Os círculos de cultura na educação infantil: construindo práticas pedagógicas dialógicas

 

The circles of culture in child education: building dialogical pedagogical practices

 

Marta Regina Paulo da Silva

Docente-Pesquisadora da Universidade Municipal de São Caetano do Sul, São Paulo, Brasil.

martarps@uol.com.br – http://orcid.org/0000-0002-8574-760X

 

Renata Fernandes Borrozzino Marques

Professora de Educação Básica da Rede Municipal de Educação de Santo André, São Paulo, Brasil

renatalerborrozzino@hotmail.com – http://orcid.org/0000-0002-4582-6987

 

Recebido em 25 de janeiro de 2019

Aprovado em 24 de setembro de 2019

Publicado em 17 de dezembro de 2019

 

Resumo

Este artigo apresenta os resultados de uma pesquisa realizada com crianças de 5 anos de idade em uma pré-escola municipal de Santo André/SP. Trata-se de uma pesquisa de intervenção que teve como objetivo construir uma prática pedagógica dialógica a partir dos círculos de cultura propostos por Paulo Freire. Parte do pressuposto de que as crianças leem e comunicam o mundo desde que nascem, através de múltiplas linguagens. Contudo, em uma sociedade adultocêntrica e grafocêntrica como a brasileira, suas vozes terminam por serem silenciadas nas diferentes instâncias de socialização, dentre elas as educacionais. A pesquisa problematizou o silenciamento imposto às crianças e a urgência em escutá-las, tendo como referencial teórico os estudos de Paulo Freire em interlocução com pesquisadores(as) da infância. A intervenção se deu a partir dos círculos de cultura, com o tema gerador relações de gênero, visto ter sido este tema recorrente entre as crianças e dada a sua relevância frente à sociedade heteronormativa. Os resultados demonstram que a leitura que as crianças fazem de mundo está impregnada de suas vivências cotidianas, onde em um movimento dinâmico se apropriam, confrontam e ressignificam a cultura. No coletivo, através dos círculos, colocaram em debate sua visão de mundo acerca da temática, o que possibilitou repensarem a oposição binária em relação aos papeis sociais atribuídos a homens e mulheres. Isso revela a potência do trabalho com os círculos de cultura com as crianças, evidenciando que uma prática educativa marcada pela amorosidade e pelo diálogo abre caminho para uma educação crítico-libertadora.

Palavras-chave: Educação Infantil; Círculos de Cultura; Prática pedagógica dialógica.

ABSTRACT

This article presents the results of a survey conducted with 5-year-old children in a municipal pre-school in Santo André/SP. It is a research of intervention, whose objective was to construct a pedagogical practice dialogic from the circles of culture proposed by Paulo Freire. It assumes that children read and communicate the world from the moment they are born through multiple languages. However, in an adultcentric and grafocentric society such as the Brazilian, their voices end up being silenced in the different instances of socialization, among them the educational ones. The research problematized the silencing imposed on the children and the urgency to listen to them, having as theoretical reference the studies of Paulo Freire in interlocution with researchers of the childhood. The intervention took place from the circles of culture, with the theme generator gender relations, since this theme was recurrent among children and given its relevance to the heteronormative society. The results show that children’s reading of the world is imbued with their everyday experiences, where in a dynamic movement they appropriate, confront and rename culture. In the collective, through the circles, they put in debate their worldview on the subject, which made it possible to rethink the binary opposition to the social roles attributed to men and women. This reveals the power of working with circles of culture with children, showing that an educational practice marked amorousness and dialogue opens the way to a critical-liberating education.

Keywords: Child education; Circles of Culture; Dialogical pedagogical practices.

Introdução

            Ler o mundo dialeticamente, considerando nossos condicionamentos, mas também nosso potencial criador, foi um dentre os tantos ensinamentos do educador brasileiro Paulo Freire. Sendo seres de transformação, vivemos em um processo permanente de leitura do mundo. Leitura que deve ser cada vez mais crítica, de modo a desnaturalizar as diferentes formas de opressão, estas ideologicamente construídas.

            Vivemos um momento histórico em que se observa o recrudescimento do conservadorismo, tanto no panorama nacional como internacional. Como consequência, configura-se um cenário marcado por ataques constantes às conquistas sociais e aos direitos humanos, o que termina por penalizar, sobretudo, as classes populares, os(as) negros(as), indígenas, mulheres, a comunidade LGBT (Lésbicas, GaysBissexuais e Transgêneros), e é claro, as crianças. Nesse movimento, legitima-se formas de repressão que implicam em violência contra o(a) outro(a). Vivemos a barbárie.

Frente a este cenário, educar contra a barbárie se coloca como um desafio aos(às) educadores(as), o que significa “[...] colocar o presente numa situação crítica e compreender que o passado não precisaria ter sido o que foi, o presente pode ser diferente do que é, e o futuro pode mudar a direção que parece inevitável” (KRAMER, 2003, p. 95). Indignar-se, lutar, resistir, são as palavras de ordem.

Assistimos no campo da educação sua crescente mercantilização; a tentativa de silenciar as vozes de professores(as), estudantes, pesquisadores(as) que realizam uma leitura crítica da realidade; desqualificam-se os saberes e fazeres construídos no interior das instituições educacionais enquanto se organizam materiais didáticos padronizados e marcadamente eurocêntricos. Contudo, é preciso atentar que, em meio a este panorama, há vozes que resistem, e lutam. Dentre elas estão, certamente, as de muitos(as) educadores(as), mas também as das crianças.

Vozes infantis que foram historicamente silenciadas, sobretudo a partir de imagens que as consideram tão somente como “falta”: seres da ausência da razão, tábula rasa, adultos em miniatura, imaturos. Frente a esta compreensão, a infância foi definida como um período passageiro, como idade da natureza e ainda, como fase de preparação para a vida adulta. E, embora a criança hoje seja reconhecida como um sujeito de direitos, um ser ativo e inventivo, que não apenas reproduz, mas que também produz cultura, na prática pedagógica ainda prevalece o discurso dominante da criança como natureza pura, inocente, imatura, tão somente reprodutora de cultura e biologicamente determinada por estágios universais cuja referência é o adulto. Para Sarmento (2007, p. 25):

A infância tem sofrido um processo idêntico de ocultação. Esse processo decorre das concepções historicamente construídas sobre as crianças e dos modos como elas foram inscritas em imagens sociais que tanto esclarecem sobre seus produtores [..], quanto ocultam a realidade dos mundos sociais e culturais da criança, na complexidade da sua existência social.

