A “Base Nacional Comum Curricular” e a lei nº 13.415/2017: educação dos jovens brasileiros de volta aos “anos de chumbo”

The "Common National Curricular Base" and law nº 13.415 / 2017: education of young brazilians back to "years of lead"
 
 
 

Jéssica Kurak Ponciano

Universidade Estadual Paulista

 

Ronaldo Desiderio Castange

Universidade Estadual Paulista

 

Márcia Regina Canhoto de Lima

Universidade Estadual Paulista

 

José Milton de Lima 

Universidade Estadual Paulista

 

 

 

Recebido em 28 de novembro de 2018

Aprovado em 02 de abril de 2019

Publicado em 10 de maio de 2019

 

ISSN: 1984-6444 | http://dx.doi.org/10.5902/1984644435824

 

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo apontar e refletir sobre as semelhanças existentes entre a lei nº 13.415/2017, elaborada após o golpe parlamentar de 2016 e a lei nº 5.692/1971 criada depois do Golpe Militar de 1964. A análise empreendida buscou identificar os efeitos e as concepções de ambas sobre a educação para as juventudes populares. A fim de subsidiar esta reflexão, foram utilizadas como textos-base as obras: “Política Educacional”, de Eneida Oto Shiroma, Maria Célia Marcondes de Moraes e Olinda Evangelista (2004); e “A Nova Lei da Educação: LDB, trajetórias, limites e perspectivas”, de Demerval Saviani (2006). A escolha do referencial teórico que subvencionará a análise se deu em virtude da importância que possuem para a compreensão das políticas públicas educacionais brasileiras. Após a leitura crítica da lei nº 13.415/2017, comparando-a às análises sobre a lei nº 5.692/1971, empreendidas pelos autores das obras supracitadas concluiu-se que ambas as legislações buscam romper com o caráter propedêutico do Ensino Médio e, além disso, objetivam balizar a educação dos jovens das classes populares, relegando a eles um ensino de caráter puramente tecnicista, cuja principal finalidade consiste na formação de mão de obra e insumos ao mercado capitalista neoliberal.

Palavras-chave: Educação de Jovens Populares; Lei nº 13.415/2017; Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

 

ABSTRACT

The purpose of this article is to reflect and reflect on the similarities between Law 13.415 / 2017, which was drawn up after the parliamentary coup of 2016 and Law No. 5.692 / 1971 created after the military coup of 1964. The analysis we undertook, to identify the effects and conceptions of both on education for the popular youth. To support this reflection, the following works were used as basic texts: "Educational Policy", by Eneida Oto Shiroma, Maria Célia Marcondes de Moraes and Olinda Evangelista; and "The New Law of Education: LDB, trajectories, limits and perspectives", by Demerval Saviani. The choice of the theoretical framework that will support the analysis was due to the importance they have for the understanding of Brazilian public educational policies. After a critical reading of Law No. 13,415 / 2017, comparing it to the analyzes of Law No. 5,692 / 1971, undertaken by the authors of the above mentioned works, we conclude that both legislations seek to break with the propaedeutic character of High School and; in addition, they aim to provide education for the youth of the working classes, relegating to them a teaching of a purely technical character, whose main purpose consists in the formation of labor and inputs to the neoliberal capitalist market.

Keywords: Popular Youth Education; Law No.13.415/2017; Common National Curricular Base (BNCC).

 

Introdução

 

Nas últimas décadas do século XX, houve um expressivo aumento da escolarização para grande parcela dos jovens brasileiros. Essa expansão, que ocorreu nos níveis fundamental e (especialmente) médio dos sistemas públicos de ensino, afetou basicamente os jovens das camadas populares; este processo de ampliação do ensino público nas escolas da América Latina promoveu o fenômeno de massificação dos sistemas de ensino (FANFANI, 2000).

Em muitas circunstâncias e locais, o crescimento quantitativo não se associou a um projeto de ampliação proporcional de recursos públicos investidos no setor, ao contrário, mantiveram-se ou até mesmo diminuíram-se os recursos orçamentários “per capita, esticando ao máximo o rendimento de certas dimensões básicas da oferta, tais como recursos humanos, infraestrutura física, equipamento didático etc.” (FANFANI, 2000, p. 1). É precisamente nesta perspectiva que emergiram as iniciativas de reestruturação do ensino de jovens no país, ainda que situadas em diferentes décadas, trazem consigo o fato de atrelarem a formação do jovem ao mercado de trabalho, visando simplesmente atender a uma demanda do capital, desconsiderando aspectos fundamentais do processo formativo e da construção do conhecimento para a cidadania e para a alteridade.

Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005b) argumentam que em inúmeros debates sobre a inserção dos jovens no mercado de trabalho, sobretudo nas discussões promovidas pelo Seminário Nacional pela Cidadania de Adolescentes – Adolescência, Escolaridade, Profissionalização e Renda. Propostas de Políticas Públicas para Adolescentes de Baixa escolaridade e Baixa renda, de 2002, pairam os seguintes questionamentos:

[...] deve-se retardar a entrada dos adolescentes e jovens no mercado de trabalho – e com isso dar prioridade à sua sociabilidade, educação e formação profissional, reservando ainda os escassos empregos para os adultos – ou facilitar a inserção profissional de adolescentes de baixa renda a partir dos 16 anos, propiciando-lhes condições de gerar renda para suas famílias e para sua permanência na escola? (FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2005b, p. 1103).

