O jornal impresso: possibilidade de letramento numa perspectiva discursiva na educação infantil

The newspaper: Literacy possibility in a discursive perspective in childhood education

 

 

Inês Buglini Casarin

Professora de Educação Infantil, mestra na Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Campinas, São Paulo, Brasil.

inescasarin@gmail.com – https://orcid.org/0000-0002-2756-4637

 

Heloisa Oliveira Azevedo

Professora doutora na Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Campinas, São Paulo, Brasil.

hhazevedo79@gmail.com – https://orcid.org/0000-0001-5253-4299

 

Recebido em 15 de janeiro de 2019

Aprovado em 07 de maio de 2020

Publicado em 24 de junho de 2020

 

RESUMO

Este artigo constitui-se de relato de pesquisa acadêmico-cientifica de abordagem qualitativa exploratória que investigou práticas pedagógicas de professoras em duas turmas de educação infantil no município de Campinas. O problema da pesquisa situou-se em compreender como o jornal impresso pode se constituir em mediador do desenvolvimento da linguagem e do pensamento infantis. Neste artigo apresentamos as análises realizadas mediante o entrelaçamento das transcrições das entrevistas semiestruturadas com os registros de observação. O material empírico foi analisado com base em pressupostos da teoria histórico-cultural e da perspectiva bakhitiniana. Destacamos que as práticas pedagógicas planejadas tomando como mediador o jornal impresso, possibilitaram a inserção das crianças no mundo letrado e na realidade circundante e a proposta de elaboração de um jornal das salas constituiu-se um deflagrador da produção textual infantil. Os gêneros discursivos contidos no jornal possibilitaram a interlocução, a troca de experiências e a abordagem de temáticas constantes nos planejamentos das professoras, tornando o ensino contextualizado e significativo.

Palavras-chave: Formação de Professores; Educação infantil; Jornal escolar infantil.

 

ABSTRACT

This article constitutes of a relact academic scientist research of exploratory qualitative approach that explored pedagogical teachers practices with two childhood education classes in city of Campinas. The question of research was understand how the newspaper can be a mediator of childhood language and thoughts development. In this article we showed the analyzes made by means of the interlacing of semistructured interviews transcriptions with reported observations. The empiric material was analyzed considering the assumptions of cultural history theory and bakhtinian perspective. We put in evidence that pedagogical practices planned considering the newspaper how mediator, made possible the insertions of children in a literate world and in the surrounding reality and the propose of elaboration of a classroom newspaper constituted a deflector of childhood textual production. The discursive genres inside the newspaper made possible the interlocution, exchange of experience and the thematical approaches in the teachers planning, making the teach contextualized and significant.

Keywords: Teachers Education; Childhood Education; Children's school newspaper.

Introdução

Considerando a criança um ser histórico-cultural em desenvolvimento, com grande potencial de elaboração de pensamentos e capacidade de se expressar por meio da linguagem, nos propusemos investigar as práticas pedagógicas na educação infantil, explorando a produção textual, formulando o seguinte problema de pesquisa: como o jornal impresso pode se constituir em mediador do desenvolvimento da linguagem e do pensamento na educação infantil? Assim sendo, este artigo constitui-se num relato de pesquisa de natureza qualitativa exploratória tendo como objeto de estudo o jornal impresso.

Nosso objetivo central foi investigar as práticas pedagógicas na educação infantil explorando a produção textual, visando identificar como o jornal impresso pode se constituir em mediador do desenvolvimento da linguagem e do pensamento nesta etapa.

Iniciamos os estudos realizando um levantamento bibliográfico no período de 2012 a 2016, buscando analisar quais enfoques as pesquisas têm dado à produção textual na educação infantil. Encontramos inicialmente 211 trabalhos, cujos títulos e resumos foram lidos, sendo selecionados 17 trabalhos entre artigos, teses e dissertações, os que mais se aproximavam do nosso objeto de estudo, prescindindo de 194 que se distanciavam da nossa temática.

 Destacamos que destes 17 estudos, referentes ao desenvolvimento da linguagem e do pensamento, somente quatro ocorreram no cenário da educação infantil; são os seguintes: Costa (2012), Girão (2014), Morais, Albuquerque e Brandão (2016) e Silva (2016). Nestas pesquisas observamos que as experiências com a linguagem escrita e oral envolveram os livros de literatura infantil e a construção de textos coletivos. Somente Silva (2016) utilizou-se da prática da elaboração de um jornal com o objetivo de favorecer a produção textual registrando as vivências das crianças, porém sem introduzir em sala de aula os jornais impressos circulantes.

Os demais estudos apesar de terem sua relevância para a área, centraram-se na análise de práticas pedagógicas com os jornais nos níveis de ensino fundamental e médio revelando as lacunas deste trabalho na educação infantil, assim como nos deram indícios de que, nessa etapa, os estudos são exíguos,  indicando-nos a relevância deste nosso estudo, assim como a possibilidade de contribuir para a compreensão de que é possível às crianças pequenas serem produtoras de textos utilizando o jornal impresso como mediador.

Após a revisão bibliográfica, submetemos o projeto ao Comitê de Ética da PUC-Campinas e, após a sua aprovação, iniciamos as observações em campo.

O campo de produção do material empírico da pesquisa foi uma escola de educação infantil do município de Campinas, em duas salas de aula, com crianças de 3 a 5 anos de idade. Utilizamos como procedimentos metodológicos observações sistemáticas das duas salas de aula, que foram registradas em um diário de campo, totalizando 27 sessões de 81 horas/aula, e entrevistas semiestruturadas com as professoras destas salas, totalizando 1hora e 40 minutos.