Essas compreensões acerca da criança e da infância tiveram como consequência a construção de instituições, no caso da educação infantil, que terminaram por polarizar, a partir de um recorte de classe social, assistência e educação, tendo como inspiração o modelo da sociedade capitalista. Nesses espaços pouco se considera as especificidades das crianças e suas linguagens, prevalecendo propostas pedagógicas que, marcadas por uma relação antidialógica, pretendem impor sobre elas a visão de mundo do(a) adulto(a).

As crianças são sujeitos de direitos, participantes ativas na sociedade e, portanto, têm direito à palavra. Dar visibilidade a estas vozes, fazerem ecoarem de modo a encontrarem outras tantas vozes e, no coletivo, pensar e construir uma outra educação, emancipadora, que rompa com a educação bancária tão denunciada por Freire e que, insistentemente, povoa o ambiente escolar, é uma exigência de nosso tempo e um compromisso com as infâncias.

Nesta perspectiva é que se insere o trabalho que aqui apresentamos, no intuito de tornar visível algumas destas vozes. Trata-se de uma pesquisa de mestrado (MARQUES, 2018), que teve por objetivo construir uma prática pedagógica dialógica com crianças de 5 anos de idade, em uma pré-escola municipal de Santo André/SP, a partir dos círculos de cultura. Frente a tal objetivo, optou-se por uma pesquisa de intervenção, tendo como referencial teórico a obra de Paulo Freire em interlocução com os estudos da infância.

O direito à palavra: as vozes infantis                                                       

As crianças leem e comunicam o mundo desde que nascem, através de suas mais diversas linguagens: o choro, os gestos, o olhar, o desenho, a fala, a pintura, as brincadeiras e tantas outras. São suas “cem linguagens”, como tão poeticamente nos anuncia Loris Malaguzzi (1999). No entanto, como denuncia este mesmo educador, a escola e a cultura lhes roubam noventa e nove. Separam corpo e pensamento.

Para elas, pensar e fazer não se dicotomizam, não há um pensar e depois fazer, assim como a “palavra verdadeira” para Freire (2003) não dicotomiza ação e reflexão. Meninas e meninos atuam curiosamente sobre os objetos de conhecimento na perspectiva de transformar criativamente as informações do mundo e, desse modo, responder às suas próprias preocupações. Nesse movimento produzem as culturas infantis. Entretanto, ainda se observa em nossa sociedade a supremacia de uma única forma de expressão, a escrita, negando às crianças experiências com as tantas outras linguagens. Silenciam-se os corpos.

O silenciamento dos corpos infantis é o retrato da sociedade adultocêntrica, que nega a produção cultural das crianças. Freire, em Pedagogia do Oprimido (2003), discute a invasão cultural como uma forma de colonialismo em que o dominador desqualifica a cultura do(a) dominado(a) e impõe sobre ele(a) sua própria cultura, tornando inautêntico o próprio ser que tem sua cultura invadida. Para este educador, as relações entre pai/mãe e filho(a) refletem as condições autoritárias e dominadoras que penetram nos lares intensificando o clima de opressão e, esta influência do lar “[...] se alonga na experiência da escola. Nela os educandos cedo descobrem que, como no lar, para conquistar alguma satisfação tem de adaptar-se aos preceitos verticalmente estabelecidos. E um destes preceitos é não pensar (FREIRE, 2003, p. 152).

A invasão cultural da infância, portanto, se expressa pelo silenciamento de meninos e meninas, pela imposição da leitura de mundo do(a) adulto(a), pela negação das vozes infantis, tornando inautêntico o agir, o pensar e o sentir das crianças (Fasano, 2010). Respeitar a leitura de mundo que fazem, implica no rompimento desse silenciamento, reconhecendo-as como participantes ativas da e na sociedade, o que, por sua vez, remete à construção de uma relação dialógica com elas.

Freire, já no final da década de 1950, denunciava o quanto as experiências de decisão são negadas às crianças em uma sociedade que exige delas exatamente decisão. Defendia que elas participassem, desde cedo, das decisões referentes à sua vida, à família e à comunidade, na perspectiva da construção de uma sociedade mais democrática (FREIRE, 2001, p. 46). Sua denúncia à educação familiar e escolar demonstra as relações autoritárias, antidialógicas, e, portanto, opressoras, às quais estão submetidas. A criança tem voz, que precisa ser escutada e considerada.

Aprendemos com Freire (2003) que a educação deve ser construída com os(as) oprimidos(as) e não para os(as) oprimidos(as), para isso é preciso abrir-se ao diálogo. A educação infantil, no Brasil, sempre se fortaleceu entre o assistencialismo e a instrução, marcada por um modelo de sociedade burguesa. Pouco se olhou para o mundo das crianças, mas para o jeito que o(a) adulto(a) via o mundo delas.

Pensar os meninos e as meninas em sua alteridade, oportunizando espaços para que realmente sejam considerados(as) como sujeitos ativos, implica em reconhecer que a infância não é apenas uma etapa biológica pela qual o ser humano passa, mas é a própria condição da existência humana (AGAMBEN, 2005), o que nos faz continuar a viver, construindo outros sentidos e colocando-nos cotidianamente como criadores(as) de cultura. A condição de “sem voz” é o que nos torna abertos(as) ao mundo, em um eterno aprendizado do “ser mais”. 

Negar a palavra é negar o direito que todos(as) nós temos de nos humanizarmos, é negar nossa vocação ontológica de “ser mais”. A palavra é criadora, dinâmica, pois não está descolada da existência. Ela é entendida aqui como palavra e ação, portanto, viva, que diz e transforma o mundo. Assim, não há libertação sem o domínio da linguagem, visto que, ao ler o mundo criticamente, nos comprometemos com ele e com sua transformação, na perspectiva utópica de não mais haver opressores(as) e oprimidos(as). Pela palavra construímos e reconstruímos a nossa história diariamente, e as crianças fazem parte deste processo:

As crianças precisam crescer no exercício desta capacidade de pensar, de indagar-se e de indagar, de duvidar, de experimentar hipóteses de ação, de programar e de não apenas seguir os programas a elas, mais do que propostos, impostos. As crianças precisam de ter assegurado o direito de aprender a decidir, o que se faz decidindo. (Freire, 2000a, p. 58-59)

A leitura de mundo não se dá no vazio, mas no convívio com a realidade, na interação com os(as) outros(as). Dessa forma, a linguagem constitui-se como categoria de compreensão das realidades, em que observamos que nossa voz carrega muitas vozes, sendo a dialogicidade o espaço de construção do humano. Como organizadora e criadora do mundo, a linguagem não pode existir sem um pensar, e ambos, linguagem e pensamento, não podem existir sem uma realidade a que se referem.