Estas questões reforçam que a escola compreende o aluno como sujeito sem rosto, desconsiderando sua história, sua origem ou fração de classe. Entretanto, no Brasil, estes sujeitos que frequentam o Ensino Médio são, em sua maioria, jovens e, em menor número, adultos oriundos de classes populares, filhos de trabalhadores assalariados ou que proveem sua subsistência de forma precária e de modo autônomo, no campo ou na cidade, em regiões diversas, carregando consigo várias particularidades de ordem sociocultural e étnica (FRIGOTTO; CIAVATTA, 2004) figurando, desta maneira, como os maiores afetados pelas políticas públicas da educação. As identidades juvenis se configuram em diferentes tempos e espaço o universo cultural aparece como um espaço privilegiado de símbolos, representações e rituais onde os jovens procuram delinear uma identidade juvenil (DAYRELL; CARRANO, 2014).

O jovem se desenvolve como sujeito social por meio de interações com grupos aos quais ele pertence, ao longo de sua vida. Nesse percurso, mais do que “ser”, ele se caracteriza por um (in)constante “ir sendo” jovem, desta maneira, nesta jornada de aproximações e distanciamentos de grupos, pessoas, instituições, etc., ele forja a sua própria identidade, atribui sentido à sua vida, enfim, confere significados às mais distintas experiências pelas quais passa (SILVA; PELISSARI; STEIMBACH, 2013). Esta construção da subjetividade juvenil é, em muitas circunstâncias, desconsiderada pelo poder público, sobretudo quando este poder se encontra tão atrelado a orientações de agências e organismos internacionais que objetivam somente atender aos interesses do capital.

Dois aspectos importantes devem ser considerados com relação às ações que envolvem a juventude. De um lado, a concepção prévia de que quaisquer ações que se destinam aos jovens expressam parcialmente as representações normativas, socialmente construídas e recorrentes sobre a idade e sobre os atores sociais que a envolvem; ou seja, as práticas expressam uma imagem do ciclo de vida e seus sujeitos (LAGREE, 1999). Entretanto, é necessário levar em consideração – e essa é uma perspectiva relevante para o entendimento das políticas públicas recentes dirigidas aos jovens no Brasil – que há uma estreita relação entre as concepções socialmente forjadas sobre a juventude e o próprio impacto das ações políticas sobre essa categoria geracional (SPOSITO; CARRANO, 2003). Ou, como explicam os autores:

[...] a conformação das ações e programas públicos não sofre apenas os efeitos de concepções, mas pode, ao contrário, provocar modulações nas imagens dominantes que a sociedade constrói sobre seus sujeitos jovens. Assim, as políticas públicas de juventude não seriam apenas o retrato passivo de formas dominantes de conceber a condição juvenil, mas poderiam agir, ativamente, na produção de novas representações. (SPOSITO; CARRANO, 2003,p. 18).

Em virtude de as relações sociais dos jovens ocorrerem em múltiplos espaços, é necessário refletir sobre as relações que estes sujeitos estabelecem com a instituição escolar e com o seu processo de escolarização. Ser jovem e ser aluno não são a mesma coisa, é preciso aceitar e conhecer a condição do estudante (DAYRELL, 2007). A forma como o jovem significa as suas experiências escolares é muito variável e se relaciona, de modo direto, com suas pretensões; a relação jovem-escola pode significar para alguns uma obrigatoriedade enfadonha e “suportável”, ao passo que para outros a escola pode representar um motor de projeção social posterior (SILVA; PELISSARI; STEIMBACH, 2013). Estes aspectos devem ser pensados para que a escola possa efetivamente resguardar o seu papel social. Todavia, não se observa o respeito a essas prerrogativas ao se considerar as incursões realizadas pela lei nº 13.415/2017 (BRASIL, 2017a), concebida após o golpe parlamentar de 2016, e pela lei nº 5.692/1971, idealizada depois do Golpe Militar de 1964.

O recorte da análise buscou contemplar as legislações que alteraram, de maneira substancial, o Ensino Médio, visto que este nível da educação básica atende predominantemente, à juventude. Além disso, o contexto histórico, social e político em que o Brasil se situa, após o golpe parlamentar de 2016, mostra uma retomada ideológica aos preceitos conservadores e neoconservadores, sobretudo em espaços destinados à juventude.

Apesar de muitos jovens brasileiros da elite e das camadas médias da sociedade expressarem simpatia e contentamento com as perspectivas políticas e ideológicas do conservadorismo, do neoliberalismo e do nacionalismo ufanista; as reformas educacionais decorrentes destas perspectivas afetam predominantemente os jovens de classes mais populares que, em muitos casos, não se encontram alinhados a estas perspectivas ideológicas e identitárias. Por esta razão, estabeleceu-se como objeto de análise a lei nº 13.415/2017 (BRASIL, 2017a), relacionando-a às facetas efetuadas no período histórico denominado Ditadura Militar, que foi, de forma semelhante ao que se observa no Brasil contemporâneo, conservador, autoritário e neoliberal no que tange aos aspectos que interferem na construção de políticas públicas na educação.

