A vita activa e os desafios para a educação a partir de Hannah Arendt

The vita activa and the challenges for education from Hannah Arendt

Danilo Arnaldo Briskievicz

Professor doutor no Instituto Federal de Minas Gerais, Santa Luzia, Minas Gerais, Brasil.

doserro@hotmail.com - http://orcid.org/0000-0002-7652-1959

 

Recebido em 26 de dezembro de 2018

Aprovado em 26 de junho de 2020

Publicado em 10 de agosto de 2020

 

RESUMO

O foco temático deste artigo é a discussão de Hannah Arendt sobre a vita activa e suas três atividades que são o labor, o trabalho e a ação e suas relações com a educação. O objetivo é explicar como no mundo atual por conta da vitória do animal laborans [a necessidade de preservação da própria vida] e/ou do homo faber [a intensa produção de bens duráveis pelo trabalho] houve um desmerecimento/desvalorização da ação política no espaço público, relacionando esse fenômeno com a compreensão arendtiana de educação como preparação para o mundo comum. Demonstramos como para Arendt a escola é um espaço preparatório para a plena cidadania com a chegada dos jovens à maioridade civil, um espaço para ensaios da vida pública no mundo comum que será herdado pelos estudantes. O método utilizado é a pesquisa bibliográfica de textos clássicos de Hannah Arendt como A condição humana e seus textos sobre a educação, além de ampla pesquisa sobre os seus comentadores. Os resultados esperados são: (a) a demonstração conceitual dos desafios da educação para o pleno exercício da cidadania no mundo atual diante da vitória do animal laborans e do homo faber bem como (b) a conceituação da educação para Hannah Arendt. Uma conclusão de nossos estudos é que pela educação como a entendeu Arendt, é possível refletir sobre o papel social da escola e questionar sua função de ensinar para a cidadania plena que pode se expressar na felicidade pública.

Palavras-chave: Cidadania; Ação; Filosofia Política da Educação.

 

ABSTRACT

The thematic focus of this article is Hannah Arendt's discussion of active vita and her three activities that are labor, work and action and their relationships with education. The objective is to explain how, in the present world, due to the victory of animal laborans and / or homo faber [the intense production of durable goods by labor] there has been a devaluation of political action in space public, linking this phenomenon with the Arendtian understanding of education as preparation for the common world. We show how for Arendt the school is a preparatory space for full citizenship with the arrival of the young people to the civil majority, a space for tests of the public life in the common world that will be inherited by the students. The method used is the bibliographical research of classic texts by Hannah Arendt as The human condition and its texts on education, as well as extensive research on its commentators. The expected results are: (a) the conceptual demonstration of the challenges of education for the full exercise of citizenship in today's world in the face of the victory of animal laborans and homo faber as well as (b) the conceptualization of education for Hannah Arendt. One conclusion of our studies is that by education as understood by Arendt, it is possible to reflect on the social role of the school and question its function of teaching to the full citizenship that can express itself in public happiness.

Keywords: Citizenship; Action; Political Philosophy of Education.

Por que discutir o impacto do labor e do trabalho na educação?

Em primeiro lugar, é necessário partir de um tema recorrente do pensamento de Hannah Arendt: a condição humana é vivenciada em três atividades que são o labor, o trabalho e a ação. O labor diz respeito à conservação da própria vida do indivíduo. O trabalho diz respeito à fabricação de objetos duráveis. A ação refere-se ao resultado da liberdade humana de começar algo novo no espaço público através da espontaneidade e do estar coletivamente com os outros cidadãos. Para Arendt (2005, p. 20):

A expressão vita activa é perpassada e sobrecarregada de tradição. É tão velha quanto a nossa tradição de pensamento político, mas não mais velha que ela. E essa tradição, longe de abranger e conceitualizar todas as experiências políticas da humanidade ocidental, é produto de uma constelação histórica e específica: o julgamento de Sócrates e o conflito entre o filósofo e a pólis. Depois de haver eliminado muitas das experiências do passado anterior que eram irrelevantes para suas finalidades políticas, prosseguiu até o fim, na obra de Karl Marx, de modo altamente seletivo. A própria expressão que, na filosofia medieval, é a tradução consagrada do bios politikos de Aristóteles, já ocorre em Agostinho onde, como vita negotiosa ou actuosa, reflete ainda o seu significado original: uma vida dedicada aos assuntos públicos e políticos.

Dessa forma, a tradição filosófica ocidental fundamentou a vita activa como o estar no mundo comum fazendo alguma coisa, ou seja, em constante estado de atividade. Para Arendt, importa esclarecer que o embotamento da ação no mundo atual teve sua principal cristalização nos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial, em especial a experiência política do totalitarismo alemão. Dessa forma, a terceira atividade da vida activa que é ação e sua experiência fundamental que é a manifestação da liberdade humana, foi desvalorizada acentuadamente na modernidade. Isso provocou o que Arendt denomina de vitória das atividades do labor e do trabalho sobre a ação.

Em segundo lugar, nos perguntamos sobre o impacto da vitória do animal laborans (em sua atividade de labor) e do homo faber (em sua atividade de trabalho) em detrimento da ação relacionando esse fenômeno com a crise da educação. Trata-se de entender a priori que para Arendt a escola é uma forma consistente de preparação para a ação, o que envolve uma capacidade de ensino dos adultos de seus valores e costumes para os alunos que chegam ao mundo comum pelo nascimento. Por isso, a escola antecede a plena atividade cidadã pois é anterior à responsabilidade que a maioridade civil impõe pela legislação. A cidadania estaria totalmente ativa após a passagem pela escola, que durante o ciclo básico de instrução, depois do ensaio de como se pode participação na vida pública, depois que o cidadão se torna responsável civilmente pelos seus atos através da maioridade civil, entregaria ao mundo comum cidadãos capacitados para o exercício da ação. Contudo, parece que o apego demasiado ao labor e ao trabalho diminuiu na modernidade por conta da apatia política o espaço para a ação. Este é um grande desafio da escola: além de instruir sobre o labor, além de capacitar para o trabalho, aumentar a participação no espaço público através da ação como forma de uma cidadania plena.