A análise do material empírico ancorou-se na técnica de análise de conteúdo dos registros do diário de campo e das transcrições das entrevistas, tomando como referências teóricas as contribuições de autores que fundamentaram seus estudos na perspectiva bakhitiniana no tocante ao desenvolvimento da linguagem por meio dos gêneros discursivos.

 

A coerência entre Vygotsky e Bakhtin concernente ao desenvolvimento da linguagem e do pensamento

Acreditamos que a teoria histórico-cultural e a perspectiva bakhtiniana dialogam entre si quando sustentam os pressupostos de que o ser humano humaniza-se quando se apropria da linguagem por meio das relações que estabelece com o meio e com os outros de sua espécie, num movimento de dialogicidade, pois “cada indivíduo aprende a ser um homem. O que a natureza lhe dá quando nasce não lhe basta para viver em sociedade. É-lhe ainda preciso adquirir o que foi alcançado no decurso do desenvolvimento histórico da sociedade humana” (LEONTIEV, 1978, p. 267).

Portanto, a atividade humana dá sentido à formação desse indivíduo, tornando-o cada vez mais humano.

Isto nos faz conceber que uma criança pequena tem potencial para humanizar-se nas suas relações por meio da interação com os elementos culturais da humanidade, pois:

[...] na evolução da espécie humana, o processo de desenvolvimento passou de um determinante biológico a um determinante dado pelas condições históricas e sociais vividas pelo homem. É por meio do trabalho que o homem transforma a natureza e transforma a si próprio: no mesmo processo em que cria os objetos – materiais e não-materiais da cultura, que respondem às suas necessidades, cria também as habilidades necessárias para sua utilização. Nesse sentido, é pelo trabalho que o homem garante a fixação das transformações da natureza que realiza e do conhecimento que passa a ter sobre a natureza (SILVA, 2016, p. 55).

Vygotsky e seus colaboradores estudavam o desenvolvimento humano considerando duas dimensões: a biológica e a social.

Fontana e Cruz (1997) afirmam que os estudos de Vygotsky se aprofundavam na dimensão sócio histórica do psiquismo, nos quais as relações sociais seriam responsáveis pela formação psicológica dos indivíduos. Vygotsky (2010) aborda dois tipos de funções psicológicas que os seres humanos desenvolvem: as funções psicológicas elementares e as superiores.

As funções psicológicas elementares são de origem biológica, tais como a sensação, percepção, inteligência prática, atenção e memória involuntárias. Sendo de dimensão biológica, desenvolvem-se quando existe uma reação imediata a uma situação em que se defronta o organismo, isto é, elas são definidas por consequências de estímulos externos, por meio da percepção humana (VYGOTSKY, 2010).

As funções psicológicas superiores são de origem sociocultural, isto é, desenvolvem-se por meio das relações que o indivíduo estabelece com o meio e de suas apropriações dos elementos da cultura. Esses processos psíquicos superiores são o pensamento, a linguagem, a consciência, a atenção e a memória voluntárias. (VYGOTSKY, 2010).

Oliveira (2001) salienta que para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, é fundamental que ocorra uma mediação por meio de instrumentos e signos. Desta mediação, a criança adquire condições para desenvolver as atividades psicológicas voluntárias, intencionais, que podem ser controladas.

O conceito de “desenvolvimento das funções psíquicas superiores” é objeto de nosso estudo abarcam dois grupos de fenômenos [...] Trata-se, em primeiro lugar, de processos de domínio dos meios externos do desenvolvimento cultural e do pensamento: a linguagem, a escrita, o cálculo, o desenho; e, em segundo, dos processos de desenvolvimento das funções psíquicas superiores especiais, não limitadas nem determinadas com exatidão, que na psicologia tradicional denominam-se atenção voluntária, memória lógica, formação de conceitos, etc. Tanto uns como outros, tomados em conjunto, formam o que qualificamos convencionalmente como processos de desenvolvimento das formas superiores de conduta da criança (VYGOTSKY, 2000, p. 29).

Destarte, as funções superiores são processos mentais que ocorrem na mediação, utilizando-se dos signos (fala, escrita, desenhos, etc.), que tem a função de relacionar a realidade fora do sujeito, isto é, a realidade objetiva junto ao pensamento, que é subjetivo, num movimento interpsíquico, entre pares primeiramente e depois intrapsíquico, quando são internalizadas pelo indivíduo, mediante as relações estabelecidas com o meio.

Todas as funções psicointelectuais superiores aparecem duas vezes no decurso do desenvolvimento da criança: a primeira vez, nas atividades coletivas, nas atividades sociais, ou seja, como funções interpsíquicas; a segunda, nas atividades individuais, como propriedades internas do pensamento da criança, ou seja, como funções intrapsíquicas (VYGOTSKY, 2006, p. 114).

Estas abordagens colocam a linguagem, a cultura, a escola e o professor como principais elementos mediadores para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, visto que as funções interpsíquicas ocorrem sob a influência do meio externo, e as funções intrapsíquicas por meio de um processo interacional, isto é, construído nas vivências da criança que se apropria dos produtos socioculturais, transformando-os e internalizando-os.

A internalização dessas significações culturais implica, porém, da parte da criança, sua reelaboração em função dos seus próprios referenciais semânticos. Vygotsky chama isso de sentido pessoal das palavras, que ele contrapõe ao significado socialmente estabelecido. Dentro de tal meio culturalmente estruturado (significativo) e personalizado (pleno de sentido) a criança em desenvolvimento inventa (ou reinventa, por imitação) novas formas de agir e de pensar, das quais só são retidas aquelas que acabam sendo aceitas pela criança e pelo seu meio social (PINO, 1993, p.22).