Nessa perspectiva, faz-se necessário, no trabalho educativo com as crianças, que o(a)educador(a) seja capaz de conhecer as condições em que elas constituem seu pensamento e suas linguagens, o que implica em um olhar e uma escuta sensível, em um gesto de amorosidade. Amorosidade como radicalidade de uma exigência ética, que se caracteriza como uma intercomunicação entre duas consciências que se respeitam. Daí que, para Freire (2003), não há diálogo se não houver amor que o infunda. Não há educação crítico-libertadora que se dê fora do diálogo e da amorosidade. Assim, cabe aos(às) educadores(as) pensarem o trabalho com as crianças a partir de suas histórias, de seus saberes, e de seus contextos socioculturais, potencializando suas experiências com o mundo. Nesse trabalho, a amorosidade se materializa em práticas pedagógicas dialógicas que se conectam com a vida.

A construção da autonomia solicita o exercício do diálogo na educação das crianças desde bem pequenas, de modo a exercitarem o falar e o escutar o(a) outro(a). Nesse sentido, é que acreditamos que os círculos de cultura podem configurar-se como importante espaço de aprendizagem na educação infantil, uma vez que, a partir de uma dimensão problematizadora, pode instigar a reflexão e a ação sobre a realidade.

Pesquisa de intervenção: Os círculos de cultura como dispositivo pedagógico na educação infantil

            Na década de sessenta, Paulo Freire desenvolveu uma proposta de educação para alfabetizar jovens e adultos(as). Alfabetizar para além do uso instrumental da linguagem oral e escrita. Questionando o conceito de escola, historicamente marcado pela ideia de passividade do(a) estudante, propôs o trabalho com os círculos de cultura. Uma prática que tinha como objetivo escutar o(a) educando(a) de modo que este(a) reconhecesse seu direito à palavra e pudesse, no coletivo, compreender e transformar suas realidades sociais, culturais e históricas. No centro desse processo estava o diálogo, que visava a conscientização dos(as) discentes acerca do seu papel na sociedade. Contrário à educação bancária, nessa perspectiva educador(a) e educando(a) aprendem e ensinam ao mesmo tempo, sendo o(a) docente um(a) coordenador(a) de debates. Como pressuposto, a certeza de que “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 2003, p. 68). O(a) educando(a) aprendia a ler a palavra à medida que (re)lia o mundo.

Embora Freire tenha pensado esse trabalho para jovens e adultos(as), sua proposta está intimamente ligada à escuta atenta e sensível do(a) educando(a), ao respeito à sua cultura, ao reconhecimento do direito à sua palavra, à perspectiva da construção de uma educação para a libertação; o que nos anima a pensá-la, (re)inventá-la, para a educação de crianças pequenas. O próprio Freire defendia também para elas o direito a uma educação que valorizasse suas culturas:

O que tenho dito sem cansar, e redito, é que não podemos deixar de lado, desprezado como algo imprestável, o que educandos, sejam crianças chegando à escola ou jovens e adultos a centros de educação popular, trazem consigo de compreensão do mundo, nas mais variadas dimensões de sua prática na prática social de que fazem parte. (FREIRE, 1992, p. 44)

As crianças estão a pronunciar o mundo. É preciso escutá-la; observar atentamente cada escolha, cada gesto, cada palavra, o que implica em silenciar-se para escutar suas vozes. Importante ressaltar que este silêncio não significa omissão ou abandono, mas um profundo respeito à capacidade das crianças, às suas formas de pensar, aos seus jeitos de ser (SILVA, 2017).

Como defende Freire (1996), o silêncio é essencial no espaço da comunicação, dado que, escutar o(a) outro(a) possibilita a quem escuta acompanhar o movimento interno do pensamento daquele que fala e este(a), por sua vez, é capaz de escutar a dúvida, a indagação e a criação daquele(a) que o(a) escutou. Precisamos aprender a escutar para saber falar com as crianças sem sermos os(as) únicos(as) detentores(as) da palavra. Nesse sentido, concordamos com Fortunatti (2017, p. 18) que:

Se a aventura da educação passa pela experiência do mundo antes da experiência da palavra, a primeira reflexão que gostaríamos de propor diz respeito ao fato de que é fundamental oferecer um quadro ecológico para o encontro, a relação e o compartilhar que se determinam entre crianças e adultos no contexto educativo.

O círculo de cultura é um espaço formativo fortemente marcado pela dialogicidade e amparado na premissa de que “sem o outro não há vozes (...) Sem o outro não há ecos” (GERALDI, 2005, p. 17). Ele propõe o rompimento com a cultura do silenciamento e a concretização de um diálogo transformador. Um modo de pensar dialeticamente todas as ações, o que implica em saber escutar, questionar, analisar dentro de um coletivo, já que a libertação se dá no coletivo. Todos e todas têm o direito de dizer a sua palavra. Nele os temas geradores partem do contexto do próprio grupo e são debatidos por ele, no intuito de lerem criticamente o mundo. Nesse sentido, é que os círculos de cultura podem configurar-se como uma possibilidade de escuta das vozes infantis, mas como fazê-lo com crianças pequenas? Como (re)inventá-lo?

Frente a este desafio, a investigação aqui apresentada teve como metodologia a pesquisa de intervenção no cotidiano escolar, em razão do objeto de estudo ser a própria prática pedagógica de uma das autoras deste trabalho. Realizar tal pesquisa exigiu certo distanciamento da prática ao analisar as intervenções, ao mesmo tempo em que houve a aproximação dela, pois ao analisá-la estava em foco o (re)pensá-la com intuito de construir novas respostas às questões educacionais.

A investigação da própria prática pelos(as) professores(as) é defendida por Zeichner e Diniz-Pereira (2005), que reconhecem nela um alto potencial para a produção de conhecimento e transformação social; isso porque, os conhecimentos produzidos nestas investigações são capazes de contribuir com a prática de outros(as) profissionais, além de subsidiar a elaboração de políticas educacionais. No entanto, tal abordagem metodológica é muito recente na área da educação, sendo mais comum encontrá-la na medicina e psicologia, sobretudo por seu caráter aplicado, cujo objetivo é o de contribuir para a resolução de problemas práticos. Nesta perspectiva, acreditamos que ela possa contribuir para mudanças na prática educativa, possibilitando novas tomadas de decisão e proporcionando impactos no cotidiano escolar, uma vez que, procura romper com as dicotomias entre teoria e prática, discurso e ação, ensino e pesquisa, ciência e política.