Por fim, nossa discussão caminha no sentido de fundamentar de que forma e a partir de quais autores e situações houve a vitória do labor e da fabricação em detrimento da ação. Ou seja, tentamos demonstrar de que maneira podemos entender o crescimento na modernidade da importância dada ao labor e ao trabalho em detrimento da ação. Nesse caso, entender essa dinâmica do mundo atual representa alargar a compreensão sobre o labor e o trabalho para diagnosticar os profundos desafios para a ação. Assim, a escola não deveria preparar apenas para o labor e o trabalho com o risco de diminuir a possibilidade do exercício pleno da cidadania que se dá através da ação no espaço público. Ao final de nosso estudo intencionamos ter contribuído para a discussão acerca da supervalorização do labor e do trabalho no mundo moderno e ter indicado os desafios para a ação, atividade que sintetiza o pleno exercício da cidadania.

Nossa investigação tem como pressuposto a noção arendtiana de que a escola é preparatória para o mundo comum e o antecede, tanto em termos de responsabilidade, quanto em termos de maioridade civil. Denominamos isso de ontologia da singularidade, ou seja, o momento anterior ao mundo, o momento que antecede a maioridade civil dos cidadãos:

A ontologia da singularidade (crianças e jovens) em Arendt tem como ponto de partida o fato biológico do nascimento dos novos seres humanos no mundo que já existe e que deverá ser mediado com eles pelos adultos. A natalidade é a revelação da singularidade, da unicidade do indivíduo no mundo. O nascimento põe no mundo novas possibilidades de ação que precisam ser mediadas pela educação. Por isso, receber e preparar quem chegou para assumir o protagonismo no espaço público é o momento-chave em que decidimos pelo cuidado com o mundo – amor mundi, pois necessitamos educar os recém-chegados, potencialmente políticos [...]. A escola e a educação devem tratar da singularidade de crianças e jovens (BRISKIEVICZ, 2018, p. 80-81).

Quando o processo de educação básica está finalizado, temos o início da ontologia da pluralidade que é quando os cidadãos se tornam plenamente aptos para o exercício responsável de sua cidadania. Na ontologia da singularidade, há uma grande proteção dos estudantes no espaço intramuros da escola. Na ontologia da pluralidade a proteção não mais existe uma vez que cada cidadão se torna legalmente responsável no espaço público onde há o pleno exercício da liberdade e de suas consequências. Na primeira constituição ontológica, a escola prepara através de ensaios para a segunda ontologia que se passa na vida pública e que tem como valor a felicidade pública. Explicado esse pressuposto ontológico, podemos aprofundar o que significa para a educação a valorização extrema da vida privada do labor e da vida privatizada do trabalho.  

O labor: a primeira atividade e a vitória do animal laborans

A ação é o cerne da vida política. A escola não tem outro objetivo, segundo Arendt, que não seja preparar os singulares para assumirem o papel dos plurais, aparecendo pela ação no mundo comum. Nesse sentido, do nascimento até a saída do ensino básico, no caso brasileiro, as crianças e jovens foram protegidos do mundo comum e dos riscos da ação. O problema para Arendt é que assumir este espaço da ação está cada vez mais difícil para os cidadãos, seja por questões sociais, seja por questões da intromissão da violência no espaço público, seja pela irrelevância dada à ação, com a supervalorização do labor, com a vitória do animal laborans, aspecto da análise arendtiana que vamos nos deter com mais vagar nesse primeiro momento. Ao final dessa análise objetivamos ter demonstrado como a ação no mundo atual está desacreditada e desvalorizada, impactando o discurso preparatório da escola.

Quando o indivíduo ingressa no mundo comum, passando a fazer parte do corpo político pelo nascimento, ele é recém-chegado à espécie humana. Cada singular recém-nascido vai precisar de cuidados para manter-se vivo, para manter-se em crescimento biológico, para desenvolver seu organismo, alimentando-se corretamente, recebendo suas vacinas fundamentais para manter o equilíbrio do corpo. Este processo biológico é o labor, cujo metabolismo interno tem como condição básica a própria vida. O labor é, pois, a individuação pelo corpo, organismo que vive de acordo com a premissa básica de que para crescer, desenvolver-se, precisa de atividades dos seus responsáveis para garantirem ao seu corpo em necessidade de sobrevivência a boa alimentação, o sono adequado, uma saúde cuidada com medicamentos e cuidados especiais. O labor nunca será abandonado durante a existência humana pois a necessidade de manter o organismo saudável fará com que cada indivíduo busque resolver seu labor da melhor maneira possível.

