. Há certos comportamentos corporais conduzidos para esses sujeitos: não usar a língua de sinais, buscar a utilização de aparelhos auditivos ou implantes cocleares, não participar de associações e, ainda, não aceitar serem chamados de surdos, entre outros quesitos que conduzem um modo específico de ver a vida da pessoa surda. Como resultado desse processo, pode-se enxergar a relação entre os pilares de saber e poder que produzem a subjetividade surda, nomeando-o como “deficiente auditivo”, por exemplo.

Emerge então outro campo de saber, criando não só outros sujeitos, mas verdades que apresentam uma visão da diferença surda, sendo essa vertente denominada socioantropológica (SKLIAR, 2001).Com essa concepção, também se observam normas e práticas discursivas, dentre elas a criação da Lei nº 10.436/2002 (BRASIL, 2002) e do Decreto nº 5.626/2005 (BRASIL, 2005), que garantem os direitos dos surdos perante a sociedade, além de uma discursividade em relação à educação bilíngue (Libras/Português).

Fazendo o mesmo movimento, também podemos refletir sobre os sujeitos produzidos, numa visão socioantropológica. Com base nessa matriz, surgem afirmações de que a surdez se dá pelas diferenças linguístico-culturais entre o ser surdo e os ouvintes, contrapondo a surdez à perspectiva clínica da deficiência auditiva.

Portanto, para se encaixarem nessa outra norma pressuposta, os sujeitos se narram, segundo Sales et al. (2010), como falantes da língua de sinais: não se autodeclaram como deficientes auditivos, mas como surdos, participantes de movimentos sociais e de associações de surdos, defendendo o uso da Libras e os aspectos culturais nas ações propostas pela comunidade surda.

Por fim, dessa relação entre verdades e comportamentos produzidos, tem-se relacionado a essa matriz de experiência, na perspectiva socioantropológica, o sujeito surdo. Assim, “(...) as comunidades surdas não se posicionam como deficientes, pois a falta da audição não os descaracteriza, mas possibilita viver uma experiência visual distinta da do ouvinte, acompanhada do uso de uma língua visual-gestual” (MARTINS; LACERDA, 2016, p. 169).

Cabe salientar que não necessariamente os sujeitos que se encaixam nessas matrizes clínicas e socioantropológicas vão perpassar por todas as práticas constitutivas e as verdades que configuram os comportamentos descritos. O que é proposto, neste momento, é uma forma didática de abordar a surdez, além de expor alguns recursos pelos quais o sujeito possa se narrar e as subjetividades que se podem constituir a partir de um discurso médico e/ou cultural, numa produção de subjetividades plurais em múltiplas identidades, as quais tornam o sujeito único em sua existência.

Essas formas subjetivas de olhar a surdez nos auxiliarão a compreender o processo de construção e refacção dessa diferença, nas mais variadas formas em que elas podem ser encontradas nos discursos familiares sobre as instruções escolares, em relação aos corpos infantes surdos.

Educação Infantil e famílias de crianças surdas

Com base nas questões filosóficas trazidas, Souza (2018, p. 21) afirma que a humanidade sente a necessidade de se agrupar, de pertencer a um grupo: “a existência humana está vinculada aos agrupamentos coletivos, sendo que o originário é a família”. A autora ainda salienta que as instituições formadas para o controle de um governo submetem ao poder do homem a possibilidade de conduzir a conduta do outro, pela ação da governamentalidade.

O governo, como ação de condução em micro instituições – e não como a instituição macro na figura do Estado, que faz a gestão das vidas sociais –, está diluído em diversas instituições de poder, entre elas as escolares, as religiosas, as científicas, as jurídicas e, neste caso, as familiares, que vão sendo construídas em “teias de controle que se forjam na orientação da conduta dos outros, e isso se estabelece pelo agrupamento, daí a necessidade de pertencimento a um grupo” (SOUZA, 2018, p. 60). Dessa forma, então, o governo dissipa seu poder nas microrrelações, criando na família uma manifestação visível desse poder, conduzindo as crianças – por meio das culturas, tradições, crenças e educações –, produzindo maquinarias e sujeitando a infância, entre diversos aspectos, ao dispositivo da linguagem.