Segundo Andrade, Morato e Schmidt (2007, p. 1), assim como na pesquisa-ação, na pesquisa de intervenção há um caráter político, com objetivos de desconstruir “lugares de poder-saber instituídos”. Contudo, nesta última, é o(a) pesquisador(a) quem identifica o problema e decide de que forma resolvê-lo. Isto não significa, porém, que ele(a) fica fechado(a) em si mesmo(a), sem reconhecer o(a) outro(a) na pesquisa, ao contrário, deve estar aberto(a) para questionamentos, críticas e sugestões por parte dos(as) envolvidos(as) que podem contribuir na construção da sua investigação.

Freire (1996) pontua, como um dos saberes necessários à prática educativa, a reflexão crítica do(a) educador(a) sobre a sua própria prática, o que significa estar sempre em um pensar e repensar sobre seu trabalho, “de pensar certo”, de ter um movimento dialético entre o fazer e o pensar sobre o fazer, visto que o “pensar certo” não nasce como mágica na vida dos(as) docentes, faz-se em um permanente exercício no processo formador do(a) educador(a). Ao refletir sobre a sua prática, voltando-se para ela, ao perceber a ingenuidade, vai tornando-a crítica, o que possibilita revê-la. “Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino”, nos esclarece Freire (1996, p. 32). A pesquisa nasce da indagação do próprio ato de ensinar, porque enquanto ensina, o(a) educador(a) pesquisa para melhor compreender o objeto de estudo e então intervir e anunciar a novidade.

Nesta investigação, o problema de pesquisa emergiu da prática pedagógica de uma das autoras deste texto. Inquietada com o silenciamento imposto às crianças em sua realidade na Educação Infantil, o que fazia com que as crianças de 5 anos iniciassem o ano letivo com receio em opinar, posicionar-se frente a algum assunto ou contar suas experiências, observou a necessidade de construir com elas uma prática dialógica. A pesquisa de intervenção, então, apresentou-se como uma opção metodológica adequada, dado que, buscava construir respostas à uma demanda de sua prática educativa, o que vai ao encontro da perspectiva freireana de intervir no mundo para transformá-lo (FREIRE, 1996).

Para realizar a pesquisa de intervenção, Damiani et al. (2013) orientam a elaboração de relatórios. Estes devem ser feitos com os detalhes das suas características investigativas para que não sejam confundidos com relatos de experiência. Duas dimensões devem estar presentes: o método de intervenção, aquele utilizado na prática pedagógica, e o método de avaliação da intervenção, que trata da investigação propriamente dita, os instrumentos de coleta e análise dos dados, sempre dialogando com o referencial teórico.

No caso desta pesquisa, durante o primeiro semestre de 2017 foi realizada a observação do cotidiano das crianças em todas as atividades propostas pela professora. Foram meses de convivência. As observações eram anotadas em um diário de campo, cujo registro possibilitou o levantamento do “universo vocabular” (FREIRE, 2002; 2003) das crianças, no intuito de conhecer suas expressões particulares, seus desejos, suas inquietações, seu modo de ler e dizer o mundo. 

As conversas e a convivência são, como no caso da etnografia, os meios principais para a pesquisa interventiva em instituição. E, como na etnografia, a escrita é convocada como meio fundamental para o trabalho. Há, como na abertura para invenções metodológicas, uma abertura para diferentes planos de escrita, em que anotações do tipo caderno de campo feitas pelos participantes e textos de elaboração de registros e interpretações se complementam. (Andrade; Morato; Schimit, 2007, p. 4)

Na pesquisa com as crianças, as “palavras” são pronunciadas por falas, gestos, imagens, e tantas outras linguagens, cabendo o desafio ao(à) pesquisador(a) ler e construir, com elas, sentidos. Dentre tantas “palavras” pronunciadas, muitas vieram de questionamentos acerca dos valores machistas em nossa sociedade como, por exemplo: por que fila de menina e de menino, por que meninos e meninas não podem sentar juntos(as), se meninas podem brincar na pista de corrida no espaço da brinquedoteca; ou em atitudes das crianças tais como, a recusa de meninos a usar a cor rosa em suas pinturas alegando ser “cor de menina” e meninas recusando-se a usar o azul, por ser “cor de menino” etc.

Essa busca da compreensão do universo vocabular das crianças foi desvelando as formas perversas do patriarcado e nele o machismo, ainda tão presente na sociedade brasileira, e que ecoavam no cotidiano escolar, mas que pouco efeito parecia ter sobre os(as) adultos(as) responsáveis por este espaço educacional. Um universo que parecia reivindicar momentos em que se pudesse, no coletivo, discutir estas questões. Assim, por ser esta uma temática recorrente entre elas, e dada sua relevância frente à sociedade heteronormativa em que vivemos, as relações de gênero se configuraram como tema gerador a ser problematizado com as crianças através dos círculos de cultura.

Os temas geradores dizem respeito às aspirações, aos saberes, às percepções e visão de mundo dos(as) educandos(as), que observados e estudados pelo(a) educador(a) são devolvidos a eles(as) como temas a serem problematizados, constituindo-se como base para o conteúdo programático daquele grupo em específico (FREIRE, 1980; 2003). No caso das relações de gênero, é de extrema importância problematizá-las no espaço escolar, desvelando preconceitos que querem ser “considerados como verdades intocáveis, nos costumes e em regras inflexíveis” (FINCO, 2010, p. 30).

Ao longo de toda pesquisa primou-se pelo respeito ao contexto apresentado pelas crianças. Através dos interesses, saberes e necessidades destas foi construída uma intervenção marcada pelo diálogo. Diálogo que se iniciou no convite a participarem da pesquisa, pois, como afirma Leite (2008, p. 123): “Pesquisar crianças sem que estas assim o desejem é manter uma estrutura de poder e distanciamento que não as emancipa do papel de objetos de estudo; que as mantém sob a égide do adulto-que-manda versus a criança-que-obedece”. Desta perspectiva, antes de iniciar a investigação, a pesquisadora explicou às crianças, num total de 23, sendo 14 meninas e 9 meninos, o que pretendia realizar. Todas concordaram e demonstraram alegria em participar. Após este consentimento, foi solicitada a autorização a seus/suas responsáveis legais.

Nos círculos de cultura, que ocorreram duas vezes por semana, foram utilizadas “situações existenciais” que abordavam o tema das relações de gênero, ou seja, situações problemas que procuravam desafiar o grupo, trazendo um recorte da realidade de modo que a discussão se constituísse em um rico debate de ideias sobre o mundo e sobre nossa ação sobre ele, na perspectiva de transformá-lo (FREIRE, 2002; 2003). Cada imagem, vídeo e texto, que foram escolhidos para desenvolver os círculos de cultura, foram pensados e analisados à luz do referencial teórico adotado nesta investigação. Desse modo, as situações trouxeram para o debate as dicotomias referentes às relações de gênero, tais como: cor de menino ou de menina, esporte e profissões de homens ou de mulheres, brincadeiras e comportamentos.