Para aprofundar a necessidade de manutenção da própria vida a fim de alargar a compreensão do que isso significa na vita activa, recorremos ao sistema das necessidades do psicólogo norte-americano Henry Murray (1893-1988). Em primeiro lugar, a necessidade está ligada diretamente ao bem-estar orgânico. Em segundo lugar, esse bem-estar se divide em dois tipos de necessidades: as primárias ou viscerogênicas de natureza biológica como a fome, a sede e o sono; as secundárias ou psicogênicas que derivam do bem-estar primário e são inerentes à estrutura psíquica do ser humana. Assim, cada deficiência ou necessidade humana gera um determinado comportamento e quanto mais intensa a necessidade, maior será a intensidade do comportamento a ela conectada.  Essas necessidades variam o tempo todo pois o organismo vivo demanda de cuidados para manter sua vitalidade (FRIEDMAN; SCHUSTACK, 2004). Assim, as necessidades geram disposições para agir de uma determinada maneira gerando as motivações interiores para uma determinada ação.

Outra teoria da necessidade foi criada pelo psicólogo norte-americano Abraham Maslow (1908-1970) em que as diferentes necessidades formam uma hierarquia. As necessidades fisiológicas formam a base da pirâmide: respiração, comida, água, sexo, sono, homeostase (equilíbrio corporal) e excreção. No segundo nível temos as necessidades de segurança íntima, física e psíquica que são a segurança do corpo, do emprego, de recursos, da moralidade, da família, da saúde e da propriedade. No terceiro nível encontram as necessidades de amor e relacionamentos, ou seja, de participação na vida social manifestando-se na amizade, nas relações familiares e na intimidade sexual. O quarto ponto da pirâmide diz respeito à necessidade de estima ou de autoconfiança que diz respeito à conquista da apreciação positiva dos outros, relacionada à conquista de um espaço de reconhecimento na sociedade. No quinto e último nível, Maslow indica que se trata da necessidade da realização pessoal, o mais alto nível da vida do indivíduo, em que a espontaneidade, a capacidade de solução de problemas e a ausência de preconceitos indicam uma vitalidade plena (FRIEDMAN; SCHUSTACK, 2004).

O labor é uma atividade fundamental para que indivíduo mantenha sua vitalidade, vivendo no mundo comum. Contudo, para Arendt o labor tornou-se com o passar do tempo, especialmente na era moderna com os avanços da industrialização, da urbanização e da necessidade de manter a vida orgânica acima de qualquer coisa pela atividade do trabalho. Com o advento das relações capitalistas no século XVIII, o labor tornou-se a atividade da vita activa mais importante para o ser humano, para a organização da vida privada e pública, para as esferas da vida humana (privada, social e política). Arendt acredita que “foi só quando perdeu o seu ponto de referência na vita contemplativa que a vita activa pôde tornar-se vida ativa no sentido mais amplo do termo (ARENDT, 2005, p. 333)”, ou seja, “foi somente porque esta vida ativa se manteve ligada à vida como único ponto de referência que a vida em si, o laborioso metabolismo do homem com a natureza, pôde tornar-se ativa e exibir toda a sua fertilidade” (ARENDT, 2005, p. 333).

Correia (2014, p. 88-89) acredita que o processo iniciou-se muito tempo antes, quando o advento do social como processo vital começou a aparecer nas sociedades  europeias, podendo “ser mais remotamente remetido à Idade Média e aos primórdios do feudalismo” em que “os interesses privados adquirem relevância pública, ou, mais propriamente, o privado e o público dissolvem-se no coletivo, no qual não se espera por ação, mas por comportamento, na medida em que impõem” uniformidade e conformismo como pressuposto da constituição da sociedade.

A vitória do animal laborans é o processo de centralização da existência humana no labor, ou seja, nas necessidades orgânicas do indivíduo e a crescente desvalorização da ação no espaço público. Para Correia (2014, p. 71), a vitória do animal laborans “é um tema central à reflexão arendtiana sobre a modernidade política” o que se explica pelo fato de que a crise das categorias centrais da política começou pelo processo de secularização.

A secularização pode ser definida historicamente quando, na modernidade, os homens abandonaram as categorias transcendentes que regulavam a vida pública. A decadência do “mundo transcendente” (ARENDT, 1992, p. 102) se deu pela separação entre Igreja e Estado, o que eliminou da política “todas as sanções religiosas” (ARENDT, 1992, p. 102) o que fez com “que a religião perdesse aquele elemento político que ela adquira nos séculos em que a Igreja Católica Romana agia como a herdeira do Império Romano” (ARENDT, 1992, p. 103).

Por isso, os pensadores políticos do século XVII serão os fundadores de uma visão política secular, realizando em suas teorias uma separação radical entre teologia e a vida pública, entre o governo dos homens e a religião, insistindo que “as regras do direito natural proporcionavam um fundamento para o organismo político mesmo que Deus não exista” (ARENDT, 1992, p. 104).

A secularização fez com que o homem moderno se voltasse radicalmente para a garantia da própria vida, como a necessidade mais importante, em detrimento da vida pública, ou seja, da atividade da ação, e a supervalorização do trabalho. Importante ressaltar que num primeiro momento houve uma exigência de participação política e de grande mobilização das comunidades políticas por conta do republicanismo moderno e das revoluções francesa e americana.

Mas com o passar do tempo a centralidade no labor e no trabalho que garante ao homem moderno a satisfação de suas necessidades, houve uma crescente perda de relevância da ação a ponto dessa crise ficar evidenciada na incapacidade de julgamento (a atividade do espírito mais próxima da ação) perdesse suas categorias tradicionais não intervindo diretamente como impedimento dos governos totalitários. A secularização demarca o momento em que o animal laborans surge com sua iniciativa de manter a vida como ela é: finita, transitória, efêmera e que precisa ser vivida em sua plenitude.