Nesse sentido, a linguagem seria um dos dispositivos de controle da governamentalidade, que vem conduzindo e normalizando os corpos das crianças, de forma geral, e os dos surdos, especificamente, observando as escolhas feitas pelas famílias e por quais matrizes de experiências se constituirão: se partirão de discursos clínicos e/ou socioantropológicos ou se serão, portanto, oralizadas e/ou sinalizantes, já que a língua é ponto fundamental no processo de governamentalidade.

Segundo Rodriguero e Yaegashi (2013), é fundamental entender a relação que os responsáveis mantêm com suas crianças surdas e como eles atuam diante de tal situação. As autoras ainda salientam a importância de os pais, antes de fazer qualquer escolha, entenderem essas condições e reconhecerem que também precisam se preparar para o desenvolvimento e a apropriação da língua de sinais, que contém ressignificações e sentidos de mundo distintos e desconhecidos até então.

A partir de uma visão socioantropológica, é pelo contato com a Libras que a criança adquirirá conceitos para a vida, pois se apropriará de uma língua que a humanizará e lhe permitirá dialogar e construir conhecimentos com outras pessoas. Em relação a essa aquisição de conhecimento e conteúdo, partindo da língua de sinais e de uma perspectiva cultural, “[...] afirma-se que o surdo se desenvolve a partir do contexto social dos surdos e não a partir das significações dadas pelos seus pais” (RODRIGUERO; YAEGASHI, 2013, p. 53). Outras pesquisas, por exemplo, a de Boscolo e Santos (2005), revelam que o discurso dos familiares em relação à língua de sinais começa a ter um novo aspecto, ganhando uma pequena aceitação social e importância para o desenvolvimento de seus filhos surdos.

Quando tratamos da relação entre a família de crianças surdas e a escola, o que acontece muitas vezes é um percurso confuso sobre as obrigações de cada instituição, sobre as relações de condução por meio da língua e, ainda, sobre as formas de interação que se devem estabelecer com essa criança, a depender de pôr quais matrizes de experiência perpassaram suas formações. Isso influi, diretamente, nas escolhas dos responsáveis de crianças surdas pela instrução que seus filhos terão e em qual escola serão matriculados.

Compartilhar a responsabilidade entre escola, professor, família e dispositivo linguístico, principalmente na faixa etária de desenvolvimento inicial das crianças, é, portanto, de extrema importância, tanto para o desenvolvimento das atividades como pela própria vivência desse aluno, visto que “a instituição precisa conhecer e trabalhar com as culturas plurais, dialogando com a riqueza/diversidade cultural das famílias e da comunidade” (BRASIL, 2018, p. 35).

Na Base Nacional Comum Curricular – BNCC (2018), a Educação Infantil é o início de todo o processo educacional da criança, o momento em que ela se distancia da instituição familiar como órgão “governamentalizador” e se aproxima de outro: o ambiente escolar, sendo “a primeira separação das crianças dos seus vínculos afetivos familiares para se incorporarem a uma situação de socialização estruturada” (BRASIL, 2018, p. 34).

Com a política proposta de uma educação para todos, a Educação Infantil precisou se adequar às crianças público-alvo da educação especial (PAEE), surgidas após a perspectiva inclusiva dada pela Declaração de Salamanca (BRASIL, 1994). Apesar de seu atendimento ser previsto pela Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva – PNEEI (BRASIL, 2008), nem sempre as especificidades desses sujeitos vêm sendo respeitadas.

Segundo Gurgel et al. (2016), oferecer uma Educação Infantil de qualidade, que resista à segregação da língua de sinais e sua desvalorização, é fundamental para crianças surdas, que necessitam de uma língua sem impedimento físico para o desenvolvimento de sua subjetividade. Lacerda e Góes (2007, p. 1) afirmam que esse ambiente escolar, que pensa nos educandos surdos, deve “[...] oferecer oportunidades para que a criança se torne bilíngue, esteja em interação com pares em sua língua e tenha contato com a comunidade surda, podendo se reconhecer como pertencentes a ela e (re)conhecer aspectos pertinentes à surdez”.

No que se refere aos educandos surdos, a estratégia 4.7 do Plano Nacional de Educação (PNE) garante a oferta de uma educação bilíngue, em Libras, como primeira língua, e Língua Portuguesa na modalidade escrita, como segunda, em escolas e classes bilíngues e em escolas inclusivas (BRASIL, 2014).