Respeitando-se as diferentes formas de expressão de meninos e meninas; suas brincadeiras, seus desenhos, pinturas, gestos, expressões corporais, dentre outras, foram consideradas durante toda a pesquisa. No intuito de apreender toda esta expressividade, todos os círculos foram registrados em um diário de campo, por uma observadora e pela pesquisadora, gravados em áudio e filmados. Posteriormente foram transcritos e registrados em forma de relatórios, conforme metodologia da pesquisa de intervenção.

Outra dimensão desta pesquisa diz respeito ao método de avaliação da intervenção. Importante destacar que tal avaliação é “composta por dois elementos: os achados relativos aos efeitos da intervenção sobre seus participantes e os achados relativos à intervenção propriamente dita” (Damiani et al, 2013, p. 62). No caso desta investigação, um foi referente às possíveis mudanças de comportamento das crianças no que diz respeito às questões de gênero. Esta se deu no dia a dia no desenrolar das propostas, através da observação delas em todos os momentos da rotina, de modo a verificar se suas atitudes foram mudando em relação ao uso das cores em suas produções, nas escolhas dos brinquedos, nas escolhas de amigos(as) para as brincadeiras, nas suas falas e demais ações.

O outro elemento da avaliação refere-se à intervenção que foi feita, no intuito de verificar se as atividades desenvolvidas com as crianças atingiram o objetivo da pesquisa, ou seja, construir uma prática dialógica na educação infantil a partir dos círculos de cultura. “Tal análise discute os pontos fracos e fortes da intervenção, com relação aos objetivos para ela traçados e, caso se aplique, julga as modificações que foram introduzidas durante seu curso, frutos das constantes reflexões realizadas durante o processo interventivo” (DAMIANI et al., 2013, p. 63).

A pesquisa com crianças é um desafio. Toda a nossa expressividade, gestos, olhares, enfim, tudo que demonstramos ao escutá-las merece atenção. Como destaca Leite (2008), muitas vezes, a linguagem utilizada por elas não é aquela que os(as) adultos(as) consideram correta. Meninos e meninas demostram diferentes maneiras de olhar o mundo, diferentes leituras, diferentes racionalidades. Dar credibilidade ao que falam e assumir como legítimas é fundamental em pesquisas com eles(as). Não há outro caminho para compreender o mundo infantil senão o de recorrer às próprias crianças (DEMARTINI, 2002), reconhecendo que são capazes de fazê-lo mesmo antes do domínio da linguagem escrita; leitura de mundo que precede a da palavra (FREIRE, 1986).

Dizer a palavra não é privilégio de alguns, mas direito de todos(as) e, justamente por isso, não se pode dizê-la sozinho(a) ou para os(as) outros(as), é preciso dizê-la junto, no coletivo (FREIRE, 2003). Os círculos de cultura realizados com as crianças caracterizaram-se por este coletivo, pela liberdade que se observou entre elas de expressarem suas ideias, discordâncias, concordâncias, saberes, dúvidas e, sobretudo, pelo respeito à fala de todos(as).

Importante pensar que o exercício democrático é uma construção, e nos círculos de cultura tanto o(a) educador(a) quanto as crianças estão aprendendo a escutar e a dizer a sua palavra, a dialogar de forma crítica e amorosa.

Círculos de cultura e relações de gênero: a leitura de mundo das crianças

Durante os círculos de cultura, as crianças foram demostrando a leitura de mundo que fazem sobre ser menino e ser menina em nossa sociedade. As experiências de gênero são vivenciadas por elas desde bem pequenas. Nelas vão aprendendo as diferenças entre o que é ser homem e o que é ser mulher, a princípio no âmbito familiar e, posteriormente, em outras instâncias de socialização, dentre elas os espaços educacionais, onde se amplia a convivência com outras crianças e outros(as) adultos(as).

Dentre os vários atributos definidos para homens e mulheres encontra-se o uso das cores. Este foi, entre meninos e meninas, um aspecto bem marcante nesse grupo de crianças. Ao longo das discussões ficou evidente o quanto o estereótipo referente à cor é algo já naturalizado para a maioria das crianças. Expressões como “Eca”, “Oxe”, ao ver alguma imagem ou escutar falas de que meninos gostam de rosa, eram comum entre muitas delas. Segundo Belotti (1979, p. 151), aos cinco anos de idade já é possível verificar certa conformidade com os estereótipos masculino e feminino. O homem agressivo, ativo e dominador. A mulher dócil, passiva e dominada. Os meninos sendo compelidos à competição, ao sucesso, e a mulher “obrigada a tomar o rumo contrário, o da não realização de si mesma”.

No entanto, durante os diálogos que ocorriam nos círculos, foi possível verificar que algumas crianças transgrediam essas barreiras relativas às questões de gênero e começavam a repensar tais crenças. Um menino, que tinha muita resistência em usar a cor rosa em suas produções e que sempre dizia que esta cor era de meninas, em um dos círculos pontuou que se pudesse escolher a cor do seu quarto ele seria “de todas as cores”, incluindo aqui o rosa. Isso remete à reflexão de Freire (1998), de que é preciso, a partir das experiências concretas dos(as) educandos(as), estimulá-los(as) a repensarem sobre sua própria ação no mundo, a fim de construírem, no coletivo, outras possíveis respostas.

Ao discutirem as profissões, provocados(as) pelas “situações existenciais”, um menino afirmou, várias vezes, que algumas profissões são só para homens, como, por exemplo: astronauta, taxista e policial. Todas as vezes que fazia essas afirmações, alguma criança, menino ou menina, opunha-se dizendo já tinha visto mulher exercendo essas profissões. Cada vez que escutava alguém discordando dele, ficava pensativo, o que demonstra que, “[...] o processo educativo, ao proporcionar o exercício do diálogo horizontal entre os diferentes sujeitos, onde é permitido dizer sem medo ou castração o que se sente, preenche de sentido os seus reais objetivos” (Angelo, 2013, p. 58).

A cada encontro, as crianças mostravam-se mais participativas, sem receio de dizerem o que pensavam. Umas diziam que azul é de menino, que bailarino não pode usar a cor rosa. Outras argumentavam que bailarino tem que usar azul. Curioso observar que essas crianças admitem a possibilidade de um homem ser bailarino, no entanto, ele tem que usar a cor azul. Enquanto outras afirmavam que homem não pode ser bailarino, duas meninas relataram que fazem ballet e que há meninos. As crianças leem o mundo desde seus contextos sociais e culturais, isso porque linguagem e realidade estão dinamicamente interligados, assim, justificam muitas de suas posições a partir do que veem e vivenciam. E como nos libertamos em comunhão (FREIRE, 2003), a possibilidade de compartilharem estas experiências vai proporcionando a todos e todas a revisão de seus próprios valores, crenças, conceitos e preconceitos.