Reformas educacionais do período militar: um “golpe” na juventude popular

            O Golpe Militar e a vitória conservadora interromperam as propostas de reforma da educação brasileira pensadas como parte das "reformas de base", que foram amplamente discutidas desde os anos de 1950 (EVANGELISTA; MORAES; SHIROMA, 2004). As reformas do ensino, promovidas pelos governos militares, assimilaram alguns aspectos defendidos por discussões anteriores, entretanto, eram balizadas por recomendações oriundas de agências internacionais e relatórios vinculados ao governo norte-americano (Relatório ATCON) e ao Ministério da Educação Nacional (Relatório Meira Mattos) (EVANGELISTA; MORAES; SHIROMA, 2004). Na definição de Amarilio Ferreira Jr. e Marisa Bittar (2008, p. 336) "a educação no âmbito do regime militar foi concebida como um instrumento a serviço da racionalidade tecnocrática, com o objetivo de se viabilizar o slogan Brasil Grande Potência”.

A relação entre o governo federal e a Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional (USAID) resultou na elaboração de um conjunto de ações, formalizadas por meio de acordos, que contribuíram para que a perspectiva de gestão e planejamento neoliberal e empresarial da educação tomasse corpo (SOUZA; TAVARES, 2014). Para que houvesse a efetivação e o desenvolvimento dos acordos e, por conseguinte, o recebimento dos recursos financeiros neles pactuados, o Brasil se submeteu à assessoria técnica dos EUA, além disso, teve que implementar uma proposta de gestão e planejamento que, até mesmo, viabilizasse a privatização das escolas, além de se estender à formação de professores e à produção e distribuição de materiais didáticos (SOUZA; TAVARES, 2014). Estes acordos proporcionaram à USAID um poder de atuação em todos os níveis de ensino (primário, médio e superior), nos segmentos profissional e acadêmico, dando-lhes acesso à intervenção no funcionamento do sistema educacional, por meio da reestruturação administrativa, do planejamento e treinamento de docentes, além da distribuição de livros técnicos e didáticos (CLARK; NASCIMENTO; SILVA, 2006).

A partir destas mudanças, a educação brasileira iniciou um novo ciclo, que lhe relegou uma concepção neoliberal e produtivista de ensino e gestão. Essa proposta adquiriu caráter impositivo ao ser incorporada à legislação do ensino, durante a Ditadura Militar, sob a condição de fixar os princípios da racionalidade, eficiência e produtividade, com os corolários do “máximo resultado com o mínimo dispêndio” e “não duplicação de meios para fins idênticos” (SAVIANI, 2008, p. 297).

            As reformas do ensino nos anos 1960 e 1970 vincularam-se aos termos precisos do novo regime. Desenvolvimento, ou seja, educação para a formação de "capital humano", vínculo estrito entre educação e mercado de trabalho, modernização de hábitos de consumo, integração da política educacional aos planos gerais de desenvolvimento e segurança nacional, defesa do Estado, repressão e controle político-ideológico da vida intelectual e artística do país (EVANGELISTA; MORAES; SHIROMA, 2004) – quesitos que afetaram diretamente o cotidiano escolar da época.

            Foi aprovada, em 11 de agosto de 1971, a lei nº 5.692/71, promovendo a unificação do antigo primário com o antigo ginásio, originando o curso de 1º grau de 8 anos e instituindo a profissionalização universal e compulsória no ensino de 2º grau, com o objetivo de atender a demanda pela formação de mão de obra qualificada para o mercado de trabalho (SAVIANI, 2008). Essa herança do regime militar se caracterizou pela promoção de uma visão produtivista de educação. Esta lógica produtivista resistiu às críticas de que foi alvo nos anos de 1980 e ainda se sustenta de maneira hegemônica, tendo balizado a produção da nova LDB, promulgada em 1996, e do Plano Nacional de Educação, aprovado em 2001 (SAVIANI, 2008). Permanecendo subjacente também na confecção da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

            É consenso entre os pesquisadores deste período que, não obstante a ampla legislação reformista, e também a política educacional do regime militar se apoiaram basicamente nas leis nº 5.540/68 – que reformou o ensino superior – e a nº 5.692/71 – que reformou o ensino de primeiro e segundo graus (EVANGELISTA; MORAES; SHIROMA, 2004). A lei nº 5.692/71 operou um processo de mudanças substanciais na estrutura do ensino vigente no Brasil, entre as quais a presença do ensino religioso e ampliação do princípio de apoio à privatização, garantindo amparo técnico e financeiro à iniciativa privada. Deste modo, a lei garantia a satisfação das elites conservadoras brasileiras, de forma que não houvessem desentendimentos entre diferentes setores sociais (EVANGELISTA; MORAES; SHIROMA, 2004). Objetivava-se, portanto, engrendrar as classes populares em trabalhos braçais e reservar a educação de nível superior às elites do país.

            O relatório que originou a lei nº 5.692/71 foi elaborado pelo Grupo de Trabalho nomeado pelo então presidente general Emílio Garrastazu Médici (SAVIANI, 2006), e subdividido em sete partes: a primeira seção tratava da estrutura do ensino, abordando pressupostos e soluções que deveriam ser adotadas; a segunda parte versou sobre a concepção de currículo, determinando conteúdos e fixando o tempo de duração dos cursos de primeiro e segundo graus; a terceira determinou a organização e o funcionamento dos estabelecimentos de ensino, versando sobre atos administrativos, entre outros; a quarta parte regulamentou o funcionamento do ensino supletivo; o quinto tópico estabeleceu o regime de trabalho dos professores e especialistas; a sexta parte abordou questões referentes ao financiamento do ensino; e a sétima e última justificou e estabeleceu as condições para a implementação da reforma proposta (SAVIANI, 2006).