Destaca-se, sobre isso, uma pesquisa desenvolvida na cidade de Campinas sobre projetos bilíngues em Escolas-Polo[2] da rede pública. Nesse projeto, classes regulares de Educação Infantil e Ensino Fundamental I são nomeadas como “Salas língua de instrução Libras”, tendo a Libras como primeira língua e o Português escrito como segunda. Trata-se de uma proposta diferenciada que, segundo registros, tem tido grande sucesso em sua forma de atuação (LACERDA; SANTOS; MARTINS, 2016).

Gurgel et al. (2016, p. 73) afirmam que “[...] o programa inclusivo bilíngue enfrenta este duplo desafio: proporcionar aquisição da Libras e garantir que as lacunas deixadas no desenvolvimento cognitivo pela aquisição tardia de uma língua sejam preenchidas e superadas”. Essa aquisição tardia ocorre porque as crianças surdas são, em sua maioria, filhas de pais ouvintes e não têm, na maior parte dos casos, o uso de sua língua matriz em circulação nos ambientes familiares.

A aceitação dessa língua em ambientes escolares, mesmo associada a projetos bilíngues e salas de instrução Libras, ainda sofre uma grande resistência da política inclusiva radical, com afirmações contrárias ao que a proposta sugere (ALMEIDA, 2017; MORAIS, 2018). O discurso dessa resistência, baseado na Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva – PNEEPEI (BRASIL, 2008), é que essas salas, na verdade, levam a uma exclusão dos alunos surdos, por concentrarem apenas sujeitos com determinada particularidade linguística, mesmo que ainda sejam consideradas, pelo Decreto nº 5.626/2005, salas regulares de ensino.

Além das salas de instrução Libras, também se observa outro cenário nessa proposta bilíngue: nas salas em codocência (que contêm alunos surdos ao lado de ouvintes), há uma professora regente para os discentes ouvintes e uma professora regente bilíngue para os surdos. Enquanto a professora regente apresenta o conteúdo programático para os alunos ouvintes, a professora bilíngue faz o mesmo movimento, mas com material adaptado ao melhor desempenho das crianças surdas.

Martins e Lacerda (2016) afirmam que, na Educação Infantil, é de extrema importância haver, além da escola – constituindo o sujeito surdo por meio de um dispositivo linguístico favorável à aprendizagem –, o papel ativo da família nesse processo subjetivo. Nos casos em que surdos oriundos de famílias de ouvintes têm contato com a língua de sinais fora do lar, a apropriação da Libras não fica tão evidente, porque as representações sociais se fazem presentes em perspectivas clínicas, “[...] as quais os significam como deficientes e desconhecem a língua de sinais como meio de interação social” (MARTINS; LACERDA, 2016, p. 174).

Por esse cenário, nota-se o quanto as instituições familiar e escolar, especificamente na Educação Infantil, se organizam por meio de dispositivos sociais que refletem os saberes-poderes em construção, diante das verdades a serem firmadas. Tais ações constituem importantes ferramentas para a constituição da subjetividade das crianças surdas e da possibilidade de reconhecimento (ou não) de suas diferenças.

Metodologia

A pesquisa apresentada tratou de um estudo de campo de abordagem qualitativa do tipo descritiva. Pode-se dizer que o processo de investigação levou em conta o levantamento de dados sobre as motivações de um grupo (GIL, 2002), analisados à luz de um referencial teórico, a saber, a perspectiva discursiva das filosofias da diferença, especificamente em Michel Foucault. Os levantamentos desenvolvidos em relação à educação de crianças surdas pela voz dos familiares depararam-se com a escassez de pesquisas nessa direção. Nos bancos de dados pesquisados, foram encontrados poucos resultados ao se agruparem as palavras-chave “surdez”, “Educação Infantil” e “família”.

A etapa de educação básica escolhida pelas pesquisadoras também é de grande importância. A Educação Infantil é a fase em que, segundo Lacerda et al. (2016), a criança vivencia um momento de seu desenvolvimento, sendo a base para a formação de suas subjetividades, construídas por meio da relação que ela estabelece com os outros e pela vivência de diversos fatores do ambiente escolar, juntamente com experiências fora da escola, por meio do dispositivo linguagem.

Assim, para o desenvolvimento da revisão de literatura, tomamos por base as seguintes questões: Quais pontos os pais de crianças surdas levam em consideração na escolha do formato de Educação Infantil para seus filhos? A língua de sinais é ponto de partida para tal escolha?