O processo de internalização não pode ser compreendido como um simples processo de aprendizagem, nem de transferência de conhecimentos ou práticas sociais como reprodução, mas num processo complexo de reconstituição daquilo que já está construído pela humanidade, sendo um processo de natureza semiótica (PINO, 1993).

Para Smolka (1996), o desenvolvimento do psiquismo está diretamente relacionado aos signos, isto é, o indivíduo está imerso num mundo de signos e numa realidade discursiva para os quais se atribui significação com alteridade neste processo de aprendizagem e internalização.

Vygotsky (2000, p. 169) afirma que “o desenvolvimento da linguagem é, antes de tudo, a história da formação de uma das funções mais importantes do comportamento cultural da criança, que é fundamental na acumulação de sua experiência cultural”, considerando-a uma função psicológica superior.

Bakhtin (2006, p. 115) refere-se à linguagem considerando que “a palavra é uma ponte lançada entre mim e os outros”. Portanto, concebemos que a escola é a instituição que tem como um de seus objetivos  estabelecer este elo entre o aluno e a linguagem, para isso é necessário que o professor compreenda os processos de apropriação e elaboração da aprendizagem, levando-se em consideração o que a criança já sabe, partindo daí para novas aquisições, o que Vygotsky (2010) denomina de zonas de desenvolvimento.

Segundo Vygotsky (2010) existem as zonas de desenvolvimento real, proximal ou iminente. A zona de desenvolvimento real quando a criança resolve seus problemas independente do outro. E a zona de desenvolvimento proximal ou iminente, segundo Prestes (2012, p. 205) tem como sua característica essencial desenvolver suas funções intelectuais tendo a colaboração de outra pessoa em determinados períodos de sua vida.

Vygotsky (2010 p. 98) refere-se ao desenvolvimento iminente como “flores ou brotos do desenvolvimento”, quer dizer que ainda não são os “frutos” do amadurecimento, mas indicativos dele.

Podemos dizer que a zona de desenvolvimento iminente se origina dos aprendizados, pois “o aprendizado desperta vários processos internos de desenvolvimento, que são capazes de operar somente quando a criança interage com as pessoas em seu ambiente e quando em cooperação com seus companheiros” (VYGOTSKY, 2010, p.103).

Neste viés é que convergem os pressupostos de Vygotsky e de Bakhtin no que diz respeito ao desenvolvimento da linguagem e do pensamento. A criança é capaz de desenvolver a linguagem e o pensamento nas relações que ela estabelece com os seus interlocutores.

Quando tratamos da linguagem como um produto cultural exclusivo do ser humano, acreditamos que ela se desenvolve na escola num contexto dialógico, por meio da participação das crianças em eventos linguísticos, possibilitando a elaboração e a comunicação de suas ideias, o que Bakhtin (2015) denomina de enunciados.

Pela experiência profissional, na educação infantil é bastante comum as conversas entre o professor e as crianças e entre as próprias crianças, umas com as outras, a respeito de vários temas em sala de aula. Ocorre, neste contexto, a prática da leitura e da conversa de forma intencional, tornando uma possível produção textual bastante significativa.

Nas conversas cotidianas entre as crianças e os adultos, podemos identificar condições favoráveis de aquisição de saberes e valores, considerando o tempo, a situação, o lugar, enfim, o momento cultural em que estão inseridos, envoltos em práticas enunciativas e gêneros discursivos, que são as situações linguísticas mais comuns na educação infantil.

Neste contexto de diálogos e aprendizagens, recorreremos a Bakhtin (2015) sobre o conceito de língua, enunciado e gêneros do discurso, sendo estes os três conceitos principais do autor, que ancoram a concepção de aprendizagem pela mediação nos quais os sujeitos ocupam um lugar de ouvinte/ falante, utilizando-se de um conjunto de formas discursivas, a partir de um contexto histórico-cultural.

Para Bakhtin (2015), as situações linguísticas estão inseridas em uma situação histórica que envolve atores sociais, que estão, por sua vez, inseridos numa cultura e que os leva ao dialogismo.

Para Araújo (2014, p. 183), “é a partir deste diálogo que surge a linguagem, que surge o sentido do texto e a significação das palavras, além do diálogo ser também constitutivo dos produtores do texto, ou seja, eles são constituídos a partir da interação, que antecede a própria formação individual”.

A língua, o enunciado e os gêneros de discurso estão relacionados diretamente ao dialogismo, que é inerente à linguagem, uma vez que ele perpassa pelos dizeres do falante e do ouvinte, constituindo-se em gêneros discursivos. Os discursos se dão em meio à interação, num contexto socioideológico, cuja realização mental é conduzida por uma orientação de ordem social; então, na interação dada neste contexto, os sujeitos estabelecem sentido e significação para a palavra.

A significação ocorre num campo geral e abstrato da palavra, produzida socialmente, porém os sentidos são únicos e se constituem subjetivamente nas relações estabelecidas e na constituição do sujeito com os outros. A produção de sentidos considera os sentidos dos outros, num contexto social, porém com sentido próprio (BAKHTIN, 2015).

Recorremos a um gênero discursivo na linguagem oral ou escrita para tornar possível uma interação social presente na atividade humana. “Os gêneros refletem de modo mais imediato, preciso e flexível todas as mudanças que transcorrem na vida social” (BAKHTIN, 2003, p. 268).

Compreendemos que os gêneros são práticas sociocomunicativas construídas num momento histórico-social e dependem da situação de interação a que se prestam. Sendo assim, a escola poderá proporcionar momentos discursivos ideológicos para a inserção da criança na sociedade, contribuindo desde a etapa da educação infantil para a reflexão dos entornos do ambiente e alterá-lo se possível.