Em um outro momento da discussão, falaram sobre o que é ser gay. Uma menina declarou que homem que usa roupa de mulher é “Chola”. Como a pesquisadora não sabia o que isso significava, várias crianças explicaram que “chola é gay”. Durante esse debate, um menino disse “eu sou gay agora”.  De acordo com Finco (2010, p. 53), “atrelar infância e gênero permite revelar como é que as crianças situadas em contextos sociais, individualmente ou como grupo social, experienciam as possibilidades e os constrangimentos colocados pelos sistemas e estruturas sociais genereficados”. Para a maioria das crianças, homem que usa roupa de mulher é considerado gay, sendo este um rótulo atribuído pela sociedade e que pretende fixar uma identidade (LOURO, 2010).  Ao dizer “Eu sou gay agora”, essa criança transgride algo imposto pela sociedade, o que demonstra que nem sempre as crianças fazem aquilo que os(as) adultos(as) querem ou esperam que façam. Em situações de brincadeiras, esse menino vestia-se com fantasias e acessórios ditos de mulher. Ao fazer isso, ele, assim como outras crianças, termina por questionar os papeis sociais definidos para homens e mulheres. Interessante observar que ele se define como gay “agora”, portanto, não se trata de uma identidade definida, imutável, o que sugere que pode ser gay em alguns momentos, possivelmente quando veste roupas ditas de mulheres, e em outros momentos não, o que vai ao encontro do pensamento de Hall (1997, p. 14) quando discute que:

A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidade possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente.

As crianças estão inseridas em uma multiplicidade de identidades das quais elas participam de sua construção ativamente, desse modo, não apenas incorporam os estereótipos de gênero, mas os ressignificam nas interações sociais.

O futebol foi outro assunto que surgiu durante os diálogos, sendo este ainda caracterizado como um esporte masculino, por ser competitivo, exigir força física e de muito contato, contrapondo-se ao que é ser feminino. Essa percepção acaba reforçando as desigualdades entre meninos e meninas. Em sua tese, Finco (2010) analisou como a quadra é tida como monopólio para os meninos jogarem futebol; para usá-las as meninas precisam reivindicar. Após um dos círculos em que se discutiu o futebol, foi proposto às crianças realizarem um jogo com times mistos, meninas e meninos, o qual aceitaram com muito entusiasmo. Ao final pediram para que isso se repetisse mais vezes. Importante marcar que, anteriormente, em todas as ocasiões de brincadeiras de livre escolha, os meninos sempre jogaram futebol sem a participação de meninas. Apenas uma menina, pedia para jogar com eles, mas a resposta era sempre que ela não podia, porque não sabia jogar. Esta situação não foi mais observada após essas discussões nos círculos de cultura.

Outra profissão que é vista como masculina é a de astronauta. Quando um dos meninos viu a imagem do astronauta, disse que só homens podem ser astronautas, “porque não existe roupa de astronauta para mulheres”. Para Tabak (2002, p. 57), a imagem da “Ciência como ocupação masculina, a crença de que a mulher teria uma competência inferior à do homem, agiriam como barreiras na construção de uma carreira bem-sucedida no mundo científico”.  Essa compreensão vai sendo cada vez mais mitificada, sobretudo pela falta de divulgação dos trabalhos realizados por mulheres cientistas, o que pode levar a pensar na impossibilidade destas serem astronautas. Porém, é preciso atentar que essa criança atribui essa impossibilidade não há uma possível incompetência das mulheres, mas sim à sua vestimenta. Durante o debate sobre esta questão, duas meninas não concordaram, afirmando que homens e mulheres podem ser astronautas. Uma delas defende: “Mulher pode viajar pra Lua”. E a outra conclui: “Homem e mulher podem fazer o que quiserem”. Verifica-se ao longo das discussões como as crianças não só reproduzem os valores machistas, mas também os confrontam no coletivo.

Ainda sobre as profissões, ao assistiram o vídeo das meninas engenheiras[1] apresentaram duas interpretações. Algumas crianças disseram que elas “estavam destruindo a casa”, que eram “malandras”, porém muitas pontuaram que as meninas eram inteligentes. Um menino declarou que não gosta de “meninas que aprontam”, só gosta de meninas “boazinhas”. Essa fala demonstra os comportamentos desejados e esperados para o feminino e o masculino, de tal forma que, se uma menina destoa do que é esperado para o feminino, como, por exemplo, meiguice, obediência aos mais velhos, sensibilidade, dedicação aos estudos, ela fica sendo rotulada como se algo estivesse errado (FINCO, 2010; LOURO, 2010).

Durante o desenrolar das discussões, as crianças foram compartilhando seus pensamentos, suas vontades, curiosidades, desejos e, aos poucos, tanto elas como a educadora, puderam construir novos saberes, descontruindo crenças e formando novos valores. O clima era de respeito. As crianças procuravam ajudar umas às outras sempre que uma delas não se fazia compreender, ou ficavam mais silenciosas ao perceberem que determinada criança falava em um tom de voz baixo. Isso não significou a ausência de conflitos e discordâncias, eles existiram, e faziam parte da vida em grupo, do aprender no coletivo.

Problematizar com as crianças questões tão naturalizadas em nossa sociedade, possibilita a elas, e também aos(às) educadores(as), repensarem ideias, ações e valores que muitas vezes possuem sem refletir, como algo certo e acabado. Nesse sentido, concordamos com Freire (1996) que a educação é uma forma de intervenção no mundo. Em suas palavras:

Outro saber de que não posso duvidar um momento sequer na minha prática educativa-crítica é o de que, como experiência especificamente humana, a educação é uma forma de intervenção no mundo. Intervenção que além do conhecimento dos conteúdos bem ou mal ensinados e/ou aprendidos implica tanto o esforço da ideologia dominante quanto o seu desmascaramento. (FREIRE, 1996, p. 110)

Ao analisar os dados e realizar a avaliação do método de intervenção no que se refere ao tema gerador: relações de gênero, foi possível verificar que a maioria das crianças já vem incorporando os estereótipos que dicotomizam os gêneros. Um dos elementos que a categoria gênero implica são “os símbolos culturalmente disponíveis que evocam representações simbólicas (e com frequências contraditórias)” (Scott, 1990, p. 14) sobre ser homem ou mulher. Como forma de limitar as possibilidades metafóricas que tais representações evocam, são criados conceitos normativos que se configuram como uma oposição binária, e que, portanto, vão dizer, de forma categórica, o sentido do masculino e feminino. Estes conceitos são produzidos e reproduzidos permanentemente em diferentes práticas culturais (SILVA, 2012).