Para responder tais inquietações, foram entrevistados cinco participantes do interior do estado de São Paulo, dos quais quatro eram mães e apenas um pai. A escolha dos entrevistados se baseou nos seguintes critérios: ter filhos surdos menores de 5 anos e 11 meses matriculados em escolas de Educação Infantil da rede pública no período de 2012 a 2017; ser maior de idade e ser o responsável pelas crianças surdas. A busca foi feita em associações de surdos e com a ajuda de profissionais de escolas públicas e entidades que atendem o público infantil surdo, já que a entrevista aconteceu no modo e local que os pais ou responsáveis preferiram.

Embora a pesquisa permitisse participação de pais com filhos matriculados em propostas distintas de Educação Infantil, tivemos acesso apenas àqueles cujos filhos estavam matriculados em escolas com propostas bilíngues (Libras/Língua Portuguesa). Os participantes P1 e P2 tinham seus filhos matriculados em escolas com projetos bilíngues da prefeitura, em salas de instrução Libras multisseriadas, que, apesar de abertas ao público, só tinham alunos surdos. Os filhos dos participantes P3, P4 e P5 igualmente faziam parte de projetos bilíngues, mas em salas com dupla docência (ouvintes e surdos matriculados).

Utilizou-se como instrumento de coleta um roteiro de entrevista semiestruturada. Pela lente foucaultiana, buscou-se identificar os critérios que levaram esses responsáveis a optar pelo uso da língua de sinais e/ou práticas de oralização para seus filhos, bem como a escolha do tipo de proposta de Educação Infantil, verificando, a partir de suas considerações, como eles percebem a ação da escola, na parceria com eles, na promoção da aquisição de linguagem, ou seja, as práticas bilíngues desenvolvidas para o ensino de seus filhos.

A proposta metodológica e a análise dos dados da pesquisa resultaram de uma análise genealógica, sendo ela “[...] uma forma histórica que dê conta da constituição dos saberes, dos discursos, dos domínios do objeto [...]” (FOUCAULT, 1979, p. 7), presente nas relações entre saber/poder e as verdades em que são constituídas. As falas dos pais refletem verdades que ainda fundamentam o campo da surdez e constroem um desejo de corpo e filho surdo.

Nessas entrevistas, foram analisados quais campos de saberes ou, ainda, por quais matrizes de experiências passaram esses pais e responsáveis para a construção de verdades as quais impactaram a subjetividade de seus filhos.

Resultados e discussões

Com as contribuições teóricas e a ativação dos conceitos descritos, traz-se, neste momento, uma articulação, de modo a apoiar tais estudos nas análises empreendidas. Com base nas entrevistas e nas considerações mais relevantes encontradas nas produções discursivas, foram desenvolvidos dois eixos: 1) a experiência familiar com a surdez e a infância surda em perspectivas múltiplas: da patologia aos aspectos culturais; 2) a instituição escolar como espaço de reorganização de um novo discurso social da surdez e da Libras.

A proposição do primeiro eixo se fundamenta na transcrição e análise dos dados das entrevistas, nas quais mais de um participante relatou o impacto da descoberta do diagnóstico e as ressignificações que enfrentou na tentativa de assimilar o que a surdez causava em seus filhos, tanto nas relações familiares quanto fora dela.

Só que, assim, eu queria usar todos os recursos possíveis que a tecnologia, que a medicina me dá, para o meu filho. Então se hoje é possível você ouvir alguns sons é por conta do implante. Não sei se ele vai ouvir perfeitamente, mas a mãe fez tudo que podia. Se ele quiser tirar o implante, tira (...), mas eu sinto uma rejeição por conta, um preconceito por conta dos surdos (Entrevista, P1, 2018).

Ficam explícitas, na citação acima, as duas experiências e narrativas sobre a surdez: de um lado, o desejo da mãe de que seu filho ouça e seja oralizado; de outro, o desejo de que seu filho faça parte da comunidade surda. Nas duas posições há o receio do possível preconceito social, baseado na experiência vivida em cada uma dessas matrizes.

Trazer a questão do olhar dessa família para o filho surdo e todas as discursividades sociais que seus enunciados produzem vai ao encontro dos objetivos desta pesquisa. Esse eixo aborda todo o movimento dos familiares, desde a descoberta do diagnóstico, passando pela preocupação com as possíveis barreiras linguísticas e salientando o esforço da família em proporcionar um futuro melhor, até a descoberta da Libras no seio escolar.