Portanto, considerando Bakhtin (1992) e fazendo uma analogia ao uso de jornal em sala de aula, é possível que as crianças produzam gêneros discursivos classificados como primários (simples) e que uma roda de conversa poderia ser considerada como uma situação discursiva, pois a criança se expressa por meio de gênero discursivo (a conversa), de conteúdo espontâneo.

Podemos dizer que, no contexto da elaboração de um jornal, é possível considerar que as ideias verbalizadas das crianças pequenas se constituem em texto oral, pois têm a intencionalidade de comunicar algo em seus enunciados, provocando a resposta do outro. A experiência tem a possibilidade de ser enriquecida quando a criança se utiliza da linguagem oral para se expressar, e a professora escreve, mostrando a ela que a fala se transforma em escrita. A criança tem contato com dois tipos de linguagens: a oral e a escrita, que estão relacionadas aos gêneros discursivos.

[...] o gênero pode ser definido como “[...] certas formas ou tipos relativamente estáveis de enunciados/discursos [...]” com uma “[...] lógica própria, de caráter concreto e recorrem a certos tipos estáveis de textualização [...], mas não necessariamente a textualizações estáveis”, isto é, frases ou organizações frasais que sempre repetem, pois, os gêneros são tipos ou formas de enunciados (SOBRAL, 2009, p. 119, apud CARVALHO, 2011, p. 34).

As crianças da educação infantil estão desenvolvendo a linguagem e o pensamento, utilizando-se primeiramente da linguagem verbal para expressar suas ideias, comunicar seus discursos ou enunciados. O professor poderá contribuir para a apropriação da leitura e da escrita das crianças atuando como mediador de situações de oralidade, que tenham a intencionalidade de criar textos orais que se configurem em um determinado gênero.

Entendemos que a produção textual na educação infantil se dá no âmbito dos gêneros discursivos empregados nas situações interacionais, quando ocorre a mediação humana e do contato que a criança estabelece com os objetos culturais. Nesta perspectiva, as situações de leitura, o contato e a familiarização com materiais escritos podem favorecer o desenvolvimento, pois são situações linguísticas em que os discursos se fazem presentes. Consideramos materiais escritos livros, gibis, revistas, encartes, rótulos de produtos, jornais, entre outros.

São inúmeras as possibilidades na educação infantil nas quais o professor pode desenvolver atividades, que vão muito além da alfabetização quando este proporciona uma variedade de materiais escritos ou fazendo leituras para as crianças (STEMMER, 2013).

Alguns professores, em busca de quebrar o paradigma de relacionar a leitura somente com os livros de literatura infantis na sala de aula, buscam trazer às crianças materiais diferentes, como os jornais impressos, utilizando-os como recurso de inserção das crianças da educação infantil no mundo letrado, oportunizando o contato variado com gêneros, que este suporte contém, propiciando situações de letramento sob uma perspectiva discursiva e não mecanizada.

 O jornal impresso: uma possibilidade de letramento

O jornal impresso é um suporte textual que contém diversidades de gêneros, que podem ser oferecidos às crianças em situações de letramento.

 Apesar de os jornais impressos serem de baixo custo para a aquisição da escola, serem veiculados em larga escala e aparecerem com muita frequência nos círculos sociais, nossa experiência pedagógica nos permite dizer que ainda estão pouco presentes nas salas de aula da educação infantil, como mediadores entre a criança e o mundo.

Viana e Silva (1997) afirmam que não se pode ignorar o uso de jornais em sala de aula pelas inúmeras possibilidades de trabalho que favorecem o desenvolvimento da linguagem. Além de possibilitar reflexões sobre os variados gêneros contidos, permitem também o conhecimento e discussões dos temas sociais, a análise das múltiplas interpretações elaboradas pelos segmentos da sociedade, o estudo de um produto que tem função social específica e que leva os alunos a desenvolverem sua cidadania.

De acordo com os referidos autores, o jornal além de servir para exemplificar a função social da escrita como fonte de informação, também se torna um veículo para reflexão e que possibilita tomada de decisões, pois envolve questões sociais e culturais, levando o aluno a interagir com o mundo em que está inserido, desenvolvendo seu senso crítico de realidade social.

Segundo Bonini (2003, p. 210), o jornal é um hipergênero. Para o autor, são “suportes de gêneros e ao mesmo tempo, gêneros que se compõem a partir de outros gêneros”. 

Baltar (2003, p.57) considera o jornal como “um suporte textual que faz parte da instituição midiática ou do ambiente midiático, que tem suas características próprias, uma delas se destaca por informar os cidadãos do que está se passando na sociedade”.

Este autor define o jornal como um suporte textual midiático que, inserido num ambiente escolar, torna-se uma ferramenta de exploração da linguagem, seja escrita, oral ou pictórica (BALTAR, 2003).

Quando se utiliza o jornal na escola, que é uma instituição escolar, portanto no ambiente escolar, ele passa a ter caráter pedagógico sem deixar de ter também o caráter informativo, o que dá condição de se tornar um instrumento de reflexão das atividades humanas, vinculando-o a um mediador de cultura. A criança passa a ter contato com um material escrito, e pictórico, pertinente a cada categoria de texto específico inerente a ele, que são os diferentes gêneros.

Os jornais impressos são hipergêneros que carregam gêneros discursivos e que apresentam os textos como materialização destes discursos, portanto são um espaço discursivo. “Em síntese, é o discurso que materializa a vida da linguagem, o que a relaciona com a existência real e com os outros enunciados já produzidos” (KÖHLE, 2016).