Por isso, Arendt insiste que a secularização é definitivamente um marco da vitória do animal laborans por conta da dúvida cartesiana, que despojou a vida dos cidadãos de seu ideal de imortalidade, ou pelo menos da sua certeza. Assim a vida espiritual, o cultivo da vita contemplativa coligada com a vita activa se perdeu com a secularização, voltando o homem à sua condição de simples mortal e o “mundo passou a ser menos estável, menos permanente e, portanto, menos confiável do que o fora na era cristã” (ARENDT, 2005, p. 333) e isso acarretou para o homem moderno a perda da certeza num mundo que viria depois da morte, sendo “arremessado para dentro de si mesmo, e não de encontro ao mundo que o rodeava” (ARENDT, 2005, p. 333).

Como René Descartes havia comprovado com sua doutrina racionalista acerca do conhecimento, o mundo real talvez nem existisse mais. Restou ao homem moderno abrigar-se no seu próprio organismo vivo. Era tudo o que ele tinha para dizer que estava vivo.

Arendt esclarece que a secularização não deu ao homem moderno de volta o mundo como de fato ele é. O retorno ao mundo dos modernos significou uma perda dupla: do mundo transcendente e do mundo imanente. Fechou-se na sua introspecção, “na qual suas mais elevadas experiências eram os processos vazios do cálculo da mente, o jogo da mente consigo mesma” (ARENDT, 2005, p. 334) sendo que “os únicos conteúdos que sobraram foram os apetites e os desejos, os impulsos insensatos de seu corpo que ele confundia com paixão” (ARENDT, 2005, p. 334). A única coisa que sobrou foi o corpo, o organismo que precisava ser imortalizada ao máximo, ou seja, sobreviver passou a ser a única razão de estar no mundo. O animal laborans volta a ser um membro da espécie humana e precisa sobreviver entre outros membros de sua espécie.

A crítica de Arendt em relação à vitória do animal laborans prossegue no sentido de demonstrar que o problema da negação da ação como distintivo da pluralidade dos homens e não apenas a manutenção da vida de seu organismo tem origem teórica em Marx. O labor encontrou sua plenitude no trabalho, aquela atividade da vita activa que garante um salário e que através dele é possível garantir a sobrevivência dos homens. Por isso, na visão de Arendt, o pensamento marxiano quando elabora sua definição de metabolismo acaba por pensar no fenômeno fisiológico, pois “está em questão o processo vital circular no qual o trabalho sacia as necessidades vitais, ao produzir bens de consumo que regeneram o processo vital, e, finalmente, reproduz força de trabalho” (CORREIA, 2014, p. 80). Corroborando com esta explicação, podemos acrescentar que “o labor é, também, uma atividade que se realiza através de um movimento circular, que alterna a obtenção dos meios de subsistência e o próprio consumo desses meios, um movimento que só termina com a própria vida” (WAGNER, 2002, p. 65); e outro processo circular que ocorre é aquele resultante do “encadeamento de esforço e de gratificação” (WAGNER, 2002, p. 65) em que “ao esforço e à dor associados à manutenção da vida e à sobrevivência da espécie, seguem-se o prazer e a felicidade no consumo e na reprodução da espécie” (WAGNER, 2002, p. 66).

Desta forma, Arendt explica a passagem da vida egoísta do indivíduo para a ênfase na vida social a partir de Marx. Segunda ela, a importância social do animal laborans “ocorreu quando Marx transformou a noção mais grosseira da economia clássica – de que todos os homens, quando agem, fazem-no por interesse próprio” (ARENDT, 2005, p. 334) para outra, mais ampla, mas inteiramente vinculadora dos homens pela atividade do labor que é a luta de classes.

A luta de classes é uma forma de vincular os homens ao social, mas reduzindo-os a uma força coletiva em que a transformação da sociedade é o resultado da força coletiva da espécie humana, da sua capacidade de iniciar processos. Para Arendt, a luta de classes de Marx – que se resolve com a revolução, baseada na violência como parteira da humanidade –, é aquele momento em que a humanidade socializada tem apenas um interesse de mudar o mundo enquanto classe. Nesse sentido, “o sujeito desse interesse são as classes ou a espécie humana, mas não o homem nem os homens” (ARENDT, 2005, p. 334). Com a luta de classes e a deterioração do labor em trabalho para criar um novo mundo, “até mesmo o último vestígio de ação que havia no que os homens faziam, a motivação implícita no interesse próprio, havia desaparecido” (ARENDT, 2005, p. 334) restando uma força dos homens quando se unem, em que cada um soma sua vitalidade a outras vitalidades, num processo “ao qual todos os homens e todas as atividades humanas estavam igualmente sujeitos” uma vez que “‘o próprio processo de pensar é um processo natural’ e cujo único objetivo, se é que tinha algum objetivo, era a sobrevivência da espécie animal humana” (ARENDT, 2005, p. 334).

O discurso e a ação, atividades fundamentais dos homens em pluralidade, foram reduzidas à vida individual que é valorizada à medida que pode ser somada a outros organismos vivos, ampliando sua força. Não é necessário nesse processo senão laborar, ou seja, importa apenas e tão somente impor-se como um corpo no espaço público, a fim de “garantir a continuidade da vida de cada um e de sua família” (ARENDT, 2005, p. 335) e, ademais, “tudo o que não fosse necessário, não exigido pelo metabolismo da vida com a natureza, era supérfluo ou só podia ser justificado em termos de alguma peculiaridade da vida humana em oposição à vida animal” (ARENDT, 2005, p. 335). Nesse sentido o animal laborans representa uma dimensão da condição humana profundamente condicionada pela vida biológica e por suas necessidades fisiológicas, como produto incontestável da sociedade de massas, criando uma forma de pensar e agir no mundo comum derivados única e exclusivamente do mero viver no mundo. Por isso, para Arendt, a vitória do animal laborans no mundo atual transforma o espaço comum da ação em “uma grande família” (CORREIA, 2014, p. 90) de “caráter tão marcadamente monolítico que não se pode depositar em sua transformação qualquer expectativa de real emancipação com vistas à fundação da liberdade política” (CORREIA, 2014, p. 90).