Verificou-se que todos os participantes deste estudo anseiam ver seus filhos desenvolvendo a oralidade, por acreditarem ser a forma mais comum segundo a maneira como veem o mundo, estando impregnados em um discurso essencialmente monolíngue, do Português como única língua nacional (e sua língua matriz), e vendo a surdez como deficiência a partir de uma visão médica: “[...] ele (médico) encaminhou para conseguir colocar o aparelho, né, depois encaminhou a gente para fazer “fono” e ter um atendimento nessa área [...] Ele tem aparelho” (Entrevista, P2, 2018).

Associa-se a necessidade desse reparo, portanto, à grande influência, nas relações de poder, da medicina com a população, fazendo um liame entre surdez e o que Foucault chamou, em seu livro Os anormais, referindo-se ao segundo grupo que constitui esse público: o indivíduo a corrigir. Foucault (2010b) afirma que, com base em todas as verdades construídas na sociedade por um viés médico, cria-se a necessidade da disciplinarização dos corpos até então “incorrigíveis”, sendo necessário estudar “as diferentes instituições de correção e as categorias de indivíduos a que elas se destinam” (p.255), sendo, nesse momento, as práticas de governamento realizadas tanto pela família quanto pela escola.

Nesse cenário, que leva os pais a práticas discursivas atreladas a uma perspectiva médica, percebe-se a dificuldade de aceitação da surdez, devido ao viés negativo que a sociedade agrega a essa singularidade. Nas entrevistas, foi possível reconhecer o choque familiar com a descoberta do diagnóstico de seus filhos e o quanto prevaleceu o sentimento de desespero e tristeza nas discursividades encontradas, como a P5 relata:

Aí deu que ele tinha severa profunda. Aí daquele dia pra cá, para mim foi o fim do mundo. Eu fiquei muito mal, eu e o pai dele. O pai dele foi junto. Foi um susto, um susto que a gente estava percebendo, mas quando teve certeza, né?... (Entrevista, P5, 2018).

Sendo assim, por questões históricas, culturais e sociais, familiares de crianças surdas, dentro da luta diária que envolve sentimentos e pressões, recolhem-se ao luto após o diagnóstico da surdez, mas, aos poucos, vão renovando suas esperanças. Nessa caminhada, eles se reencontram e se reconstroem com esse novo conhecimento acerca do inesperado.

Miller (1995) relata que, após o diagnóstico da surdez, os responsáveis por crianças surdas passam por diversos sentimentos, mas uma fase de extrema importância é quando buscam alternativas, o que representa um período de ação e movimentação, como podemos ver no trecho da entrevista abaixo:

A gente né... fez o Bera, que o Bera que falou que ele tem perda auditiva e aí ele encaminhou pra conseguir e colocar o aparelho, né, depois encaminhou a gente pra fazer “fono” [...] A gente está acompanhando, tanto na escola, tanto em casa, tanto no atendimento. [...] Quando ele passou... foi encaminhado para essa escola, a que ele está agora (Entrevista, P3, 2018).

A partir dessa busca diária das famílias por melhores oportunidades clínicas e educacionais para seus filhos, pode-se constatar nesses discursos, principalmente, que os pais não querem normalizar os filhos exclusivamente por um desejo isolado ou por uma questão meramente pessoal de aversão à deficiência. A maior frustração das famílias de crianças surdas é que a sociedade ainda trata a surdez como uma questão confusa, o que aumenta a angústia pelo desejo da fala. Há uma nova discursividade sobre o direito do surdo à Libras, mas as práticas discriminatórias ainda estão presentes, o que gera nos pais uma indefinição sobre o modo de lidar com seus filhos no que concerne à língua usada em casa.

Para além dos campos de saberes que associam a surdez a uma patologia, o que existe atualmente é a incerteza de uma acessibilidade social para as pessoas surdas. Mesmo com as legislações vigentes – que incluem a Lei nº 10.436/2002 e o Decreto nº 5.626/2005 –, e uma visibilidade cada vez maior da língua de sinais, ainda há muitas barreiras que marcam nos pais um anseio pela fala do Português em sua modalidade oral.