No suporte jornal, temos os gêneros horóscopo, tirinha, artigo de opinião, editorial, classificados, reportagem, notícias, história em quadrinhos. São considerados gêneros pois têm uma intencionalidade, uma ideologia, interlocutores e são compostos de uma certa estrutura. Dentro dos gêneros, existem as tipologias textuais: textos descritivos, injuntivos, expositivos, narrativos, argumentativos. Isto é, os gêneros são compostos por diversas tipologias, que são categorias didáticas.

No dia a dia, comunicamo-nos por enunciados caracterizados por gêneros e não por tipologias. Os enunciados apresentam determinadas características, relativamente estáveis do gênero utilizado.

Considerando o jornal impresso como um suporte que contém os gêneros, inserir a criança nos textos jornalísticos favorece as bases para a compreensão dos sentidos, facilitando a compreensão e possibilitando a reflexão e o diálogo.

Quando as crianças têm contato com os gêneros do jornal impresso têm condições de prever como é o texto, permitindo o diálogo com o mesmo (SMITH, 1989).

Para Bakhtin (2010), quando a criança tem contato com os gêneros, compreende a situação de comunicação que no texto está proposta e emprega os discursos mais livremente. Além de compreender e dialogar com o texto apresentado, a criança possivelmente se posiciona frente ao exposto.

Na educação infantil, o professor, fazendo leituras do jornal, torna acessíveis às crianças os gêneros como deflagradores de compreensão e de significados, fazendo convergir a linguagem e o pensamento que são empregados na expressão discursiva entre os interlocutores.

Mediante as considerações dos autores aqui referenciados compreendemos que a mediação do jornal na produção textual se concentra em oportunidade de contato das crianças com variados gêneros discursivos, que contêm suas características e suas funções próprias de leitura e escrita, possibilitando a apropriação do ato de ler, pois “toda a compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza altamente responsiva” (BAKHTIN, 2003, p. 271).

A pesquisa em campo respaldou a compreensão dos postulados teóricos possibilitando-nos compreender como o jornal impresso pode se constituir em mediador do desenvolvimento da linguagem e do pensamento na educação infantil.

Ancoramos nossas análises à luz da teoria vygotskyana e da bakhtiniana, bem como em autores que compartilham destes pressupostos, pois compreendemos que os dois aportes teóricos “postulam que o homem é um sujeito social e situado historicamente, tendo a linguagem lugar de destaque em suas teorias”, apropriando-se das significações por meio do dialogismo nos contextos de aprendizagens (OMETTO, 2012, p. 2-3).

Entrelaçando as transcrições das entrevistas semiestruturadas com os registros de observação, identificamos eixos de análise com base no material empírico produzido, a saber: Inserindo a criança no mundo letrado; inserindo a criança na realidade circundante e crianças autoras. A fim de preservarmos as identidades das professoras elas serão aqui nomeadas como Ana e Bia quando nos referirmos às anotações e entrevistas dos registros do diário de campo.

Inserindo a criança no mundo letrado

Considerando que a aprendizagem se realiza por meio da mediação, observamos que o jornal impresso, inserido na sala de aula, possibilita a inserção da criança no mundo letrado pela mediação pedagógica, quando as professoras: Organizam os materiais escritos valorizando o jornal como mediador para a inserção das crianças no mundo letrado; leem para as crianças; mostram as letras quando leem para as crianças; possibilitam que as crianças leiam umas para as outras; enfatizam as características dos gêneros dos jornais.

Foram muitas as situações observadas onde as professoras valorizam os jornais como material escrito na mediação do desenvolvimento da linguagem e do pensamento, faremos a seguir um destaque de um trecho de entrevista com a   professora Ana que revela esta inferência:

Eu uso os jornais na sala porque ele é sem dúvida um recurso de muito valor, pois os alunos se interessam em reconhecer os códigos escritos, números e outros símbolos, além das imagens é claro, pois eles tentam ler pelas imagens. É meio confuso para eles no começo, mas com o trabalho eles se habituam com a leitura e a escrita. Eu desafio que eles leiam, e só depois de ouvir eu leio para eles para que conheçam a maneira da comunicação que está escrita no jornal. A maioria das professoras usa só os livros, eu gosto de usar todo tipo de material escrito. Acho que o trabalho fica mais rico. (PROFESSORA ANA).

Encontramos coerência entre a fala da professora Ana em entrevista com a prática observada, quando questionada sobre a importância de usar o jornal na sala de aula. Vejamos um excerto do diário de observação na sala da professora Ana:

Professora: - O que vocês acham que está escrito aqui? (A professora mostra uma imagem de jogadores).

Paulo: - É o jogador que fez um gol e gritou bem forte: Gol!

Dani: - Eu torço para o Corinthians e para o Brasil.

Maria: - Domingo teve jogo na TV. Lê professora!

Miguel: - O jogo de futebol vai ser domingo e todo mundo vai assistir.

Então a professora diz: - Muito bem, todos falaram bem, mas agora vou ler as palavras que estão escritas para vocês: desafio muito grande para os dois times que irão se enfrentar domingo. Parabéns a todos, pois a notícia era sobre o jogo.

Petrovsky (1981, p. 62) afirma que “a acumulação de impressões extraídas da atividade material serve de base para o desenvolvimento da linguagem da criança. Somente quando a palavra está apoiada pelas imagens do mundo real, esta é assim assimilada com êxito”.

Considerando que as leituras do jornal impresso pelas professoras para as crianças, propicia a inserção delas no mundo letrado, observamos no seguinte excerto do diário de campo, que a professora Bia propicia uma interação na sua sala de aula com os assuntos do planejamento, utilizando o jornal como um suporte de uso social, onde estão escritas informações importantes para a vida, cujo objetivo é mostrar às crianças que a leitura tem conotação necessária para a sobrevivência humana.