            Das mudanças oriundas da lei nº 5.692/71, uma das mais importantes foi a ampliação da obrigatoriedade de permanência escolar por oito anos, processo deflagrado a partir da fusão dos antigos cursos primários e ginásio, instituindo-se, assim, a obrigatoriedade do ensino para a faixa etária entre os 7 e os 14 anos, impulsionando a abolição do excludente exame do ginásio na educação básica (EVANGELISTA; MORAES; SHIROMA, 2004). A ampliação do ensino público também foi uma das propostas da lei nº 13.415/2017, que objetiva expandir a carga horária do Ensino Médio até realocá-lo ao patamar de educação de tempo integral (BRASIL, 2017a).

            A lei nº 5.692/71 promoveu a ampliação da oferta de vagas e exigiu uma mudança estrutural na educação brasileira, de forma que as instituições de ensino locais se adaptassem às suas realidades, fato que não ocorria de forma efetiva nos antigos cursos primário e ginasial. Por esta razão, a obrigatoriedade da escolarização nas zonas rurais representava uma prerrogativa de difícil atendimento, tendo em vista a alta seletividade do antigo curso primário, e a inexistência das escolas de nível médio na zona rural (EVANGELISTA; MORAES; SHIROMA, 2004). Este fator denuncia um elemento de ineficácia da legislação supracitada, expondo também que os jovens moradores do meio rural eram grandemente afetados por estes equívocos.

            A lei nº 5.692/71 privilegiou os elementos quantitativos da implementação do ensino obrigatório, negligenciando os aspectos fundamentais para a implementação desta modalidade de maneira qualitativa. Um dos fatos que comprovam esta afirmativa reside na diminuição substancial de recursos federais destinados à educação, fator característico do período ditatorial militar, em que o orçamento era menor do que 3% dos orçamentos da União (EVANGELISTA; MORAES; SHIROMA, 2004). Desta maneira, os jovens oriundos das classes populares, e dependentes do ensino público sofreram com a precarização e a falta de recursos que inviabilizava a oferta de um ensino de qualidade.

            Para o implemento efetivo da lei nº 5.692/71, criou-se a “Lei 4.420, que estabeleceu o salário-educaçãoe funcionava como principal recurso de manutenção e gerenciamento do ensino fundamental. Além disso, este recurso garantia alianças políticas mais sólidas ao regime militar, de modo que direcionava a verba para a construção de escolas, atendendo aos interesses de empreiteiros locais, criando redes de clientelismo e dependências mútuas. Posteriormente, o salário-educação também foi aplicado na oferta educacional oriunda da iniciativa privada (EVANGELISTA; MORAES; SHIROMA, 2004). Percebe-se, nestas ações, a ocorrência de um profundo alinhamento entre Estado e iniciativa privada.

            A lei nº 5.692/71 abandonava o caráter tradicional e propedêutico do ensino de segundo grau e reforçava as prerrogativas do art. 1º que visava "proporcionar ao educando a formação necessária ao desenvolvimento de suas potencialidades como elemento de auto-realização, qualificação para o trabalho e preparo para o exercício consciente da cidadania" (BRASIL, 1971). Marcando, desta maneira, o caráter profissionalizante da educação e, por consequência, suprimindo seu viés propedêutico (EVANGELISTA; MORAES; SHIROMA, 2004). Na lei nº 5.692/71 vigorava uma proposta para incrementação do processo de profissionalização do ensino, o regime diminuiu a carga horária das disciplinas de formação básica, retirou da grade curricular o ensino de Filosofia, Sociologia e Psicologia e introduziu uma série de disciplinas supostamente profissionalizantes (EVANGELISTA; MORAES; SHIROMA, 2004). Frigotto, Ciavatta e Ramos (2018, p. 8) explicam, ainda, que:

A Lei 5.692/71 surgiu, então, com um duplo propósito: o de atender à demanda por técnicos de nível médio e o de conter a pressão sobre o ensino superior. O discurso utilizado para sustentar o caráter manifesto de formar técnicos construiu-se sob o argumento da "escassez de técnicos" no mercado e pela necessidade de evitar a "frustração de jovens" que não ingressavam nas universidades nem no mercado por não apresentarem uma habilitação profissional. Isto seria solucionado pela "terminalidade" do ensino técnico.

Entretanto, a escola mostrava-se inócua no sentido de atender às demandas do mercado que, na época, passava por um processo de crescente automação do trabalho, em virtude da etapa de industrialização. As consequências do "fracasso" da função profissionalizante da escola agravaram, desarticularam e precarizaram ainda mais a escola pública de 2° grau (EVANGELISTA; MORAES; SHIROMA, 2004). Em termos de distribuição de disciplinas e organização de conteúdos, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) apresenta semelhante proposta, visto que objetiva transmitir os conhecimentos voltados para a sociedade da tecnologia e da informação, elemento muito presente no cenário produtivo brasileiro.

            Ainda nesse período havia um grande número de jovens brasileiros sobrevivendo em situação de pobreza e até mesmo de miséria, de forma que a postura tecnocrática da educação era explícita e taxativa acerca deste aspecto ao propor a "formação paramilitar de trabalho de menores" (FERREIRA JR.; BITTAR, 2008, p. 346). Esta forma de trabalho consistia na prestação de serviços por parte dos jovens carentes, em troca de diária por trabalhos informais, sem o recebimento de remuneração (FERREIRA JR.; BITTAR, 2008). Observa-se, nesta ação, uma despreocupação do poder público com a juventude e com os aspectos concernentes à cidadania desta categoria social.