Assim, para finalizar a questão relacionada à vitória do animal laborans, podemos considerar que o labor é uma atividade humana ligada ao metabolismo orgânico e sua manutenção em constante funcionamento operatório. Como uma máquina dotada de uma vida interior, o animal laborans expande seu território às demais atividades da vida em comum, banalizando os espaços que lhes são cooptados como o trabalho e a ação.

Por isso, Correia (2014, p. 102) insiste na ideia de que o modo de vida do animal laborans é paradoxal em relação à política pois está sujeito ao ciclo infindável das necessidades privadas em que não pode fugir pois não exige criatividade, espontaneidade e imprevisibilidade. Não autoriza, “não permite que se conceba um modo de vida, isto é, uma forma de vida livremente escolhida no âmbito das possibilidades humanas de autoconfiguração deliberada.” Enquanto o homem vive condicionado à necessidade e, por isso, sujeito ao trabalho repetitivo e sem criatividade, ou seja, alienado em função de redundar sempre na necessidade biológica, quanto mais produz a abundância não consegue se redimir da futilidade de sua vida.

O trabalho e a fabricação: a violência fabrica um novo mundo?

O trabalho não se dá na vida privada, antes, é realizado na vida pública privatizada e está ligado diretamente à fabricação de artefatos, de produtos, que são colocados no mundo pelo homo faber. Por isso, o trabalho não é o labor pois não está condicionado à necessidade natural do sono, da fome, do sexo. O trabalho cria um mundo artificial para o próprio homem e tem durabilidade maior que a vida humana pois suas coisas tendem a permanecer por mais tempo que um ser humano no mundo. Aliás, as coisas fabricadas são conhecidas por sua original durabilidade. A condição primordial da condição humana relacionada ao trabalho é a mundanidade, aquilo que é feito para restar no mundo comum (ARENDT, 2005, p. 15-16).

A diferença entre o labor e o trabalho está no fato de que o primeiro está ligado ao metabolismo do organismo, do corpo, com suas necessidades naturais e precisa voltar-se para a natureza para retirar o que necessita para sobreviver. Por isso, labor “se refere às atividades mais básicas do homem ligadas à sua subsistência, enquanto o trabalho é o resultado de atividades que objetivam ultrapassar a existência terrena do indivíduo” (VACCARO, 2015, p. 360) e dessa forma “o labor é limitador das capacidades criativas individuais e está ligado à sobrevivência da espécie humana” (VACCARO, 2015, p. 360) e, por outro lado, “o trabalho está conectado à marca individual ou ao reconhecimento que os homens buscam de suas obras junto à sociedade” (VACCARO, 2015, p. 360).

Isso quer dizer, então, que o labor “satisfaz demandas biológicas da vida humana, produz bens de consumo não-duráveis – e que, por isso, está envolvido num processo cíclico e interminável da produção material” (GASPAR, 2006, p. 3) e o trabalho “consiste naquela atividade responsável pela produção das demandas materiais da vida humana que escapam à dimensão meramente biológica, em seus termos, os bens de consumo duráveis” (GASPAR, 2006, p. 3). Por isso, o trabalho “constitui-se originalmente de atividades cujo início, meio e fim são perfeitamente delineados e cujos resultados, além de duráveis, expressam a individualidade de quem os produziu” (GASPAR, 2006, p. 3).

O animal laborans é o contrário do animal rationale da tradição grega antiga, considerado apto à vida de pensamento. O animal laborans é também diferenciado do homo faber pois este se dedica ao trabalho como atividade. Podemos dizer, sem forçar o sentido arendtiano, que a maioria dos seres humanos se concentram, atualmente, nestas duas categorias de animal laborans e homo faber.

Dessa forma o trabalho[1] é uma atividade ligada não ao corpo enquanto atividade necessária para a sobrevivência a fim de evitar a mortalidade, mas está ligada às mãos, à manufatura, à confecção de artefatos para serem usados no mundo comum. A natureza é o material básico para a fabricação realizada pelo homo faber pois constrói o mundo “como morada do homem” (WAGNER, 2002, p. 63), ou seja, como “obras de arte e os objetos de uso” (WAGNER, 2002, p. 63).

É assim que o homem pelo trabalho constrói coisas que apresentam seu caráter de durabilidade, diferenciando-se uns dos outros, à medida que podem construir ou manufaturar coisas. Evidentemente, Arendt reconhece que os objetos de uso têm durabilidade menor por conta de seu desgaste, sendo que uma obra de arte tende a se valorizar com o tempo, distanciando-se de seu fabricante, de seu produtor. O homo faber coloca no mundo os objetos de uso e de arte para tornar o mundo familiar e estável, um espaço em que ele se reconhece como parte integrante de seu mundo.