No entanto, não somos seres da adaptação, mas de transformação. Nesse sentido, há também crianças que ao transgredirem estas fronteiras, ao debaterem suas ideias nos círculos de cultura, possibilitaram que outras revisem posições acerca de tais estereótipos, o que nos remete a pensar que meninos e meninas não estão apenas a incorporar passivamente os estereótipos de gênero, mas que, em diferentes interações com outras crianças e também com os(as) adultos(as) estão ressignificando, o que demonstra que as expectativas referentes ao gênero não são simplesmente inculcadas nelas, mas são socialmente construídas por elas nas interações (Corsaro, 2009), o que as leva, muitas vezes, a romperem com estas delimitações.

Brincar juntos(as), meninos e meninas, jogar futebol juntos(as), acreditar que todos e todas têm direito a escolher o esporte, o lazer, a cor e a profissão que quiserem, apresentou-se como possibilidades interativas entre esta turma no cotidiano escolar. Obviamente que alguns estereótipos ainda se fizeram presentes entre elas, mas sempre havia uma criança para lembrar que é possível ser de um outro jeito, que um outro mundo é possível.

Em relação aos círculos de cultura na educação infantil, a análise permitiu constatar ser possível sua utilização com crianças de 5 anos de idade. Através dos círculos, observamos como meninos e meninas constroem e reconstroem o que é vivenciado em experiências entre eles(as) e com os(as) adultos(as) com as quais convivem. No coletivo tiveram a oportunidade de colocar em movimento sua visão de mundo acerca da temática e, em alguns casos, a possibilidade de rever tal visão.

O trabalho com o círculo de cultura implica em um planejamento prévio, um estudo, uma preparação do(a) educador(a) para discutir um assunto que foi observado por este(a) no convívio com as crianças, algo que necessita ser debatido, visto ser uma necessidade do grupo, um desejo ou uma curiosidade. No círculo, todo o grupo se debruça sobre um tema importante para a vida em sociedade, de modo a refletir sobre o que já está posto. Não pode ser uma atividade mecânica e rotineira, apenas para constar em uma rotina semanal. Trata-se de um espaço marcado pelo respeito e pelo acolhimento, em que se fortalecem vínculos de formação de grupo. A organização em círculo é fundamental, de modo que todos e todas se vejam, se olhem e se percebam como iguais e importantes no grupo.

Os círculos desenvolvidos com as crianças tiveram essa configuração, contudo, foi respeitada a necessidade que tinham de se movimentar. Meninos e meninas falam com todo o seu corpo. Nesse sentido, há de considerá-lo ao se propor o trabalho com o círculo de cultura com eles(as), haja vista o desafio da construção de “[...] um espaço educativo dialógico competente, sério e alegre, que jamais deve castrar a altivez do educando, sua capacidade de opor-se e impor-lhe um quietismo negador do seu ser” (FREIRE, 2002, p. 33).

Outro ponto que a análise dos dados revelou, é que a discussão da temática não se encerra nos limites dos círculos de cultura, pois as crianças a carregam para outros momentos da rotina e por meio de diferentes linguagens, cabendo então ao(à) educador(a) um olhar e escuta sensível para as tantas formas de expressão. Respeitar a leitura que fazem do mundo e as diferentes linguagens com que o comunicam, não é só um ato amoroso, mas também político, uma vez que prima por seu direito de dizer sua palavra em toda a sua complexidade.

Verifica-se, portanto, ao longo de toda a pesquisa, a potência do trabalho com os círculos de cultura com as crianças, sobretudo se quisermos, de fato, construir uma sociedade livre de toda e qualquer forma de discriminação. Isso porque, quando a relação pedagógica é marcada pela amorosidade e pelo diálogo, abre caminho para uma prática de libertação e, sendo assim, para a construção de uma educação emancipadora.

Considerações finais

[...] há outro mundo na barriga deste, esperando. Que é um mundo diferente. Diferente e de parto difícil. Não nasce facilmente. Mas com certeza pulsa no mundo em que estamos. (GALEANO, 2011)

Construir pedagogias das infâncias, aquelas forjadas com as crianças e não para elas, é um desafio quando pensamos a educação da primeira infância. Desafio que precisa ser assumido na construção de uma sociedade com justiça social. É preciso educar contra a barbárie que penetra em nossas vidas e que instiga o ódio, a competitividade, o desrespeito, a exclusão, a violência, a opressão.

Nossa sociedade adultocêntrica e grafocêntrica insistentemente silencia as vozes das crianças. A educação que se apresenta a elas, em muitas instituições de educação infantil, ainda afirma-se em um modelo bancário, antidemocrático, em que a expressividade, a criatividade, a curiosidade e o maravilhamento são negados. Muito distante do que propunha Freire (2000b, p. 33) ao pensar a educação na cidade, em que defendia que os espaços de educação infantil fossem “centros de criatividade, em que se ensine e se aprenda com alegria”.

O propósito desta pesquisa foi o de pensar a infância como um tempo/espaço de construção de humanidade. A interação entre educadores(as)/crianças e entre crianças é um processo que objetiva construir leituras compartilhadas dos contextos sociais e culturais em que se inserem de modo a transformar a si próprios(as) e as realidades. A educação da infância pode ser vista como um espaço de ocultação ou desocultação de verdades. É nesse sentido que as ideias de Paulo Freire contribuem para a (re)invenção de um trabalho pedagógico com as crianças, que tenha como mote sua emancipação e não sua domesticação.

Podemos afirmar, a partir da epistemologia freireana, que a educação da infância é um espaço de permanente busca do “ser mais”. Sendo assim, é possível pensarmos a construção de uma prática educativa que prime pelo respeito às diferenças, o desenvolvimento do senso crítico, o valor da amizade, a solidariedade e a amorosidade. É possível, portanto, uma educação infantil cidadã.

Nesta perspectiva, os círculos de cultura com as crianças configuram-se como possibilidade de enfrentamento à educação antidialógica a qual estão submetidas, por proporcionar a elas, espaços em que possam dizer a sua palavra, visibilizando suas marcas de expressão e de autoria. Isso foi possível verificar nesta investigação, em que se observou meninos e meninas que diziam sem medo o que sentiam, pensavam e o que queriam, em um ambiente de respeito e de camaradagem.