            O descompromisso da ditadura militar brasileira em relação à educação pública afetou, de forma substancial, a qualidade das instituições educacionais e, por conseguinte, da educação, transformando-a em uma esfera altamente lucrativa, de modo que as empresas privadas contavam com subsídios fiscais, incentivos, transferências de recursos públicos, e todos os tipos de facilidades promovidas pela União. E, na direção contrária, minguavam os recursos destinados às escolas públicas (EVANGELISTA; MORAES; SHIROMA, 2004). Esta ação mostra que a crise educacional figurou mais como um projeto, do que como uma consequência oriunda de ações impensadas das elites e dos ditadores (gestores) da época.

            A reforma originária desta legislação promoveu uma grande alteração no ensino que vigorava até aquele momento no Brasil. Em lugar de um curso primário com a duração de quatro anos, seguido de um ensino médio subdividido verticalmente em um curso ginasial de quatro anos e um curso colegial de três anos, passou-se a ter um ensino de primeiro grau com a duração de oito anos e um ensino de segundo grau de três anos, como regra geral (SAVIANI, 2006). Em lugar de um Ensino Médio subdividido horizontalmente, instituiu-se um curso de segundo grau unificado, de caráter profissionalizante, ofertando, assim, uma ampliação na possibilidade de escolhas de habilitações profissionais (SAVIANI, 2006). Este amplo leque de escolhas profissionais também é uma das justificativas contemporâneas para a implementação dos “itinerários formativos” propostos pela BNCC.

            A lei nº 5.692/1971 incorporou fortemente este espírito produtivista e empresarial, de modo que este princípio subjaz nos ordenamentos da gestão escolar (SOUZA; TAVARES, 2014) por meio da lei que alterou a LDB de 1961, a qual recomenda, em seu artigo 33, que “a formação de administradores, planejadores, orientadores, inspetores, supervisores e demais especialistas de educação seja feita em curso superior de graduação, com duração plena ou curta, ou de pós-graduação” (BRASIL, 1971). Destacou-se até aqui, as consequências decorrentes da reforma educacional promovida pelo regime militar, concluindo, portanto, que, para os jovens populares, estas medidas foram muito mais onerosas do que benéficas. De modo análogo, é possível observar o caráter homogeneizador e empresarial postulado pela lei nº 13.415/2017, fator a ser discutido com mais propriedade, no tópico subsequente.

A “BNCC” e a lei nº 13.415/2017: o “golpe” ainda não terminou

            No dia 22 de setembro de 2016, decorridos 22 dias da posse peremptória de Michel Temer, após o golpe de Estado que resultou no impeachment da presidenta, democraticamente eleita, Dilma Rousseff, foi lavrada a Medida Provisória (MP)
nº 746/2016 (FERRETI; SILVA, 2017). Este texto, encaminhado ao Congresso Nacional, foi produzido com a justificativa de orientar a organização dos currículos do Ensino Médio, objetivando ampliar, progressivamente, a jornada escolar deste nível de ensino e idealizar a Política de Fomento à Implementação de Escola de Ensino Médio em Tempo Integral (BRASIL, 2016).

            Para fins de crítica e atenção midiática, dois elementos foram profundamente comentados pelos meios de comunicação de massa e pela opinião pública: o primeiro deles, o fim da obrigatoriedade de quatro disciplinas — Sociologia, Filosofia, Artes e Educação Física — e a viabilidade do exercício do magistério por outros profissionais não portadores de licenciaturas plenas e dotados de “notório saber” em alguma área técnico-profissional (FERRETI; SILVA, 2017). Apesar do enfoque dado pela mídia, bem como a visibilidade sobre a reforma do Ensino Médio, “a ênfase nesses dois aspectos escondeu outros de igual ou maior relevância: a pretensão de alterar toda a estrutura curricular e de permitir o financiamento de instituições privadas, com recursos públicos, para ofertar parte da formação” (FERRETI; SILVA, 2017, p. 387). Ação semelhante àquela delineada pela lei nº 5.692/71.

            Todos os elementos que receberam atenção midiática foram reformulados pela lei nº 13.415 de 16/02/2017, de forma que “o ensino da arte, especialmente em suas expressões regionais, constituirá componente curricular obrigatório da educação básica” (BRASIL, 2017a). Além disso, há o seguinte texto no 2º Parágrafo do Artigo 25: “A Base Nacional Comum Curricular referente ao ensino médio incluirá obrigatoriamente estudos e práticas de educação física, arte, sociologia e filosofia” (BRASIL, 2017a).

            A etapa mais recente da educação brasileira, atravessada pelo golpe parlamentar de 2016, representado pela figura de Michel Temer, trouxe para a educação um processo de implementação de um neoliberalismo regressivo, centrado essencialmente na modernização tecnológica e no plano produtivo, associado ao capitalismo financeiro (FERRETI; SILVA, 2017). As questões referentes à coesão social se encontram praticamente nulas da agenda do governo pós-golpe, ainda que alguns programas dos governantes anteriores (Lula e Dilma) tenham permanecido, houve sobre eles restrições e cortes orçamentários oriundos da União. Deste modo, a educação brasileira dos jovens, por meio da Medida Provisória (MP) nº 746/2016 e da BNCC retomam a formação por “competências”, elemento não valorizado durante o governo do Presidente Lula; para que houvesse a manutenção de uma coerência epistemológica, esta MP propõe o desaparecimento, no âmbito dos governos estaduais, da oferta integrada do ensino médio com a educação profissional (FERRETI; SILVA, 2017). O ensino médio e a educação profissional, neste caso, se dirigem aos jovens e adultos das camadas populares da sociedade, sendo, portanto, os mais afetados por essas políticas públicas.