A violência é a expressão maior do trabalho por sua necessidade de transformar a natureza em objetos, modelando-os de acordo com seu projeto de fabricação. A natureza é um meio para a fabricação. O trabalho é uma atividade da vita activa que demanda planejamento prévio, ou seja, está ligada às categorias dos meios e fins, o que torna o homo faber um amo e um senhor pois “não apenas porque é o senhor ou se arrogou o papel de senhor, mas porque é o senhor de si mesmo e de seus atos” (ARENDT, 2005, p. 157) e isso o diferencia do animal laborans “sujeito às necessidades de sua existência” (ARENDT, 2005, p. 157) e também do homem de ação “que sempre depende de seus semelhantes” (ARENDT, 2005, p. 157) e, por isso, “a sós, com a sua imagem do futuro produto, o homo faber  pode produzir livremente; e também a sós, contemplando o trabalho de suas mãos, pode destruí-lo livremente” (ARENDT, 2005, p. 157). Nesse sentido, na atividade do homo faber há certa criatividade pois trata-se de uma de segunda natureza que de certa maneira formaliza as relações entre os homens, fornecendo a base material que ultrapassa as necessidades fisiológicas.

Marx e a revolução: a fabricação da nova história?

Segundo Karl Marx, “a violência é a parteira de toda sociedade velha que está prenhe de uma sociedade nova. Ela mesma é uma potência econômica” (MARX, 2013, p. 821). A frase de Marx é como uma tese para Arendt, que será desenvolvida num importante contraditório com o poder, a capacidade dos homens plurais de agir em conjunto no espaço público. Para Arendt, quando Marx afirmou que “a violência é a parteira da história”, emitiu uma noção confusa sobre a relação entre fenômenos diversos e contraditórios, através da qual sintetizou sua confusão semântica entre a violência, a fabricação e a revolução que não por acaso se tornaram marcas políticas do século XX. Não se trata de demonstrar que Arendt é ou não uma pensadora antimarxista, uma anticomunista ou qualquer forma direta de atribuição a Karl Marx de uma possível responsabilidade pelo totalitarismo. As críticas de Arendt a Marx são pontuais e a que vamos apresentar é uma dessas análises esparsas dizendo respeito às “declarações marxianas de que ‘o trabalho é o criador do homem’ e ‘violência é parteira da história’” (CORREIA, 2007, p. 40, grifos do autor) que “constituem um movimento complexo, profícuo e controverso do seu pensamento e seguramente demandam uma discussão mais ampla” (CORREIA, 2007, p. 40).

Por outro lado, a violência usada com a finalidade de modificação da natureza a fim de criar os objetos de uso e de arte na atividade da fabricação pode ser analisado de uma maneira bastante sofisticada a partir das considerações de André Duarte. Trata-se de considerar que Karl Marx atua politicamente num modo de fabricação em que a história fabricada pela revolução e pela violência acaba se tornando o objeto final da ação política. Vejamos como esse exercício de pensamento se desenvolve. Para Duarte (2000, p. 106), “a tese de Marx de que ‘a violência é a parteira da história’ é mais uma instância do seu enfrentamento radical com a tradição” uma vez que ele não conseguiu se “desvencilhar dela totalmente, reproduzindo, assim, antigas confusões conceituais que teriam graves consequências políticas para o presente.”

Na tese de que a violência, assim como na atividade da fabricação, deve fazer surgir uma nova história, ou dizendo de outra forma, uma nova sociedade pode surgir pela pressão que a violência exerce sobre as condições materiais da vida. A sociedade se assemelha à natureza que deve se modificar para surgir um objeto: o objeto nada mais é que o produto da revolução, uma nova humanidade.  A violência como fabricação na política em Marx passa “a ser o denominador comum de todas as formas de organização política, as quais não seriam mais do que a expressão da dominação do homem sobre o homem ao longo da história. Assim, Arendt certifica que na concepção marxiana “a violência, ou antes, a posse dos meios de violência, é o elemento constituinte de todas as formas de governo” (ARENDT, 1992, p. 107) uma vez que “o Estado é o instrumento da classe dominante por meio do qual ela oprime e explora, e toda a esfera da ação política é caracterizada pelo uso da violência” (ARENDT, 1992, p. 107).

Se a violência é o que mobiliza e acelera a história, então somente a revolução pode estabilizar a história e a política, tornando-se a razão de ser da ação. Arendt acredita que isso colocaria em risco a ação por fazê-la ocorrer baseada em implementos (tecnologia e técnicas) que deveriam manter em constante processo a revolução. Isso significaria abrir mão da liberdade da ação no espaço pública, abrindo mão do poder, para cair no domínio da violência, em sua natureza de fabricação e não política. Onde a violência impera o poder, a liberdade e espontaneidade deixam de existir.

Assim, Duarte (2000, p. 107) conclui que Marx insere a violência, própria da fabricação como objetivo e meta para o processo de criação de uma nova sociedade. A pergunta que se faz é: os homens no exercício da sua liberdade são incapazes de tomar decisões políticas válidas ou é preciso que alguém ou alguma coisa os faça encontrar a verdade que eles não enxergam? Arendt responde categoricamente que Marx afronta o ponto de partida da ação política que é o discurso, a persuasão, substituindo-os pela violência que por natureza é muda. Por isto, para Arendt,

No pensamento de Marx as implicações inerentes à visão da ação em termos da fabricação estão plenamente desenvolvidas. Na medida em que a fabricação sempre envolve, necessariamente, um elemento de violência, Marx viu consequentemente a ação como sendo primariamente violenta, isto é, em termos de guerras e revoluções. A violência, ele dizia, é a parteira da História. Ademais, a fabricação tem o seu fim e a justificação de seus meios no resultado efetivo; o fim justifica, de fato, todos os meios, e o fim já começou a justificar os meios mais extraordinários e aterrorizadores no campo da política (Arendt apud Duarte, 2000, p. 109).         