Os diálogos estabelecidos nos círculos de cultura revelaram, que a leitura que fazem de mundo está impregnada de vida, das suas vivências cotidianas, em um movimento de apropriação e ressignificação da cultura. Em relação às questões de gênero, meninos e meninas reproduzem valores machistas ao mesmo tempo em que borram suas fronteiras, confrontando imagens, percepções e sentimentos e demonstrando como para eles(as) o binômio masculino e feminino ainda não se apresenta tão dicotomizado, de modo que não importa o que a sociedade julgue como certo ou errado, “homens e mulheres podem fazer o que quiserem”.

A reflexão crítica da prática, alicerçada em uma teoria que assuma a criança como sujeito de direitos, abre possibilidades de construir uma educação crítico-libertadora, em que as interações dentro e fora do ambiente escolar sejam marcadas pelo respeito a todos e todas indiscriminadamente. Nesse sentido, o círculo de cultura constitui-se como importante dispositivo na construção de uma educação contra a barbárie.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: UFMG, 2005.

ANDRADE, Ângela Nobre de; MORATO, Henriette Tognetti Penha; SHIMIDT, Maria Luisa Sandoval. Pesquisa Interventiva em Instituição: Etnografia, Cartografia e Genealogia. In: RODRIGUES, M. M. P. e MENANDRO, P. R. M. (Org.). Lógicas metodológicas: trajetos de pesquisa em psicologia. Vitória: Editora GM, 2007, p. 193-206.

ANGELO, Adilson de. O espaço-tempo da fala na educação infantil: a roda de conversa como dispositivo pedagógico. In: KRAMER, Sonia; ROCHA, Eloisa Acires Candal (orgs). Educação Infantil: enfoques em diálogo. 3 ed. Campinas, SP: Papirus, 2013, p. 53-65. (Série Prática Pedagógica)

BELOTTI, Elena Gianini. Educar para a submissão. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1979.

CORSARO, Willian A. Sociologia da infância. Porto Alegre: ArtMed, 2009.

DAMIANI, Magda Floriana et al. Discutindo pesquisas do tipo intervenção pedagógica. Cadernos de Educação. Pelotas: UFPel, n.45, 2013, p.57-67.

DEMARTINI, Zeila de Brito Fabri. Infância, Pesquisa e Relatos Orais. In: DEMARTINI, Zeila de Brito Fabri; FARIA, Ana Lúcia Goulart de; PRADO, Patrícia Dias (orgs.). Por uma cultura da infância: metodologias de pesquisa com crianças. Campinas, SP: Autores Associados, 2002, p.1-17. (Coleção educação contemporânea)

FASANO, Edson. Invasão cultural: uma tentativa de destituição da infância. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista, 2010, p.1-16.

FINCO, Daniela. Educação Infantil, Espaços de Confronto e Convívio com as Diferenças: análise das interações entre professoras e meninas e meninos que transgridem as fronteiras de gênero. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

FORTUNATI, Aldo. Por um currículo aberto ao possível: protagonismo das crianças e educação.  Porto Alegre: Editora Buqui, 2017.

FREIRE, Paulo. Extensão ou Comunicação? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 13.ed. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1986.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Paz e Terra, 1992.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa. 12 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: UNESP, 2000a.

FREIRE, Paulo. A Educação na Cidade. 4.ed. São Paulo: Cortez, 2000b.

FREIRE, Paulo. Educação e atualidade brasileira. São Paulo: Cortez/IPF, 2001.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 26.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 35. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.

GALEANO, Eduardo. Entrevista. Disponível em: http://politikei.blogspot.com/2011/06/galeanoum-outro-mundo-esta-na-barriga.html Acesso em: 20 set. 2018.

GERALDI, João W. A linguagem em Paulo Freire. Educação, Sociedade & Culturas, n.23, p. 7-20, 2005. Disponível em: http://www.fpce.up.pt/ciie/revistaesc/ESC23/23-Joao_Geraldi.pdf Acesso em: 01 out. 2017.

HALL, Stuart. Identidades culturais na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1997.

KRAMER, Sonia. Infância, cultura contemporânea e educação contra a barbárie. In: BAZÍLIO, Luiz Cavalieri; KRAMER, Sonia. Infância, educação e direitos humanos. São Paulo: Cortez, 2003.

LEITE, Maria Isabel. Espaços de narrativa: onde o eu e o outro marcam encontro. In: CRUZ, Silvia Helena Vieira (org.). A criança fala: a escuta de crianças em pesquisas. São Paulo: Cortez, 2008, p. 118-140.

LOURO, Guacira Lopes (org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 3.ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010.

Malaguzzi, Loris. As cem linguagens. In: EDWARDS, Carolyn; GANDINI, Lella; FORMAN, George As cem linguagens da criança: a abordagem italiana de Reggio Emilia na educação da primeira infância. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999, s/p.

MARQUES, Renata F. B. Os Círculos de cultura na educação infantil: construindo uma prática dialógica. 2018. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Municipal de São Caetano do Sul, São Caetano do Sul, 2018.

SARMENTO, Manuel Jacinto. Visibilidade social e estudo da infância. In: VASCONCELLOS, Vera Maria Ramos de; SARMENTO, Manuel Jacinto. Infância (in) visível. Araraquara: Junqueira & Marin, 2007, p.25- 49.

SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade. Porto Alegre, vol. 16, n.2, p. 05-22, jul./dez 1990.

SILVA, Marta R. P. da. Linguagens dos quadrinhos e culturas infantis: “é uma história escorridinha”. 2012. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2012.

SILVA, Marta R. P. da. Por uma educação infantil emancipatória: a vez e a voz das crianças e de suas educadoras. Cadernos de Educação. Pelotas: UFPel, n. 58, p. 83-100, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/caduc/article/view/12370. Acesso em 20 ago. 2019.

TABAK, Fanny. O laboratório de Pandora: Estudos sobre a ciência no feminino. Rio de Janeiro: Garamond, 2002.

ZEICHNER, Kenneth M.; DINIZ-PEREIRA, Júlio E. Pesquisa dos educadores e formação docente voltada para a transformação social. Cadernos de Pesquisa, v. 35, n. 125, p.63-80, maio/ago. 2005.

Correspondência

Marta Regina Paulo da Silva — Universidade Municipal de São Caetano do Sul — Avenida Goiás, 3.400, Barcelona, CEP 09550051, São Caetano do Sul, São Paulo, Brasil.

 

Nota



[1] Propaganda intitulada “Princess Machine” (propaganda da Goldie Box para futuras engenheiras). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=p--BNDvbYcY. Acesso em: 2 ago 2017.