[...] eu acho que o Português é tão fundamental quanto, para a criança ser... ficar bem como adulta sabe? Porque não adianta a gente se iludir e achar que o mundo inteiro vai aprender Libras, que qualquer lugar que você vá a pessoa vai contratar um intérprete pra você, porque não vai. Se você estudar só em escola pública, ou ter a sorte de entrar numa Universidade Pública, porque como é seu direito, o governo dá um jeito [...] agora numa escola particular você não vai ter vaga, entendeu? [...] Eu acho que pode ser que algum dia a gente chegue nesse nível de civilidade, mas não é agora, na geração do meu filho. Então eu quero que ele seja uma pessoa incluída (Entrevista, P4, 2018).

Diante esse excerto, que reitera o desejo pela modalidade oral, conclui-se que, atualmente, o saber clínico pode ser colocado em outro patamar: vinculado à acessibilidade, ao lugar de trabalho desses sujeitos no futuro, aos estudos, às oportunidades de vida e à posição social que ocuparão na fase adulta se não tiverem o desenvolvimento oral. Esse temor assusta os pais e distancia a importância da Libras, ainda que mencionem o uso dela pelos filhos.

Martins e Lacerda (2016), diante dessa realidade da barreira social linguística, salientam a dificuldade de mudança desse discurso, gerado pela ação da perspectiva monolíngue essencializadora. Eles apresentam alguns acontecimentos, tomados como verdades absolutas, que se firmam como “saberes de práticas da construção de modos de existência [...] oprimindo outras verdades possíveis para se pensar o homem e o conhecimento” (MARTINS; LACERDA, 2016, p. 172-173). As pesquisadoras ainda afirmam que a história, travada por lutas, e as tais resistências dão abertura para a construção de novos campos de saber, e é nesse cenário de resistências surdas (MARTINS, 2008) que se tornam vigentes o uso da Libras e o campo de saber socioantropológico.

A referência à Libras e sua importância, observada nos discursos dessas famílias, apontam para o início de um olhar sobre as constituições subjetivas dos sujeitos surdos, com o reconhecimento e a aceitação das singularidades presentes e as especificidades da língua de sinais, ainda que paralela ao medo de ficar só com a Libras, pelas questões descritas acima.

Embora todos os pais pesquisados achem que a oralização seja de extrema importância, por motivos tanto pessoais quanto culturais ou, principalmente, sociais, a Libras também está presente na fala desses responsáveis, comprovando que essa língua, por meio de discursos científicos e jurídicos, tem ganhado visibilidade social, a ponto de se fazer presente no enunciado familiar.

A entrada da Libras nos discursos das famílias as faz ver a surdez sob outro paradigma. Assim, o que aparece é ora a matriz de experiência clínica, com suas verdades e comportamentos dependendo das questões sociais que a englobam, ora a experiência por um viés cultural, pois falam da importância da Libras na vida de seus filhos e do encontro destes com outros surdos, como relata P1: “[...] eu queria os dois pro meu filho, pra falar a verdade, [...] eu não faço só a Libras pra ele, também estimulo a leitura labial” (Entrevista, P1, 2018).

Quebrar essas ideias de normalidade após a introdução da Libras, e ainda aceitá-la, como no discurso desses pais entrevistados, certamente não foi uma tarefa simples, tendo em vista toda a construção histórica e social apresentada. Essa importância presente no discurso dos familiares é uma semente a cultivar. Acredita-se que, para as crianças não viverem em paradoxos, o mais assertivo para elas seja a educação bilíngue de surdos (LACERDA; SANTOS; MARTINS, 2016), subjetivando-se, mesmo que de plurais maneiras, em matrizes de experiências socioantropológicas em uma perspectiva do bilinguismo que tem a Libras como língua matriz, e, posteriormente, o Português em sua modalidade escrita.

Dessa forma, nota-se a presença de um novo campo de saber que constitui esse discurso dos responsáveis por essas crianças surdas. A partir do espaço político que a língua de sinais ganha, ela vai sendo aos poucos reconhecida na sociedade.

Então, assim, Libras é a língua materna dele [...] Porque quando eu aceitei que ia adotar o K., é o K. que eu liguei na vara da infância, eu comecei a fazer o curso online de Libras da USP [...] Então quando ele chegou na minha casa, ele não tinha língua, não se comunicava. Eu falo assim, que ele brincava, ele pegava todos os carrinhos da caixa, enfileirava e guardava, era essa a brincadeira. Ele não tinha a brincadeira do faz de conta sabe? Que é importante, pegar o carrinho, subir, descer, bater... não existia. Então, ele aprender a Libras foi um salto gigante. A gente percebeu, uns dois meses depois que ele estava em casa, que ele entendeu que a Libras era uma forma de comunicação [...] (Entrevista, P4, 2018).