Portanto, apesar das polêmicas em relação à apropriação do pensamento de Karl Marx, Arendt apresenta sua explicação da segunda atividade da vita activa que é o trabalho. Para finalizar, é importante observar que o ambiente em que se realiza a atividade da fabricação, em que o homo faber realiza sua atividade é público, tem certa publicidade, mas ainda procede em isolamento (pois se diferencia do homem da ação, que realiza seu discurso e presença totalmente em público). Esse isolamento é quebrado pelo mercado de trocas (ARENDT, 2005, p. 174).

Desafio para a educação: a felicidade pública

A vitória do animal laborans e do homo faber no mundo atual em detrimento da constituição de cidadãos plenamente preparados para o exercício da liberdade no espaço público diz respeito diretamente à razão de ser da educação na modernidade. Se o diagnóstico de Arendt aponta para o constante decréscimo da valoração da ação como a atividade mobilizadora da vida em comum; se essa constatação indica que a liberdade está assujeitada aos espaços privatizados da vida do sujeito; se a desvalorização da liberdade em agir no espaço público é uma realidade que de certa forma explica o surgimento das massas manipuladas pelos movimentos totalitários e de discurso e práticas autoritárias estamos diante de um desafio para a educação. Afinal, se a escola é o espaço de socialização, é o espaço preparatório para a vida pública da ação, é o espaço garantido para os ensaios da plena cidadania, por que a ação continua sendo desvalorizada e desacreditada?

Uma resposta possível dada por Arendt é que na modernidade os cidadãos estão sendo obrigados a pensar na própria vida pelo avanço das necessidades reais ou artificiais ligadas à manutenção desta mesma vida que se passa no espaço privado dos lares. Por outro lado, a educação se compromete com o mercado de trabalho e a locação imediata de mão-de-obra para a manutenção do modelo de produção moderno. O que resta ao indivíduo que necessita do trabalho e de objetos comprados no mercado para manter sua vida privada e privativa? A necessidade imposta pelo labor e o trabalho imposto pela sociedade de consumo limita enormemente o espaço público de questionamento e de ação livre dos mesmos cidadãos. O cidadão moderno deu lugar ao animal laborans e ao homo faber.

Desta forma, a escola é colocada diante de um grande desafio que é continuar reproduzindo a desvalorização da ação e da liberdade. Nesse sentido, Arendt interpela a escola sobre o longo período de ensaios que antecipariam o espaço público da ação. Esses ensaios estão sendo feitos? A escola tem se democratizado realmente ao ponto de se tornar um laboratório para a cidadania? São questões que revelam que para além da reprodução do que é colocado pela sociedade atual como central – apenas a satisfação das necessidades orgânicas, apenas o sucesso de uma carreira no mercado de trabalho para ampliar os ganhos financeiros para aumentar a satisfação das necessidades do labor – há algo para além, algo que poderia ser feito no sentido de garantir aos cidadãos o exercício da liberdade no espaço público. É o que podemos denominar de felicidade pública.

A felicidade pública é uma categoria política retomada por Arendt dos modernos, em especial, quando, numa entrevista ao escritor alemão Adelber Reif, no ano de 1970, repercutia os eventos de 1968, em especial a rebelião estudantil na França e suas repercussões nos Estados Unidos[2]. Ela afirma que os jovens da nova geração, da nova esquerda, dos novos movimentos sociais retomavam a tradição dos modernos ao ingressarem no espaço público e sentirem algo diferente da proteção da vida privada, que só a presença e o discurso com os outros podem possibilitar. Trata-se de um sentimento recorrente na república democrática em que “esta geração descobriu o que o século dezoito chamou ‘felicidade pública’, que significa que quando o homem toma parte da vida pública abre para si uma dimensão de experiência humana que de outra forma lhe ficaria fechada e que de uma certa maneira constitui parte da ‘felicidade completa’” (ARENDT, 2006, p. 175).

O conceito de felicidade pública foi criado pelo jusracionalismo iluminista, sendo utilizado por Gaetano Filangieri (1762-1786), defensor do despotismo esclarecido. Por ocasião da independência norte-americana, a felicidade pública apareceu no texto constitucional como acesso ao domínio público, na participação no poder e na democracia como direito à felicidade. Hannah Arendt comenta sobre a procura da felicidade  no capítulo terceiro de seu livro Sobre a revolução (ARENDT, 2001b, p. 141-220). Leitora atenta dos modernos, Arendt acreditava que o espaço público é um espaço que deve ser frequentado pelos cidadãos da mais variadas formas, para que alcancem pela particpação a experiência da felicidade pública. 

Em outro contexto, Arendt comenta sobre a performance para se alcançar a felicidade pública. Para ela, a melhor forma de se perceber a liberdade inerente à ação seja recorrer ao conceito de virtù de Nicolau Maquiavel, que se complementa com a fortuna. A virtù é “a excelência com que o homem responde às oportunidades que o mundo abre ante ele à guisa de fortuna” (ARENDT, 1992, p. 199) sendo “a melhor versão de seu significado é ‘virtuosidade’, isto é, uma excelência que atribuímos às artes de realização” (ARENDT, 1992, p. 199. A felicidade pública precisa para se manifestar de que o cidadão tenha seu virtuosismo reconhecido pelos outros. Por isso, a virtù garante a boa performance “onde a perfeição está no próprio desempenho e não em um produto final que sobrevive à atividade que a trouxe ao mundo e dela que sobrevive à atividade que a trouxe ao mundo e dela se torna independente” (ARENDT, 1992, p. 200). Por isso, “a virtuosidade da virtù de Maquiavel relembra-nos de certo modo o fato, embora certamente Maquiavel não o conhecesse, de os gregos utilizarem sempre metáforas como tocar flauta, dançar, pilotar e navegar” (ARENDT, 1992, p. 200) a fim de “separar e fazer a distinção das atividades políticas das demais, isto é, extraírem suas analogias das artes nas quais o virtuosismo do desempenho é decisivo” (ARENDT, 1992, p. 199-200). Apresentar-se em público é uma ação performática que tem um sentido de reconhecimento do sujeito e dos demais agentes. Nessa troca, nessa relação entre o cidadão e o mundo comum a felicidade é resultado de vários fatores, mas acima de tudo da certeza que o agente fez o melhor que podia, dentro daquilo que era possível naquela situação.