A professora Bia lê para as crianças o jornal do dia, buscando relacionar o assunto planejado com alguma matéria. Ela encontra uma reportagem sobre um artista que recicla os materiais que seriam descartados no ambiente, enfocando a questão da preservação do meio ambiente. Após a leitura, a professora pergunta para as crianças sobre formas de preservar o nosso planeta. As crianças se manifestam dizendo: Não pode jogar lixo na rua, pode fazer plantinhas com garrafa pet. Plantar flores num pote de margarina vazio [...]

Ometto (2012, p. 7) afirma que “a sala de aula torna-se espaço central para o processo de aprendizagem e conceitualização, é nela que o adulto e a criança interagem de uma forma diferenciada da vida cotidiana”. Assim sendo, a criança constrói um conceito de leitura de forma preliminar.

Mesmo antes da aquisição total da leitura e da escrita, a criança pequena deve ser inserida no mundo letrado. De acordo com Bajard (2007), quando a professora faz leituras para as crianças, a representação sonora da linguagem torna a linguagem escrita mais acessível a ela de maneira que ela possa vivenciar atos de leitura e de compreensão.

Outras situações de possibilidades de inserção da criança no mundo letrado foram observadas quando as professoras leem e mostram as palavras e letras para as crianças.

A professora Bia, ao ler para as crianças, além de mostrar o código escrito, faz gestos de escritas no ar para identificar as letras, nomeando-as. Vejamos o excerto de uma anotação de observação do diário de campo:

Neste dia, a professora Bia trouxe o jornal para a roda da conversa e leu a primeira página para as crianças, depois nomeou identificando as letras. Solicitou que algumas crianças manifestassem o conhecimento de alguma letra da página. Alguns acertos, outros erros e houve a mediação da professora em nomear corretamente. A professora propõe uma brincadeira de mímica. Ela mostraria a letra do jornal e as crianças fariam os gestos dessas letras escrevendo no ar. Demonstrou como fazia e as crianças fizeram e procuraram sugerir a identificação das letras escritas no ar. Após a estratégia, a professora deu giz de lousa e encaminhou as crianças para a área externa, onde deveriam escrever letras no chão e foi nomeando com as crianças.

Nesta proposta pedagógica a professora demonstrou às crianças que o código escrito representa uma linguagem específica e diferente daquela que estão acostumadas, a linguagem oral, mas que ambas fazem parte do universo cultural humano, que possibilitam meios de inserção, de interação e de comunicação entre as pessoas.

Outra situação que consideramos uma inserção no mundo letrado é quando observamos que a professora Bia oportuniza que as crianças leiam o jornal umas para as outras. Vejamos a seguinte anotação no diário de campo:

A professora Bia colocou o jornal no meio da roda da conversa, distribuindo um gênero para cada criança, que, deitadas no chão, olhavam e interpretavam as imagens, mostrando seus textos uns para os outros. As crianças buscavam ler a imagem como se fossem letras. A professora orientava e incentivava a participação de todas nessa troca de experiência com a leitura. As crianças atribuíam às imagens as seguintes falas:

- Isso está escrito assim: A mulher caiu no chão e se machucou. (A criança viu a imagem de uma senhora que estava sentada no chão pedindo ajuda aos que passavam e a reportagem era sobre o aumento de moradores de rua na região).

- Esse carro é bonito e está vendendo. (Era uma propaganda de venda de veículos).

- Hoje está sol, amanhã vai chover. (Sobre os símbolos da previsão do tempo).

A professora então lia para as crianças da maneira em que estava escrito o gênero, porém considerava o que as crianças estavam interpretando sobre as imagens.

Inferimos que a professora Bia oportunizou uma situação de letramento em sua sala, porque a leitura de imagens é algo possível às crianças desta faixa etária, pois ainda não aprenderam o código escrito. Porém, as crianças, no diálogo entre seus pares, compreendem que ler é algo que está expresso de algum modo no jornal.  Quando ouvem a leitura da professora, as crianças elaboram formas de compreensão sobre o processo da escrita por meio da interlocução, arriscando ler da forma que podem naquele momento, isto é, na zona real de desenvolvimento.

Essa troca entre interlocutores possibilita a incorporação de vozes e que as crianças se constituam umas pelas palavras das outras, pois, segundo Smolka (1991, p. 56):

[...] o diálogo não significa apenas alternância de vozes, [...], mas implica o encontro e a incorporação de vozes em um espaço e um tempo sócio histórico [...] no sentido mesmo de que as vozes dos outros estão sempre povoando a nossa atividade mental individual.

Outra forma de prática pedagógica que visa à inserção das crianças no mundo letrado que pudemos observar consiste na abordagem que as professoras dão aos gêneros dos jornais, sob o viés de uma perspectiva discursiva de letramento.