Percebe-se, pelo relato acima, o quanto as crianças surdas desenvolveram seu aprendizado a partir do contato com a língua de sinais, como isso ajudou na construção do faz de conta e da abstração e do quanto esse processo é muito mais rápido (RODRIGUERO; YAEGASHI, 2013) do que a oralização, que é uma forma imposta socialmente por uma língua que não os representa, tanto por questões biológicas quanto culturais e identitárias.

Nas entrevistas, nenhum dos cinco pais apresentou resistência à Libras. Quatro participantes que não eram fluentes entraram em diferentes cursos – na internet, em centros de reabilitação ou nas próprias escolas – para tentar aprender e melhorar a comunicação com os filhos. Goldfeld (1997) salienta a importância do aprendizado por parte da instituição familiar em relação à língua de sinais, para que haja uma interação de sucesso entre seus integrantes.

Essa valorização por parte dos responsáveis das crianças surdas só tem a ajudar nesse desenvolvimento. O seu reconhecimento é muito mais do que somente o assentimento da língua: é o entendimento da surdez – ou, ao menos, o início dessa compreensão – e a aceitação da diferença de seus filhos.

Assim, pode-se questionar: que local, então, possibilitou essa busca por alternativas de desenvolvimento das crianças surdas, gerando um novo olhar para o surdo? A resposta é: as instituições escolares. Essa nova discursividade da surdez, de um olhar não patológico, vem das narrativas e de práticas discursivas criadas na escola, subjetivando os sujeitos por uma matriz de experiência socioantropológica.

A escola, nesse contexto, possibilitou muito além de aquisição de linguagem para as crianças: oportunizou um lugar de encontro, de reorganização da surdez, tanto para a família reconhecer essa diferença linguística, rompendo os padrões da normalidade, quanto para a própria criança. Além disso, no nível de escolaridade escolhido para esta pesquisa – a Educação Infantil –, os pais são ainda mais presentes no cotidiano escolar, não só porque as crianças são menores e, portanto, mais dependentes, mas também por causa da surdez delas (RODRIGUERO; YAEGASHI, 2013).

Na sala bilíngue, a professora só fala em Libras. São três alunos na sala dele. Os três surdos e os três só Libras [...] Eu acho importante, muito importante e não sei muita coisa, eu acredito que o que vai ser ensinado para uma criança ouvinte vai ser ensinado para uma criança surda, para o meu filho, eu acredito nisso (Entrevista, P1, 2018).

A reorganização da surdez, por parte da escola, rompe seus muros e entra em contato diretamente com as instituições familiares. Em relação aos responsáveis pelas crianças surdas, a escola com projetos bilíngues se constitui em espaço de acolhida da família sem evocar o discurso clínico. Quando a criança retorna para casa, tendo contato com a língua de sinais, leva essa família a se deslocar das relações de poder atreladas a normas “ouvintistas” e oralistas em direção a novas construções interativas com os sujeitos surdos e, no caso desta pesquisa, também procurando aprender Libras.

Não se pode negar a importância desse ambiente escolar, mais especificamente da Educação Infantil, que tem a “responsabilidade de contribuir para o desenvolvimento de linguagem de qualquer criança” (GURGEL, et al., 2016, p. 73) apesar de toda sua construção histórica já apresentada nesse estudo e do difícil entendimento dessa etapa educacional pela sociedade.

Lacerda (2000) afirma que o sujeito deve ser exposto, o mais cedo possível, à língua de sinais, “identificada como uma língua passível de ser adquirida por ele sem que sejam necessárias condições especiais de ‘aprendizagem’. Tal proposta educacional permite o desenvolvimento rico e pleno da linguagem, possibilitando ao surdo um desenvolvimento integral” (LACERDA, 2000, p. 53).

Organizar uma Educação Infantil bilíngue de qualidade para essas crianças surdas, porém, não é tarefa simples, pois requer uma reorganização escolar, funcionários e profissionais capacitados, currículos adaptados e atividades visuais que incluam de fato essas crianças (GURGEL, et.al. 2016). “Nossa, que escola, né? Muito boa! [...] Ela mudou até aqui dentro de casa, ela era muito agitada [...] foi onde ela está tendo muita afinidade, tanto com a professora como com todo mundo lá” (Entrevista, P2, 2018).