Durante o governo Lula houve uma tímida tentativa de “formulação de um projeto de caráter contra-hegemônico para o Ensino Médio e a educação profissional” (FERRETI; SILVA, 2017, p. 400), apesar disso, neste mesmo contexto não houve suficientes forças políticas que o sustentassem. Esta perspectiva não logrou êxito em virtude da adesão ao Neoliberalismo da Terceira Via, por parte do governo Lula e Dilma, tal qual ocorreu com a gestão de Fernando Henrique Cardoso (FHC). Sobre estes posicionamentos, Celso João Ferreti e Monica Ribeiro da Silva (2017, p. 400) explicam que,

No governo Lula pretendeu-se o atendimento a algumas das necessidades básicas da classe trabalhadora, desenvolvido, no entanto, na perspectiva da coesão, mais do que na transformação social, posto que foi limitado por uma política de conciliação dos interesses de classe que, no campo educacional, facilitou e até mesmo incentivou o empresariado, tanto produtivista quanto financista, a envolver-se com os diversos níveis da educação nacional, inclusive por meio do protagonismo acentuado junto ao MEC, por meio do movimento Todos pela Educação, não apenas do ponto de vista estritamente financeiro, mas também do político-ideológico. Essa postura fez com que se multiplicassem pelo Brasil diversas ações dessa parcela da população no sentido de instituir um mercado educacional e de interferir nas políticas educacionais do país, de modo, digamos, relativamente contido.

Essa política de conciliação de interesses culminou na abertura de possibilidades de interferência da esfera privada na oferta de educação pública, ação proposta na lei nº 13.415/2017 pelo artigo 4º, no § 11, onde se lê o seguinte texto: “Para efeito de cumprimento das exigências curriculares do ensino médio, os sistemas de ensino poderão reconhecer competências e firmar convênios com instituições de educação a distância com notório reconhecimento [...]” (BRASIL, 2017a). Este item implica a conciliação dos interesses capitalistas e neoliberais no processo de transformação da educação em mercadoria, criando assim uma nova “demanda” de mercado.

            Vânia Cardoso da Motta e Gaudêncio Frigotto (2017) partem do pressuposto de que a reforma do Ensino Médio imprime a irreparável contradição ético-política da moral e do ideário capitalista que se expressa de forma perversamente autoritária. A proposta é insuflada por um caráter ideológico instrumental, guiada como um meio natural de modernização – “fetichizada pelo determinismo tecnológico-inovador –, despida de relações de poder e sem historicidade” (MOTTA; FRIGOTTO, 2017, p. 357), de forma a concretizar a ruptura e a destruição da história de luta voltada para a derrogação da dicotomia estrutural do Ensino Médio, operando por uma lógica de desconsideração do aluno enquanto sujeito histórico, conferindo-lhe um viés abstrato, que ignora as condições reais e materiais dos estudantes populares, muitos deles trabalhadores, e vítimas desta reforma (MOTTA; FRIGOTTO, 2017). A política pública de modificação do Ensino Médio, em síntese, segue a tendência aplicada pela lei nº 5.692/71, pois busca apenas promover o conforto e a “harmonia” das classes mais favorecidas, desconsiderando as subjetividades e prioridades sociais dos jovens de classes populares.

A lei nº 13.415/2017 estabelece a ampliação, de maneira progressiva, da carga horária do Ensino Médio, para mil e quatrocentas horas, de forma que os sistemas de ensino ofereçam, no prazo máximo de cinco anos, no mínimo mil horas anuais de carga horária (BRASIL, 2017a). Esta legislação também prevê a oferta de educação para jovens e adultos no ensino noturno regular, de maneira conexa com as condições dos educandos (BRASIL, 2017a). Tal qual ocorreu no período da Ditadura Militar e, sobretudo, após a aprovação da Proposta e Emenda Constitucional (PEC) 241 ou PEC 55 em 2016, que congela as despesas do Governo Federal por 20 anos, a ampliação da quantidade de horas no Ensino Médio não representará uma garantia de melhoria da qualidade do ensino, ao contrário, poderá tornar-se ainda mais sucateada e precária.

A lei nº 13.415/2017 explicita que os currículos do Ensino Médio deverão levar em conta a formação integral dos estudantes, de forma que sua proposta pedagógica objetive a construção de um projeto de vida, direcionando o jovem para uma formação que o contemple em seus aspectos físicos, cognitivos e socioemocionais (BRASIL, 2017a). Este discurso representa uma faceta ilusória e hipócrita do projeto de “mercantilização” da educação de jovens no Brasil. Tal constatação fica ainda mais evidente quando são analisadas as condições arbitrárias e impositivas que antecederam a concepção da BNCC e da legislação de reforma do Ensino Médio.

Sobre os conteúdos, metodologias e técnicas de avaliação processual e formativa, a lei nº 13.415/2017 expressa que as redes de ensino possuirão autonomia para organizá-los “por meio de atividades teóricas e práticas, provas orais e escritas, seminários, projetos e atividades on-line.” (BRASIL, 2017a). Estes formatos de atividades objetivarão mensurar “o domínio dos princípios científicos e tecnológicos que presidem a produção moderna” (BRASIL, 2017a). Este fator demonstra o direcionamento da educação para a formação de mão de obra para a produção moderna, denunciado o caráter tecnicista desta legislação.