De forma intencional e sistematizada, as professoras consideram os gêneros como recursos auxiliares para a produção textual das crianças numa perspectiva de letramento discursivo. Vejamos uma situação registrada no diário:

A professora Bia retoma com as crianças o que é um jornal, perguntando quem sabe o que é. As crianças falam que tem letras, figuras e serve para a gente saber das coisas. Então a professora ouve, elogia e explica: 

-Crianças muito bem isso mesmo, o jornal traz escritos que nos mostram o que está acontecendo ou o que ainda vai acontecer no mundo, na nossa cidade e quando a gente lê fica sabendo o que se passa. A gente fica esperto quando sabe ler. O jornal tem notícias como esta (a professora mostra uma notícia), tem reportagens diversas sobre animais, jogo, (mostra também), tem propagandas de vendas de carros, casas, comidas (mostra veículos, casas, produtos de supermercado). Tem também história em quadrinhos, que parece aquilo que tem no gibi, tem crônicas que são histórias do dia a dia das pessoas, tem a previsão do tempo (mostra a previsão) para nós sabermos se vai chover ou fazer sol. Enfim, tem muitas coisas. Nós vamos ler sempre o jornal na sala. Mas hoje eu vou ler para vocês uma notícia que é uma coisa que já aconteceu em nossa cidade e que precisamos pensar um pouco sobre ela. E assim ela lê uma notícia.

Finalizando a análise sobre a inserção das crianças no mundo letrado inferimos que as práticas demonstraram a intencionalidade das professoras em inserir as crianças no mundo letrado, proporcionando momentos de familiarização, manuseio, leitura e vivências que envolvessem o jornal impresso. Pudemos observar que as crianças elaboravam e organizavam o pensamento participando dos momentos em que se exigia delas a expressão de palavras, de tentativas de leituras como atos de ler e não como decifração de códigos escritos ou pronúncia de sons e fonemas, mas de forma organizada e contextualizada à função da escrita e da leitura.

Inserindo a criança na realidade circundante

Outro eixo de análise foi a inserção da criança na realidade circundante. A criança interpreta as situações e as relaciona à sua visão de mundo quando são envolvidas em eventos que promovam a sua inserção na realidade circundante, como foi observada na sala de aula da professora Bia:

As crianças se organizaram na roda da conversa e a professora mostrou o jornal do dia em que havia um assunto publicado sobre uma queimada nos canaviais da região. Leu para as crianças, algumas impacientes, outras atentas. Outras queriam falar que tinham visto o fogo, o cheiro, enfim, queriam interferir na leitura, mas a professora sempre voltando para o objetivo: a leitura da notícia. Mostrando a imagem para as crianças. Interessante que ela não recorta a notícia, mas apresenta o todo para as crianças, isto é, ela lê a notícia toda. Após a leitura, ela pergunta às crianças sobre as consequências de uma queimada para os animais. As crianças fazem inferências do tipo:

- Morrem, vão embora para outro lugar.

- Entra nas casas das pessoas.

- As plantas ficam pretas.

- Fica fedido o ar.

Então o diálogo prossegue com os argumentos da professora sobre a temática. A professora pede que as crianças desenhem, no cantinho da pintura, as consequências das queimadas para o planeta, sendo colocado no jornal da sala posteriormente.

A professora Bia retira do jornal a notícia que se contextualiza ao seu planejamento – e que também leva as crianças a pensarem e se expressarem, por meio da linguagem verbal, o que sabem do assunto –, com a intencionalidade de as fazerem refletir sobre a temática que atinge a realidade e a vida das pessoas.

O diálogo instaurado na sala de aula é desencadeado tendo como elemento mediador o gênero notícia de jornal, cuja intencionalidade da professora é a de que as crianças elaborem pensamentos críticos frente à realidade que as cerca. O diálogo não só proporciona a troca de vozes, mas, por meio da interlocução, as crianças podem interpretar e reconstruir a realidade de forma intersubjetiva.

Assim sendo, recorremos à fala da professora Ana, observando que há um movimento de escuta valorizada dos saberes infantis que favorecem o exercício da cidadania e reflexão da realidade circundante:

Faço debates sobre os assuntos, valorizando a opinião de cada um. Meu objetivo é provocar, ver o que as crianças pensam a respeito dos assuntos, que tomem uma posição diante dos fatos! Refletir é bom desde pequeno! Ah, se a gente refletisse mais, não é mesmo? Meus objetivos são ouvir o que as crianças têm a dizer, incentivar a participação nas conversas, valorizando, e levar a considerarem os acontecimentos e quais proporções nos atingem como seres humanos. Ah! Valores e conhecimentos! (PROFESSORA ANA).

Quando a professora Ana indica que seu objetivo é provocar para saber o que as crianças conhecem sobre o assunto, ela está partindo daquilo que a criança já domina para então mediar suas ações pedagógicas de maneira que ocorra uma intervenção na zona de desenvolvimento iminente, conforme Prestes (2012).

As professoras, ao longo do período observado, propuseram inúmeros registros de acontecimentos na escola para que fossem inseridos no jornal da sala, elaborado com os desenhos das crianças como recurso de memória e transformados em produção textual, tendo a professora como escriba daquilo que as crianças expressaram. Surgindo o último eixo de nossas análises:

Crianças autoras

Observamos que, na elaboração do jornal, o desenho propiciou a expressão das crianças constituindo-se numa escrita de primeira ordem, pois é a representação direta do objeto, isto é, as crianças desenham um objeto para representar algo (VYGOTSKY, 2003).

   Quando as professoras escrevem o que as crianças quiseram relatar por meio dos desenhos, elas mostram que existe outra possibilidade de expressar ideias por meio do código escrito. Assim, a criança, no processo de aprendizagem e desenvolvimento, vai aprimorando os conceitos sobre a escrita, pois já se apropriou de sua função social e compreende que haverá a necessidade de domínio deste código futuramente para suprir suas necessidades de comunicação e interação.

Num trecho de entrevista, a professora Ana declara que reconhece o desenho da criança como uma forma de escrita:

As crianças têm oportunidade de expressar o que pensam e de maneira contextualizada quando a leitura se junta com a escrita. Elas desenham e expressam o que quiseram comunicar, então eu escrevo e acredito que assim elas compreendem que são capazes de produzir textos por meio dos desenhos que possuem voz pois transmitem algo para o leitor do jornal da sala (PROFESSORA ANA).