Arendt, contudo, nos alerta que para que a felicidade pública seja uma realidade para a maioria dos cidadãos é necessário garantir os direitos privados à vida e ao seu sustento. Enquanto os direitos sociais não forem garantidos e praticados efetivamente, “a liberdade, a vida política, a vida do cidadão – esta ‘felicidade pública’ de que falei – é um luxo” (ARENDT, 1977, p. 106), um tipo de “felicidade adicional para a qual se torna apto apenas depois de as solicitações do processo vital terem sido satisfeitas; desse modo, se falamos de igualdade, a questão é sempre a seguinte: quanto temos de transformar as vidas privadas dos pobres?” (ARENDT, 1977, p. 106). Ela acredita que “educação é muito bom, mas o que importa mesmo é dinheiro. Somente quando puderem desfrutar do público é que estarão dispostos e aptos a fazer sacrifícios pelo bem público” (ARENDT, 1977, p. 107), pois “requerer sacrifícios de indivíduos que ainda não são cidadãos é exigir deles um idealismo que eles não têm e nem podem ter em vista da urgência do processo vital” (ARENDT, 1977, p. 107) Nesse sentido, “antes de exigirmos idealismo dos pobres, devemos antes torná-los cidadãos: e isto implica transformar as circunstâncias de suas vidas privadas de modo que se tornem aptos a desfrutar do ‘público’ (ARENDT, 1977, p. 107, tradução nossa).

Portanto, Arendt está convencida que a felicidade pública é a culminância emocional do cidadão que participa com sua presença e feitos do corpo político, do mundo comum. Nesse sentido, a felicidade pública pode ser uma gratificação pela ação, ou seja, pode ser visto como  um autorreconhecimento de que agir vale a pena, de que agir é uma possibilidade de expandir a vida privada para a vida pública. Por isso,

Arendt irá acrescentar outros elementos que podem ser facilmente reconhecidos na tradição republicana: a república (à semelhança da pólis) coincide com o espaço onde a liberdade se realiza; ela requer a participação constante dos cidadãos nos afazeres políticos, exigindo para tanto o desenvolvimento de virtudes propriamente políticas; ela oferece aos cidadãos a possibilidade de conhecer uma “felicidade pública” (expressão que Arendt utiliza por diversas vezes, sobretudo no livro sobre a revolução), de natureza muito diversa daquela encontrada no interior do domínio privado e proveniente da satisfação de seus interesses; a república, por fim, como espaço da ação política, permite que os cidadãos deem vazão a seu desejo de distinção e adquiram a “glória”. Todos esses fatores podem nos levar a decidir pela inscrição de Arendt no grupo dos republicanos convictos, o que não seria, rigorosamente, errôneo, mas deixaria escapar algo de essencial (ADVERSE, 2012, p. 40).

Nesse sentido, a vida privada recebe da vida pública algo que só existe entre os homens e não na proteção do lar. A desproteção do espaço público exige uma atitude corajosa para a participação e seu retorno é a sensação de integração com o mundo comum.

Referências

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Correspondência

Danilo Arnaldo Briskievicz — Instituto Federal de Minas Gerais — Rua Érico Veríssimo, Londrina (São Benedito), CEP 33115390 - Santa Luzia, Minas Gerais, Brasil.

 

Notas



[1] Importante leitura crítica em relação à compreensão arendtiana do trabalho, do trabalho em Marx e John Locke, além de fundamental distinção dos termos labor, trabalho e ação ver: MAGALHÃES, 1985, p. 131-168. Ver também: ARON, 1976, p. 42-44; RICOEUR, 1991, p. 43-66. Para uma crítica atualizada, ver: VACCARO, 2015, p. 358-378. Importante retomada dos textos aqui sugeridos aparece em Soares (2015, p. 67-68), que intenciona rever “as ideias de Arendt por vezes têm sido reafirmadas como uma refutação a Marx ou, pelo menos, como algo que permitiria enquadrá-lo, com destaque, na galeria dos glorificadores do trabalho pelo trabalho, do produtivismo pelo produtivismo.” Ou seja, “talvez as críticas de Arendt merecessem ser direcionadas a certo marxismo vulgar liderado, inicialmente, pela socialdemocracia, sob a batuta de dirigentes da II Internacional Socialista – sobretudo Karl Kautsky e Edward Bernstein – e pela III Internacional, em sua fase de degeneração sob orientação do stalinismo. Para ilustrar, poderíamos citar a implementação, por parte da burocracia stalinista, dos métodos de gestão do trabalho, através do stakhanovismo, do taylorismo e do fordismo, da valorização do operário padrão como símbolo da produtividade, da competitividade e de emulação do trabalho.”

[2] Para um detalhado contexto desse período, ver: VALLE, 2006, em especial o Cap. 6, sobre “Hannah Arendt: em nome da lei – o repúdio à violência revolucionária nos anos 1960.”