A partir dos relatos de Gurgel et al. (2016), que se referem à Educação Infantil bilíngue, pode-se concluir que as práticas dos profissionais envolvidos nesse processo e a promoção de um ambiente bilíngue de qualidade constituem uma tarefa complexa, principalmente por causa da responsabilidade da Educação Infantil como base de ensino e aprendizagem, seja de crianças ouvintes ou surdas. Para estas últimas, há ainda mais uma questão: trata-se de promover uma língua matriz a qual não é, na maioria das situações, utilizada até que elas entrem na escola.

Conclusão

Assim, com base no arcabouço teórico e nas análises desenvolvidas, verificou-se que o discurso da surdez como deficiência auditiva, advindo de um viés médico, ainda é muito presente, até por uma construção histórica. Todos os pais entrevistados salientaram a importância da língua oral, o que mostra o quanto a sociedade ainda está ligada à ideia da surdez como deficiência e como tem dificuldade de aceitar as diferenças. Os motivos desse pensamento variam de anseios particulares até preocupações com barreiras sociolinguísticas.

Mesmo com essa construção social sobre a surdez, o que chamou muito a atenção foi a preocupação desses pais em proporcionar todos os recursos possíveis, seja por orientações advindas de um discurso clínico ou cultural, seja por profissionais de Saúde, seja pela Educação, atravessando fronteiras para uma real inclusão, verificando-se ora matrizes de experiências clínicas, ora a valorização dos focos de experiência socioantropológicos.

Apesar das verdades enraizadas a partir de uma norma ouvinte, há uma mudança de discurso: todos os pais reconhecem a importância da língua de sinais no desenvolvimento das crianças, pois perceberam, tanto no convívio doméstico quanto na escola bilíngue, mudanças que levaram ao aprimoramento da comunicação, imaginação e entendimento de conceitos abstratos, apontando para a criação de sua subjetividade.

No que diz respeito às instruções escolares, a escola com projetos bilíngues mostrou ser um novo espaço de constituição e reorganização, tanto para as subjetivações das crianças surdas quanto na relação comunicativa com seus familiares. A partir da instrução em língua de sinais para todos os filhos dos participantes desta pesquisa, pôde-se ver a entrada de um novo campo de saber: a língua de sinais constituindo vidas surdas.

Verificou-se a ascensão da Libras, possibilitando um novo olhar para essa experiência gesto-visual e aprofundando o reconhecimento e o desenvolvimento dessas crianças por sua língua matriz, que podem, no ambiente escolar, entrar em contato com experiências outras que enxergam a Libras como fator principal da constituição de um saber socioantropológico e da refacção dos sujeitos, tanto dos infantes como dos seus responsáveis.

Acredita-se que essa mudança de discursividades é o início de uma grande caminhada para a valorização da Libras como uma língua para toda a sociedade, e o presente trabalho é apenas o começo desse diálogo, sendo uma pesquisa que, para o meio social, teoriza e afirma a importância da Libras no desenvolvimento das crianças surdas na relação familiar.

Ressalte-se, ainda, a necessidade de mais estudos que tragam à cena as vozes dos pais e suas práticas na constituição relacional com seus filhos. Tais saberes são fundamentais para a produção de políticas públicas e educacionais que endossem e estreitem a relação entre família e escola e valorizem o discurso de quem vivencia o dia a dia dessa experiência da surdez.

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Correspondência

Bianca Salles ConceiçãoUniversidade Federal de São Carlos — Rod. Washington Luiz, s/n, CEP 13565-905, São Carlos, São Paulo, Brasil.

 

 

Notas



[1] Financiamento do trabalho: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES

[2] “(...) escolas preparadas para o atendimento de alunos surdos com uma abordagem de inclusão bilíngue de forma a lhes propiciar um desenvolvimento que lhes permitisse um agir social de forma autônoma (...)” (LACERDA, et al., 2016, p. 20). A partir dessa iniciativa, diversas ações foram realizadas, como a contratação de profissionais (professores bilíngues, instrutores surdos e intérpretes educacionais) capacitados para proporcionar melhor aquisição e aprendizagem dos alunos em língua de sinais.