O trabalho com a leitura dos gêneros do jornal favoreceu a compreensão das crianças a respeito da elaboração do jornal da sala, pois vivenciaram atos de leitura e escrita que possibilitaram esta produção. Assim, a elaboração do jornal da sala apresentou um “caráter intencional de organização, sistematização, planejamento e reflexão”, possibilitando “em sua completude a apropriação das funções psicológicas superiores” (BORELLA, 2016, p.136), na nossa pesquisa, a linguagem e o pensamento.

Os gêneros mais trabalhados em ambas as salas de aula foram: Editorial, notícias, reportagens, história em quadrinhos, entrevista, previsão do tempo e crônica.        

A mediação das professoras exerceu fator fundamental, pois despertou na mente das crianças “um sistema de processos complexos de compreensão ativa e responsiva, sujeitos às experiências e habilidades” que elas já dominam (FONTANA, 2000, p. 19). Da mesma forma que ao elaborar seus textos para o jornal da sala, as crianças contaram com as experiências vividas nos atos de leitura dos gêneros dos jornais.

Considerações Finais

Compreendemos que a escola é a instituição que tem como função primordial inserir social e culturalmente as crianças no mundo, com o intuito de favorecer o desenvolvimento de suas funções psicológicas superiores, pois, por meio das interações sociais estabelecidas, as funções elementares de pensamento evoluem para formas mais abstratas, que permitirão ao indivíduo condições necessárias para o reconhecimento e controle da realidade.

Por intermédio destas relações com a cultura, a criança desenvolve a linguagem oral, a escrita e o pensamento; porém, a mediação pedagógica se faz necessária para que haja inserção de forma planejada, sistematizada e intencional, por meio das práticas educacionais. No processo ensino-aprendizagem, as mediações são importantes para favorecer as elaborações e apropriações do mundo escrito e circundante pela criança. A mediação entre a criança e o mundo pode ser exercida pelo próprio professor, pelas crianças do grupo e pelos instrumentos que o professor utiliza para ensinar. 

Por meio da literatura, foi possível estabelecermos uma relação dialógica entre alguns pressupostos da teoria histórico-cultural e da perspectiva bakhtiniana no tocante ao desenvolvimento humano, estabelecido pelas interações sociais que ocorrem nos processos de inserção dos indivíduos na cultura, pela mediação.

Constatamos, em nossas observações no campo da pesquisa, que as professoras, além de serem mediadoras, lançam mão de vários instrumentos mediadores para inserir as crianças na cultura, entre eles destacamos os jornais impressos, pois os consideram um meio pelo qual a criança pode dialogar com a realidade circundante, compreender a função social da escrita e reconstruir sentidos, elaborando formas de apropriação da cultura.

Na tentativa de desmistificar a questão sobre alfabetizar ou não na educação infantil, a busca empreendida pelas professoras é maior no sentido de significar as aprendizagens e oportunizar o desenvolvimento integral das crianças, considerando-as seres capazes de pensar e de se manifestar por meio da linguagem, descaracterizando a alfabetização da mera mecanicidade da escrita das letras.  Assim sendo, a questão da alfabetização fica vinculada às consequências do trabalho desenvolvido em sala de aula, não objetivada como prioridade mecanicista, mas como consequência de aquisições mais elaboradas de pensamento e de linguagem, promovidas pela mediação dos jornais, as quais consideramos como situações de letramento discursivo na educação infantil.

Nas práticas pedagógicas com a elaboração dos gêneros para os jornais das salas, as professoras mostraram às crianças que existem diferentes elementos de linguagens, em que os desenhos foram transformados em texto, quando interpretados e informados por elas. A interpretação é convertida em escritos gráficos quando redigidos pela professora, representando a linguagem oral pela linguagem escrita.

Na elaboração dos desenhos e das interpretações das crianças, que são escritas pelas professoras em forma textual, observamos que as marcas de experiências e das reflexões, feitas pelas crianças sobre os assuntos e temas culturais abordados de antemão, capacitam a formação de opiniões e, por consequência, a exposição de pensamentos muitas vezes de forma sincrética.

Portanto, mais que uma questão de técnica de escrita das letras, a produção de um jornal pelas crianças possibilitou inseri-las em situações de letramento, por meio das práticas sociais da leitura e escrita, empregadas de forma significativa e contextualizada à realidade circundante, estabelecidas pelos diálogos com os textos contidos nos jornais.

Foi possível verificarmos que as crianças expostas às situações de leitura e escrita conseguiram estabelecer relações com os gêneros dos jornais, contribuindo para a reflexão, a réplica, a avaliação e a constituição de sentidos, concretizada na elaboração dos jornais das salas, pois ocorreu uma reconstrução ativa no processo de apropriação da função da linguagem como forma de comunicação, bem como da expressão do pensamento como forma de interação humana necessária à vida. 

Por fim, consideramos que, para além da produção prática do jornal escolar, as crianças envolvidas nesta atividade puderam construir uma relação de estreito significado entre a linguagem oral e as formas de representação gráfica, o que beneficiará sobremaneira sua relação com a linguagem escrita quando, futuramente, forem submetidas ao ensino propriamente dito desta forma de linguagem.

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Correspondência

Heloisa Helena Oliveira de Azevedo — Pontifícia Universidade Católica de Campinas/CCHSA-FAEDUC — Rua Professor Dr. Euryclides de Jesus Zerbini, 1516, Parque Rural Fazenda Santa Cândida, CEP 13087-571, Campinas, São Paulo, Brasil.