O alinhamento da lei nº 13.415/2017 aos ditames do capital também se manifesta pela inserção de itinerários formativos no currículo do Ensino Médio composto pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que, em seu artigo 36, impetra que estes itinerários formativos deverão ser organizados mediante a oferta de diferentes arranjos curriculares “conforme a relevância para o contexto local e a possibilidade dos sistemas de ensino” (BRASIL, 2017b). Fica nítido aqui que a “oferta local” está relacionada às demandas por mão de obra, alinhando a educação às necessidades do mercado capitalista regional. Além disso, os jovens populares e dependentes do ensino público ficarão à mercê da “possibilidade” de oferta dos itinerários pelo sistema de ensino, fato que compromete a “universalidade” do Ensino Médio e, por conseguinte, o seu caráter propedêutico. Ademais, o itinerário formativo “V – Formação técnica e profissional”, proposto pela BNCC, anuncia o alinhamento desta lei às necessidades mercantis.

A lei nº 13.415/2017 menciona que os alunos só poderão cursar mais de um itinerário formativo mediante a disponibilidade de vagas da instituição (BRASIL, 2017a). Neste caso, há uma óbvia intenção de limitar o processo de formação para os jovens que dependerem exclusivamente do ensino público, presumindo que as instituições e/ou sistemas de ensino que suprirem apenas o número mínimo de itinerários estarão cumprindo efetivamente com a legislação nº 13.415/2017. Além disso, a instituição de ensino que enfatizar a formação técnica e profissional, a critério dos sistemas de ensino deverá considerar, de acordo com o parágrafo 6º da lei nº 13.415/2017, “a inclusão de vivências práticas de trabalho no setor produtivo ou em ambientes de simulação, estabelecendo parcerias e fazendo uso, quando aplicável, de instrumentos estabelecidos pela legislação sobre aprendizagem profissional” (BRASIL, 2017a). Este item favorece a parceria entre os organismos públicos e a iniciativa privada, dando possibilidade de “terceirização” de trabalhos na área da educação. Além disso, o rótulo “inclusão de vivências práticas de trabalho no setor produtivo” pode representar simplesmente a exploração da mão de obra juvenil.

Ramos (2005) pontua que um currículo que integra trabalho, conhecimentos acadêmicos e científicos, deve ter como princípio educativo ofertar ao aluno a compreensão do significado econômico, social, histórico, político e cultural das Ciências e das Artes e da Tecnologia. Esta concepção de currículo deve se basear em uma epistemologia que conceba a relação estreita entre os conhecimentos gerais e os específicos, desenvolvendo uma metodologia que oportunize a identificação das especificidades e funções desses conhecimentos quanto à sua historicidade, finalidades e potencialidades (FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2005a).

Nessa perspectiva, não procede delimitar o quanto se destina à formação geral e à específica, posto que, na formação em que o trabalho é princípio educativo, estas são indissociáveis e, portanto, não podem ser predeterminadas e recortadas quantitativamente. (FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2005b, p. 1099).

Por esta razão, a delimitação de quantidade de carga horária para a inserção de itinerários formativos não se mostra uma opção democrática e viável no processo formativo dos jovens.

O artigo 8º da lei nº 13.415 impõe, de maneira concreta, a formalização de relações entre o Estado e a iniciativa privada, ao postular que a oferta de formação técnica e profissional poderá ser realizada na própria instituição de ensino ou em parceria com outras instituições previamente credenciadas pelo Conselho Estadual de Educação (BRASIL, 2017a). Esta ação é muito semelhante à expressa pela lei
5.692/71, que oferecia às empresas privadas a possibilidade de prestação de serviços na área da Educação. A iniciativa em firmar convênios com instituições de educação privadas também se manifesta no parágrafo 11º, afirmando que “para efeito de cumprimento das exigências curriculares do Ensino Médio, os sistemas de ensino poderão reconhecer competências e firmar convênios com instituições de educação a distância com notório reconhecimento” (BRASIL, 2017a). Além da aliança público e privado, esta legislação demonstra explícita intenção de implementar o ensino a distância também na Educação Básica, de modo que, aparentemente, esta oferta ocorra por meio da “privatização” dos serviços de educação a distância.

            A produção de mão de obra qualificada e força de trabalho é um elemento fundamental para manutenção das égides democrático-liberais que regem os aspectos socioeconômicos da sociedade brasileira, desta forma, a “formação e profissionalização da força de trabalho acabam sendo produzidas de forma imediata” (DEITOS; LARA; ZANARDINI, 2015, p. 987). Por esta razão, as políticas educacionais são parte do quadro de necessidades formativas que as normas sociais de produção exigem como mediações socioeconômicas (DEITOS; LARA; ZANARDINI, 2015).

No item II do 6º parágrafo, a lei nº 13.415/2017 versa sobre a possibilidade de obtenção de certificados intermediários de qualificação profissional, quando o processo de formação for estruturado e organizado em etapas com terminalidade (BRASIL, 2017a). Subjaz, neste fato, uma clara intencionalidade de ampliação da educação profissional no Brasil, de modo que, caso ela não seja realizada com qualidade e/ou padrões de qualidade mínimos, há grandes chances de se tornar mais um mecanismo de segregação social e afastamento do jovem popular do ensino superior do que uma política pública de promoção de ascendência social.

Os argumentos teórico-metodológicos que balizam os princípios socioeconômicos e políticos do sistema programático que fundamenta o receituário empresarial e governamental para a elaboração de reformas da política pública de educação profissional vêm sendo propagados desde a década de 1990 (DEITOS; LARA; ZANARDINI, 2015) e, recentemente, lograram êxito com a criação da lei nº 13.415/2017. As reflexões e análises empreendidas até aqui demonstram inúmeras semelhanças entre a reforma do Ensino Médio ocorrida durante a Ditadura Militar e aquela que se efetivará na atualidade do país. Desta forma, será necessário frentes de resistência que objetivem contestar estas políticas públicas prejudiciais para a formação do jovem, a fim de que sejam valorizadas as suas subjetividades sem retirar-lhes o direito a uma educação democrática, universal e efetivamente integral.

 

Considerações Finais: “para não dizer que não falei das flores”

É possível concluir que ambos os períodos históricos, bem como as reformas no Ensino Médio que aconteceram nestas duas respectivas fases, foram, na realidade, uma tentativa de conversão ora da educação em mercadoria, ora da mercadoria em educação. Há uma distinção entre “educação-mercadoria” e “mercadoria-educação”, essas definições expressam as duas formas básicas de interpretação da educação segundo a burguesia capitalista, que busca, de maneira acentuada, a sua autovalorização; assim, estas perspectivas se apresentam como faces da mesma moeda, “ou seja, são formas sob as quais a mercadoria se materializa no campo da formação humana” (SGUISSARDI, 2008, p. 1013)

Por um lado, se uma empresa privada estiver se esforçando por sua valorização a partir da venda de serviços educacionais, tal qual os investimentos direcionados às instituições de ensino, sejam elas as universidades sejam as escolas, esse capital comercial adotará a tendência de tratar a prática social educacional como uma mercadoria cuja finalidade é ser comercializada no mercado educacional, legitimando a perspectiva de “educação-mercadoria” (RODRIGUES, 2007).

Se, por outro lado, a educação e o conhecimento são encarados como insumos necessários à produção de outras mercadorias, como sói ser no processo produtivo, o capital industrial tenderá a encarar a prática social educacional como uma mercadoria-educação. (RODRIGUES, 2007 p. 5-6)

Em face disso, pode-se compreender que a viabilização de pactos entre a iniciativa privada e a oferta da educação pública representa, na realidade, um retrocesso para o jovem da classe popular.  

Para que a reforma do Ensino Médio seja democrática e eficiente, é necessário que a reformulação do Ensino Médio, promovida pela lei nº 13.415, considere as particularidades do universo jovem, pois, ainda que a maioria dos jovens oriundos de classes populares e filhos de trabalhadores resida em bairros pobres ou em favelas das médias e grandes cidades do Brasil, é preciso reconhecer “que uma outra quantidade trabalha com a família em minifúndios ou como arrendatários ou assalariados do campo” (FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2005b, p. 1103). A reforma e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) devem ser amplamente discutidas em diversos setores da sociedade, para que ela seja, de fato, uma política pública de equalização social, e não apenas uma ferramenta e compensação ou equilíbrio para demandas prioritariamente mercantis.

Todos os jovens que serão afetados por essas mudanças, sobretudo aqueles que já se encontram inseridos no mercado de trabalho, mesmo com suas particularidades, tendem a passar por um processo de amadurecimento precoce. Esse fator mostra a imprescindibilidade de políticas públicas que enfrentem e superem o plano conjuntural e emergencial, atinando para as singularidades e as diversidades dos grupos de jovens que adentram precocemente no mundo do trabalho (FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2005b). A ampliação de carga horária sem um devido aumento de recursos financeiros que atribuam qualidade ao ensino “empurra” a educação em direção ao velho paradigma: acesso versus permanência; ou ainda qualidade versus quantidade.

“Ao mesmo tempo, entretanto, as políticas devem encaminhar mudanças ou reformas estruturais no sentido da superação da desigualdade social e da universalização efetiva da educação básica em nível fundamental e médio” (FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2005b, p. 1103). O modo como a reforma do Ensino Médio se estrutura e é pensada mostra uma situação oposta, visto que a segregação formativa por meio da escolha de itinerários formativos tem como finalidade retirar o caráter propedêutico e generalista da educação básica de nível médio, relegando aos jovens das camadas populares a formação técnica, de mão de obra, assalariada e sem perspectiva de valorização simbólica.

 

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Correspondência

 

Jéssica Kurak Ponciano – Doutoranda em Educação no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual Paulista

 

Ronaldo Desiderio Castange – Doutorando em Educação no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual Paulista 

 

Márcia Regina Canhoto de Lima – Professora Livre Docente do Departamento de Educação e no Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Ciências e Tecnologia - UNESP

 

José Milton de Lima – Professor Livre Docente do Departamento de Educação e no Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Ciências e Tecnologia - UNESP

 

Faculdade de Ciências e Tecnologia - Campus de Presidente Prudente
Rua Roberto Simonsen, 305 – Centro Educacional – CEP 19060-900 – Presidente Prudente, São Paulo, Brasil – Telefone: (18) 3229-5388.

 

E-mail: jessica.kpp22@gmail.com – castange@live.com – marcialima@fct.unesp.br – milton.lima@unesp.br

 

ORCID iD: http://orcid.org/0000-0003-2994-8826 – http://orcid.org/0000-0001-7982-0527 – http://orcid.org/0000-0003-2435-923X – http://orcid.org/0000-0001-5519-2618

 

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